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DENISE: Hoje a gente está fazendo o fechamento da primeira etapa do nosso projeto
Pibic 2008/2009 e, já falei isso para Olival, é uma tentativa de recuperar algumas obras
de epistemólogos do século 20 que propuseram elementos para uma epistemologia não
cartesiana. O primeiro autor é Feyerabend, e para isso a gente leu o Discurso do
Método (Descartes), lemos a autobiografia dele, alguns textos: o Diálogo sobre o
Conhecimento, Contra o Método e alguns textos que a gente encontrou na internet,
basicamente duas dissertações, não é Sidarta? E o texto de Olival. [...] Então, nesse
projeto, a gente tem dois alunos, depois vou pedir que vocês se apresentem. Mas antes
de tudo, eu gostaria de agradecer a presença do professor Olival conosco. O professor
Olival Freire é professor associado do Instituto de Física, tem graduação em física,
mestrado em epistemologia das ciências e o doutorado na USP em história das ciências,
realizou dois programas de pós-doutorado, tanto em Paris VII e Harvard, eu vi no seu
Lattes essa semana que tem um fellowship do MIT em Harvard, que é uma coisa muito
prestigiosa. E ele faz parte também do Programa de Ensino, História e Filosofia das
Ciências que é uma dobradinha UFBA/UEFS, envolvendo também várias unidades da
UFBA.
Então, quando eu propus esse projeto e perguntei lá em filosofia quem conhecia a obra
de Feyerabend, o nome indicado foi o seu e a gente ficou super-contente, porque eu já
tive a oportunidade de levar Olival em dança, inclusive na turma de Nora. E a
repercussão foi a melhor possível. Foi um encontro muito proveitoso para a gente. Eu
sou professora da Escola de Dança e do Programa de Artes Cênicas, e vocês se
apresentam.
DENISE: Ela é quase uma doutoranda, porque já passou nas duas fases mais difíceis da
seleção...
ELEONORA: E acho que essa continuidade de estudos, principalmente nessa temática
vai ser realmente interessante para mim, porque a minha proposta para o doutorado e
acompanhar o desenrolar dos Bacharelados Interdisciplinares no aspecto das disciplinas
de artes. Um dos objetivos é discutir sobre outros métodos, outro viés epistemológico
para a pesquisa acadêmica em artes.
ISA : Meu nome é Isa Sara, também de faço licenciatura em dança. Estou muito
empolgada, muito feliz de estar aqui. Também faço parte do grupo CONES.
CECÍLIA: Conheci muito recentemente o autor... procurei dar uma estudada sobre
quem é ... o histórico...
DENISE: Então o formato é bem livre, que a gente faça uma conversa e que vocês
perguntem coisas livremente sobre o que vimos na bibliografia.
ELEONORA: A gente tinha pensado em propor a você que começasse falando sobre o
e-mail quando você retornou o convite e falou assim: como é interessante retomar O
Discurso do Método de Descartes para falar desse autor, Feyerabend. Então, talvez seja
um bom início, falar dessa relação, da posição de Feyerabend em relação à obra de
Descartes, ao Método, para a gente começar.
OLIVAL: Eu gostei de vocês voltarem a Descartes, porque veja que até no título das
obras há um contraponto: O Discurso do método e Contra o método. Entretanto, eu
não tenho certeza se o alvo, digamos assim, de Feyerabend era tão claramente
Descartes, a obra de Descartes, ou a fortuna que essa obra teve, nesses três séculos que
separam uma obra da outra. Então, me explicando melhor, não tenho dúvida de que a
obra cartesiana é uma obra fundadora da racionalidade da ciência moderna, é a obra
fundadora, concorrendo somente com uma outra tradição filosófica que faz parte da
fundação da ciência moderna que é a tradição do empirismo. Mas esses mais de três
séculos entre a obra de Descartes e a segunda metade do século 20, porque nós temos de
localizar que Feyerabend é um pensador da segunda metade do século 20, sofrendo
todas as influências culturais desse período. Então a minha percepção é a seguinte: no
Contra o método de Feyerabend, o alvo imediato dele é menos a epistemologia
cartesiana, enquanto doutrina, e mais uma certa crença corrente num certo meio, que eu
vou chamar de um meio pós-positivista, na cultura da ciência anglo-saxã, que
basicamente é o meio que vem do Círculo de Viena, do positivismo lógico, para os
críticos do Círculo de Viena, com todas as nuances, com Popper meio crítico, meio em
adesão e os outros mais críticos , Kuhn, Lakatos, o próprio Feyeranbend.
OLIVAL: Foi aluno de Popper, na verdade ele e Lakatos, na verdade Lakatos não foi
exatamente aluno, terminou convertendo-se numa espécie de discípulo. De todo modo,
todos dois muito próximos de Popper, na Inglaterra. Então é nesse ambiente em que
Feyerabend escreve Conta o Método e a minha leitura é a seguinte: Contra o método é
uma rebelião contra um certo projeto que era comum tanto ao Círculo de Viena quanto a
Popper e, em certa medida, ao próprio Lakatos. Então qual é esse projeto? Eu diria
assim que é um projeto que está muito expresso no Círculo de Viena, está presente
também nas obras posteriores, que é um projeto de você estabelecer um critério de
demarcação entre a ciência e a não ciência, ou entre a ciência e a pseudo-ciência. Então
o Círculo de Viena tinha, digamos assim, essa pretensão, mas em que pese toda a crítica
de Popper ao Círculo de Viena, crítica do uso inadequado da lógica, segundo Popper,
mas Popper faz essa crítica preservando esse projeto: encontrar um critério de
demarcação, o critério da falseabilidade popperiana é exatamente isso, um critério que
permita distinguir o que é ciência da não-ciência.
Bom, nesse momento, então, digamos assim, esse projeto, eu diria, a minha leitura, é
que esse projeto tem em seu seio certa arrogância que é herdeira das ciências naturais,
física, química, da matemática, uma arrogância construída historicamente pelo sucesso
inicial dessas disciplinas com o título de ciência. Então o que eu chamo de arrogância, é
que você pode discutir, digamos, qual é a característica dessas ciências. Se você olhar
quase todas as pessoas que refletem sobre as características dessas ciências estão
refletindo sobre a física ou sobre a física e a matemática. Sobre a química, quase não
existe. Sobre a Biologia, menos ainda. Mas essas pessoas, o projeto do positivismo,
mesmo se remontamos a Comte, não é um projeto de fazer uma ontologia da física, é
um projeto de fazer ontologia da ciência. O critério de demarcação que o Círculo de
Viena propôs é um critério para demarcar a ciência da pseudo-ciência. Então a
arrogância é porque se trata, no fundo, de você enquadrar todas as outras disciplinas,
nesse momento não quero usar a expressão científica, todas as outras formas de
conhecimento que têm uma igual aspiração de racionalidade, uma igual aspiração de
diálogo com o empirismo, você pretende enquadrar essas outras disciplinas no escopo,
ou pelo menos num método, métodos responsáveis pelo sucesso da física e pelo sucesso
da física e da química... Isso por exemplo no caso do Comte é absolutamente claro
quando ele fala da sociologia. Sociologia para Comte é a física social, mas isso está
presente no Círculo de Viena, o manifesto do Círculo de Viena discute o que é
científico. Diga-se de passagem, atualmente hoje a gente associa o Círculo de Viena
muitas vezes ao conservadorismo político. Popper é um pouco herdeiro disso, Popper é
um liberal dessa época que está acabando agora, com essa crise nos mercados
financeiros. A gente tende sempre a associar liberalismo e a geração deles: liberalismo é
a direita na política. Mas, na origem, é uma experiência que todo mundo devia ler. Vá
ler, é um manifesto socialista. O Círculo de Viena era um círculo de pensadores
socialistas.
OLIVAL: Não, não era um palavrão e nem eles se consideravam liberais; eles se
consideravam socialistas. Definem explicitamente o que eles chamam de concepção
socialista do mundo. Essa conexão de Popper com o liberalismo e o neo-liberalismo é
uma coisa que vem depois. Mas, enfim, o que é importante, na minha percepção, é que
aqueles critérios ou aqueles métodos que tinham tido sucesso, digamos assim, nas
ciências da natureza, nós tínhamos a expectativa de que esses métodos pudessem ser
estendidos dos saberes ao conjunto do conhecimento. Isto no caso de Popper também é
absolutamente claro, quer dizer, Popper depois que erige o critério da falseabilidade, ele
passa a discutir dois campos do conhecimento, que ele diz: “olha, esses daqui são
pseudo-ciência: psicanálise e marxismo”. Então eu acho que é nesse contexto que a obra
de Feyerabend adquire, em minha opinião, seu maior valor, sua magnitude.
OLIVAL: Qual, assim, a magnitude que eu vejo: é que Feyerabend, ele se insurge contra
isso usando uma estratégia, a meu ver, extremamente inteligente. Ele se beneficia muito
das contribuições empíricas, do lado da história da ciência, e nisso ele não está sozinho.
Kuhn fazia isso, Lakatos fazia isso, e sintomaticamente Popper já fazia menos, Então,
muito da força da argumentação do livro Contra o Método vem do fato que ele pega
um caso concreto da história da ciência, do Galileu, deliberadamente. Ele pega um caso
paradigmático dentro da ciência moderna e argumenta. Ao mesmo tempo no plano
filosófico, no plano epistemológico em que ele está sempre remetendo a uma estratégia
dentro da filosofia da ciência que é para você discutir uma tese filosófica no sentido de
caso. E, nesse caso, ele consegue mostrar, a meu ver, não de maneira convincente, de
maneira que você pode ter ressalva, mas que no meu entendimento são ressalvas
secundárias. Ainda hoje ele consegue com toda pesquisa histórica em cima de Galileu
desde então, em minha opinião, não invalida em larga escala o argumento do
Feyerabend. Então, ele consegue mostrar o seguinte, olha: se Galileu tivesse seguido
essas normas de método cientifico de que vocês estão dizendo que é característico da
ciência, ele não teria sido Galileu, não teria feito a ciência que fez.
Então, o Contra o método, no fundo, eu acho que não é um livro contra a existência de
método na ciência. É contra a idéia de que a ciência possa ser governada por um único
método, que é um argumento favorável ao recurso a tantos métodos para que se possa
contribuir para desenvolvimento da ciência. Então, por isso que eu acho que
Feyerabend, ele não... O alvo direto da crítica, do debate não é, digamos assim,
Descartes, mas não deixa de ser, digamos assim, não deixa de haver uma conexão. Bom,
no fundo o que eu quero dizer é o seguinte, nós não podemos responsabilizar Descartes
pela pretensão de universalidade, pretensão do método. Claro, é mais uma construção a
partir dele do que propriamente algo presente na obra cartesiana. É claro que a obra
cartesiana tinha uma pretensão de universalidade.
CECÍLIA: Eu acho que esse discurso dele contra o método vem também como discurso
de uma política de poder que está existindo em relação à ciência. Acho que o período
era favorável a esse encontro acontecer.
OLIVAL: Seguramente Cissa, essa idéia de que Feyerabend, segunda metade do século
20, é tanto nesse sentido intelectual de qual é o cenário intelectual com o qual ele está
dialogando, mas também um cenário social preciso e é um cenário no qual a ciência
depois da Segunda Guerra mundial, especialmente nos EUA, tem um poder imenso. A
ciência foi crucial para o lado dos aliados na vitória americana, mais o radar do que a
bomba atômica. Quando surge a bomba atômica, a guerra já estava praticamente
vencida. Mas, enfim, a ciência teve um papel essencial na Segunda Guerra do lado
americano, mas teve também do lado da Alemanha nazista. A habilidade dos alemães de
bombardear Londres a partir do continente era uma habilidade que tinha sido
desenvolvida pela ciência, pela tecnologia. Não é à toa que entre os célebres EUA atrás
de vai dirigir a NASA Von Braun é alguém ligado ao regime nazista no período da
Segunda Guerra.
Então, assim, a ciência tem um grande poder e sai da Segunda Guerra com um enorme
poder. O contexto da guerra fria amplifica o poder da ciência, o contexto da guerra fria é
um contexto também de corrida armamentista. Então, de um lado e do outro, tanto do
lado dos EUA quanto do lado da União Soviética os cientistas se transformam numa
elite altamente bem remunerada com laços próximos ao poder de um lado e de outro. Só
que a década de 1960 representa uma inflexão nesse cenário. É uma inflexão porque
emerge na década de 60 críticas importantes a esse cenário social, a esse poder da
ciência. Essas críticas que estamos fazendo quarenta anos depois de 1968 que é o ápice
dessa crítica. Mas, do ponto de vista da critica, a ciência, isto até outro dia eu estava
discutindo num seminário, a minha impressão é que o que aconteceu na França em 68
para a gente entender essa critica, a ciência não é o mais importante. O mais importante
é o que aconteceu nas universidades norte-americanas em 1967, 68 e 69. Porque nessas
universidades, o vínculo da ciência com a guerra do Vietnã era mais evidente, os
franceses e os italianos protestavam contra o vinculo da ciência com a guerra. Mas era
uma guerra que esses países não estavam travando. A Itália não, a Alemanha não estava
na guerra, era uma guerra que era uma nação do outro lado do atlântico, enquanto que
nos EUA as melhores instituições acadêmicas como o MIT todos eles estavam
profundamente envolvidos com esse esforço de guerra. E isso é um casamento muito
longo. No final dos anos 1940, inicio dos anos 50, mas esse casamento se desfaz quando
a sociedade americana – eu acho que a sociedade americana ao longo da história tem
sido capaz de surpreender, surpreendeu agora com a eleição de Obama – e na década de
1060 ela nos surpreendeu quando você tem dentro dos EUA o crescimento de um
poderoso movimento de contestação à guerra do Vietnã. Então, no cenário americano,
essa contestação à guerra do Vietnã é uma contestação basicamente da juventude, da
juventude universitária e esta contestação à guerra rapidamente se transforma numa
contestação ao uso da ciência na guerra.
DENISE: Agora, você diria então que essa década de 1960 já é uma década que muito
das ciências humanas e sociais apresentam objetos e pesquisas já de maneira muito
contundente; isso quebra também ou faz uma tensão ainda maior em relação às ciências
com paradigma nas ciências naturais.
OLIVAL: Sim, seguramente! Eu acho que sim, acho que essa tensão já estava presente.
É sintomático assim, por exemplo, um dos autores que vai estar mais em voga, por
exemplo, nas universidades americanas da época, bom seguramente Feyerabend, parte
do sucesso de Feyerabend se deve a esse, mas o livro de Feyerabend é de 1974, se não
me engano.
OLIVAL: Pois é, então o livro já vem um pouco depois que aquela rebelião se acomoda.
Mas o livro que é mais influente naquele contexto é de Marcuse. É justamente Marcuse
que vem de uma tradição que remonta a outra tradição filosófica, mas no fundo é uma
critica das ciências, do papel da ciência, do papel da técnica. Agora esse contraponto
com as ciências humanas, eu acho que é uma coisa que a gente deveria refletir mais.
Heresia. Eu não sei em que medida mesmo a psicanálise no cenário americano
representado esse contraponto que hoje a gente olha para trás e vê.
DENISE: Não, eu acho que nos EUA, não. Mas a psicologia, as ciências sociais...
OLIVAL: Então, a ciência social, veja a sociologia norte-americana naquela década ali.
Será que a sociologia funcionalista norte-americana, será que ela não está exatamente
um pouco inspirada, embebida dessa idéia, por exemplo, a ênfase no uso de métodos
quantitativos?
DENISE: E até hoje, não é, Sidarta? A gente veio agora do Congresso da Sociedade
Brasileira de Psicologia e o grupo hegemônico tenta mostrar que a psicologia é uma
ciência natural. Pede os dados.
DENISE: É, mas não falo no sentido de derrubar métodos, mas de apresentar outras
formas, porque, por exemplo, o método etnográfico aparece com muita força. Já vem da
década de 1030.
OLIVAL: Eu acho legal isso que você esta lembrando. Na verdade é um cenário,
década de 1960, cenário americano. É exatamente, então, essa tensão, seguramente, essa
tensão existe. Aí, eu me lembro, o que vem à mente é exatamente o seguinte: por
exemplo, o trabalho da Margaret Mead, e o papel que ela tinha na ciência americana e
alguns exageros que inclusive ela cometeu nessa tentativa de fazer a crítica à ciência
norte-americana. Ela era presidente da American Association for the Advancement of
Science, [Associação Americana para o Avanço da Ciência]. E é na gestão dela,
exatamente nessa década, que ela aceita a sociedade de parapsicologia como uma das
sociedades cientificas. E isso foi uma confusão, mas ela e essa sociedade ficou muito
mais que uma década, eu não sei quando. Depois é que finalmente a sociedade de
parapsicologia saiu. Então, você tem razão, tinha um contraponto nas ciências humanas.
É que talvez esse contraponto, a minha conjectura é assim, talvez a gente não devesse
olhar com o nosso olhar de hoje para a sociologia ou para a psicologia, para a
psicanálise, e imaginar que esse contraponto fosse tão forte na década de 1970.
DENISE: Agora, outra coisa que eu acho, é só uma hipótese, é de que o romance
psicológico norte-americano, a literatura norte-americana também teve um bocado de
impacto no inicio do século 20.
OLIVAL: Claro, eu acho que sim. Seguramente, sim. Já é influência, mais via cultura
americana.
Bom, sei que vocês devem ter questões, mas eu queria aproveitar a presença de um
físico aqui para pensar um pouco a questão que você tocou em relação a Galileu, porque
para a gente não é muito claro, não é? E está no livro de Feyerabend, o momento em
que ele detecta que Galileu quebra um paradigma que é o da ciência, digamos,
medieval. Então, ao mesmo tempo, pelo que eu entendi de você, Feyerabend faz uma
libertação de um racionalismo marcadamente cartesiano, e também da proposta
galileana, mostrando como esse caso é emblemático de uma quebra, ali mesmo entre a
Idade Média e a Idade Moderna, de fazer ciência, do que é fazer ciência.
OLIVAL: É eu acho que é isso. Para ser mais preciso, é verdade que Galileu quebra,
causa uma ruptura em relação ao pensamento medieval, mas, aí, acho que vale a pena
qualificar um pouco mais essa ruptura. Ela é a ruptura primeiro com um sistema de
pensamento integrado, que é um sistema que está apoiado numa cosmologia e também
numa visão de mundo, que é uma visão de mundo estruturada, hierárquica e é uma visão
de mundo que vem de antes da Idade Média. Na verdade, é a visão de mundo
aristotélica. Então você tem uma cosmologia aristotélica, essa cosmologia tinha enorme
sintonia com um desenvolvimento da astronomia que vinha da antiguidade. Então o que
a gente chama de modelo geocêntrico, que é o modelo adotado por Ptolomeu, era... esse
modelo: você fazia uma astronomia, com base nesse modelo, uma astronomia
matemática, quantitativa, observacional, mas essa astronomia estava em conformidade
com uma visão de mundo, a visão de mundo aristotélica que é transmitida para o
período medieval, é transmitida pelos árabes, transmitida pela igreja católica. São
Tomás de Aquino provavelmente foi o melhor transmissor dessa visão. Na literatura, a
melhor expressão disto é A Divina Comédia, de Dante e a idéia de mundo sublunar,
mundo supra lunar, das esferas concêntricas, já está presente ali, e mais do que isso, essa
visão então de uma cosmologia, de uma visão de mundo, no qual o universo era
organizado em cosmos hierarquizados, essa cosmologia está em perfeita sintonia com
uma física, uma física no sentido de uma descrição do chamado movimento local.
Movimento local na tradição aristotélica era um movimento na superfície da Terra. Para
ser mais preciso, era um movimento na esfera sublunar. Então isso é importante porque
dentro dessa visão cosmológica você tinha naturezas distintas: o mundo sublunar, o céu
e o mundo supra lunar. Então, essas três searas que eu estou falando aqui, astronomia de
um lado, cosmologia do outro e física, elas estavam bem integradas e formavam um
sistema de pensamento.
DENISE: A gente pode dizer que dentro da astronomia havia também os elementos de
uma astrologia? Que não tinha essa separação, não é?
DENISE: É isso que Feyerabend vai retomar também, não é? Por que não astrologia?
Então, perdi o raciocínio, deixe eu voltar: o debate com a igreja católica, a igreja
católica não pode ser representada, digamos assim, como um bando de ignorantes
contra a ciência e Galileu como o cientista contra os ignorantes. Esta visão da igreja
católica como ignorante está presente inclusive numa obra como o Galileu Galilei de
Bertold Brecht; tem um momento em que Galileu está discutindo com os padres e
Galileu manda os padres olharem para o telescópio e os padres não querem olhar para o
telescópio, como se fossem uns ignorantes. E essa imagem simplista é uma falsificação
histórica fenomenal.
A igreja católica tinha uma tradição de pesquisa, claro que nos marcos epistemológicos
dessa ciência do período medieval...
OLIVAL: É, mas tem seus conflitos, digamos assim... Mas é isso, a ordem dos jesuítas,
os jesuítas eram bons matemáticos. A reforma do calendário que ainda hoje está vigente,
que é o calendário gregoriano, é exatamente obra de um jesuíta que é o Cladius, que era
um diretor de um colégio romano, e foi aprovado em 1583 pelo papa Gregório. Ainda
hoje aqui em física a gente explica o que é o calendário gregoriano e você só entende
aquela reforma se você entender muito de astronomia e de matemática para você
entender aquela correção em que a cada quatro anos há um ano bissexto e, a cada cem
anos, tem de fazer uma correção. É um cálculo matemático fenomenal.
Então, os contemporâneos de Galileu na Igreja católica não eram esses idiotas que se
pode pensar. Depois, Galileu partilhava com a igreja a noção, e isso é herança lá de
Euclides, de que o conhecimento seguro, e aí também Descartes é herdeiro disso, o
conhecimento seguro tem de ser demonstrado. Hoje, eu falo assim: Galileu encontrou
evidências contra a cosmologia aristotélica, mas para ele encontrar evidência não era
suficiente, era preciso uma demonstração. Então, tanto Galileu achava que precisava de
uma demonstração cabal, quanto a igreja achava que Galileu não podia defender o
heliocentrismo se não tivesse a demonstração cabal. E Galileu deu voltas para tentar
encontrar a tal da demonstração cabal, e não encontrou; é bem estabelecido que Galileu
não a encontrou. Não há na época de Galileu algo que seja uma demonstração cabal a
favor do heliocentrismo. O que você tem é um conjunto de argumentos que vão,
digamos assim, fazendo grande parte da ciência do mundo contemporâneo a Galileu,
mudando do geocentrismo para o heliocentrismo. Então, Descartes muda, Kepler muda,
mas não é uma coisa que você tenha uma demonstração.
OLIVAL: Sim, mas claro! Agora, a malandragem de Bento XVI é que Feyerabend não
disse que a igreja tinha boas razões para condenar Galileu; a igreja tinha boas razões, a
ciência dos jesuítas tinha suas boas razões para não aceitar as reivindicações científicas
dele, mas condenar Galileu é outra história!
OLIVAL: Isso, exatamente! No fundo, a explicação melhor que você tem hoje para a
questão de Galileu com a Igreja não é uma explicação em termos estritamente
científicos. Trata-se de uma concorrência política, mais precisamente, é até mais que
política, num conceito gramsciano, é uma disputa pela hegemonia cultural. Galileu tinha
a pretensão de deixar uma esfera da cultura, que ele chamava de ciência, independente
da teologia. Como, na tradição medieval, nessa questão da hegemonia cultural a
tradição medieval, isso é fortíssimo, tudo estava submetido à teologia. E o portador da
verdade da teologia era a igreja católica. Então, é claro que você tinha um conflito, que
terminava se expressando na forma de um conflito político, ou um conflito político e
cultural.
OLIVAL: Bem, acho que esta é uma questão excelente! E eu acho que isso do
relativismo está presente, inclusive é ineliminável. Você só eliminaria o risco do
relativismo se você voltar para uma posição do tipo cientificismo, como era forte no
final do século 19 ou uma posição mais sofisticada como a posição do positivismo
lógico, a posição do Popper. Aí, claro, você tem critérios lógicos para delimitar o que é
ciência da não-ciência. Aí, você consegue não cair, não correr o risco de uma posição
relativista, porque a ciência é aquele conhecimento provado, confirmado
empiricamente, na visão dos positivistas, do positivismo lógico, ou aquele
conhecimento que é falseado na visão popperiana. Nesse sentido, a posição de Popper é
muito consistente: para ele, marxismo e psicanálise, portanto, não são ciência; são
pseudo-ciência. Agora, o problema é que esta posição, por mais que seja atrativa, por
mais que ela tenha circulação entre os cientistas, é uma posição que tem dificuldade na
análise da própria ciência. No caso de Popper, por exemplo, Popper era plenamente
consciente, você pega o conjunto da obra dele, de que este critério dele, o critério de
demarcação não resolvia claramente o problema da cientificidade com a teoria da
evolução. Como Popper tinha razões ideológicas para não gostar da psicanálise e do
marxismo, ele não tem problema em bater na psicanálise e no marxismo. Como ele
gostava da teoria da evolução, você não vai encontrar em A lógica da pesquisa
nenhuma crítica à teoria da evolução. Você vai encontrar nas obras posteriores toda uma
tentativa de flexibilizar sua abordagem para recuperar a cientificidade presente na teoria
da evolução. Então, você ficar a salvo disso, do relativismo só é possível, eu
pessoalmente acho que é uma posição que é limitada porque não consegue
minimamente dar conta de uma boa reflexão sobre a diversidade das próprias ciências
da natureza. Não precisa nem chegar às ciências humanas. Por isso que eu quero trazer
o exemplo da biologia. Então, é uma posição cômoda, mas é frágil, não é? Não quer se
molhar, fique em casa; não vá para a rua.
OLIVAL: sofreu. Mesmo o estilo profissional dele, ele sobreviveu no mundo acadêmico
porque tinha credenciais suficientes e numa época em que seria difícil demiti-lo. Ele não
queria dar aula, não queria avaliar aluno... esse tipo bom de professor (risos)(terminou o
trecho).
ISA: A próxima pergunta que eu queria fazer... Por ele ter sofrido uma ruptura no seu
pensamento do racionalismo crítico para o anarquismo epistemológico, ele mescla
conceitos e princípios de sua fase anterior, e algumas vezes confundindo o leitor. Esta
confusão não foi um fator facilitador para as profundas críticas feitas a ele, após as
pessoas terem lido o livro?
OLIVAL: Seguramente facilitou a crítica, eu diria mesmo que Contra o Método não
ajuda nessa questão mais social sobre a qual Sidarta chamou atenção. Veja que não é o
Contra o Método, mas o que está dentro do Contra o Método, que é o que ele chama
de ciência como a nova teologia. Então, essa crítica como está no Contra o Método,
em alguns momentos ele resvala para a idéia de que você deve ter uma educação na qual
a ciência não tenha um papel privilegiado. É explícito no livro. Ora, isso tem perfeita
sintonia, por exemplo, com a posição que reaparece sempre com força nos EUA, por
exemplo, a posição contra o ensino da evolução, porque ensinar a evolução é você
forçar, usar o poder da ciência, esse poder da ciência na sociedade para fazer
doutrinação em relação aos jovens. Então todo o argumento que o Estado norte-
americano, dos que são contra a teoria da evolução, o argumento dos evangélicos, é
exatamente este: você deve dar um tratamento, se não me engano é assim que eles
chamam “um tratamento equilibrado”, que é o seguinte: não somos contra esse ensino
da teoria da evolução. Agora, a sala de aula deve apresentar a narrativa da evolução na
mesma medida em que apresenta a narração da criação, conforme a Bíblia. Então, nesse
embate que é um embate importante nos Estados Unidos e que teve momentos mais
difíceis, hoje um pouco mais brando, mas em 2004 ou 2005 teve um estado americano,
Arkansas, se não me engano, que voltou a proibir [...]. Então, num embate como esse,
Feyerabend não nos ajuda em nada, ao contrário. Do mesmo jeito que Bento XVI citou
Feyerabend nesse incidente em Roma, não seria surpresa se um desses defensores do tal
“tratamento equilibrado”, do “design inteligente” utilizasse Feyerabend. Agora, eu não
tenho dúvida de que a obra de Feyerabend tem uma densidade epistemológica que
ultrapassa esses deslizes do relativismo. Em minha opinião, é por isso que a obra
sobrevive, por isso que vocês tiveram a atenção voltada para ela. Nesse sentido, acho
que é uma obra menos datada, por exemplo, que esse livro de Marcuse. Você vê que
hoje não vai encontrar um interesse tão grande pela obra de Marcuse como aquele que
você continua a ter pela de Feyerabend. Aqui no nosso curso, o Mestrado e Doutorado
em Ensino, Filosofia e História das Ciências, não tem dúvida: o aluno, goste ou não
goste, tem de ler Feyerabend. Se quiser atacar Feyerabend, eu tive aluno que não
gostava de Feyerabend, foi até Lakatos e chegou na dissertação e os membros da banca
foram em cima dele, mostrando a ele que ele tinha um viés ali. Porque você tem um
núcleo do argumento racional de Feyerabend que não pode ser eliminado, a não ser por
preconceito. E o núcleo racional é esse: é mostrar que a ciência se desenvolve
recorrendo não a um método, mas a uma multiplicidade de métodos e de abordagens. O
argumento racional mais forte é mais do que isso: é que a Física se desenvolve
recorrendo a uma diversidade de métodos, o que, eu acho, torna o argumento mais forte
ainda. Porque admitir que você tenha uma diversidade de métodos da Geologia para a
Física não é muito problemático. Ou da Física para a Sociologia, não é muito
problemático. Mas o núcleo duro do argumento de Feyerabend é isso: na Física,
internamente, se for aplicar só esses critérios de método científico, esse cânone do
método científico, Galileu não teria produzido a obra que produziu.
Então sobre o relativismo, a minha posição é que a gente tem de ir navegando nesse
mar, se equilibrando sem cair nos excessos do relativismo, e não é uma posição muito
cômoda. Nos debates e embates intelectuais é sempre mais fácil tomar uma posição
radical de um lado ou do outro, não é? Mas eu acho que na questão do relativismo, a
posição mais sábia, na minha apreciação, é encontrar esse meio termo, de evitar os
excessos do relativismo, do tudo vale, não acho que tudo vale, mas o tudo vale é um
excesso de retórica dele.
OLIVAL: Exato!
OLIVAL: Exatamente!
DENISE: Eu queria retomar o “tudo vale”, o anything goes, porque tenho a impressão
de que tudo vale não é a mesma coisa que vale-tudo. Até fui, quando estávamos, Sidarta
e eu no Congresso da Sociedade Brasileira de Psicologia, em Uberlândia, fui ao
dicionário Houaiss buscar o “vale-tudo”, que é uma expressão, um substantivo
composto. Vale-tudo, no Houaiss, só tem duas acepções: 1. modalidade de luta livre em
que são válidos golpes de cunho extremamente brutal; 2 Derivação: sentido figurado,
contexto em que é válido qualquer expediente; faroeste.” Quer dizer, o vale-tudo é
sinônimo de barbárie. Agora, o tudo vale é diferente.
OLIVAL: Concordo contigo, não são a mesma coisa. Mas eu acho que o tudo vale,
mesmo nessa acepção mais precisa para a qual você está chamando atenção, pode ser
enganoso epistemologicamente, se você não complementa que a fecundidade de
qualquer dos métodos de um estudo vai estar sempre relacionada com o objeto do
estudo, com o contexto do estudo.
DENISE: Eu acho também que aquele livro tão importante também que é O que é
ciência afinal?, de Chalmers, ele termina eu acho, com uma posição equivocada em
relação a Feyerabend, porque ele acha que Feyerabend é o vale-tudo. É difícil
compreender que não é igual a vale-tudo.
Ao desvalorizar, quer dizer, ao desinflar esta expectativa, ao final ele diz estar
elaborando uma filosofia da física, ele diz o seguinte: que não precisava de uma
filosofia da física, que vai bem, obrigado! Você vai contratar departamentos de filosofia
para ficar discutindo filosofia da física? A física é uma disciplina que tem trezentos anos
de existência. Quer dizer, a pretensão da filosofia da ciência não podia ser uma
normatividade em relação à Física. A pretensão tinha de ser aquela anterior, que eu
chamei de arrogância, que é, baseada na Física e na Matemática, fazer uma
normatividade que valesse para todo o campo do conhecimento científico. Eu gosto de
apresentar esse segundo livro. Claro que há interesse na filosofia da física, que seja mais
descritiva e menos normativa para poder ajudar o próprio físico, mas não tem mais
aquele apelo intelectual do Lógica da pesquisa científica de Popper, com um critério
de falseabilidade para decidir onde é que está a ciência e onde é que está a pseudo-
ciência.
OLIVAL: Ou seja, o Chalmers, portanto, com o seu segundo livro, ele finaliza com o
objetivo muito mais limitado do que aquele objetivo que estava na origem desse
programa, programa da demarcação.
Bom, incomensurabilidade.
SIDARTA: Qual seria a concepção que ele tem de progresso cientifico diante desta
idéia, desta noção de incomensurabilidade?
DENISE: Você acha que isso é claro não é? Isso que Isa está falando, de progresso e
avanço.
OLIVAL: É, eu vou dizer o seguinte: neste momento vocês que estudaram Feyerabend
mais recentemente, estão melhor, digamos assim, a par do Feyerabend, porque na
verdade quando vocês me procuraram, quer dizer, eu li essas coisas de Feyerabend,
digamos assim, no Ensino, mas quando a gente vai discutir a noção de
incomensurabilidade, nessa tradição - aí tem um pouco um viés de professor -
geralmente a gente se reporta ao Kuhn, onde a idéia de incomensurabilidade é mais
central, e portanto, se você me perguntar qual é a exata noção de incomensurabilidade
que tem em Feyerabend eu não sei, vocês sabem mais do que eu. Qual é a exata
distinção no Feyerabend entre a noção de progresso e avanço, eu não sei, teria que reler.
E ai na verdade eu peço então que vocês falem. Agora, eu posso falar sobre a noção de
incomensurabilidade. A noção de incomensurabilidade em Kuhn, e até onde eu me
lembro, tem muito tempo que eu não volto a ler Feyerabend, até onde eu lembro, ele
não é muito critico da noção de incomensurabilidade de Kuhn. Como a noção de
incomensurabilidade de Kuhn, elaborada em 1962, é uma noção central nesse círculo,
em que está Feyerabend, Bakthin, Popper, a minha tendência seria dizer que se a gente
discutir bem a noção de incomensurabilidade de Kuhn, eu acho que a gente está
discutindo Feyerabend. E ai eu acho que é uma noção que é interessante, mas
problemática. Interessante porque a noção de incomensurabilidade, ela...
OLIVAL: Não... acho que é O caminho desde as estruturas (UNESP, 2006). É uma
série de escritos posteriores dele numa entrevista em que mostra claramente, ali está o
Kuhn lidando com a dificuldade e o modo como a incomensurabilidade kuhniana foi
absorvida é de uma incomensurabilidade radical. Portanto, como eu disse, cientistas que
participam de paradigmas distintos, uns não entendem os outros. E o Kuhn se dá conta
de que isso não ajuda a compreender a ciência, isso não é útil para compreender a
ciência. Então ele quer se dissociar disso. Mas como se dissociar disso? Em minha
opinião, ele não consegue resolver bem isso. Hoje existem autores que tentam, não para
a ciência em geral, mas para casos específicos, da física, da química, reelaborar esse
conceito de incomensurabilidade. Por exemplo, há um autor americano, um americano e
um canadense, até o canadense nós fizemos aquele curso do Ian Hacking, e há uma
autor americano, Peter Galison e todos procuram, digamos assim, contornar, superar
essa noção de incomensurabilidade porque de fato ela é menos útil para a análise da
ciência do que a gente pode imaginar.
OLIVAL: Eu acho bastante plausível o que você esta falando, voltando a confessar,
digamos assim, a minha ignorância e incompetência para falar especificamente o que
Feyerabend tem a dizer sobre isso...
DENISE: Tenho uma crença, talvez uma idealização, de que ele rompe com a
metafísica.
OLIVAL: Agora, admitindo então que esta seja a posição dele, eu acho que ela não é
isenta dessa dificuldade a que eu me refiro. Então qual é a dificuldade a que estou me
referindo, para ser mais preciso. Suponha que você queira usar Kuhn para analisar, por
exemplo, a evolução da psicologia, o embate dos behavioristas com tais e tais correntes.
É isto que estou dizendo: a análise fina é uma análise especifica de um campo da
ciência. Quando você vai fazer isso, mesmo uma noção como essa, é uma noção que
traz, na minha opinião, certa dificuldade, porque, no fundo, essa separação forte do
empírico e da teoria, na análise da ciência, é uma separação pouco útil.
OLIVAL: Exatamente! Um autor como Hacking evita essa separação tão nítida. Então,
por exemplo, Peter Galison, que é um autor que a gente tem estudado atualmente aqui
no programa, ele esta falando especialmente da física de partículas do século 20, e aí,
para narrar essa história, ele usa a idéia de que a física é composta de 3 subculturas
distintas, e quais são as três: experiência, teoria e ele introduz uma terceira,
instrumentação - os físicos que trabalham com os instrumentos. Nós temos uma tradição
forte na filosofia de olhar sempre a ciência pelo lado da teoria e a ciência não é só teoria
tem experimentação e o Galison lembra que mais do que a experiência, tem a
instrumentação que é uma comunidade, uma cultura a parte. Então ele argumenta com
essas três subculturas, e ai a noção de subcultura, porque as três estão integradas no que
a gente chama a cultura da física, mas não é uma integração bem ajustada, há conflitos
entre elas. Mas essas subculturas, segundo Galison, e ai ele rompe com a idéia da
incomensurabilidade Kuhniana. Essas três subculturas, segundo ele, elas conseguem
dialogar entre si, não no sentido de que conseguem fazer uma tradução um a um, o que
é que o experimental pensa, o que é que o teórico pensa, mas conseguem apesar disso
estabelecer alguma forma de comunicação. E ai o Galison recorre a uma analogia com a
antropologia lingüística. Ele diz: olha, a antropologia lingüística conhece a situação em
que, quando duas culturas se encontram, com línguas diferentes, você não consegue
traduzir uma na outra, mas essas duas culturas são capazes de negociar, são capazes de
trocar. E são capazes inclusive de elaborar o que os antropolingüistas chamam de pidgin
quer dizer, linguagens mais simples, menos elaboradas, mas que se prestam para a troca.
Então ele usa isso como analogia para tentar compreender o que é que acontece na
ciência, de modo que quando pega assim os caras que trabalharam nas fotografias de
partículas, é uma tradição instrumental da década de 1920 até praticamente os anos
setenta. Nesses cinqüenta anos dentro da física de partículas se você for olhar a
mudança de paradigmas mudaram duas ou três vezes de paradigmas sobre como é que
você pensava sobre a física de partículas. Mas o modo de obter as fotografias teve mais
continuidade, mais evolução, mais avanço interno do que o que a gente pode imaginar.
Não teve rupturas na técnica, teve aprimoramentos na técnica.
NORA: Eu penso nesse lugar das artes na academia que talvez passe por essa
dificuldade esta quebra, esta busca de quebra de pressupostos dessa comensurabilidade,
dessa não tradução de um pra um. A gente vem vendo isso nos programas de pós-
graduação em artes talvez a tentativa de agregar a performance, o espetáculo, a
produção artística na possibilidade de defesa seja um caminho de diálogo, pois nem
sempre as coisas vão poder ser traduzidas de um para um. O que você produziu
artisticamente não vai estar na tese ou na dissertação transcrita, na letra. Precisa desse
complemento, dessa noção de complementaridade.
DENISE: E, além disso, pensar que a gente não precisa ficar fazendo a mímica do
cientista.
OLIVAL: Exatamente. Esse foi um assunto que nós conversamos daquela vez que eu
estive lá com vocês, porque eu me lembro que vocês estavam querendo discutir
metodologia de projetos e eu me insurgi contra vocês tentarem fazer metodologia de
projeto conforme outros campos acadêmicos.
SIDARTA: Eu não sei até que ponto isto já foi discutido aqui, ou se tem alguma
coerência, mas – o senhor citou Ian Hacking agora – eu quero saber qual a postura de
Feyerabend em relação ao realismo epistemológico?
OLIVAL: Você me pegou no pulo de novo, Sidarta. Eu não saberia te responder, teria de
voltar... a minha leitura do Feyerabend é bem circunscrita, digamos assim, a essa
disputa dele, digamos assim, com os defensores de um critério forte, um critério lógico
de demarcação de ciência e não ciência. Então, eu... bom, não tenho dúvidas do
seguinte: eu acho que ele não tem uma elaboração muito significativa sobre a questão
do realismo. Então, portanto, você tem que olhar novamente Feyerabend para pensar o
quê ele fala sobre o realismo.
Agora, via de regra, a cultura na qual ele está inserido, o ambiente filosófico no qual ele
está inserido é um ambiente que rompeu com a idéia pelo menos de um realismo
ingênuo, ou mesmo o que a gente chamaria de um realismo de correspondência, onde
você tem uma teoria e você tem uma correspondência, onde cada elemento da teoria
está correspondendo a um elemento do mundo empírico. Isso é uma coisa que é comum
ao Popper, a todos os outros, então seguramente Feyerabend partilha isso. Mas eu acho
que ele não elabora muito sobre isso. E então, justamente, Ian Hacking, por exemplo, ao
contrário, vai fazer toda uma elaboração sobre a questão do realismo, não vai aceitar o
realismo de entidades, mas vai introduzir um outro tipo de realismo, não vai aceitar esse
realismo de correspondência, mas vai introduzir um outro realismo que ele aceita, o
realismo de entidades. Então, a minha conjectura é essa: você não vai encontrar em
Feyerabend uma grande elaboração do realismo.
ISA: Professor, uma questão que eu tirei de um texto que a gente leu. O autor deu uma
determinada opinião em relação a essa questão. Então, o que temer de um professor
anarquista epistemológico?
OLIVAL: Olha, você não deveria temer nada. Porque se ele é professor, você está
supondo que ele tem uma formação, que deveria ter. Digamos, que ele é um bom
professor anarquista epistemológico; vamos qualificar esse professor aí. Porque os maus
professores, independentemente de serem anarquistas epistemológicos ou não, nós
devemos temer muito. Mas um bom professor, ele teve um bom treinamento numa
disciplina específica, ele tem uma reflexão sobre essa disciplina, e um bom professor
idealmente deve estar envolvido com a pesquisa, ele tem uma pesquisa própria. Então,
se ele tem esse perfil, digamos assim, o componente do anarquismo epistemológico, eu
acho que é um componente que vai levar a uma relativização das certezas e de certos
dogmatismos que podem estar presentes na disciplina na qual ele foi formado e a
disciplina que ele vai ensinar. Então, você não deve temer, ao contrário, porque acho
uma combinação saudável.
ISA: Concordo com o senhor, porque acho que o professor anarquista epistemológico dá
algumas bagagens, mas o aluno desenvolve. Então ele acaba não repassando o
conhecimento, reproduzindo o conhecimento, ele acaba realmente incentivando, não é?
DENISE: Hoje a gente está concluindo em parte uma primeira etapa do projeto PIBIC
2008 – 2009. Esse projeto tem o interesse de visitar as obras de alguns epistemólogos
do século 20, basicamente Feyerabend, Bachelard, Bourdieu, Deleuze e Rorty. Isso está
em relação com o meu projeto que é tentar pensar os elementos de uma epistemologia
não-cartesiana que já estariam presentes na obra de Freud. Esses autores revisitam a
obra de Freud, uns dando-lhe o crédito e outros, não. Uma das primeiras coisas que a
gente fez foi partir para ler O discurso do método. Descartes freqüentemente é muito
desvalorizado, mas pelas pessoas que não o conhecem, tanto que é uma obra do século
17 que se mantém viva até hoje e o primeiro autor foi Feyerabend justamente para fazer
esse contraponto do que é o método e o que é ser contra o método.