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CULPABILIDADE

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11.1 CONCEITO

11.1.1 Noções básicas e algumas notas históricas

Culpa, no sentido amplo, é o mesmo que culpabilidade. Não basta que o sujeito
tenha violado o preceito, causando, ainda, a lesão ou expondo o bem jurídico a perigo.
É preciso que esse fato tenha sido cometido culpavelmente.

A história do Direito Penal revela, entretanto, que nem sempre foi assim, pois
nos primórdios, e por muito tempo, para que se caracterizasse um crime, e, de
conseqüência, se pudesse aplicar a pena, era suficiente que entre o comportamento do
homem e o resultado houvesse apenas um nexo de causalidade.

Tendo havido um resultado, e verificando-se que era conseqüência de um


comportamento humano, então o homem cometera o crime e devia ser punido. Não se
conhecia qualquer ligação entre o agente e o fato em si, além, é claro, da causalidade
física.

Esse era o Direito Penal do resultado, da responsabilidade objetiva, que


predominava entre os povos bárbaros, como os germanos, e no Direito Romano
primitivo.

“Mas bem cedo, com o burilar do espírito humano, o legislador percebeu


que era errado colocar, no mesmo plano, o dano ocasionado pelo raio ou pelo
animal e o produzido pela ação do homem. Enquanto os dois primeiros devem
ser considerados inevitáveis, o último, pelo contrário, é evitável porque o
homem pode prever as conseqüências do seu atuar e abster-se assim de agir
em face delas.”1

Já no Direito Romano clássico desenvolve-se a idéia de culpabilidade, que vai

1 BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 2, p. 3.
2 – Direito Penal – Ney Moura Teles

ser mantida e enriquecida no Direito Canônico.

A evitabilidade dos fatos humanos é a idéia básica central sobre a qual vai ser
construída a noção de culpabilidade. Só o homem, porque conhece as leis da natureza e
porque é livre para agir, pode prever as conseqüências dos atos que praticar, e, prevendo-
as, pode desejar que elas se realizem ou querer que não aconteçam, evitando-as.

Da mesma idéia de evitabilidade nasce o conceito de previsibilidade, que é a


possibilidade de ser antevisto um resultado lesivo, uma conseqüência do
comportamento humano.

E, com base nessas duas noções básicas, constrói-se outro conceito


fundamental, o de voluntariedade, a vontade que o homem tem de alcançar
determinado objetivo.

Tem início a elaboração do conceito de culpabilidade, que só existiria se o


resultado fosse evitável, se houvesse previsibilidade, se o homem pudesse prevê-lo.

Prevendo-o, poderia ter evitado, e tendo vontade de que ele acontecesse, era,
por isso, culpado. Era o dolo.

Não prevendo o que deveria ter previsto, o homem terá agido indevidamente, não
evitando o errado porque não agiu como deveria ter agido. Deveria ter previsto o
previsível, evitado o evitável. Era, por isso, culpado. Eis a culpa, em sentido estrito.

Essas observações acerca do comportamento interno do sujeito constituem a


subjetividade que se passou a exigir para a aplicação da pena criminal. Surgiu um novo
Direito Penal, o da responsabilidade subjetiva, o Direito Penal da culpabilidade.

FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO ensina:

“Não se pode apontar com exatidão o momento histórico em que tal


fenômeno ocorreu, mesmo porque a história do Direito Penal está marcada de
retrocessos. Fora de dúvida, porém, é que, a partir de então, se começa a
construir a noção de culpabilidade, com a introdução, na idéia de crime, de
alguns elementos psíquicos, ou anímicos – a previsibilidade e a voluntariedade
– como condição da aplicação da pena criminal – nullum crimen sine culpa.”2

11.1.2 Teoria psicológica da culpabilidade

Para a teoria psicológica, culpabilidade é a ligação psíquica entre o agente e o fato,

2 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 219.
Culpabilidade - 3

sendo suas espécies o dolo e a culpa, em sentido estrito. Essa teoria constrói a noção de
culpabilidade com base nas duas idéias-básicas primitivamente construídas: a
previsibilidade e a voluntariedade.

Se houver previsibilidade e voluntariedade, haverá dolo. Se o agente previu o


resultado e desejou alcançá-lo, agiu dolosamente. Sendo o fato previsível e o sujeito,
prevendo ou não, não desejou o resultado, agiu com culpa, em sentido estrito.

Não se pode olvidar que essa é uma construção que surge no alvorecer do Direito
Penal da culpabilidade, e que vai imperar por muitos séculos, contando, até hoje, com
adeptos.

Culpabilidade é, durante muitos anos, dolo ou culpa, em sentido estrito. Como se


viu, no estudo da teoria finalista da ação, essa noção já está superada, mas não se deve
esquecer que essa idéia representou um grande avanço para o Direito Penal.

A estrutura do crime, adotada a teoria psicológica da culpabilidade, mostra a


conduta entendida do ponto de vista meramente causal, naturalístico, como simples
causa do resultado; a ilicitude tal qual se a entende modernamente; mas a
culpabilidade como o nexo psíquico entre o fato e o agente: dolosa ou culposa.

Já então se exigia, como pressuposto da culpabilidade, a capacidade penal, ou seja,


a imputabilidade do agente.

Contra a teoria psicológica levantam-se duas críticas bastante firmes.

O dolo, sabe-se, é, numa palavra, querer. A culpa, em sentido estrito, é o não-


querer. Age dolosamente quem quer ou aceita o resultado. Age culposamente quem não
quer o resultado, mas o causa, por negligência. Os conceitos de dolo e culpa são,
portanto, antagônicos, já que o primeiro é positivo e o segundo negativo. A teoria
psicológica, no entanto, afirma que dolo e culpa, stricto sensu, são espécies de
culpabilidade. De conseqüência, duas noções opostas, antagônicas, seriam espécies de
um mesmo denominador comum, o que é, no mínimo, incoerente, para não dizer,
absurdo.

Além disso, na culpa inconsciente, em que o sujeito, apesar da previsibilidade, não faz
a previsão, nenhuma ligação psicológica existe entre o ele e o fato; todavia, a teoria psicológica
afirma que a culpabilidade é um nexo psíquico entre o agente e o fato.

Essa teoria, por essas razões, não podia ser aceita.


4 – Direito Penal – Ney Moura Teles

11.1.3 Teoria normativa ou teoria psicológico-normativa da


culpabilidade

No início do século XX, o jurista alemão FRANK, estudando o caso do náufrago na


tábua de salvação, que, para salvar-se, matava o companheiro, observou que ele era
desculpado por estar em estado de necessidade, mas agia com dolo. Quando dirigia sua
conduta para eliminar o outro, agia com vontade de alcançar o resultado. Todavia, o
direito não lhe respondia com uma pena. Então, percebeu que a culpabilidade não
podia ter como espécie o dolo, uma vez que, mesmo agindo com dolo, o náufrago não
era culpado.

Com base nessa constatação, verificou que o sujeito só podia ser considerado
culpado e, de conseqüência, merecer a sanção penal quando seu comportamento tivesse
sido reprovável, censurável, e isso só era possível quando tivesse possibilidade de
conduzir-se de forma diferente.

A conclusão foi a de que o elemento caracterizador da culpabilidade era um juízo


de valor de reprovação que se fazia a respeito do fato praticado, dolosa ou
culposamente, pelo agente.

Quando se pudesse exigir do sujeito a realização de um comportamento de acordo


com as exigências do Direito, poder-se-ia reprová-lo. Se, verificadas as circunstâncias
em que ele se encontrava, fosse possível exigir dele um comportamento lícito,
mereceria censura, reprovação. Aí, sim, estaria presente a culpabilidade. FRANK
introduziu, no conceito de culpabilidade, uma exigência de caráter normativo: a
exigibilidade de conduta diversa.

Culpabilidade, portanto, não era apenas um liame psicológico entre o agente e o


fato, mas também a reprovabilidade do agente, pelo fato que ele realizou, com dolo ou
com culpa, em sentido estrito. Essa reprovabilidade só poderia ser feita, quando se
pudesse exigir do agente conduta diferente da realizada.

O dolo e a culpa, em sentido estrito, não são espécies de culpabilidade, mas seus
elementos.

A teoria recebeu a denominação de psicológico-normativa ou normativa, uma vez


que, mantendo o dolo e a culpa, em sentido estrito, não como espécies, mas como
elementos da culpabilidade, acrescentou um novo, de caráter normativo, que é o juízo
de valor de reprovação que se faz sobre a conduta do agente, pelo fato praticado,
quando presente a exigibilidade de conduta diversa.

Em síntese, para a teoria psicológico-normativa, a culpabilidade é a


Culpabilidade - 5

reprovabilidade da conduta do agente pelo fato, doloso ou culposo, por ele realizado.

O pressuposto da culpabilidade é a imputabilidade, e seus elementos são: o dolo


ou a culpa, em sentido estrito (elemento psicológico-normativo), e a exigibilidade de
conduta diversa (elemento normativo).

Presentes o pressuposto – imputabilidade – e os elementos da culpabilidade, o


agente teria sobre seu comportamento o juízo de censura, de reprovação; por isso, seria
culpado, devendo, de conseqüência, aperfeiçoado o crime, receber a sanção penal.

11.1.4 Teoria normativa pura

A teoria psicológico-normativa da culpabilidade apresentava algumas


incongruências.

Para ela, o dolo continha um elemento normativo: a consciência atual da ilicitude,


como já dizia a teoria da vontade, dos clássicos.

FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO aponta, a propósito, um problema crucial:

“Consideremos dois tipos criminológicos bem conhecidos – o do criminoso


habitual e o do criminoso por tendência. Tentemos aplicar-lhes o dolo
normativo. É discutível que isso seja possível. Raciocinemos com um exemplo
bem brasileiro: um delinqüente profissional do sertão, ou um delinqüente
habitual das favelas do Rio, ou de São Paulo. Esse tipo criminológico, em geral
menor desamparado, ou nascido de família desajustada, é criado e educado,
desde a mais tenra infância, em um ambiente social agressivo, onde a
criminalidade é a tônica. Para ele, o furto, o roubo, os crimes contra a pessoa,
é o normal, é o certo. Não chegou a formar em seu espírito uma consciência
ética, nem teve oportunidade para isso. Os seus padrões de conduta são
modelados segundo as regras do crime. Não sabe distinguir o certo do errado, o
reto do torto, o lícito do ilícito. Como exigir-se de um desses seres humanos às
avessas que tenha a exata ‘consciência atual da ilicitude’, quando jamais soube o
que é ilícito? Mas, se a consciência atual da ilicitude é elemento constitutivo do
dolo, a conclusão é a de que um tal tipo criminológico, quando comete crime,
age sem dolo.”3

Já foi dito – quando do estudo acerca da conduta – que, para agir dolosamente,
não é necessário que o sujeito tenha consciência atual de que age contra o direito, de

3 Op. cit. p. 225.


6 – Direito Penal – Ney Moura Teles

que realiza um comportamento proibido. A exigir-se esse elemento normativo, então se


chegaria à conclusão de que um ou outro daqueles delinqüentes mencionados por ASSIS
TOLEDO, quando mata, ou furta, age sem dolo, posto que não tem consciência real da
ilicitude.

É de todo claro, o favelado, nascido em ambiente marginal, filho de delinqüente


contumaz, de mãe alcoólatra, criado em ambiente agressivo, convivendo com a violência,
que presencia diariamente, em seu lar e no vizinho, entre seus amigos, apreende, em seu
dia-a-dia, valores exatamente opostos aos tutelados pelo direito. O dolo, portanto, deve
ser natural, não contendo um elemento normativo.

HANS WELZEL, quando formulou a teoria finalista da ação, como não poderia
deixar de ser, apresentou nova concepção sobre a culpabilidade, fulminando a teoria
psicológico-normativa e construindo uma nova estrutura do crime.

Primeiramente, demonstrou que o dolo e a culpa, em sentido estrito, não são


elementos da culpabilidade, porque se situam no interior dos tipos legais de crime, e,
de conseqüência, integram a própria conduta e o fato típico. Todos os tipos ou são
dolosos ou são culposos. Como verificado anteriormente, toda conduta humana é final,
dirigida a determinada finalidade.

Ao extrair a culpa, em sentido estrito, e o dolo, da culpabilidade, demonstrou,


ainda, que o dolo não continha a consciência atual da ilicitude, pois é puramente
psicológico.

Dolo e culpa, stricto sensu, que se situavam no interior da culpabilidade, foram


remetidos para o interior do fato típico, de onde, aliás, nunca saíram. Retirada do dolo,
a “consciência atual da ilicitude” permaneceu no interior da culpabilidade, com
substancial alteração. Demonstrou WELZEL que não se pode exigir do agente tenha
atuado com consciência real, atual, mas apenas com a consciência potencial, a
possibilidade de se conhecer a ilicitude.

Esquematicamente: da culpabilidade psicológico-normativa foram extraídos o


dolo e a culpa, em sentido estrito, remetidos para o fato típico. O dolo foi transportado
sem o elemento normativo, “consciência real da ilicitude”, que permaneceu na
culpabilidade alterado, assim: “consciência potencial da ilicitude”.

De conseqüência, a culpabilidade, tendo como pressuposto a imputabilidade, ficou


sendo a reprovabilidade da conduta do agente, com consciência potencial da ilicitude,
que poderia ter agido conforme o Direito. Em síntese: seu pressuposto é a
imputabilidade; seus elementos são: a potencial consciência da ilicitude e a
exigibilidade de conduta diversa.
Culpabilidade - 7

Culpabilidade, para o finalismo, é um puro juízo de valor, normativo, de


reprovação da conduta do agente imputável, com consciência potencial da ilicitude, que
poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo.

Com essas idéias, HANS WELZEL destruiu a teoria psicológico-normativa,


passando, então, a culpabilidade a ser concebida como um puro juízo de valor de
caráter normativo; daí o nome da teoria normativa pura ou teoria da culpabilidade, que
é o finalismo que esclarece este conceito.

Culpável, portanto, é o fato praticado por um sujeito imputável que tinha, pelo
menos, a possibilidade de saber que seu comportamento era proibido pelo
ordenamento jurídico, e que, nas circunstâncias em que agiu, poderia ter agido de
modo diferente, conforme o direito. Se o fato for culpável, ter-se-á aperfeiçoado o
crime, e deverá ser, de conseqüência, uma pena.

Assim evoluiu o conceito de culpabilidade ao longo dos anos. Até hoje, ainda
aparecem discussões novas a respeito do conceito, que, todavia, não cabem no âmbito
deste manual.

Necessária, agora, para a compreensão, em profundidade, da culpabilidade, a análise,


separada e detalhadamente, de seu pressuposto – a imputabilidade – e de seus elementos – a
potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

11.2 IMPUTABILIDADE

11.2.1 Conceito

O homem é um ser inteligente e livre; por isso, é responsável pelo que faz.

Inteligente, sabe o que é o bem e o que é o mal, sabe distinguir o certo do


errado, o lícito do ilícito, o que deve e o que não deve fazer.

Livre, pode escolher entre o torto e o direito, entre o justo e o injusto.

Se sabia distinguir entre o permitido e o proibido, e se podia escolher entre uma


e outra conduta, é responsável pelo comportamento proibido que realizou.

Só se pode atribuir a um homem a responsabilidade por algo realizado, se ele


for um ser inteligente e livre, se tiver condições pessoais que lhe assegurem a
capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática do fato punível.
Imputabilidade penal é a capacidade de ser culpável.

Se um homem não for inteligente, ou, sendo, não for livre, se não souber
distinguir entre o bem e o mal, ou sabendo, não tiver liberdade para escolher entre um
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e outro, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser atribuída. Será ele incapaz de ser
culpado.

O Código Penal não diz o que é imputabilidade, dizendo, ao contrário, o que é


inimputabilidade, nos arts. 26, 27 e 28, § 1º. Assim, para saber se o agente do fato
típico e ilícito era imputável, é necessário verificar se não era inimputável, com base nas
normas penais permissivas exculpantes mencionadas.

Ali estão os requisitos para aferição da inimputabilidade. Ausentes, o agente


será imputável, capaz de responder por seus atos, perante a justiça penal.

11.2.2 Inimputabilidade – espécies

São três as espécies de inimputabilidade, conforme seja seu requisito causal: a


primeira é a decorrente de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou
retardado; a segunda, causada pela menoridade do sujeito, e, finalmente, a proveniente
de embriaguez completa, fortuita ou por força maior.

11.2.2.1 Inimputabilidade por doença mental, desenvolvimento


mental incompleto ou desenvolvimento mental retardado

Dispõe o art. 26:

“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental


incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz
de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento.”

O Código Penal adotou o sistema biopsicológico de aferição da inimputabilidade,


segundo o qual será inimputável o indivíduo que portar uma anomalia psíquica e, ao
mesmo tempo, em decorrência dela, apresentar incapacidade de entendimento ou de
determinação.

O pressuposto biológico, que é o requisito causal dessa inimputabilidade, é ser o


agente portador de uma doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou de
desenvolvimento mental retardado.

São doenças mentais as enfermidades que alteram as funções intelectuais e


volitivas do indivíduo, entre outras,

“as psicoses (orgânicas, tóxicas e funcionais, como paralisia geral progressiva,


demência senil, sífilis cerebral, arteriosclerose cerebral, psicose maníaco-
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depressiva etc.), esquizofrenia, loucura, histeria, paranóia, etc.”4.

Divergem os tribunais acerca de a epilepsia ser ou não doença mental.

“Os epilépticos são doentes de extrema periculosidade. Esta


periculosidade deriva de uma condição biológica: a facilidade de reacionar
aos estímulos sensíveis e sensoriais, com perturbações humorais e afetivas e
com uma atividade irritável, que predispõe a reação impulsiva. São doentes de
mau humor, e muito irritáveis, disposição temperamental esta que conduz à
criminalidade violenta. Ao menor motivo, ou mesmo sem motivo aparente, o
doente explode em terríveis acessos de cólera violenta. A reação do epiléptico
processa-se à margem da consciência, é automática, brutal, verdadeira carga
energética concentrada.”5

O mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgado mais recente, tratou


diferentemente a matéria: “Ao epiléptico só falta a plena capacidade volitiva quando da
‘aura’. Fora da síndrome, é o portador do mal inteiramente responsável pelo delito
cometido.”6

Desenvolvimento mental incompleto é o que ainda não se concluiu e


desenvolvimento mental retardado é o que não se concluirá. No primeiro caso,
encontram-se os menores e, para alguns, os silvícolas não adaptados. É certo que estes,
pelo simples fato de não estarem, ainda, adaptados, não podem ser considerados
portadores de desenvolvimento mental incompleto, o que deve ser apurado mediante
perícia técnica. No segundo caso, encontram-se os oligofrênicos, os idiotas, imbecis e
débeis mentais. Os surdos-mudos podem apresentar deficiência intelectual
considerável e, conforme as circunstâncias, ser considerados com desenvolvimento
mental retardado.

Nem todo doente mental, portador de desenvolvimento mental incompleto ou


retardado, é inimputável. É necessário que, em conseqüência do pressuposto biológico,
seja ele inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se
de acordo com esse entendimento.

Para que o sujeito seja inimputável, a doença mental ou o desenvolvimento


incompleto ou retardado deve causar a absoluta incapacidade de entendimento do
indivíduo ou sua completa incapacidade de determinação.

4 JESUS, Damásio E. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 441.

5 Ac. do TJSP, Rel. Silva Leme. Revista dos Tribunais, nº 419, p. 102.

6 Revista dos Tribunais, nº 591, p. 319.


10 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Tal situação deve ter existido no momento em que foi realizada a ação ou a
omissão típica, no momento da conduta, e sua verificação será feita mediante exame
pericial, a ser realizado por técnicos – psiquiatras e psicólogos.

Examinando-o, indagar-se-á, primeiramente: o agente, ao tempo do fato, era doente


mental, tinha desenvolvimento mental incompleto ou retardado? Se a resposta for NÃO, a
conclusão é de que o agente é imputável, e a operação estará concluída.

Se a resposta for SIM, passa-se à segunda pergunta: ao tempo do fato, o agente era
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato? Se a resposta for SIM, a
conclusão é de que ele é inimputável e a operação estará encerrada.

Se for NÃO, passa-se à terceira e última pergunta: o agente, ao tempo do fato, era
inteiramente incapaz de determinar-se de acordo com aquele entendimento do caráter
ilícito do fato? Se a resposta for SIM, a conclusão é de que ele é inimputável; se for
NÃO, então ele é imputável, terminada a verificação.

Se o indivíduo que cometeu o fato típico e ilícito não era imputável, se não tinha
capacidade de entendimento, de saber que sua conduta era proibida, ou, mesmo capaz
de entender, não tinha capacidade de se autogovernar, não poderá sofrer a sanção
penal. Não pode ser punido, não pode ser responsabilizado.

Verificada a inimputabilidade do agente do fato típico e ilícito, deverá o juiz


aplicar-lhe uma medida de segurança, conforme manda o art. 97 do Código Penal, que
pode ser a internação em hospital de custódia, com tratamento psiquiátrico, ou a
sujeição a um tratamento ambulatorial. As medidas de segurança serão estudadas no
Capítulo 21 deste manual.

11.2.2.2 Inimputabilidade por menoridade

A Constituição Federal, em seu art. 228, dispõe:

“São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da


legislação especial.” O art. 27 do Código Penal: “Os menores de dezoito anos são
penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação
especial.”

A lei brasileira presume que todo menor de 18 anos tem desenvolvimento


mental incompleto; por isso, considera-o inimputável, independentemente da
verificação de sua capacidade de entendimento ou de determinação. Aqui, a lei adotou
um critério puramente biológico. Basta que seja menor e será inimputável. Trata-se de
uma presunção absoluta, não se admitindo prova da capacidade de entendimento ou de
Culpabilidade - 11

determinação.

A Lei nº 8.069, de 13-7-1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, cuida dos


menores que vierem a cometer fatos típicos. Para a lei especial, são crianças as pessoas
com até 12 anos de idade incompletos e adolescentes aquelas entre 12 e 18 anos.

Para as crianças que cometerem fatos típicos e ilícitos, será aplicada uma das
seguintes medidas: encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de
responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula e
freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em
programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou
ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos; abrigo em entidade; ou colocação em família
substituta, conforme as necessidades do caso.

Se o adolescente cometer fato típico ilícito, sofrerá uma das seguintes medidas,
ditas socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à
comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em
estabelecimento educacional, ou uma das medidas aplicáveis às crianças, com exceção
das duas últimas.

Ultimamente, com o aumento da criminalidade, e, ao lado dela, o incremento da


delinqüência juvenil, não são poucas as vozes que se levantam no sentido de que a
menoridade penal seja modificada, para que somente sejam considerados inimputáveis
os menores de 16 anos, e, alguns mais radicais, defendem a redução para abaixo dos 14
anos. Mostram estatísticas que revelam grande número de ilícitos praticados por
menores a mando, ou sob o controle, de adultos, que se utilizam da menoridade de
crianças e adolescentes para assegurar a impunidade.

Propostas como essas, longe de resolver qualquer problema da espécie existente


no país, constituem verdadeiro engodo, e só podem ser compreendidas dentro da
ideologia da corrente da lei e da ordem.

As crianças e os adolescentes que cometem fatos típicos e ilícitos, que são


usados por delinqüentes adultos, são, em verdade, filhos de uma sociedade injusta,
assentada em bases econômicas e sociais perversas. A eles não foram proporcionadas
oportunidades de vida digna, com habitação, família, educação, saúde, lazer, formação
moral, enfim, não tiveram oportunidades de apreender os valores ético-sociais
importantes e, por isso, quando atuam contra o direito, estão, na verdade,
simplesmente, respondendo aos “cidadãos de bem” com o gesto que aprenderam: a
12 – Direito Penal – Ney Moura Teles

violência e o desrespeito à lei.

Nunca se pode esquecer que não é o Direito Penal o purificador das almas, nem
sua missão é a de combater a violência, adulta ou juvenil. Sua tarefa é proteger os bens
jurídicos mais importantes, das lesões mais graves.

Querer modificar a menoridade penal para encarcerar adolescentes é,


infelizmente, querer transformá-los, mais cedo e mais eficazmente, em verdadeiros
delinqüentes, perigosos, pois encaminhá-los aos presídios, ao convívio com
delinqüentes formados, experimentados, é abdicar de qualquer possibilidade de educá-
los para uma vida digna.

Soa, por fim, como piada a proposta, uma vez que o Estado brasileiro não tem sido
capaz de construir estabelecimentos prisionais para atender às necessidades atuais de
vagas para os condenados a penas privativas de liberdade. Se a capacidade penal
alcançar os adolescentes, como se propõe, então a falência do sistema penitenciário
será ainda mais estrondosa.

11.2.2.3 Inimputabilidade por embriaguez completa, proveniente de


caso fortuito ou força maior

O § 1º do art. 28 do Código Penal contém o seguinte dispositivo:

“É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de


caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se
de acordo com esse entendimento.”

Trata-se aqui de outra espécie de inimputabilidade, que difere da primeira, do art.


26, apenas pelo requisito causal. O requisito conseqüencial é o mesmo: a inteira
incapacidade de entendimento ou de determinação.

Na primeira hipótese, o pressuposto é a doença mental, o desenvolvimento mental


incompleto ou retardado. Aqui, é a embriaguez. Não qualquer embriaguez, mas apenas
a completa e, mais, proveniente de caso fortuito ou força maior.

Embriaguez é “a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool, cujos efeitos


podem progredir de uma ligeira excitação até ao estado de paralisia e coma”7.

7 MANZINI. Apud JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p.
447.
Culpabilidade - 13

DAMÁSIO E. DE JESUS ensina que a embriaguez apresenta três fases. A primeira é a


chamada fase da excitação, em que o sujeito apresenta enorme euforia, torna-se loquaz,
brinca, diverte-se, fala com tom de voz elevado, tem diminuída sua capacidade de
autocrítica. Todos conhecem essa fase, em festas e ambientes sociais, e certamente
apenas os que jamais ingeriram bebida alcoólica não experimentaram essa situação.
Geralmente, nessa etapa, o sujeito não passa de um inconveniente, falando o que não
devia ou podia ser dito.

A segunda é a da depressão, em que o indivíduo já experimenta certa confusão


mental, não se localizando, com precisão, no tempo e no espaço, perdendo a capacidade
de coordenar seus movimentos corporais e, em decorrência desse déficit, irritando-se
com facilidade. Aqui, qualquer contrariedade, por menor que seja a dúvida que se
apresenta, faz com que o sujeito reaja com violência ou agressividade.

A terceira e última fase é a da letargia, quando o sujeito já ultrapassou todos os


limites do autocontrole físico e mental, atingindo o sono, a anestesia, o relaxamento
dos esfíncteres, culminando com o coma.

A embriaguez é completa quando atinge pelo menos a segunda fase.

O primeiro requisito para essa inimputabilidade é que a embriaguez seja completa.


Mas não basta; é preciso, ainda, que ela tenha sido decorrente de um caso fortuito ou
de força maior.

Embriaguez por caso fortuito é a acidental, que ocorre sem que o sujeito desejasse
embriagar-se, nem a decorrente de negligência. Nem é voluntária, nem é culposa. Às
vezes, o sujeito ingere determinada substância sem conhecer seu efeito embriagante, ou
uma sua condição fisiológica que, interagindo com a substância, conduz à embriaguez.

Embriaguez proveniente de força maior é a resultante de força física externa


imprimida sobre o sujeito, no sentido de obrigá-lo a ingerir a substância embriagante.

Se o sujeito, no momento da ação ou da omissão, estiver completamente


embriagado, em razão de caso fortuito ou força maior e se, por isso, for absolutamente
incapaz de entender a ilicitude do fato ou inteiramente incapaz de determinar-se de
acordo com esse entendimento, será ele inimputável.

Se a embriaguez for patológica, como já dito quando se abordou a interpretação da


lei penal, a inimputabilidade será verificada nos termos do art. 26 e não do § 1º do art.
28.

11.2.3 Embriaguez voluntária, preordenada ou não, e


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles

embriaguez culposa. A actio libera in causa

O art. 28, II, do Código Penal, estabelece que não exclui a imputabilidade a
embriaguez voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. Será o
agente considerado imputável, plenamente capaz de ser culpado. São duas as
modalidades: a voluntária, em que o sujeito tem consciência e vontade de se embriagar,
e a culposa, em que ele, apesar de não querer, continua, negligentemente, ingerindo a
substância até se embriagar.

A embriaguez voluntária pode ser, ainda, preordenada, quando o sujeito ingere


a substância inebriante voluntariamente e com o fim de cometer determinado fato
típico, caso em que, no momento da aplicação da pena, será considerada como
circunstância agravante.

A norma do art. 28, II, do Código Penal, leva à punição de agente por fato
cometido numa situação em que ele pode não ter consciência dos fatos praticados – o
que implica a responsabilização da pessoa num dos casos de verdadeira ausência de
conduta – ou em que lhe falte capacidade de entender a ilicitude ou de se determinar –,
o que resulta na punição de alguém na condição igual à do inimputável.

Essa seria uma exceção ao princípio segundo o qual a capacidade de ser culpado
deve ser aferida no momento da conduta, e é chamada actio libera in causa, definida
como

“os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por


ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele
estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou
sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda,
quando podia e devia prever”.8

Trata-se, na verdade, de responsabilidade penal objetiva, pois, nesses casos, o


agente, no momento em que realiza a conduta, muitas vezes não tem consciência do
fato, ou, então, da ilicitude.

Sem consciência, não se pode afirmar tenha ele cometido algo ou se omitido
voluntariamente, pois que a vontade depende da consciência. Muitas vezes, há
verdadeira ausência de conduta, por encontrar-se ele em estado de inconsciência.
Noutras, apesar da consciência fática, não tem, todavia, consciência da ilicitude, nem
mesmo capacidade para atingir tal consciência.

8QUEIRÓS, Narcélio de. Teoria da actio libera in causa e outras teses. Rio de Janeiro: Forense, 1963. p.
37.
Culpabilidade - 15

O preceito do inciso II do art. 28, todavia, é taxativo: não fica excluída a


imputabilidade penal, o que significa dizer que o indivíduo é capaz de ser culpado e
será, certamente, condenado.

A teoria da actio libera in causa faz transferir, por ficção, o juízo que se faz
acerca da imputabilidade, do momento da conduta, para o momento em que o agente
ingeriu a substância embriagante. Chega-se ao absurdo de dizer: se o agente, ao se
embriagar, previu a possibilidade de cometer crime, e o quis ou não se importou com
essa possibilidade, então responderá pelo fato a título de dolo, e se, não o prevendo, ou
prevendo e não aceitando o resultado previsível, responderá por culpa, stricto sensu.

Dolo e culpa, em sentido estrito, são categorias que exigem, necessariamente, a


previsibilidade, que só pode ocorrer quando o indivíduo tem consciência.

A solução do Código é infeliz e colide, frontalmente, com o princípio da


presunção da inocência, insculpido na Carta Magna, no art. 5º, LVII, ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, que
limita a atividade do legislador, impedindo-o de estabelecer a responsabilidade com
base em presunções de culpabilidade9. Não se pode, portanto, presumir a culpabilidade,
que deve restar demonstrada no momento em que o sujeito realizou o comportamento
proibido e reprovável.

A teoria da actio libera in causa, na verdade, colide com outros princípios


constitucionais. ALBERTO SILVA FRANCO observa-o violando o princípio da
personalidade da pena, uma vez que,

“se a pena não pode passar da pessoa do delinqüente, é fora de dúvida que
deva ter, com ele, estreita correlação, deve pertencer-lhe, deve atingi-lo como
pessoa, enquanto centro de agir e de decisão. Desta forma, ninguém poderá,
em verdade, responder por fato delituoso que não seja expressão de seu atuar,
que não seja uma afirmação sua. Isto significa, nessa perspectiva, que todo
agente deverá ser punido apenas e exclusivamente por fato próprio, por fato
seu, enfim, por fato de sua responsabilidade pessoal”10.

A actio libera in causa importa em agressão à harmonia do sistema penal. Com


efeito, dispõe o parágrafo único do art. 18 do Código Penal que, em regra, somente
serão punidos fatos definidos como crime cometidos dolosamente, e,
excepcionalmente, aqueles cometidos culposamente. Admitida a punição de

9 GOMES, Luiz Flávio. Direito de apelar em liberdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 39.
10 Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 333.
16 – Direito Penal – Ney Moura Teles

comportamentos realizados sem dolo e sem culpa, atinge-se, igualmente, por extensão,
o princípio da legalidade, ao qual se incorporou o princípio da criação dos tipos dolosos
e culposos.

Já não se pode aceitar a responsabilidade penal objetiva; daí que cabe ao


legislador brasileiro trilhar caminhos próximos aos de seus irmãos portugueses.

ALBERTO SILVA FRANCO dá notícia que o art. 282 do Código Penal português
assim estabelece:

“Quem, pela ingestão voluntária ou por negligência, de bebidas alcoólicas


ou outras substâncias tóxicas, se colocar em estado de completa
inimputabilidade e, nesse estado, praticar um acto criminalmente ilícito, será
punido com prisão até um ano e multa de 100 dias” e, “se o agente contou ou
podia contar que nesse estado cometeria factos criminalmente ilícitos, a pena
será a prisão de um a três anos e multa até 150 dias.” 11

Esse é o caminho. Deve-se eliminar a responsabilidade penal objetiva, e buscar


a implantação da reprovação do comportamento do sujeito que se embriaga,
preordenada, voluntária ou culposamente, e acaba por cometer fato típico ilícito.

11.2.4 Capacidade diminuída

Ao lado dos casos de inimputabilidade, o ordenamento penal prevê certas


situações intermediárias, em que o sujeito, apesar de imputável, não tem a plenitude de
sua capacidade de entendimento ou de determinação, denominadas de casos de
“capacidade diminuída”.

A lei prevê duas hipóteses: a menor capacidade decorrente de perturbação da


saúde mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, prevista no parágrafo
único do art. 26 (“a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em
virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto
ou retardado não era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento”), e a decorrente de embriaguez
incompleta, definida no § 2º do art. 28 (“a pena pode ser reduzida de um a dois terços,
se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não
possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter
ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”).

11 Op. cit. p. 333.


Culpabilidade - 17

Nas duas hipóteses, o agente é imputável; tem capacidade de entendimento e de


determinação. Ocorre que essa capacidade não é plena, completa, integral, mas sofre
diminuição em razão de perturbação da saúde mental, de desenvolvimento mental
incompleto, retardado, ou de embriaguez incompleta.

É pacífico que entre o estado de plena e total saúde mental, de completa


normalidade psíquica, e os estados de deficiência psíquica não há uma “linha precisa de
demarcação”, na expressão do sempre importante DAMÁSIO E. DE JESUS.

Existem estados psíquicos que se situam numa zona intermediária entre a doença e a
normalidade, entre a plenitude das faculdades psíquicas e a insanidade. É um terreno
impreciso situado entre a zona da inimputabilidade e o território da imputabilidade.

Entende o ordenamento que em tais situações o indivíduo é capaz, pois reúne


condições psíquicas para compreender a ilicitude de seu comportamento e para se
governar, para escolher o caminho a trilhar. É capaz, é imputável; todavia, sua
capacidade não é plena, total, como a que tem o homem completamente sadio
mentalmente.

Diz-se nesses casos que, apesar de imputável, sua capacidade é reduzida, é menor
do que a do plenamente imputável.

Por essa razão, determina a lei que, numa situação dessas, tendo o sujeito
realizado um fato típico e ilícito, será considerado capaz, imputável; todavia, na
hipótese de ser considerado culpado, o juiz, ao aplicar a pena, deverá, em atenção a sua
menor capacidade de entendimento ou de determinação, reduzi-la, de um a dois terços,
impondo, pois, uma reprovação menor do que a que seria imposta ao plenamente
capaz. Para uma capacidade menor, menor reprovação.

O art. 98 do Código Penal prevê, no caso da capacidade diminuída prevista no


parágrafo único do art. 26, a possibilidade de o juiz substituir a pena privativa de
liberdade por uma medida de segurança, de internação ou de tratamento ambulatorial,
conforme as circunstâncias.

11.2.5 Emoção e paixão

O art. 28, I, do Código Penal explica que a emoção e a paixão não excluem a
imputabilidade penal, pelo que todo aquele que vier a cometer um fato típico ilícito em
estado de emoção ou de paixão não será considerado inimputável, o que significa será
ele considerado imputável, capaz de ser culpado.

A emoção, dizem os doutrinadores, é um estado afetivo, que atinge e perturba o


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles

equilíbrio psicológico do indivíduo, alterando-lhe a maneira de pensar e, de


conseqüência, de agir, não retirando, todavia, a capacidade de entendimento e de
determinação. A ira, o medo, a alegria, a surpresa, a vergonha, dizem, são situações
emocionais, que são intensas e de duração limitada no tempo.

A paixão, ao contrário, é um estado crônico, duradouro e, por isso, estável,


revelando crise psíquica profunda, substancial, que atinge de modo grave não só a
psique, mas também o próprio estado físico do homem. É o amor, é o ódio.

Esses estados não implicam a perda da capacidade de entendimento ou de


determinação; apenas alteram o estado psicológico do sujeito, que, apesar de emocional
ou mentalmente alterado, continua com capacidade de entender e de se determinar.

Tais estados podem funcionar como circunstâncias atenuantes, ou causas de


diminuição de pena, conforme estejam associados a outras circunstâncias. É o que
acontece com o indivíduo que mata, a pedido, o amigo doente, em estado terminal,
praticando a eutanásia. Na verdade, encontra-se numa situação em que a emoção lhe
domina o pensamento e interfere em sua liberdade de agir.

Por isso, no ordenamento penal encontram-se normas como as do § 1º do art. 121:

“Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social
ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta
provocação da vítima, o juiz poderá reduzir a pena de um sexto a um terço”,

e a do art. 65, III, c, que manda o juiz atenuar a pena quando o agente tiver cometido
o fato “sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima.”

A emoção e a paixão não excluem a capacidade penal, não tornam o agente


inimputável, mas, em determinadas circunstâncias, podem constituir situações que
impõem menor reprovação penal, tendo em vista a modificação do estado psíquico do
sujeito, o que mostra que o Direito Penal coloca, no centro de suas atenções, o estado
interno do agente do fato.

11.2.6 Conclusão

Verificada a inimputabilidade do agente do fato, se maior de 18 anos, ser-lhe-á


aplicada medida de segurança, se menor, medida socioeducativa.

Concluindo o julgador pela imputabilidade – capacidade de entender a ilicitude


do fato e de determinar-se de acordo com o entendimento –, deverá, então, ser
analisada a culpabilidade, verificando se seus dois elementos estão presentes: a
Culpabilidade - 19

potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa, caso em que


será reprovável a conduta do agente.

11.3 ELEMENTOS DA CULPABILIDADE

A culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com


potencial consciência da ilicitude, poderia, nas circunstâncias, ter agido conforme o
Direito.

Será culpado, de conseguinte, o agente do fato típico que, imputável, tiver


atuado com possibilidade de conhecer a ilicitude de sua conduta, e que poderia ter-se
comportado de outro modo. Estudou-se o pressuposto da culpabilidade – a
imputabilidade. Agora: seus dois elementos.

11.3.1 Potencial consciência da ilicitude

Consciência é conhecimento. Conhecer é dominar, é apreender, é ter consigo, é


assenhorear-se do conhecimento de algo. Ter consciência de alguma coisa é ter
penetrado em suas entranhas, desvendando todas as suas características, todas as suas
particularidades, todas as suas nuanças. É conhecer, é saber, é discernir.

A ilicitude é a relação de antagonismo entre um fato típico e todo o


ordenamento jurídico. É a relação de contrariedade do fato com o Direito.

Potencial é o que exprime a possibilidade de algo.

Potencial consciência da ilicitude é a possibilidade de se conhecer que o fato é


contrário ao Direito, ilícito, proibido, choca-se com a ordem jurídica.

Para que se possa reprovar o comportamento de alguém, é necessário e


indispensável que ele, quando atuou, tivesse, pelo menos, a possibilidade de saber que
sua conduta era proibida, pois, se não lhe fosse possível atingir esse conhecimento, não
tinha, então, nenhum motivo, nenhuma razão para deixar de realizar o que realizou.

Quem age sem possibilidade de saber que fere o direito atua na certeza de que sua
conduta é de acordo com a ordem jurídica e, assim sendo, não pode merecer qualquer
censura, que só é possível quando se possa exigir do homem conhecer que seu gesto é
proibido.

Se ele tinha a possibilidade de conhecer a ilicitude e, mesmo assim, realizou a


conduta contrária ao direito, deve, por isso, ser censurado, já que, tendo possibilidade
de atingir a consciência da ilicitude, mesmo assim não a alcançou, quando devia, e por
20 – Direito Penal – Ney Moura Teles

isso vai ser reprovado.

A consciência potencial da ilicitude é a razão de ser da culpabilidade, do juízo de


reprovação que recai sobre o comportamento do sujeito, pois, quando este ignora,
desconhece, não sabe e nem pode saber que está contrariando o direito, não pode ser
culpado.

Não se deve confundir a ausência da consciência da ilicitude com a ignorância da


lei, esta inescusável. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO ensina:

“Fixemos isto: lei, em sentido jurídico estrito, é a norma escrita editada


pelos órgãos competentes do Estado. Ilicitude de um fato é a correlação de
contrariedade que se estabelece entre esse fato e a totalidade do ordenamento
jurídico vigente. Se tomarmos, de um lado, a totalidade das leis vigentes e, de
outro, um fato da vida real, não será preciso muito esforço para perceber que
a eventual ilicitude desse fato não está no fato em si, nem nas leis, mas entre
ambos, isto é, na mútua contrariedade que se estabeleceu entre o fato concreto,
real, e o ordenamento jurídico no seu todo. Assim, pode-se conhecer
perfeitamente a lei e não a ilicitude de um fato, o que bem revela a nítida
distinção dos conceitos em exame.”12

Desconhecer a ilicitude de um fato é completamente diferente de desconhecer a


lei.

Todas as pessoas, mesmo as analfabetas, que jamais viram um exemplar do


Código Penal, sabem que matar é crime, e a alegação de desconhecimento da lei para se
escusar da responsabilidade penal não é aceita pelo Direito. De nada adiantará, portanto,
a alegação do sujeito de que realizou o fato porque não sabia que era típico, definido
como crime.

Mesmo tendo pleno conhecimento da lei, o sujeito pode realizar um


comportamento ignorando que ele é proibido, ou acreditando que ele é permitido.

Certa feita, um cidadão, perseguindo ladrões que ingressaram na casa de uma


pessoa sua amiga, com o fim de recuperar os objetos subtraídos, acabou por alvejá-los,
matando um e ferindo outro. Chamado à delegacia de polícia, espantou-se diante da
notícia de que seria indiciado e processado, perguntando, indignado: “mas, doutor,
matei um ladrão e ainda vou responder processo?” Este homem, rude, simples,
ignorante, apesar de saber que matar é crime, agiu na certeza de que seu
comportamento era lícito. Dentro de sua experiência de vida, sua cultura, seus valores,

12 Op. cit. p. 263


Culpabilidade - 21

entendia permitido matar aquele que acabara de furtar. Faltou-lhe, portanto,


consciência da ilicitude. Não desconhecia a lei, mas ignorava a ilicitude.

Para a reprovação da conduta do sujeito, não se exige tenha ele a consciência real
da ilicitude, mas potencial. Exige-se que lhe tenha sido possível, nas circunstâncias em
que atuou, atingir o conhecimento da ilicitude, mesmo que não a tenha alcançado. É
um elemento puramente normativo, uma valoração que o juiz fará sobre o fato do
agente, buscando verificar se era possível a ele, com o esforço devido de sua
inteligência, com um juízo de seu próprio pensamento, conhecer que sua atitude era
proibida.

Concluindo-se que o agente podia ter conhecido a proibição que recaía sobre seu
comportamento, ou a falta de permissão para realizar a conduta, deverá ele, então, ser
reprovado. Se não, não merecerá censura penal, excluída sua culpabilidade.

“A consciência da ilicitude é uma valoração paralela do agente na esfera do


profano (Mezger), bastando, para que seja atingida, que cada um reflita sobre os
valores ético-sociais fundamentais da vida comunitária de seu próprio meio (Welzel)”13,
existente quando tiver sido fácil para o agente, nas circunstâncias em que atuou, com
algum esforço de inteligência e com os conhecimentos que tinha na vida social, atingi-
la.

11.3.2 Exigibilidade de conduta diversa

Em algumas situações, o sujeito realiza uma conduta típica e ilícita, com pleno
conhecimento de sua ilicitude, mas, em circunstâncias tais que não lhe era possível
realizar comportamento diferente. A realidade impõe-lhe atuar contra o Direito, e ele,
mesmo sabendo proibido, realiza o comportamento.

Veja-se a seguinte situação. O gerente de um banco comercial chega, ao fim do


expediente de trabalho, em sua casa e encontra sua mulher e seus filhos sob a mira de
poderosas armas de fogo, empunhadas por marginais que exigem dele retorne ao
estabelecimento bancário e daí lhes traga certa importância em dinheiro. Se não atender
à exigência, seus familiares sofrerão graves conseqüências. O gerente, então, retorna ao
banco, retira o numerário e o entrega aos bandidos. O fato típico doloso por ele realizado
é, a toda evidência, ilícito, uma vez que não se encontra justificado por nenhuma das
excludentes de ilicitude – legítima defesa, estado de necessidade etc. O gerente é

13 TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 262.


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles

imputável e agiu com consciência da ilicitude, pois é indubitável que sabia não poder
apropriar-se do dinheiro alheio e dá-lo a terceiros.

Seu comportamento é reprovável, merece censura penal?

Para que o sujeito imputável seja reprovado, não basta que tenha a possibilidade
de conhecer a ilicitude do fato típico e ilícito realizado, é preciso que, nas circunstâncias,
tivesse a possibilidade de comportar-se de acordo com o Direito e não como se conduziu.
Ainda que tivesse conhecimento real, ou, pelo menos, a possibilidade de entender a
ilicitude, é necessário verificar se era possível agir de outro modo.

Esta possibilidade, de agir de outro modo, é outro juízo de valor que o juiz faz
acerca da conduta do agente, e denomina-se exigibilidade de conduta diversa.

Só pode merecer censura penal quem podia ter realizado outro comportamento,
aquele do qual pode ser exigida a realização de conduta diferente, conforme o Direito. É
outro elemento normativo.

Em algumas circunstâncias, como no caso do gerente do banco, não se pode


exigir comportamento conforme o Direito. Ninguém pode exigir que, em vez de retirar
e entregar o dinheiro, procurasse a polícia a fim de libertar seus familiares. Ninguém
pode exigir do pai e marido que aja criando a possibilidade de enormes riscos para seus
entes queridos.

A exigibilidade de conduta diversa é o segundo elemento da culpabilidade, sem


o qual não se poderá reprovar a conduta do agente. Não sendo possível ao agente ter
agido de outro modo, a culpabilidade será excluída.

Imputável o agente, sua conduta somente será reprovada, censurada, será ele
culpado, quando estiverem presentes os dois elementos da culpabilidade: a potencial
consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Faltando um dos
elementos, ou ambos, exclui-se a culpabilidade. O fato será típico, ilícito, mas não será
culpável, inexistindo o crime, e o agente será absolvido.

11.4 CAUSAS LEGAIS DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE

O ordenamento jurídico-penal brasileiro contém algumas normas penais


permissivas exculpantes, que excluem a culpabilidade, outras a diminuem. Tais normas
contêm as chamadas causas de exclusão da culpabilidade ou dirimentes, que são: o erro
de proibição inevitável, as descriminantes putativas, a coação moral irresistível e a
obediência hierárquica.
Culpabilidade - 23

11.4.1 Erro de proibição

O erro é uma falsa ou inexata representação da realidade. O sujeito, laborando


em erro, compreende ou apreende mal os fatos e suas circunstâncias, formando em sua
consciência uma inexata representação do que é.

O erro de proibição é o que recai sobre o caráter ilícito do fato, sobre a ilicitude,
sobre a proibição que incide sobre seu comportamento. Errando, imagina ou supõe que
seu comportamento é lícito, permitido ou não proibido, quando, em verdade, ele o é.

Certo cidadão, encontrando sua mulher em flagrante de adultério, mata-a,


supondo ser lícito matar a adúltera encontrada nos braços do amante, quando, na
verdade, tal comportamento não é permitido pelo Direito Penal. Realizou um fato típico
e ilícito, por ter incorrido em erro de proibição. Imaginou que existisse uma excludente
de ilicitude, ou que a legítima defesa alcançasse também o caso no qual se viu
envolvido, ou, ainda, que o direito lhe autorizasse tal reação, enfim, que era justo
matar.

Incorrendo em erro de proibição, falta, ao sujeito, a consciência da ilicitude.


Não tem consciência de que seu comportamento é proibido pelo ordenamento jurídico.

11.4.1.1 Erro de proibição inevitável

O erro de proibição inevitável, ou invencível, é aquele no qual qualquer pessoa


prudente e de discernimento incorreria. É a situação em que falta ao sujeito a
consciência da ilicitude, e em que não havia possibilidade de, mesmo com todo o
esforço, com todo o empenho de sua inteligência, alcançar ou atingir aquela
consciência.

Trata-se de uma situação em que, nas circunstâncias em que se encontrava o


agente, não lhe era possível conhecer o caráter proibido de seu comportamento, por
mais que tivesse adotado medidas para bem apreciar a realidade.

Atuando o homem em circunstâncias que tais, em que é absolutamente


impossível conhecer a proibição que incide sobre seu comportamento, é absolutamente
impossível fazer, sobre ele, qualquer juízo de censura, qualquer valoração de
reprovação pelo que realizou. Ausente a possibilidade de conhecer o injusto de seu
gesto – ausente a potencial consciência da ilicitude –, fica excluída a culpabilidade.
Nesse caso, não há crime, o sujeito deve ser absolvido.
24 – Direito Penal – Ney Moura Teles

O erro de proibição inevitável é, portanto, escusável, e sua conseqüência é a


exclusão da culpabilidade. Está assim escrito na primeira parte do art. 21 do Código
Penal: “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do
fato, se inevitável, isenta de pena.”

Interessantes decisões dos tribunais reconhecem o erro de proibição inevitável


nesses dois casos.

Na cidade de Rancharia, os filhos de uma mulher de 18 anos de idade


encontravam-se sob a guarda de outra pessoa. A mãe, que costumava passear com as
crianças, resolveu, certo dia, levá-los consigo, quando foi obstada no entroncamento da
rodovia Raposo Tavares. Interrogada na polícia, alegou não saber que seu
comportamento era crime, pois era a mãe das crianças. Foi denunciada pela prática do
fato definido no art. 249 do Código Penal: “Subtrair menor de 18 (dezoito) anos
ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de
ordem judicial.”

Julgando recurso de apelação formulada pelo Ministério Público, o Tribunal de


Alçada Criminal de São Paulo, em acórdão relatado pelo juiz Walter Theodósio, assim
decidiu:

“Tratando-se a mãe do menor de pessoa de pouca idade e simplesmente


alfabetizada, a quem pareceu não estar cometendo ilícito penal ao levar o filho
consigo, é de se reconhecer o erro sobre a ilicitude do fato em termos
inevitáveis, justificando a absolvição com fundamento no art. 386, V, do
CPP.”14

Em Paraibuna, uma médica de nacionalidade portuguesa, que trabalhava no Posto


de Saúde da cidade, resolveu adotar uma criança recém-nascida abandonada na
unidade de saúde pela mãe, e foi ao cartório de registro civil onde a registrou como se
fosse sua filha. Assim, realizou uma das figuras típicas insertas no art. 242 do Código
Penal: “registrar como seu o filho de outrem”.

Instaurado Inquérito Policial destinado a instruir futura ação penal, o Tribunal de


Justiça de São Paulo, entretanto, julgando pedido de habeas corpus impetrado com o
fim de trancar o procedimento policial, assim decidiu:

“Se o registro de menor abandonado como filho próprio foi praticado por
motivo de reconhecida nobreza e não ocultado pelo agente que tinha a plena
convicção de estar atuando licitamente, pode-se aplicar o denominado erro

14 Revista dos Tribunais, nº 630, p. 315.


Culpabilidade - 25

sobre a ilicitude do fato, afastando-se a culpabilidade, nos termos do art. 21,


caput, do CP.”15

Nas duas situações, como se vê, os agentes realizaram fatos típicos e ilícitos
supondo estarem agindo conforme o Direito, ou não estarem agindo com violação de
qualquer preceito legal, errando sobre a proibição que pairava sobre aqueles
comportamentos, em circunstâncias em que não lhes era possível alcançar a
consciência da ilicitude. Houve, portanto, nos dois casos, erro de proibição inevitável,
que excluiu a culpabilidade.

11.4.1.2 Erro de proibição evitável

Erro de proibição evitável é o decorrente da displicência, aquele em que o agente


incide, quando podia, se tivesse realizado um pouco de esforço, alcançar a consciência
da ilicitude. Agindo sem consciência da ilicitude, mas com possibilidade de atingi-la,
presente está a potencial consciência da ilicitude. Esse erro deriva de leviandade, de
descuido, de negligência do sujeito.

O erro de proibição evitável, ou vencível, é inescusável, não exclui a culpabilidade


do sujeito; todavia, tendo ele atuado sem consciência real da ilicitude, sua
reprovabilidade deve ser menor, razão por que manda a última parte da norma do art.
21 do Código Penal que sua pena seja diminuída: “O erro sobre a ilicitude do fato,
(...); se evitável, poderá diminuí-la (a pena) de um sexto a um terço.”

O parágrafo único do mesmo art. 21 define o erro de proibição evitável:

“Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da


ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa
consciência.”

Agiria sob erro evitável o marido traído que mata a esposa adúltera, quando a
encontra com o amante. Imaginando ser lícito defender a honra maculada com o
sangue da “traidora”, age sem a consciência da ilicitude, quando lhe é exigível ter essa
consciência, com razoável esforço de inteligência. O mesmo se diga daquele que matou
um ladrão e quase matou o outro.

Reconhecido o erro evitável, fica diminuída a culpabilidade, mediante a


diminuição da pena entre 1/6 e 1/3.

15 Revista dos Tribunais, nº 680, p. 339.


26 – Direito Penal – Ney Moura Teles

11.4.2 Descriminantes putativas

Descriminantes putativas, ou excludentes imaginárias, são modalidades de


erros que incidem sobre as causas de justificação, sobre as excludentes de ilicitude. A
expressão putativa quer dizer imaginária. São assim excludentes de ilicitude irreais,
porque não excluem a ilicitude do fato.

Existem apenas na cabeça do sujeito, em razão de erro por ele cometido.

É o caso do professor que, tendo reprovado por três semestres consecutivos o


mesmo aluno, passa a ser por este perseguido, empurrado, xingado, nutrindo o
estudante, depois de certo tempo, um ódio mortal pelo professor. Na quarta
reprovação, o aluno resolve matar o professor, compra a arma e, em conversa com um
colega, manifesta seu intento criminoso.

O colega, preocupado, avisa o professor para que evite ir à aula no dia seguinte,
pois será vítima do atentado. O professor apenas se prepara para o desfecho, indo para
a aula armado. Na noite anterior, todavia, a namorada do estudante, depois de muita
conversa, consegue convencê-lo a desistir do intento homicida, aconselhando-o, ao
contrário, a fazer as pazes com o mestre. Sugere, e o aluno aceita, que dê de presente
uma caneta, como mimo para o reatamento das relações.

Na manhã seguinte, o professor entra na sala de aula, avista o aluno que, ao vê-
lo, levanta-se e vai em sua direção, levando a mão ao bolso interno do paletó, para tirar
a caneta e entregá-la; vendo esse gesto, o professor o interpreta como o de levar a mão
para tirar a arma; incontinenti, o professor saca da sua e dispara um tiro mortal contra
o estudante, que morre instantaneamente.

Nesse caso, o professor realizou o tipo de homicídio doloso, ilícito, porque não
existia nenhuma agressão. Todavia, reagiu apenas por supor a existência de uma
agressão que, se existisse, tornaria sua reação absolutamente legítima.

Houve um erro sobre um pressuposto fático da legítima defesa. Além disso,


plenamente justificável pelas circunstâncias, pelos antecedentes do momento do fato, o
aviso etc. Trata-se, pois, de legítima defesa putativa, imaginária, irreal, que só existia
na mente do professor. É uma descriminante putativa.

Toda vez, portanto, em que o agente errar sobre um pressuposto de fato de


qualquer das excludentes de ilicitude – legítima defesa, estado de necessidade, estrito
cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito – e este erro estiver
plenamente justificado – inevitável, portanto –, será o caso de uma descriminante
Culpabilidade - 27

putativa.

Age em estado de necessidade putativo o indivíduo que, no estádio de futebol,


ouvindo um barulho estranho e imaginando que a arquibancada está prestes a ruir, sai
apressadamente, e acaba por causar lesões corporais em outra pessoa. Verifica-se,
posteriormente, que não houve nenhum perigo de desabamento. O sujeito errou sobre
um pressuposto do estado de necessidade, a situação de perigo atual.

O policial que, de posse de um mandado de prisão expedido contra João


Antônio, encontra-se com o irmão gêmeo univitelino deste, Antônio João, e o prende, por
engano, estará agindo no estrito cumprimento do dever legal putativo.

Estão assim definidas no § 1º do art. 20:

“É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe
situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena
quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.”

A propósito das descriminantes putativas, duas correntes divergem quanto a


sua conceituação.

Para a teoria extremada da culpabilidade (WELZEL, MAURACH, ARMIN


KAUFMANN, MUNHOZ NETO, HELENO FRAGOSO, HEITOR COSTA JÚNIOR, LUIZ LUISI,
LEONARDO LOPES, WALTER COELHO), as descriminantes putativas são sempre
modalidades de erro de proibição, pouco importando venha recair sobre um
pressuposto de fato da justificativa, ou sobre sua existência ou seus limites – pois, em
qualquer caso, o sujeito age com dolo –, com a exclusão ou diminuição da
culpabilidade, conforme seja inevitável ou evitável.

Para a teoria limitada da culpabilidade (DAMÁSIO E. DE JESUS, MANOEL PEDRO


PIMENTEL e FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, entre outros), as descriminantes putativas
podem constituir erro de tipo ou erro de proibição.

Quando o erro do sujeito incidir sobre um pressuposto de fato da justificativa,


por exemplo, sobre a existência da “agressão”, que justificaria a legítima defesa, será
erro de tipo, e, como todo erro de tipo, ficará excluído o dolo e a culpa, se inevitável, e
apenas o dolo, se evitável, respondendo, nessa hipótese, o sujeito por crime culposo, se
previsto.

Errando o agente sobre os limites da eximente – a necessidade dos meios, na


legítima defesa – ou até mesmo sobre sua própria existência – a eutanásia, por exemplo
–, então trata-se de erro de proibição, inevitável ou evitável, com exclusão ou
diminuição da culpabilidade.
28 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Os adeptos da teoria limitada da culpabilidade afirmam que, quando o sujeito


erra sobre um pressuposto fático, por exemplo, sobre a existência da agressão, e esse
erro podia ter sido evitado, nesse caso, fica excluído apenas o dolo, e permanece a
culpa, stricto sensu.

Por exemplo, no final da tarde, um cidadão encontra-se em sua casa, quando


escuta o barulho do portão da frente de sua casa, significativo de sua abertura e
fechamento bruscos; imediatamente, olha em direção à rua e avista um vulto entrando
na casa, quando, sem muito pensar, dispara contra o mesmo, ferindo-o, na certeza de
tratar-se de um ladrão. Verifica, em seguida, que era sua sogra que vinha visitar sua
mulher.

Trata-se de um erro sobre um pressuposto fático da legítima defesa. Se a casa


estivesse sendo invadida, poderia ele repelir essa agressão. Não estava. O sujeito errou,
supôs uma situação de fato que, se existisse, tornaria sua ação legítima. Como se
observa no exemplo, o erro derivou de culpa, em sentido estrito, da precipitação do
agente, que, negligentemente, sem nenhum cuidado, sem procurar verificar exatamente
quem entrava em sua propriedade, atirou contra o vulto.

Nesse caso, para os adeptos da teoria limitada da culpabilidade, há um crime


estruturalmente culposo, tanto que o § 1º do art. 20 manda puni-lo com a pena do
crime culposo.

ALCIDES MUNHOZ NETTO, um dos mais ardorosos defensores da teoria extremada


da culpabilidade, mostra que só pelo fato de a lei mandar punir o erro vencível com a
pena do crime culposo não se pode concluir ter havido culpa, stricto sensu:

“Esta forma de punição não significa, com efeito, que em tal hipótese a
falta de consciência da antijuridicidade exclua o dolo, deixando, se evitável,
subsistente a culpa em sentido estrito. Reflete apenas o critério de tratar um
comportamento doloso como se culposo fora, em decorrência da diminuição
da censurabilidade pessoal. É óbvio ser menor a reprovação sobre quem age
sem conhecimento da perceptível ilicitude, do que a incidente sobre quem atua
com representação da antijuridicidade do fato. O texto do citado dispositivo
legal não leva a que se considere, substancialmente culposo, o crime cometido
por vencível erro de fato sobre descriminante. Ao estatuir que se o erro deriva
de culpa, a esse título responde o agente, quando o fato é punível como crime
culposo, a lei só estabelece a forma de punição de tais comportamentos, o que
não equivale a declará-los revestidos de culpa em sentido estrito.”16
Culpabilidade - 29

Então, para a teoria extremada, mesmo no erro vencível, derivado de culpa, o


que falta ao agente é a consciência real da ilicitude, por negligência, razão por que resta
diminuída a culpabilidade e não excluído o dolo.

O problema é que o legislador da reforma de 1984 situou a norma permissiva


exculpante das descriminantes putativas, no interior do art. 20, cujo caput cuida do
erro de tipo, que exclui o dolo. Em razão disso, os que defendem a teoria limitada
encontraram suporte para demonstrar que as descriminantes putativas seriam erros de
tipo.

É claro que a colocação topográfica da norma não tem o poder de mudar a


realidade. Quem, negligentemente, imaginou a existência de uma agressão e, por isso,
disparou uma arma de fogo contra o suposto agressor agiu, à toda evidência, com dolo,
com previsão e vontade, com consciência de que com sua conduta causaria o resultado,
e com vontade de que ele ocorresse ou, pelo menos aceitando-o se ele, eventualmente,
acontecesse. É o caso do cidadão que matou a sogra. Atirou dolosamente, com
consciência de que disparava contra uma pessoa, e com vontade de fazê-lo. Faltou-lhe
consciência de que não havia agressão.

Dizer que o agente, por ter, negligentemente, suposto uma agressão inexistente
e disparado contra quem imaginava estar agredindo-o, atuou sem dolo – sem previsão
do resultado e sem vontade ou pelo menos sem aceitar o resultado –, mas com culpa
stricto sensu é, isto sim, criar um ente mitológico e monstruoso: um crime em que o
agente prevê e quer o resultado, ou o aceita, chamado de crime culposo.

Se a lei preferiu punir o agente que cometeu um erro evitável com a pena do
crime culposo, não significa tenha ela considerado tal crime culposo, mas apenas que
optou por uma fórmula diferente – e equivocada, é verdade – de impor-lhe menor
reprovação.

Assim, correto é o entendimento de MUNHOZ NETTO e tantos outros, de que as


descriminantes putativas, seja o erro incidente sobre pressuposto fático da justificativa,
seja incidente sobre limites ou existência da causa de justificação, será sempre um erro
de proibição, porque falta ao agente, em qualquer dessas hipóteses, a consciência da
ilicitude.

O erro, se derivado de sua desatenção, de sua negligência, de culpa stricto


sensu, era evitável; por isso ele apenas terá a culpabilidade diminuída. Seu
comportamento é doloso, mas não tem consciência de ser injusto, pois, em face do erro,

16 A ignorância da antijuridicidade em matéria penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 116.


30 – Direito Penal – Ney Moura Teles

crê estar realizando a vontade do Direito, amparado por uma causa de justificação que,
na realidade, não ocorre.

11.4.3 Coação moral irresistível

O art. 22 do Código Penal contém norma penal permissiva exculpante que


contém duas causas distintas de exclusão da culpabilidade: a coação moral irresistível e
a obediência hierárquica.

A coação moral irresistível está assim definida: “Se o fato é cometido sob
coação irresistível (...) só é punível o autor da coação”.

Trata-se, como já se disse, de coação moral, de uma violência moral imprimida


contra o sujeito, a chamada vis compulsiva. A coação de natureza física impede o
sujeito de ter vontade, de modo que fica excluída a própria conduta (ausência de
conduta), pois exclui integral e totalmente a liberdade do sujeito, que, por isso, não tem
possibilidade de ter vontade.

A coação moral é o emprego de uma grave ameaça contra alguém, a fim de que
ele faça ou deixe de fazer alguma coisa. Se este fizer ou deixar de fazer, se a ação ou
omissão realizadas sob coação constituir um fato típico e ilícito, não será, entretanto,
culpável.

A força moral é tamanha que o sujeito não tem possibilidade de atuar como
desejava. Trata-se de força tal que não é possível a ele resistir e agir conforme desejava.
Na hipótese, fica suprimida a exigibilidade de conduta diversa, um dos elementos da
culpabilidade e, de conseqüência, o coagido não pode ser reprovado, não merece
censura, devendo ser desculpado.

O pressuposto é a existência de alguém que coage o sujeito, de um coator, que


será punido, como se fosse o executor do fato típico e ilícito.

A coação deve ser, necessariamente, irresistível, daquelas capazes de atuar


sobre a vontade do sujeito de modo insuperável, invencível, tal a violência moral e o
perigo que significa. Algo tão poderoso ou perigoso que ao sujeito não resta outra
alternativa senão atender aos anseios do coator, para evitar a concretização da ameaça.

É o que acontece quando o coator ameaça familiares do sujeito, mantendo-os


sob a mira de armas poderosas, ou amarrados em armadilhas que, a qualquer gesto,
dispararão dispositivo que causa a morte, enfim, situações em que o sujeito tem sua
liberdade de escolha colocada sob verdadeiro e total domínio dos desejos do coator.

O agente não tem outra alternativa, não se podendo exigir dele um


Culpabilidade - 31

comportamento conforme o Direito; por isso, fica excluída a culpabilidade.

A jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, tem entendido que,


para a configuração da coação moral irresistível, é necessário que haja o concurso de
três pessoas: o coator, o coagido e a vítima, aniquilando o primeiro a vontade do
coagido por meio da colocação do terceiro – vítima – em perigo concreto, a fim de
obrigar o sujeito a realizar a conduta que não realizaria normalmente.

Se a coação for resistível, daquelas que o sujeito podia vencer, em face de sua
menor eficiência, ou do grau inferior de perigo, permanece íntegra a culpabilidade,
podendo incidir, todavia, uma circunstância atenuante da pena, prevista no art. 65, III,
c, primeira parte, do Código Penal.

11.4.4 Obediência hierárquica

No mesmo art. 22, do Código Penal, está prevista outra causa de exclusão da
culpabilidade, a obediência hierárquica, que é uma espécie de erro de proibição, assim:

“Se o fato é cometido (...) em estrita obediência à ordem, não manifestamente ilegal,
de superior hierárquico, só é punível o autor (...) da ordem.”

Ordem de superior hierárquico é um comando emanado de uma pessoa que


exerce determinado cargo ou uma função de natureza pública, para outra pessoa que
lhe seja, hierarquicamente, subordinada, contendo a determinação de realizar essa ou
aquela conduta, positiva ou negativa.

O pressuposto é que exista, entre o que ordena e aquele a quem se dirige a


ordem, uma relação hierárquica de subordinação, relacionamento este, é claro, de
direito público, o que leva à conclusão de que só é possível a ocorrência dessa dirimente
que envolve servidores ou agentes do serviço público.

A norma afirma que não será reprovado, culpado, aquele que realizar um fato
típico e ilícito em estrita obediência a uma ordem de um seu superior hierárquico,
desde que seja uma ordem não manifestamente ilegal.

Para a verificação da ocorrência ou não desta causa de exclusão da culpabilidade,


o primeiro passo é descobrir-se o que é uma ordem não manifestamente ilegal.

Há ordens de superior hierárquico que são legais. Estas, é de todo claro, não
interessam aqui, pois nenhuma ordem legal pode ensejar a realização de qualquer fato
típico ilícito. Restam, então, as ordens ilegais.

Entre estas existem as que são manifestamente ilegais, clara, indiscutível,


32 – Direito Penal – Ney Moura Teles

insofismável, total, límpida, inexorável, absurdamente ilegais. Por exemplo: ordenar o


Delegado de Polícia, ao agente da carceragem, que mate o preso da cela nº 3, porque
ele é portador do vírus da Aids, ou que estupre a presa da cela feminina, porque ela o
ofendera.

Essas ordens são, claramente, manifestamente ilegais, de modo que, se o


carcereiro cumprir qualquer delas, não poderá alegar ter agido ao amparo da
exculpante da obediência hierárquica, que só contempla, somente ampara, aqueles que
realizarem um tipo ilícito no estrito cumprimento de uma ordem não manifestamente
ilegal de superior hierárquico.

Ordem não manifestamente ilegal é a de ilegalidade discutível, que não é patente,


nem resplandece à primeira vista, deixando dúvidas na avaliação de quem a recebe. Por
exemplo, um Promotor de Justiça determina ao secretário recém-empossado no
gabinete da promotoria que – antes de iniciar-se a audiência – vá à sala das
testemunhas e determine a uma delas que venha a falar-lhe e, caso ela se recuse, traga-
a presa em flagrante de crime de desobediência.

Esta ordem, à primeira vista, não parece ilegal, apesar de sê-lo. O promotor de
justiça, todos sabem, não tem poder para mandar vir a sua presença quem quer que
seja, mormente por meio de um chamado verbal, por um simples funcionário
burocrático, e fora de qualquer processo ou procedimento legalmente instaurado.

Para o servidor público recentemente ingressado no serviço público, sem qualquer


conhecimento das regras processuais e, mesmo, de Direito Administrativo, contudo,
aquela ordem recebida é legal. Recebendo-a de seu superior, um promotor de justiça –
alguém que lhe parece ser um “homem da lei”, aliás, é o fiscal dela –, jamais pensaria
ser uma ordem contra a lei, de sorte que, em sua consciência, a ordem recebida é
perfeitamente legal.

Se ele vai à sala das testemunhas, emite a convocação e a testemunha, recusando-


se a acompanhá-lo, é trazida coercitivamente, terá havido, à toda evidência, um fato
típico de constrangimento ilegal, definido no art. 146 do Código Penal, quando não o de
seqüestro, definido no art. 148, Código Penal.

Ilícito o fato, não será, todavia, culpável, amparado que estava o agente pela
dirimente da obediência hierárquica.

Trata-se, como se pode perceber, de verdadeiro erro de proibição, pois faltou ao


agente a consciência da ilicitude. Era-lhe, ademais, nas circunstâncias, impossível
alcançar a consciência da proibição. Fica, em razão disso, excluída a culpabilidade.

Se a ordem não fosse não manifestamente ilegal, permaneceria a culpabilidade,


Culpabilidade - 33

podendo incidir, contudo, a circunstância atenuante prevista no art. 65, III, c, do


Código Penal.

Para que se possa reconhecer essa dirimente, é indispensável que haja relação de
direito público entre o superior e o subordinado. Entre empregador e empregado,
patroa e empregada doméstica, a relação é de direito privado, logo, não se pode falar
em exclusão de culpabilidade do empregado que realiza fato típico obedecendo à
determinação do empregador.

A ordem, que deve, como se demonstrou, ser não manifestamente ilegal, precisa,
ainda, preencher seus requisitos formais, emanar da autoridade competente, e ser
cumprida dentro da mais estrita obediência, não se admitindo qualquer excesso do
subordinado. Faltando qualquer desses requisitos, não incide a exculpante, mantida a
culpabilidade do sujeito.

Quando se aplicar a dirimente, somente o autor da ordem responderá pelo fato e,


por ele, será punido.

11.5 CAUSAS SUPRALEGAIS DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE

Culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com


possibilidade de conhecer a ilicitude, podia, ainda, nas circunstâncias, ter agido de
outro modo.

Faltando um dos elementos da culpabilidade, está ela excluída, não se podendo


reprovar o agente do fato típico e ilícito. Ausente a potencial consciência da ilicitude –
haverá erro de proibição inevitável, descriminante putativa escusável, ou obediência
hierárquica, expressamente previstas no Código Penal como dirimentes –, não há o
crime.

Sem exigibilidade de conduta diversa – há coação moral irresistível –,


igualmente não há reprovação, não há culpabilidade, o fato típico e ilícito não é crime.

Sempre, portanto, que não estiver presente um dos elementos da culpabilidade,


esta não existe e, conseqüentemente, não se aperfeiçoa o crime.

Até aqui, foram vistos casos em que, para a ausência de um dos elementos da
culpabilidade, existia uma causa expressamente prevista numa norma penal permissiva
exculpante, que previa a isenção da pena para o agente – fórmula encontrada pelo
legislador para distinguir a excludente de ilicitude da de culpabilidade.

Para que a culpabilidade seja excluída, não é, entretanto, indispensável a


34 – Direito Penal – Ney Moura Teles

existência de norma penal permissiva que expressamente mande isentar o agente da


pena criminal.

Basta que sobre o fato típico e ilícito realizado não incida o juízo de reprovação
– pela ausência de, pelo menos, um dos elementos da culpabilidade. Se isso ocorrer,
haverá causa de exclusão da culpabilidade que não se encontra expressamente prevista
no Código Penal.

São duas as causas: o excesso de legítima defesa exculpante e a inexigibilidade


de conduta diversa.

11.5.1 Excesso de legítima defesa exculpante

Muitas vezes, o sujeito ultrapassa intensivamente os limites da legítima defesa


– usando meio além do necessário, ou o meio necessário desproporcionalmente,
imoderadamente – por medo, susto, perturbação, ou confusão de que se vê acometido
em razão da injusta agressão sofrida.

Não tem, nas circunstâncias, capacidade de dominar as reações psicológicas


desencadeadas, rapidamente, com base na agressão e na expectativa do perigo para o
bem jurídico atingido, e acaba por exceder os estreitos limites da legítima defesa. Ao
fazê-lo, é claro, realiza comportamento ilícito, em face da ausência da moderação ou do
uso de meios além do necessário.

Deve, apesar da ilicitude da conduta, ser esse agente reprovado, censurado,


considerado culpado e, como tal, sofrer a sanção penal?

É certo que não, pois nas circunstâncias não podia comportar-se de modo
diverso, ausente um dos elementos da culpabilidade: a exigibilidade de conduta
diversa.

FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO mostra que o Direito Penal alemão contempla,


expressamente, o excesso de legítima defesa exculpante:

“Diz o Código Penal alemão, no § 33, sob a rubrica ‘excesso de legítima


defesa’: ‘Ultrapassando o agente os limites da legítima defesa por perturbação
(Verwirrung), medo ou susto, não será ele punido.’” Explica o mestre que “não
se pode igualmente censurar o agente pelo excesso, por não lhe ser
humanamente exigível que, em frações de segundos, domine poderosas
reações psíquicas – sabidamente incontornáveis – para, de súbito, agir, diante
do perigo, como um ser irreal, sem sangue nas veias e desprovido de
Culpabilidade - 35

emoções.”17

A exculpação não é possível no excesso extensivo de legítima defesa, pois, nesses


casos, houve o exaurimento da defesa, e já não há agressão, sendo o comportamento do
sujeito não apenas ilícito, mas também realizado com plena consciência da ilicitude, e
longe de qualquer razão psíquica que lhe afete a liberdade de escolha. Concordando
com ASSIS TOLEDO, é de ver que a falta de dispositivo expresso que preveja o excesso
exculpante como excludente da culpabilidade não constitui empecilho para sua
aplicação pelos juízes, cuja missão é distribuir a justiça, dizendo o direito, e não se
apegar à letra fria da lei.

11.5.2 Inexigibilidade de conduta diversa

Só há culpabilidade quando, além da consciência potencial do injusto, é possível


exigir, do agente, comportamento conforme o Direito, quando podia ter agido de outro
modo. Para a expressão da reprovabilidade do fato típico e ilícito, é indispensável a
exigibilidade de conduta diversa, sem a qual o sujeito será desculpado. Não será crime.

A propósito, ASSIS TOLEDO, em sua obra que muito tem inspirado este modesto
manual, apesar de divergências salutares, traz a mais importante de suas lições, que
aqui se transcreve:

“Não age culpavelmente – nem deve ser portanto penalmente


responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou da omissão,
não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do
que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível
comportamento diverso. A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira
e mais importante causa de exclusão da culpabilidade.”18

A lição não pode deixar dúvidas: a mais importante das causas que excluem a
culpabilidade não é o erro de proibição, nem as descriminantes putativas, nem a coação
moral irresistível, e tampouco a obediência hierárquica – todas constantes de normas
legais.

A mais importante das excludentes da culpabilidade não está escrita no


ordenamento jurídico. E não está, em verdade, porque não é uma simples causa de
exclusão da culpabilidade. É, como diz ASSIS TOLEDO, um “princípio fundamental que

17 Op. cit. p. 330.


18 Op. cit. p. 328.
36 – Direito Penal – Ney Moura Teles

está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto,


dispensa a existência de normas expressas a respeito”. 19

Como tal, não precisa estar contido em norma penal permissiva, mas tem plena
incidência sobre os casos concretos. Não apenas porque diz respeito à responsabilidade
pessoal, à liberdade de agir, que é o fundamento da culpa, mas também porque é muito
mais ainda do que um princípio de exclusão, é um verdadeiro princípio geral de direito,
excludente não só da culpabilidade, mas, igualmente, da ilicitude e da tipicidade,
princípio que preside e fundamenta toda e qualquer causa de exclusão do crime.

Todas as condutas humanas não tipificadas na lei penal, todas as condutas


atípicas, assim são consideradas pelo Direito, porque não se pode exigir dos homens
comportamentos diversos delas.

A legítima defesa é a realização de um fato lícito, também porque não se pode


exigir daquele que atua a seu amparo um comportamento diferente. É lícito agir em
estado de necessidade, porque também não é possível exigir do que age sob sua égide
outra conduta.

A inexigibilidade de conduta diversa é princípio geral de direito que impede a


tipificação dos fatos normais da vida, que obstaculiza a proibição dos fatos não lesivos
ou não expositivos a perigo de lesão dos bens jurídicos e, como não poderia deixar de
ser, que exclui a reprovabilidade de certas condutas típicas e ilícitas.

De conseqüência, sempre que, nas circunstâncias em que tiver alguém realizado um


comportamento típico e ilícito – ainda que não incida uma causa legal de exculpação –,
mas não se puder dele exigir conduta diversa da que realizou, deve ele ser desculpado,
excluída a culpabilidade.

Não é necessário, de conseguinte, que haja regra expressa de exclusão de


culpabilidade, basta que o juiz verifique, nas circunstâncias, a impossibilidade de exigir,
do agente, conduta conforme o Direito. Se tal ocorrer, deve ser desculpado.

11.6 CONCLUSÃO

Chega-se aqui ao final do estudo do conceito analítico do crime. Verificou-se o


fato típico, com todos os seus elementos, analisou-se a ilicitude, compreendeu-se a
culpabilidade.

19 Idem.
Culpabilidade - 37

Nos tempos atuais, entre os estudiosos do Direito Penal, avança-se no rumo da


construção de uma nova concepção de culpabilidade, o chamado conceito moderno ou
complexo de culpabilidade que levaria em conta também certa atitude interna
juridicamente defeituosa do agente.

Essa teoria está, ainda, sendo discutida, debatida, elaborada, maturada, e,


enquanto não consolidada, não pode neste momento ser trazida para este primeiro
contato do estudante com a teoria do crime.

É possível, por enquanto e por aqui, dizer que se conseguiu conhecer o crime,
com todas as suas características, ou suas notas essenciais, como preferem alguns
importantes doutrinadores, ou, ainda, seus elementos estruturais, como dizem
outros.

A tipicidade é a relação de adequação entre o fato concreto e o tipo, que é modelo


de conduta proibida. Dado um fato com essa qualidade, há um fato típico. Tudo indica
que tal fato será ilícito, mas é preciso verificar se está presente uma causa que o justifique
e que afaste a ilicitude, descaracterizando-o como crime.

A ilicitude é a relação de antagonismo entre o fato típico e o ordenamento


jurídico, é a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico. Sem ela, não há crime. Se
estiver presente, falta ver, ainda, se o fato será culpável.

Culpabilidade – terceira característica do crime –, cujo pressuposto é a


imputabilidade, é um juízo de reprovação da conduta típica e ilícita, que só pode ser
feito quando o agente tiver atuado com possibilidade de saber que agia contra o direito,
e que podia, naquelas circunstâncias, ter agido de outro modo.

Eis o crime.

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