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História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versionPrint ISSN 0104-5970


Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.6 no.3 Rio de Janeiro Nov. 1999/Feb. 2000
doi: 10.1590/S0104-59702000000400010

Integração entre epidemiologia e antropologia


The integration of epidemiology and anthropology
A relação complementar entre epidemiologia e antropologia tornou-se objeto de debate na saúde
coletiva tendo em vista a integração metodológica nas pesquisas em saúde. Inicialmente, as discussões
enfatizaram dualidades como quantitativo versus qualitativo, objetividade versus subjetividade, identificando
o método de cada uma das disciplinas com os pólos que, tradicionalmente, opuseram tais características.
O método epidemiológico, pressupondo radical separação entre sujeito e objeto, foi historicamente
construído com base em um ideal de rigor, tendo como parâmetros a medida, a objetividade e a neutralidade.
A epidemiologia trabalha com explicações causais elaboradas a partir de investigações que utilizam
entrevistas estruturadas e que pretendem alcançar abrangência e representatividade em seus achados.
O método antropológico rompe o distanciamento entre sujeito e objeto. A objetividade da pesquisa é
construída levando em consideração a intersubjetividade, o erro e o inesperado que ocorrem no processo de
investigação. Estudos de história de vida e observação participante buscam compreender e interpretar o
significado das práticas estudadas, segundo os diferentes contextos culturais em que se situam.
A velha polêmica, que envolvia disputas de competência e tentava definir o melhor método, foi
substituída pela perspectiva de ‘hibridização’ metodológica. Ao se buscar a integração de métodos, pretende-
se compensar os limites de cada um deles. As tentativas de viabilizar estudos híbridos esbarram em
dificuldades que têm a ver com tensões impostas pela lógica e dinâmica, os tempos e ritmos dos diferentes
métodos. As pesquisas que visam a generalização de seus resultados trabalham com grandes amostras
populacionais, ao passo que as pesquisas que buscam compreender a diversidade trabalham com amostras
pequenas. Como integrar os seus achados? A integração entre epidemiologia e antropologia é uma
possibilidade não destituída de tensões, contradições ou disputas de poder, envolvendo inclusive as formas
com que foram historicamente estruturados os conceitos utilizados pelas disciplinas.
A aproximação entre epidemiologia e antropologia nas pesquisas em saúde ocorreu simultaneamente
com importantes transformações no discurso científico contemporâneo, enfatizando valores mais próximos
ao olhar antropológico, caracterizado por abordar a unidade de situações singulares. Nesse contexto, valores
como subjetividade, autonomia e diferença manifestaram-se mais fortemente na saúde coletiva há cerca de
uma década, interferindo na perspectiva até então predominante, que privilegiava a lógica da neutralidade e
objetividade.
O amadurecimento das discussões no interior do campo tornou mais claro que não se trata de migrar do
pólo da objetividade para o da subjetividade, do universal para o singular, do quantitativo para o qualitativo
etc. Além disso, desmistificou a simplificação que consistia em superpor, por um lado, os critérios
quantitativo e de objetividade e, por outro, o qualitativo e o de subjetividade. O que se apresenta como
desafio é saber transitar entre os diferentes níveis e formas de entendimento e apreensão da realidade, a
partir dos acontecimentos que nos mobilizam e nos levam a intervir nela. Esse é, sem dúvida, o mais
importante deslocamento: a crescente relativização da crença na verdade científica que afirma, em primeiro
plano, a ‘utilidade’ do conhecimento. O que importa não é a disputa entre métodos e sistemas de pensamento
definidos a priori, de acordo com competências específicas, mas a capacidade de resolver, da melhor forma
possível, problemas concretos.
A integração metodológica pressupõe outra questão: a definição do problema que se pretende investigar.
As diferenças metodológicas remetem às finalidades da pesquisa e à construção de seu objeto. Nesse sentido,
não se quer a integração de dois objetos — o epidemiológico e o antropológico. A possibilidade de
integração supõe a perspectiva de construção de objetos, isto é, de problemas que possam ser pensados de
forma integrada. Os diferentes campos de conhecimento não são autônomos e, ao mesmo tempo, não
conseguem encontrar uma integração absoluta. Não há como perseguir a construção de um objeto fechado. O
estudo epidemiológico persegue as causas etiológicas dos problemas de saúde e doença nas populações.
Esses problemas são previamente definidos de acordo com um critério básico de classificação de doenças, o
CID (Classificação Internacional de Doenças). Tal critério obedece a uma lógica diferente daquela que
orienta os estudos antropológicos, que buscam apreender os diferentes significados culturais do sofrimento
humano ligado ao adoecer.
Em torno dessas questões realizou-se, em maio de 1997, no Centro de Estudos da Escola Nacional de
Saúde Pública (ENSP), um debate reunindo epidemiólogos, antropólogos e outros pesquisadores da
instituição. As idéias expostas ali, já revistas pelos autores, compõem o texto que apresentamos aos leitores
de História, Ciências, Saúde — Manguinhos.
Luís David Castiel e Zulmira de Araújo Hartz analisam dois aspectos do tema em questão. Castiel trata
do problema da (in)definição dos objetos: a imprecisão como característica peculiar às abordagens acerca da
saúde e da doença, seja esta última apreendida como experiência de sofrimento ou mal-estar (ilness) ou
mesmo como conceito (disease). Zulmira dá à sua intervenção um caráter metodológico: comenta os estudos
realizados em escala mundial com o propósito de integrar métodos epidemiológicos e antropológicos na
avaliação de Programas de Atenção Primária em Saúde. A preocupação desses estudos reside na
possibilidade de se adquirir a necessária ‘rapidez’. As observações feitas por Angela Gadelha e Eduardo
Navarro Stotz enriquem a discussão, que Carlos Coimbra finaliza, com uma síntese clara e objetiva dos
diferentes temas e pontos de vista apresentados no debate.
Dina Czeresnia
Pesquisadora da ENSP/Fiocruz
Av. Leopoldo Bulhões, 1480
21041-210 Rio de Janeiro – RJ Brasil

Luís David Castiel


Queria começar falando do título. Desde a época em que se programou esta sessão, fiquei pensando
nisso e decidi adotar outro título, baseado em um trabalho em parceria com Gil Sevalho (Castiel e Sevalho,
1998). Resolvi chamar esta rápida apresentação de Essa danada da moléstia... ou da molesta, dependendo da
região onde se enuncia tal expressão. Já o subtítulo é pretensioso: objeto e objetividade em epidemiologia e
antropologia da saúde.
Para começar, uma notícia de jornal. Na verdade, trata-se de matéria publicada na Folha de S. Paulo, de
4 de janeiro de 1998, no caderno ’Mais’, de autoria de Bruno Latour:
Estaríamos separados da realidade por filtros, ou ligados a ela por mediadores? Todas as reflexões sobre a ciência seriam
paralisadas pela dominação de uma certa metáfora óptica. Imaginemos que o cientista dirija seu olhar para um objeto.
Imaginemos filtros diversos que aí se interpõem, conceitos, representações, pressupostos, paradigmas. A partir dessa metáfora
fundamental, cria-se a seguinte alternativa: ou se tentará apreender o mundo, tão diretamente quanto possível, sem filtros,
sem tendenciosidades, sem preconceitos, ou, pelo contrário, dever-se-á sempre admitir, entre o espírito humano e a realidade,
a presença de filtros de diferentes cores, que deformam definitivamente a apreensão.
No primeiro caso, procurar-se-á, por meio de uma série de exercícios de autocrítica — eu diria de controle —,
desembaraçar-se dos preconceitos que turvam a visão, a fim de que se obtenha uma visão exata das coisas, que é, grosso
modo, a solução do empirismo.
No segundo caso, aprende-se, pelos esforços do ascetismo, a aceitar os limites que a prisão de nossas categorias sempre
imporá à nossa consciência. Kant já dizia que as coisas, em si, permanecem eternamente desconhecidas.

A matéria da Folha nos faz pensar nessa nossa temática, relacionando-a à chamada realidade, no caso
mais específico, à realidade da área da saúde e dos seus objetos.
É difícil não assumir a imprecisão como característica dos objetos desse campo
"deve-se assumir a das ciências humanas e sociais. Possivelmente, essa dificuldade pode ser estendida
inexatidão não como
para a dita área das ciências exatas, mas vamos nos limitar a nossa área. Em outras
defeito, mas como
peculiaridade desses palavras, deve-se assumir a inexatidão não como defeito, mas como peculiaridade
nossos objetos". desses nossos objetos. O importante é não endossar certos juízos de valor, como,
por exemplo, o que estabelece a característica hard, no jargão norte-americano, para
as disciplinas chamadas exatas. Se assumirmos as ditas ciências exatas — e eu diria que aí já entra certo
juízo de valor, porque elas não são tão exatas assim — como padrão de referência, ou paradigma da
exatidão, evidentemente, nossos métodos e objetos vão ficar marcados negativamente.
A partir desse ponto de vista — a meu ver, bastante criticável –, teríamos também as ciências soft,
moles, menores. Será que vamos ficar à mercê dessa atmosfera de obrigação de justificar a firmeza e o rigor
das ciências humanas, sob os olhares e sobrolhos dos representantes das ciências ditas duras? O que é
ciência mole ou o que é ciência dura?

Quanto ao adoecer humano, é preciso encará-lo como objeto impreciso para seu estudo, que resiste a
determinadas manobras disciplinares de enquadramento. Imagino que assim é mais possível lidar com as
‘doenças-processo’, as famosas diseases nas populações. De certa maneira, essa é uma forma de pensar o
objeto na epidemiologia: os doentes nas populações. Os doentes, aqueles acometidos por doenças
consideradas do ponto de vista das diseases, e, também, as ‘doenças-experiência’, as quais resolvi chamar de
‘moléstias’: Essas danadas das moléstias ou illnesses. Essa é uma distinção já antiga — talvez até criticada
no campo dos objetos da antropologia da saúde e da epidemiologia —, mas, a meu ver, retrata uma tensão de
objetos que ainda permanece.
Mesmo correndo o risco de perder tempo, quero mostrar uma curiosidade que é a etimologia da palavra
‘doença’. No Aurélio, lemos que o verbete ‘doença’ vem do latim dolentia e tem as seguintes acepções:
"Falta ou perturbação da saúde, moléstia, mal, enfermidade." Depois, vemos algumas acepções figuradas e
um regionalismo bastante interessante: parto em Minas Gerais também é visto como doença. Mas existe
também um verbete ‘dolência’, também originário de dolentia, que significa mágoa, lástima, dor e, eu
acrescentaria, sofrimento. Curiosamente, o mesmo verbete no latim, dolentia, refere-se não só a um objeto
da medicina, o da epidemiologia, qual seja, a falta, a perturbação da saúde, mas também à dimensão da
doença-experiência. Essa nuança, no entanto, desaparece conforme se esteja referindo à doença ou à
dolência. Curiosamente, também existe ‘indolência’, do latim indolentia, que deveria ser o antônimo de
dolência, mas que cai numa dimensão de insensibilidade, apatia, preguiça, ociosidade, inércia etc.
Ora, estando-se dolente ou indolente, sempre há uma dimensão de precariedade. Assim, curiosamente, os
dois verbetes remetem ao mesmo resultado, que não é algo, vamos dizer assim, positivo. O que está em jogo
na indolência me parece ser, claramente, essa idéia de insensibilidade. Ou seja, há uma ‘desenergia’, se é que
essa palavra existe. De um lado se tem a energia dirigida no sentido do sofrimento, da dor; de outro, o
indolente, insensível à dor, anestesiado da dor. O que achei interessante mostrar a vocês é essa bifurcação do
latim dolentia, que vai gerar ‘doença’ e ‘dolência’. A impressão que tenho — evidentemente, forçando a
barra — é que a dolência seria algo mais vinculado ao objeto da antropologia da saúde, enquanto a doença,
que se refere mais diretamente ao processo biológico, se ligaria à experiência de estar doente, pertenceria ao
campo da epidemiologia.
Se, por um lado, a inclusão dos aspectos simbólicos-culturais envolvidos no adoecer humano possibilita
uma análise mais profunda das situações de saúde estudadas, por outro, a existência de certas diferenças
entre a epidemiologia e a antropologia da saúde ou médica pode representar obstáculos numa cooperação
mútua. Há referências bibliográficas (Janes, Stall e Gifford, 1986) que, além de refletirem as tentativas de
cooperação entre essas disciplinas, evidenciam que o que está verdadeiramente em jogo é essa tradicional
distinção — seja ela ainda sustentável ou não — entre o objeto ‘doença-processo’ e o objeto ‘doença-
experiência’, sob o domínio das dimensões simbólicas e culturais.
Haveria, no que concerne à epidemiologia, dentro do seu método, do seu instrumental metodológico,
uma forma de construir quantitativamente esse objeto-doença? Por outro lado, esse objeto-doença
responderia bem a essa proposição metodológica quantitativa?
A doença disease — apesar da resistência de alguns ao inglês, esse é um termo que se impõe — e a
dolência illness se apresentariam mais palatáveis, mais responsivas a abordagens respectivamente
quantitativa e qualitativa. Pensando-se na perspectiva clínico-epidemiológica, como se constrói esse
fenômeno dito doença? Há um modelo de raciocínio causal, causalista, que se baseia em uma evolução de
eventos, na qual elementos semiológicos e respectivos sinais e sintomas são decorrentes de uma entidade
nosográfica que surgiu a partir de processos considerados patogênicos em função de uma etiologia.
O problema é que nem sempre essa trajetória modelo é passível de ser obtida. Freqüentemente, não se
pode ter a etiologia, não se tem a patogenia e se é obrigado a lidar apenas com as manifestações. Por
exemplo, há situações claras em que o aparato, o dispositivo clínico-epidemiológico, funciona muito bem, e
é possível delimitar a etiologia, como é o caso da meningite meningocócica. Mas, em outras, somente os
mecanismos patogênicos são conhecidos, como é o caso, por exemplo, das intoxicações por metais pesados.
Também é possível pensar-se só em termos de manifestações, como acontece com a doença hipertensiva, em
que ainda não é exatamente clara a realidade do que se passa nos tecidos.
Para a definição diagnóstica, esses problemas se tornam cruciais quando a precisão é necessária. A idéia
da precisão vincula-se, de um lado, ao fato de o instrumental clínico-epidemiológico estar fundado num
modelo a partir do qual o objeto pode ser abordado de maneira precisa e, de outro, ao fato de se dispor dos
meios para tal abordagem.
Quando não se pode tornar preciso o objeto, faz-se necessário buscar outra maneira de se lidar com ‘ele’.
As doenças mentais, por exemplo, se tornam problemas, porque ou não se tem a etiologia, ou se deve
desconfiar da etiologia que se tem — como é o caso da esquizofrenia –, ou se tem a dimensão genética, mas,
de qualquer maneira, destaca-se o caráter impreciso de nossas delimitações. Essas doenças, curiosamente,
são colocadas na língua inglesa sob a rubrica diseases. Mas, na verdade, elas não são mental diseases, são
usualmente denominadas mental illnesses, o que, a meu ver, já é sintomático.
Atualmente, ainda se usa o termo ‘transtorno’ para indicar essas doenças, que prefiro chamar de
‘moléstia’, até para fazer o jogo verbal ‘danada da moléstia’. E o termo ‘danada’ é interessante, pois vem de
‘dano’, conceito relevante para se determinar o objeto da epidemiologia, que estuda os danos. O fato de a
moléstia ser danada e ter simultaneamente uma dimensão de dano — de doença e de dolência —, de
sofrimento, torna esse objeto ainda mais interessante.
Por outro lado, a palavra molestar tem também conotação sexual. Molestado pode ser tanto alguém que
está sofrendo assédio sexual, quanto alguém que está sendo maltratado. Um aspecto que, na minha opinião,
deve ficar claro é a contradição presente no fato de as concepções de doença serem dependentes dos
propósitos daqueles que definem a doença, a saúde e a assistência.
Ou seja, há evidências, cada vez mais flagrantes — óbvias para determinados profissionais, mas não tão
óbvias para outros — de que as idéias sobre as definições da doença vão variar conforme uma série de
circunstâncias, lugares e papéis. Se quem define é, por exemplo, a instância responsável pela alocação de
recursos para a saúde, pode haver definições distintas das que seriam feitas pelas instâncias encarregadas das
prestações de serviços. O médico formulará definições distintas das que um paciente formularia. Isso
também aconteceria com o clínico e o epidemiologista, mesmo estando muito próximos em termos de
‘paradigmas’. Tanto é assim que existe a dita definição operacional da doença, em que pesam tanto a
importância clínica quanto a importância em termos epidemiológicos, no intuito de se detectar a doença nas
populações e também no indivíduo. Como se vê, a objetividade é situada, e as perspectivas, posicionadas.
Os pontos de vista participam da configuração, por isso é difícil abstrair o lugar de quem está definindo,
e dizer que um lugar é mais objetivo do que o outro. Às vezes é até possível, dependendo dos critérios de
objetividade. Uma forma de pensar isso, com decorrências não sei se satisfatórias, é considerar a categoria
diseases, mais definida, um caso particular da categoria illness. Diante das situações de sofrimento, que
inclusive variam culturalmente, existiriam determinados contextos nos quais seria possível delimitar uma
disease, embora o panorama fosse de caso particular. Ou seja, nesse contexto, em que importa a dimensão do
objeto, a disease seria um caso particular medicamente abordável, no âmbito da illness.
Por sua vez, a objetividade na pesquisa científica, especialmente na epidemiologia, é uma dimensão que
pode ser mensurada. Como se mede a objetividade? Em termos de técnicas de pesquisa, acredito que grande
parte de vocês já deve ter buscado esse dimensionamento. Um achado é considerado confiável quando sua
verificação apresenta alto grau de confirmação. Por exemplo, um grau de concordância quanto a um
determinado parecer. O objeto não fica em questão: basta haver a concordância e a validade — outra forma
de dimensionar a objetividade — para que um achado seja considerado válido em relação à ‘verdade’. Há
uma noção de verdade em jogo quando sua verificação ou forma de determinação apresenta alto grau de
concordância em relação a um padrão de referência do que seja verdadeiro, como o famoso padrão ouro.
Essa idéia foi trazida da economia. O padrão ouro é o padrão mensurativo, o padrão métrico. ‘A verdade da
medida está concretamente constituída em metal nobre, que não sofre alterações com as intempéries, pelo
menos, como as que afetam os outros vis metais. Essa idéia de verdadeiro, no entanto, é extremamente
complicada, e não pretendo enveredar por ela. A idéia de que há quadros de referência que variam conforme
essa idéia de verdade deve ser discutida no campo da filosofia. Mas isso não nos impede de tecer aqui
algumas considerações.
‘Verdade’ não tem verbo correspondente, ao passo que ‘falsidade’ e ‘mentira’ têm. Existe verdadejar?
Verdadeirar? Parece que não. Usa-se, ‘na verdade’, ‘dizer’ ou ‘falar’ ou ‘confessar’ a verdade. Como se
houvesse ‘a verdade’ e, então, fosse possível ter acesso a ela somente através da enunciação do substantivo
como representante da respectiva materialidade factual. Quanto à mentira e à falsidade, é possível mentir,
falsear, falsificar. Mas ‘verdade’, tanto quanto saiba, não possui um verbo que lhe seja próprio. O máximo
que temos é ‘verificar’. Ou seja, dimensionar o quanto algo tem de verdade ou não. O que reforça o que
estou tentando dizer.
Por exemplo, pensemos, em termos de alta confiabilidade, no fato de os índios norte-americanos de
determinadas tribos verem ou ouvirem parentes recém-mortos e de se comunicarem com eles. Dizer que se
trata de alucinação é problemático. Alucinação é uma categoria aplicada a outra dimensão cultural. Talvez
tivesse cabimento para não-índios. E como seria essa questão em relação aos espíritas, para os quais essa
comunicação faz parte da, digamos, religião ou cultura? Há confiabilidade, uma vez que a grande maioria
desses índios faz os mesmos relatos, mas a validade continua problemática ou instável. A validade depende
do conhecimento, estabilizado e disponível em boa quantidade, sobre determinado tópico.
Qual é o significado, por exemplo, de uma entidade nosográfica chamada síndrome de fadiga crônica, se
ela pode ser encontrada em uma mulher favelada, mãe solteira com vários filhos; em um triatleta, após
alguma virose; ou em um idoso com seqüelas de pólio? Se esse significado é buscado em função de
avaliação, falta validade: a morbidade não foi adequadamente medida. Surge, então, um furor avaliandi, que
exige medidas específicas para determinadas entidades nosográficas pertencentes à mesma rubrica. Mas uma
coisa é a síndrome de fadiga crônica num determinado indivíduo, outra coisa é essa mesma síndrome em
outro indivíduo, com muitas diferenças sócio-demográficas, como se diz no jargão epidemiológico.
Esse problema relativo às chaves da confiabilidade na ausência de validade não é exclusivo de novas
condições de transtornos mentais, nem se vincula claramente a dimensões culturais. É um problema
genérico, sério, nas avaliações das queixas de pacientes com sintomas e sinais de doenças, nos vários
sentidos que o termo pode assumir, tanto doença, como dolência, tanto diseases, quanto illnesses.
Para terminar, penso que colocar a discussão em termos de definições ou mesmo de transferências
metodológicas qualitativas e quantitativas é empobrecer a questão. A pesquisa em saúde coletiva deve
assumir uma preocupação com a interação mente-corpo-sociedade. E a maneira como essa interação se dá
pode ser responsável pelo adoecimento das populações. Não há razão para se estabelecer uma hegemonia de
métodos em detrimento de outros. Nem de se abrir um espaço no meio de um grande projeto quantitativo, e
nele aninhar um trabalho qualitativo, apenas para dizer que a pesquisa se preocupa também com o contexto e
os significados.
Os objetos de estudo, nesse campo, podem demandar técnicas e métodos específicos que se mostrem
mais responsivos e apropriados. Em outras palavras, para cada situação há que se
"Não há razão para se buscar um enquadramento de métodos e técnicas adequados. Mas é preciso ter
estabelecer uma claro que, muitas vezes, essas discussões metodológicas encobrem lutas de poder
hegemonia de métodos e controle corporativo, e que não dá para sermos inocentes quanto ao que está em
em detrimento de
outros. Nem de se abrir
jogo.
um espaço no meio de Portanto, é imperativo, quando se trabalha com o coletivo das populações,
um grande projeto
quantitativo, e nele
enxergar outras construções de saúde-doença, admiti-las nas coletas de dados,
aninhar um trabalho construir novas taxonomias, incorporando a interpretação das narrativas,
qualitativo, apenas para reconhecer os aspectos simbólicos, perceber a diversidade dos gêneros e a
dizer que a pesquisa se singularidade do adoecer humano — belo subtítulo para um livro. Imagino que
preocupa também com esses sejam tópicos merecedores da atenção tanto ao elaborar e desenvolver
o contexto e os
significados."
nossos futuros projetos de pesquisa, como ao empreender as respectivas
discussões teórico-metodológicas.
Zulmira de Araújo Hartz
O título que inicialmente pensei em dar a este debate era Epidemiologia e a antropologia na avaliação
dos serviços: uma questão de indisciplina. No entanto, por já ter comparecido a debates sobre a questão da
indisciplina, com alguns dos participantes desta mesa, alterei a segunda parte para ‘uma questão de rapidez’.
Para entender a história desse ‘meio de campo’ nos países em desenvolvimento é preciso considerar a
preocupação com a ‘rapidez’, demanda esta que vem particularmente da necessidade de adaptação das
metodologias para a avaliação dos programas de cooperação internacional em atenção primária à saúde.
Além da necessária ‘indisciplina’, essa preocupação é talvez o mais importante denominador comum. Pode-
se exemplificar com algumas expressões encontradas na bibliografia entre 1981 e 1993, tais como, Rapid
Epidemiologic Assessment (REA), Rapid Assessment Procedure (RAP), Rapid
"‘ser rápido’ é Ethnographic Assessment (REA) ou Rapid Evaluation Methods (REM), em que
fundamental, podendo- ‘ser rápido’ é fundamental, podendo-se, no período de três meses, concluir
se, no período de três estudos antropológicos e epidemiológicos abrangendo até 16 países. É um pouco
meses, concluir estudos dessa lógica que estarei apresentando, sem pretender entrar nos detalhes das
antropológicos e
epidemiológicos
abordagens, respeitando o limite de tempo.
abrangendo até 16 países A epidemiologia inicia esse processo ao propor abordagens metodológicas
... é a época em que a
antropologia entra no
mais rápidas (REA), que foram validadas cientificamente por um comitê da
‘ritmo’ do RAP." Academia Nacional de Ciências Americanas (Advisory Commitee on Health,
Biomedical Research/ Board for Science and Technology for International
Development, BOSTID). O importante para avalizar a ‘velocidade’ era o fato de não perder o grau de ‘rigor’
tradicional na flexibilização introduzida nos métodos amostrais dos inquéritos epidemiológicos — como, por
exemplo, a amostragem por conglomerado dos inquéritos de cobertura vacinal —, nos exames coletivos de
triagem, na avaliação do estado de saúde dos grupos populacionais e nos estudos de caso-controle. Os
estudos dessa área dedicavam-se, sobretudo, aos temas da mulher e da criança, em projetos de redução da
mortalidade infantil, com os quais muito tenho aprendido e aproveitado em pesquisa avaliativa.
Coincidentemente ou não, é a época em que a antropologia entra no ‘ritmo’ do RAP. Esses primeiros
estudos antropológicos partilham os mesmos universos de análises e preocupações da atenção primária em
saúde em nível internacional, e um dos problemas para os grupos de assessoria é dar conta de projetos nessa
amplitude. Quando se pretende realizar avaliação em escala mundial, a diversidade cultural começa a fazer
diferença e pode dificultar o estabelecimento de critérios de medição e parâmetros de observação. O RAP é
detalhado na Guia metodológica em antropologia prática, que é aplicada a programas de saúde e publicada
pela Universidade das Nações Unidas/Unicef/Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidade da
Califórnia em Los Angeles (UCLA), também intitulada Procedimientos de asesoria rapida para programas
de nutrición y atención primaria de salud. Enfoques antropologicos para mejorar la efectividad de los
programas. O eixo principal é a prevenção e o controle de endemias, principalmente da diarréia, com ênfase
na desnutrição e nas doenças evitáveis por vacinas. As diferentes técnicas de coleta e análise de dados
qualitativos — entrevista formal e informal, conversação, observação com e sem participação, e grupos
focais — são sistematizadas e operacionalmente ‘agilizadas’.
Os estudos etnográficos juntamente com outros estudos de origem qualitativa, principalmente
produzidos pelo grupo de gestão do programa de pesquisa e de intervenção para controle da diarréia, vão
trabalhar de maneira preventiva definindo recomendações relativas à dieta. Esses estudos produzem
recomendações necessárias para que haja mudanças de comportamentos individuais nas intervenções
comunitárias, favoráveis ao uso de reidratantes orais, incorporando abordagens culturais na prática
profissional. Para se ter uma idéia dos vários tipos de dificuldade que eram encontradas, tomemos, à guisa de
ilustração, um fato que envolve antropólogos brasileiros. Eles tiveram muita dificuldade com a representação
de ‘empachar’. As diarréias tinham significados diferentes, como a líquida e a sólida, mas não dava para
entender o conceito de ‘empachamento’. No decorrer do estudo, eles observaram que quando a diarréia era
percebida como ‘empachamento’ a orientação popular era no sentido de estimular a soltar as fezes,
agravando o problema.
No Departamento de Epidemiologia da ENSP/Fiocruz, o grupo do Programa Ampliado de Imunização
(PAI) trabalhou com a metodologia do RAP, como parte de um projeto internacional de avaliação do
programa, com a participação de vários estados do Brasil. O grupo que atuou nesse estudo, com parceria de
antropólogos da UFRJ, adaptou a guia de modo realmente exemplar, com conceitos básicos de observação
participativa, técnicas de entrevista, enfim, com os instrumentos necessários para a abordagem qualitativa.
A rapidez vai finalmente se institucionalizar na Organização Mundial de Saúde (OMS) com o método
rápido de avaliação para performance dos serviços (REM) da Divisão de Saúde da Família, que foi
posteriormente ampliado, para ser aplicado a outros problemas de saúde pela Divisão de Vigilância
Epidemiológica e Avaliação de Tendências. O método foi testado entre 1988 e 1991 em cinco países em
desenvolvimento — Madagascar, Papua, Nova Guiné, Uganda e Zâmbia —, e o Banco Mundial vem
propondo seu uso na avaliação de programas sociais. Um dos méritos desse grupo foram as apresentações
matriciais integrando os problemas de saúde e as informações necessárias para avaliação, o que enriquece
muito os estudos anteriores. A matriz relaciona as áreas de intervenção que se pretendem avaliar e os
diferentes focos — ações comunitárias, gestão, qualificação profissional, recursos e análise de performance
— a serem trabalhados. No seu interior são explicitadas as respectivas modalidades para coleta de dados
quantitativos e qualitativos, tais como, observação em atendimentos tradicionais, entrevistas no momento da
saída dos consultórios, entrevistas domiciliares, análises de prontuários etc. Toda a pesquisa normalmente se
efetua num período de três a quatro semanas, com dois meses de preparação, e apresenta resultados
extremamente interessantes. Um dos pontos positivos da fase preliminar é que se ganha tempo com o
levantamento de dados secundários, num trabalho conjunto com os cientistas locais.
Quando se pensa em termos de uma matriz de avaliação, constata-se que ela pode ser infinita. O que
considerar, então? A validade de ‘conteúdo’ será adequada se as dimensões escolhidas — por meio de uma
técnica de consenso ou de grupo focal, constantes do meu ‘cardápio mínimo’ — e o(s) conceito(s)
subjacente(s) estiver(em) coerente(s). A incorporação de técnicas qualitativas promove uma articulação mais
visível dos conceitos com a prática do avaliador e pode minimizar o que chamei em minha tese de doutorado
de erros de terceiro e quarto tipos, aqueles erros que, na verdade, são impossíveis de serem resolvidos
através de qualquer cálculo estatístico e são inquestionáveis pela epidemiologia. Trata-se da chamada
seleção do objeto, evitando-se problemas de mais difícil delimitação, como a avaliação da satisfação do
usuário e de programas em saúde mental, ou a seleção do método mais simples de operar, mesmo que seja
redutor do objeto que se quer analisar. Essas preocupações adicionais com a validade do estudo, se, por um
lado, podem nos levar a ‘acertar menos’ em precisão, em função das questões trabalhadas, por outro, nos
levam a ‘conhecer mais’, uma vez que ampliamos o foco dos problemas investigados. Disso decorre outra
dimensão incrementada que é a de face validity , uma ‘validade que está na cara’, de natureza subjetiva,
muito importante para a avaliação, pois pode favorecer ou dificultar o uso dos resultados de uma avaliação.
De fato, pode-se ter um excelente estudo sobre a ‘qualidade’ de um serviço, que vai para a prateleira, como
muitas das nossas pesquisas, embora ofereça indicadores tecnicamente relevantes, mas que acabam não
sendo incorporados, porque as pessoas implicadas não se identificaram com eles.
Resumindo, realmente acho que todas essas questões representam avanços importantíssimos, embora
alguns críticos discutam a realização de um estudo ‘rápido’. Alguns grupos de pesquisadores continuam
considerando que a abordagem metodológica que privilegia a rapidez se mostra problemática,
desconfortável. Estudos feitos no Peru e na Nigéria, realizados com a mesma metodologia, indicam que um
grupo de pesquisadores ficou satisfeito com os resultados obtidos e o outro não. De fato, na Nigéria, a
comunidade de análise era muito mais fechada, e no Peru o contexto era mais esparso. Foi difícil alocar o
mesmo tempo para esses dois estudos. Um outro problema aconteceu em uma
"uma ‘etno- investigação no México. Como resultado de uma observação ‘muito rápida’ sobre
epidemiologia’, representações da diarréia, incorporou-se, no treinamento dos profissionais, a
formulada como a
utilização coordenada e orientação de que a batata não era recomendada em caso de diarréia. A partir de
conjunta dos dois uma observação ‘mais longa’, no entanto, descobriu-se que, para não
métodos, é tida pelas comprometer o estado nutricional dos doentes, não era preciso retirar da dieta esse
associações profissionais alimento básico, pois havia um modo de prepará-lo para ser consumido e aceito
de avaliadores como pela população, mesmo em caso de diarréia. Isso é só para mostrar que uma
desejável e inevitável
entre as tendências
avaliação rápida pode levar a resultados discrepantes ou discordantes, exigindo
universais para o século ‘vigilância’ da parte das equipes envolvidas.
XXI".
De qualquer maneira, não tenho dúvida de que se está avançando e a noção de
uma ‘etno-epidemiologia’, formulada como a utilização coordenada e conjunta dos dois métodos, é tida
pelas associações profissionais de avaliadores como desejável e inevitável entre as tendências universais
para o século XXI, englobando todas as intervenções de saúde, particularmente aquelas voltadas para o
comportamento de risco em doenças crônicas, controle de drogas e tabagismo. Esses estudos, apesar de toda
sua complexidade — inclusive de serem oriundos de numerosos países — conseguem trazer respostas
extremamente interessantes, certamente mais oportunas do que as obtidas por meio dos tradicionais
inquéritos epidemiológicos, demasiado longos e muito pontuais. A ‘rapidez’ não tem impedido nem a
apreensão de aspectos importantes da avaliação nem o aperfeiçoamento da intervenção e dos próprios
métodos.
A oportunidade de parceria realmente potencializa os esforços, como foi o caso de uma pesquisa
etnográfica para orientar a construção de um instrumento em estudo de caso-controle, referente à avaliação
de um programa de imunização. Um colóquio científico em Londres, na década de 1980, chegou a
recomendar expressamente que deveria ser dada prioridade máxima aos estudos antropológicos, precedendo
qualquer inquérito de envergadura sobre a saúde, em qualquer que fosse a população. Isto porque, ao se fazer
a análise dos inquéritos epidemiológicos, ficou claro que a maioria dos estudos concluía que, apesar de os
resultados serem positivos, não era possível explicar os achados, decorrentes, em grande parte, das
diferenças de culturas. Seria perda de tempo e dinheiro continuar iniciando os estudos diretamente com as
questões do inquérito epidemiológico, para explicar, por exemplo, diferenças relativas a comportamentos de
risco, incidência de câncer ou de doenças crônicas.
Se fica evidente que o campo da avaliação se beneficia da pluralidade metodológica, na prática, há
problemas a serem enfrentados, como já advertia Annie Hubert (1985). A autora lembra a importância dessa
complementaridade, mas adverte que "uma verdadeira colaboração não poderia se limitar, por exemplo, a
uma tintura antropológica superficial em um médico para torná-lo mais apto a cuidar das populações de
países subdesenvolvidos". Este posicionamento resume um pouco dos cuidados que julgo indispensáveis em
relação a essa pluralidade metodológica na avaliação dos programas e serviços de saúde e reforça a
importância desse debate no momento em que sua generalização é iminente.

Angela Maria Jourdan Gadelha


Gostaria de fazer uma reflexão com base em situações concretas de uma experiência de campo. Em
1984, participei, na qualidade de pesquisadora auxiliar, de uma pesquisa do Departamento de Epidemiologia,
que objetivava comparar o efeito da presença/ausência do saneamento em duas comunidades carentes,
principalmente no que concerne às questões relacionadas à diarréia.
Acompanhamos, semanalmente, durante um ano, as crianças menores de um ano, observando suas
condições de vida, seu processo de amamentação, seu desenvolvimento ponderal e doenças ocorridas.
Durante esse período, norteadas por um certo feeling antropológico/psicológico, estabelecemos íntimo
contato com as famílias.
A questão ‘sujeito observador versus sujeito participante’ se colocava, ao termos que decidir se
interferiríamos ou não na atitude da mãe, quando se apresentasse o caso de uma criança desidratada. Os
tempos/ritmos de produção, que totalizavam em média 15 visitas diárias, conflitavam com a escuta
necessária dos problemas vividos pela família, os quais, muitas vezes, estavam longe do ‘interesse’ imediato
da pesquisa ou mesmo de qualquer possibilidade de solução ou ajuda de nossa parte. Era de se esperar uma
identificação do pesquisador como agente ‘solucionador’ de problemas e de uma expectativa de troca pela
informação, pela invasão do cotidiano, por serviços concretos.
Éramos também protegidos pela comunidade. Lembro-me, perfeitamente, de um dia em que o supervisor
da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) veio visitar nosso trabalho na Vila do João. De repente,
sentimos algo estranho no ar, um silêncio, um sumiço das pessoas das ruas. Algumas senhoras nos
chamavam, insistentemente, de suas janelas, para entrarmos em suas casas. Já lá dentro, entendemos que se
tratava de uma briga de gangues com risco de tiroteio. Porque nos viam como pessoas que traziam
benefícios para a comunidade, fomos chamadas e ficamos lá protegidas. Pouco tempo depois a pesquisa foi
suspensa por falta de segurança.
Muito da informação ‘quantitativa’ que se obtinha sobre o número de episódios de diarréias, tempo do
desmame etc. derivava da interação pessoal do pesquisador com a mãe/família, da capacidade de interpretar
a subjetividade da informação da mãe e da sua própria subjetividade, para finalmente decodificar essa
informação em uma informação ‘científica’. Observávamos como as mães se comportavam, buscávamos
saber que necessidades eram prioritárias para elas, mantínhamos contato com as crianças. O ‘qualitativo’ das
experiências vividas, as anotações de campo fizeram parte da pesquisa, embora, naquela época, a tentativa
de integração metodológica entre a pesquisa epidemiológica e a antropologia estivesse apenas
‘engatinhando’ no campo da saúde coletiva.
Muito se aprendeu durante esse percurso, e vários desses pontos foram destacados neste debate:
objetividade versus subjetividade, quantitativo versus qualitativo, abrangência versus representatividade,
tempos/ritmos, tamanho da amostragem, interação mente-corpo-sociedade etc. Outros mais poderiam ser
aprofundados, como a idealização e a condução objetiva do trabalho de campo, o efeito do direcionamento
das verbas para linhas específicas de pesquisa etc.
Mas, nesse momento, me pergunto novamente: Como é, ou o que é ser epidemiologista? Não é só saber
matemática, estatística... É preciso ter boa relação com a comunidade, dar retorno a essa comunidade, mas
para isso tem que haver uma sólida formação. Como fazer a parceria com outras disciplinas, na prática?
Como compatibilizar o volume de conhecimento produzido nas diversas áreas com a necessidade de uma
formação holística?
Acho que nossa cultura está mudando e fazendo com que percebamos que,
"Como fazer a parceria como epidemiologistas, não somos capazes de resolver o problema da diarréia, ou
com outras disciplinas, de chegar a uma solução para o problema de saúde de determinada comunidade,
na prática? Como
compatibilizar o volume
por melhores que sejam as relações construídas, por mais correto que seja o
de conhecimento formulário adotado ou por mais adequada que seja a metodologia aplicada, do
produzido nas diversas ponto de vista da epidemiologia. Muitas vezes não damos conta de responder ou de
áreas com a necessidade compreender a complexidade das relações que se dão no processo de adoecimento
de uma formação das comunidades.
holística?"
Os profissionais estão, de alguma forma, percebendo que o conhecimento
específico de cada um não soluciona, nem dá conta dessa explicação, dessa tentativa de mudança. Tampouco
funciona a ‘hibridização’ de metodologias, conforme sinalizou a professora Dina Czeresnia ou conforme o
sentido a que se referiu o prof. Luís Castiel: "abrir um espaço no meio de um grande projeto quantitativo, e
nele aninhar um trabalho qualitativo, só para dizer que a pesquisa se preocupa também com o contexto e os
significados".
É fundamental que se estimulem mais debates como este, incorporando discussões sobre ciência,
antropologia, filosofia, sociologia etc. Falta-nos essa formação mais ampla.

Eduardo Navarro Stotz


Se entendi bem, o que se pergunta é que tipo de contribuição a antropologia pode oferecer à
epidemiologia quando consideramos, por exemplo, que as doenças são processos de desorganização nos
níveis individual e coletivo da existência humana, processos para os quais se dispõe de pouco ou impreciso
conhecimento. Parece que a antropologia poderia contribuir no sentido de estabelecer questões a serem
resolvidas e a pensar instrumentos de investigação. Isso traz à tona uma trama de relações sociais. Entra em
pauta, inclusive, a legitimação do que se considera aceitável, dentro de uma sociedade, de um número mais
ou menos permanente de pessoas doentes, ou seja, da expressão endêmica de uma
"supõe-se que as pessoas determinada doença ou problema de saúde.
da população queiram Em suma, a primeira questão seria relativa às implicações de se dizer que o
enfrentar o problema,
sejam realmente ouvidas estudo deveria começar com uma abordagem antropológica.
... . Por outro lado,
A segunda é que os métodos específicos que estão sendo propostos, como o
quando a comunidade
entra no processo de grupo focal e o RAP, são técnicas de construção de ‘consenso’, uma vez que
discussão, ela não é o envolvem a comunidade para a resolução de problemas detectados pelos governos,
‘alvo’, porque a pelas autoridades sanitárias. Penso que o ponto crucial diz respeito à relação
comunidade no caso está promoção-educação. Aí temos a reflexão científica com características de
‘dentro’ do método." intervenção, com o objetivo de dar respostas.
Na avaliação sobre o uso desse tipo de método deve-se considerar sua oportunidade em função da
intervenção em problemas concretos, em que há a necessidade sentida de uma ação. Acho que a urgência é,
nesse sentido, enorme. Como método de construção de consenso, supõe-se que as pessoas da população
queiram enfrentar o problema, sejam realmente ouvidas, que seu ponto de vista possa se manifestar
livremente e ser levado em consideração. Por outro lado, quando a comunidade entra no processo de
discussão, ela não é o ‘alvo’, porque a comunidade no caso está ‘dentro’ do método, então não são coisas
externas.
O RAP, principalmente, envolve lideranças de pessoas da comunidade num processo necessariamente
dialógico, em que o ‘objeto’ está definido pelo problema formulado numa relação de conhecimento entre
técnicos, profissionais de saúde e lideranças comunitárias. Na própria montagem da equipe que vai
encaminhar a estimativa rápida, há vários aspectos importantes a considerar, uma vez que o ponto de partida
é o governo, é a autoridade sanitária, diante de uma população que não é homogênea, numa sociedade
estratificada, marcada pela desigualdade, e há, também, que se fazer escolhas com um grau de legitimidade
que não acabe por reforçar a exclusão social de certos grupos.

Carlos E. A. Coimbra Jr.


Em grande parte, na assim chamada ‘área da saúde’, as discussões sobre os pontos de
convergências/divergências entre a pesquisa antropológica em saúde e a epidemiologia têm se restringido à
questão do método. No Brasil, tal ‘metodolatria’, parafraseando Inhorn (1995), tende a se limitar a um
debate, quase sempre polarizado, entre os assim chamados métodos ‘qualitativos’
"Ao nos restringirmos à
dicotomia ‘qualitativo — percebidos como de caráter holístico/antropológico — e os métodos
versus quantitativo’ ‘quantitativos’ — percebidos como reducionistas/epidemiológicos. Tal visão
perdemos a oportunidade estereotipada em pouco contribui para uma efetiva colaboração ou ‘integração’
de aprofundar o debate entre as duas disciplinas.
acerca de questões
teóricas, a meu ver mais A antropologia não pode ser caracterizada como um campo homogêneo, no
importantes, que dizem que concerne aos seus métodos, nem, tampouco, a epidemiologia pode ser
respeito à própria caracterizada de forma tão simplificada. Os embates teóricos verificados nas
construção dos objetos
de investigação, tanto
últimas duas décadas, que envolveram antropólogos de distintas vertentes
por parte da antropologia(interpretativista, materialista etc.), têm sido de extrema importância para uma
como pela redefinição do próprio campo da etnografia e dos limites de suas metodologias,
epidemiologia." por vezes gerando, no dizer de Marcus (1998, p. 82), verdadeiras crises de
‘ansiedades metodológicas’ no métier. O desenvolvimento de uma perspectiva
crítica também no âmbito da antropologia médica ou da saúde tem se alimentado a partir desses embates e
resultado na incorporação de elementos da história e da economia política, entre outras disciplinas,
fundamentais para a crítica e redefinição de seus objetos e métodos (Lock e Scheper-Hughes, 1990; Singer e
Baer, 1995).
Ao nos restringirmos à dicotomia ‘qualitativo versus quantitativo’ perdemos a oportunidade de
aprofundar o debate acerca de questões teóricas, a meu ver mais importantes, que dizem respeito à própria
construção dos objetos de investigação, tanto por parte da antropologia como pela epidemiologia. Com isso,
concordando com o que nos disse o prof. Luís Castiel em sua apresentação, empobrecemos uma temática
que poderia gerar debates muito mais profícuos, dado que o potencial de colaboração entre a epidemiologia e
a antropologia não se resume à mera transferência de metodologias, quer seja da antropologia para a
epidemiologia ou vice-versa. Como também observou Castiel, e chamando atenção para um modismo
corrente, tampouco se justifica tentar encaixar em determinado projeto de investigação um componente de
natureza ‘qualitativa’ simplesmente para demonstrar que os pesquisadores se preocuparam com a dimensão
‘subjetiva’ do processo de adoecer.
Muito comumente a questão metodológica aparece nas discussões em associação à dimensão ‘tempo’. A
prof. Zulmira Hartz, por exemplo, discute em sua apresentação os conhecidos RAP ou REA, isto é,
estratégias de investigação de campo ‘rápidas’, que têm sido largamente empregadas em pesquisas
epidemiológicas. Esse caso ilustra uma situação de ‘transferência de metodologias’ sem a necessária
incorporação do instrumental teórico necessário à reflexão crítica acerca das próprias técnicas ou estratégias
de coleta de dados, para não falar da análise e interpretação dos mesmos.
Não raro, essas técnicas para obtenção de dados ‘antropológicos’ são apresentadas sob a forma de um
‘pacote’ por parte de consultores de agências internacionais. Por mais que sejam vistas por muitos como a
grande solução, ‘rápida’, ou um atalho, para a resolução de questões de natureza sócio-cultural-
comportamental não respondidas pelos inquéritos epidemiológicos, cuidados fazem-se necessários. É
fundamental que o questionário ou roteiro a ser usado pelo pesquisador seja construído a partir de
‘categorias’ que façam sentido para os indivíduos integrantes do grupo sob investigação. Se no meio médico
pretende-se que categorias diagnósticas sejam universais — o CID é um exemplo da ‘universalidade’ das
categorias de doença segundo a ótica médico-científica ocidental —, a literatura antropológica aponta em
direção contrária, tendendo a privilegiar uma visão particularista. Refiro-me, mais uma vez, ao colega Luís
Castiel que, em sua apresentação, discute algumas importantes distinções entre o que chamou de doença-
processo e doença-experiência. Portanto, para que o roteiro utilizado em uma investigação do tipo RAP ou
REA possa assegurar minimamente os níveis de ‘sensibilidade’ e ‘especificidade’ desejados pelo
pesquisador, antropologicamente falando, o mesmo deverá ser construído a partir de conhecimentos
etnográficos previamente coligidos, em primeira mão e/ou na literatura. A depender do tema e da população
a ser estudada, esse período ‘prévio’ da pesquisa pode, eventualmente, exigir mais tempo que o desejado
pelos proponentes dos métodos ditos ‘rápidos’.
Em segundo lugar, gostaria de observar que grande parte do que tenho visto publicado a partir de
investigações RAP não vai além de freqüências de ‘padrões de comportamentos’, considerados de ‘risco’
pelo pesquisador, ou ‘categorias de doença’ referidas e/ou observadas, consistindo por vezes apenas em
sintomas mal definidos. Portanto, enquanto instrumentos geradores de novos conhecimentos antropológicos,
os RAP apresentam limitações que não podem ser desconsideradas. Os limites do método agravam-se em
contextos nos quais é encarado como panacéia, sendo utilizado por investigadores que não dispõem do
embasamento teórico necessário para avaliar as possibilidades e os limites das metodologias ditas
qualitativas no equacionamento de determinada questão. Este investigadores lançam projetos com poucas
chances de produzir conhecimentos relevantes, quer seja para a antropologia ou para a epidemiologia. Do
ponto de vista antropológico, a excessiva simplificação do desenho do estudo em pesquisas ‘rápidas’
compromete a qualidade etnográfica dos dados coletados, limitando tremendamente as possibilidades de
interpretação dos mesmos.
Curiosamente, na prática, a aludida, ou desejada, ‘integração’ entre a antropologia e a epidemiologia
parece ocorrer com forte dose de ‘epidemiocentrismo’. Isto é, o ‘tempo’ deve ser ‘rápido’, e as categorias
‘êmicas?’ de doenças, comportamentos ou práticas, tabuladas, computadas e, eventualmente, utilizadas para
alimentar modelos estatísticos. Nessa trajetória, o que parece ocorrer não é tanto ‘integração’, e sim
‘transferência’. Onde então situar o espaço para discussões acerca das narrativas e das dimensões simbólicas,
entre outras tantas ‘diversidades’ singulares ao processo de adoecer humano, como reinvidica Luís Castiel no
final de sua apresentação?
A questão ‘tempo’, de duração da investigação, foi enfatizada pela prof. Zulmira Hartz e por vários
membros da audiência. Quero voltar a esse ponto. Primeiramente, chamo atenção para uma imagem que
considero estereotipada, e que continua a ser alimentada por muitos: o ‘tempo’ na pesquisa antropológica
seria necessariamente mais longo — por vezes até muito mais longo — que o ‘tempo’ na investigação
epidemiológica. Essa hipersimplificação advém possivelmente da imagem do antropólogo, pouco
pressionado por fatores de ordem prática, que passaria metade de sua vida em uma tribo distante, para só
depois, ao retornar ao convívio em ‘civilização’, dar início à publicação de seus relatos. O epidemiólogo, por
sua vez, disporia de muito menos tempo para realizar suas pesquisas, pois estaria sob a constante pressão de
várias instâncias da sociedade, devendo oferecer respostas rápidas aos novos e constantes desafios que se
apresentam à saúde pública.
Tomando-se como parâmetro a produção recente dos principais cursos de pós-graduação em
antropologia e em epidemiologia no Brasil, tal dicotomia em relação ao tempo de duração das pesquisas
dificilmente pode ser confirmada. Excelentes teses e dissertações em antropologia têm sido produzidas a
partir de pesquisas de campo conduzidas, por vezes, ao longo de períodos intermitentes, que, ao final, não
totalizam mais do que alguns meses. Será que os epidemiólogos conseguem fazer pesquisa de campo em
menos tempo?
Em minha opinião, para o pesquisador, é mais importante ter objetivos bem definidos — para não se
perder em meio a avalanches de informações — e bom embasamento teórico — quesito fundamental para a
condução de análise interpretativa —, do que ter um certo número total de meses ou anos vividos no campo.
A investigação epidemiológica, por sua vez, quando realizada no campo, em uma comunidade, não é
necessariamente tão mais rápida. Com toda a certeza, boa parte dos estudos hoje considerados clássicos em
epidemiologia duraram um bom tempo, por vezes anos, até a sua conclusão.
Não quero externar aqui uma visão pessimista do potencial de geração de conhecimentos a partir da
colaboração entre antropologia e epidemiologia. Tampouco sou partidário de uma postura corporativista, o
que seria extremamente empobrecedor para a pesquisa tanto no âmbito acadêmico como nos serviços.
Acredito, no entanto, que, como disse a colega Dina Czeresnia, os saberes não se fecham, nem irão encontrar
uma ‘integração absoluta’. Cruzar ‘fronteiras’ do saber é sempre um risco, sem dúvida instigante, e que, por
isso mesmo, requer cautela. A constituição de equipes multiprofissionais integradas por pesquisadores bem
treinados em áreas-chave da investigação pode, a meu ver, não somente contribuir para a superação de
barreiras e impasses, mas também resultar em um ambiente de crescimento profissional altamente favorável
ao intercâmbio e à circulação de saberes. Não será essa a integração que desejamos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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