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A matéria da Folha nos faz pensar nessa nossa temática, relacionando-a à chamada realidade, no caso
mais específico, à realidade da área da saúde e dos seus objetos.
É difícil não assumir a imprecisão como característica dos objetos desse campo
"deve-se assumir a das ciências humanas e sociais. Possivelmente, essa dificuldade pode ser estendida
inexatidão não como
para a dita área das ciências exatas, mas vamos nos limitar a nossa área. Em outras
defeito, mas como
peculiaridade desses palavras, deve-se assumir a inexatidão não como defeito, mas como peculiaridade
nossos objetos". desses nossos objetos. O importante é não endossar certos juízos de valor, como,
por exemplo, o que estabelece a característica hard, no jargão norte-americano, para
as disciplinas chamadas exatas. Se assumirmos as ditas ciências exatas — e eu diria que aí já entra certo
juízo de valor, porque elas não são tão exatas assim — como padrão de referência, ou paradigma da
exatidão, evidentemente, nossos métodos e objetos vão ficar marcados negativamente.
A partir desse ponto de vista — a meu ver, bastante criticável –, teríamos também as ciências soft,
moles, menores. Será que vamos ficar à mercê dessa atmosfera de obrigação de justificar a firmeza e o rigor
das ciências humanas, sob os olhares e sobrolhos dos representantes das ciências ditas duras? O que é
ciência mole ou o que é ciência dura?
Quanto ao adoecer humano, é preciso encará-lo como objeto impreciso para seu estudo, que resiste a
determinadas manobras disciplinares de enquadramento. Imagino que assim é mais possível lidar com as
‘doenças-processo’, as famosas diseases nas populações. De certa maneira, essa é uma forma de pensar o
objeto na epidemiologia: os doentes nas populações. Os doentes, aqueles acometidos por doenças
consideradas do ponto de vista das diseases, e, também, as ‘doenças-experiência’, as quais resolvi chamar de
‘moléstias’: Essas danadas das moléstias ou illnesses. Essa é uma distinção já antiga — talvez até criticada
no campo dos objetos da antropologia da saúde e da epidemiologia —, mas, a meu ver, retrata uma tensão de
objetos que ainda permanece.
Mesmo correndo o risco de perder tempo, quero mostrar uma curiosidade que é a etimologia da palavra
‘doença’. No Aurélio, lemos que o verbete ‘doença’ vem do latim dolentia e tem as seguintes acepções:
"Falta ou perturbação da saúde, moléstia, mal, enfermidade." Depois, vemos algumas acepções figuradas e
um regionalismo bastante interessante: parto em Minas Gerais também é visto como doença. Mas existe
também um verbete ‘dolência’, também originário de dolentia, que significa mágoa, lástima, dor e, eu
acrescentaria, sofrimento. Curiosamente, o mesmo verbete no latim, dolentia, refere-se não só a um objeto
da medicina, o da epidemiologia, qual seja, a falta, a perturbação da saúde, mas também à dimensão da
doença-experiência. Essa nuança, no entanto, desaparece conforme se esteja referindo à doença ou à
dolência. Curiosamente, também existe ‘indolência’, do latim indolentia, que deveria ser o antônimo de
dolência, mas que cai numa dimensão de insensibilidade, apatia, preguiça, ociosidade, inércia etc.
Ora, estando-se dolente ou indolente, sempre há uma dimensão de precariedade. Assim, curiosamente, os
dois verbetes remetem ao mesmo resultado, que não é algo, vamos dizer assim, positivo. O que está em jogo
na indolência me parece ser, claramente, essa idéia de insensibilidade. Ou seja, há uma ‘desenergia’, se é que
essa palavra existe. De um lado se tem a energia dirigida no sentido do sofrimento, da dor; de outro, o
indolente, insensível à dor, anestesiado da dor. O que achei interessante mostrar a vocês é essa bifurcação do
latim dolentia, que vai gerar ‘doença’ e ‘dolência’. A impressão que tenho — evidentemente, forçando a
barra — é que a dolência seria algo mais vinculado ao objeto da antropologia da saúde, enquanto a doença,
que se refere mais diretamente ao processo biológico, se ligaria à experiência de estar doente, pertenceria ao
campo da epidemiologia.
Se, por um lado, a inclusão dos aspectos simbólicos-culturais envolvidos no adoecer humano possibilita
uma análise mais profunda das situações de saúde estudadas, por outro, a existência de certas diferenças
entre a epidemiologia e a antropologia da saúde ou médica pode representar obstáculos numa cooperação
mútua. Há referências bibliográficas (Janes, Stall e Gifford, 1986) que, além de refletirem as tentativas de
cooperação entre essas disciplinas, evidenciam que o que está verdadeiramente em jogo é essa tradicional
distinção — seja ela ainda sustentável ou não — entre o objeto ‘doença-processo’ e o objeto ‘doença-
experiência’, sob o domínio das dimensões simbólicas e culturais.
Haveria, no que concerne à epidemiologia, dentro do seu método, do seu instrumental metodológico,
uma forma de construir quantitativamente esse objeto-doença? Por outro lado, esse objeto-doença
responderia bem a essa proposição metodológica quantitativa?
A doença disease — apesar da resistência de alguns ao inglês, esse é um termo que se impõe — e a
dolência illness se apresentariam mais palatáveis, mais responsivas a abordagens respectivamente
quantitativa e qualitativa. Pensando-se na perspectiva clínico-epidemiológica, como se constrói esse
fenômeno dito doença? Há um modelo de raciocínio causal, causalista, que se baseia em uma evolução de
eventos, na qual elementos semiológicos e respectivos sinais e sintomas são decorrentes de uma entidade
nosográfica que surgiu a partir de processos considerados patogênicos em função de uma etiologia.
O problema é que nem sempre essa trajetória modelo é passível de ser obtida. Freqüentemente, não se
pode ter a etiologia, não se tem a patogenia e se é obrigado a lidar apenas com as manifestações. Por
exemplo, há situações claras em que o aparato, o dispositivo clínico-epidemiológico, funciona muito bem, e
é possível delimitar a etiologia, como é o caso da meningite meningocócica. Mas, em outras, somente os
mecanismos patogênicos são conhecidos, como é o caso, por exemplo, das intoxicações por metais pesados.
Também é possível pensar-se só em termos de manifestações, como acontece com a doença hipertensiva, em
que ainda não é exatamente clara a realidade do que se passa nos tecidos.
Para a definição diagnóstica, esses problemas se tornam cruciais quando a precisão é necessária. A idéia
da precisão vincula-se, de um lado, ao fato de o instrumental clínico-epidemiológico estar fundado num
modelo a partir do qual o objeto pode ser abordado de maneira precisa e, de outro, ao fato de se dispor dos
meios para tal abordagem.
Quando não se pode tornar preciso o objeto, faz-se necessário buscar outra maneira de se lidar com ‘ele’.
As doenças mentais, por exemplo, se tornam problemas, porque ou não se tem a etiologia, ou se deve
desconfiar da etiologia que se tem — como é o caso da esquizofrenia –, ou se tem a dimensão genética, mas,
de qualquer maneira, destaca-se o caráter impreciso de nossas delimitações. Essas doenças, curiosamente,
são colocadas na língua inglesa sob a rubrica diseases. Mas, na verdade, elas não são mental diseases, são
usualmente denominadas mental illnesses, o que, a meu ver, já é sintomático.
Atualmente, ainda se usa o termo ‘transtorno’ para indicar essas doenças, que prefiro chamar de
‘moléstia’, até para fazer o jogo verbal ‘danada da moléstia’. E o termo ‘danada’ é interessante, pois vem de
‘dano’, conceito relevante para se determinar o objeto da epidemiologia, que estuda os danos. O fato de a
moléstia ser danada e ter simultaneamente uma dimensão de dano — de doença e de dolência —, de
sofrimento, torna esse objeto ainda mais interessante.
Por outro lado, a palavra molestar tem também conotação sexual. Molestado pode ser tanto alguém que
está sofrendo assédio sexual, quanto alguém que está sendo maltratado. Um aspecto que, na minha opinião,
deve ficar claro é a contradição presente no fato de as concepções de doença serem dependentes dos
propósitos daqueles que definem a doença, a saúde e a assistência.
Ou seja, há evidências, cada vez mais flagrantes — óbvias para determinados profissionais, mas não tão
óbvias para outros — de que as idéias sobre as definições da doença vão variar conforme uma série de
circunstâncias, lugares e papéis. Se quem define é, por exemplo, a instância responsável pela alocação de
recursos para a saúde, pode haver definições distintas das que seriam feitas pelas instâncias encarregadas das
prestações de serviços. O médico formulará definições distintas das que um paciente formularia. Isso
também aconteceria com o clínico e o epidemiologista, mesmo estando muito próximos em termos de
‘paradigmas’. Tanto é assim que existe a dita definição operacional da doença, em que pesam tanto a
importância clínica quanto a importância em termos epidemiológicos, no intuito de se detectar a doença nas
populações e também no indivíduo. Como se vê, a objetividade é situada, e as perspectivas, posicionadas.
Os pontos de vista participam da configuração, por isso é difícil abstrair o lugar de quem está definindo,
e dizer que um lugar é mais objetivo do que o outro. Às vezes é até possível, dependendo dos critérios de
objetividade. Uma forma de pensar isso, com decorrências não sei se satisfatórias, é considerar a categoria
diseases, mais definida, um caso particular da categoria illness. Diante das situações de sofrimento, que
inclusive variam culturalmente, existiriam determinados contextos nos quais seria possível delimitar uma
disease, embora o panorama fosse de caso particular. Ou seja, nesse contexto, em que importa a dimensão do
objeto, a disease seria um caso particular medicamente abordável, no âmbito da illness.
Por sua vez, a objetividade na pesquisa científica, especialmente na epidemiologia, é uma dimensão que
pode ser mensurada. Como se mede a objetividade? Em termos de técnicas de pesquisa, acredito que grande
parte de vocês já deve ter buscado esse dimensionamento. Um achado é considerado confiável quando sua
verificação apresenta alto grau de confirmação. Por exemplo, um grau de concordância quanto a um
determinado parecer. O objeto não fica em questão: basta haver a concordância e a validade — outra forma
de dimensionar a objetividade — para que um achado seja considerado válido em relação à ‘verdade’. Há
uma noção de verdade em jogo quando sua verificação ou forma de determinação apresenta alto grau de
concordância em relação a um padrão de referência do que seja verdadeiro, como o famoso padrão ouro.
Essa idéia foi trazida da economia. O padrão ouro é o padrão mensurativo, o padrão métrico. ‘A verdade da
medida está concretamente constituída em metal nobre, que não sofre alterações com as intempéries, pelo
menos, como as que afetam os outros vis metais. Essa idéia de verdadeiro, no entanto, é extremamente
complicada, e não pretendo enveredar por ela. A idéia de que há quadros de referência que variam conforme
essa idéia de verdade deve ser discutida no campo da filosofia. Mas isso não nos impede de tecer aqui
algumas considerações.
‘Verdade’ não tem verbo correspondente, ao passo que ‘falsidade’ e ‘mentira’ têm. Existe verdadejar?
Verdadeirar? Parece que não. Usa-se, ‘na verdade’, ‘dizer’ ou ‘falar’ ou ‘confessar’ a verdade. Como se
houvesse ‘a verdade’ e, então, fosse possível ter acesso a ela somente através da enunciação do substantivo
como representante da respectiva materialidade factual. Quanto à mentira e à falsidade, é possível mentir,
falsear, falsificar. Mas ‘verdade’, tanto quanto saiba, não possui um verbo que lhe seja próprio. O máximo
que temos é ‘verificar’. Ou seja, dimensionar o quanto algo tem de verdade ou não. O que reforça o que
estou tentando dizer.
Por exemplo, pensemos, em termos de alta confiabilidade, no fato de os índios norte-americanos de
determinadas tribos verem ou ouvirem parentes recém-mortos e de se comunicarem com eles. Dizer que se
trata de alucinação é problemático. Alucinação é uma categoria aplicada a outra dimensão cultural. Talvez
tivesse cabimento para não-índios. E como seria essa questão em relação aos espíritas, para os quais essa
comunicação faz parte da, digamos, religião ou cultura? Há confiabilidade, uma vez que a grande maioria
desses índios faz os mesmos relatos, mas a validade continua problemática ou instável. A validade depende
do conhecimento, estabilizado e disponível em boa quantidade, sobre determinado tópico.
Qual é o significado, por exemplo, de uma entidade nosográfica chamada síndrome de fadiga crônica, se
ela pode ser encontrada em uma mulher favelada, mãe solteira com vários filhos; em um triatleta, após
alguma virose; ou em um idoso com seqüelas de pólio? Se esse significado é buscado em função de
avaliação, falta validade: a morbidade não foi adequadamente medida. Surge, então, um furor avaliandi, que
exige medidas específicas para determinadas entidades nosográficas pertencentes à mesma rubrica. Mas uma
coisa é a síndrome de fadiga crônica num determinado indivíduo, outra coisa é essa mesma síndrome em
outro indivíduo, com muitas diferenças sócio-demográficas, como se diz no jargão epidemiológico.
Esse problema relativo às chaves da confiabilidade na ausência de validade não é exclusivo de novas
condições de transtornos mentais, nem se vincula claramente a dimensões culturais. É um problema
genérico, sério, nas avaliações das queixas de pacientes com sintomas e sinais de doenças, nos vários
sentidos que o termo pode assumir, tanto doença, como dolência, tanto diseases, quanto illnesses.
Para terminar, penso que colocar a discussão em termos de definições ou mesmo de transferências
metodológicas qualitativas e quantitativas é empobrecer a questão. A pesquisa em saúde coletiva deve
assumir uma preocupação com a interação mente-corpo-sociedade. E a maneira como essa interação se dá
pode ser responsável pelo adoecimento das populações. Não há razão para se estabelecer uma hegemonia de
métodos em detrimento de outros. Nem de se abrir um espaço no meio de um grande projeto quantitativo, e
nele aninhar um trabalho qualitativo, apenas para dizer que a pesquisa se preocupa também com o contexto e
os significados.
Os objetos de estudo, nesse campo, podem demandar técnicas e métodos específicos que se mostrem
mais responsivos e apropriados. Em outras palavras, para cada situação há que se
"Não há razão para se buscar um enquadramento de métodos e técnicas adequados. Mas é preciso ter
estabelecer uma claro que, muitas vezes, essas discussões metodológicas encobrem lutas de poder
hegemonia de métodos e controle corporativo, e que não dá para sermos inocentes quanto ao que está em
em detrimento de
outros. Nem de se abrir
jogo.
um espaço no meio de Portanto, é imperativo, quando se trabalha com o coletivo das populações,
um grande projeto
quantitativo, e nele
enxergar outras construções de saúde-doença, admiti-las nas coletas de dados,
aninhar um trabalho construir novas taxonomias, incorporando a interpretação das narrativas,
qualitativo, apenas para reconhecer os aspectos simbólicos, perceber a diversidade dos gêneros e a
dizer que a pesquisa se singularidade do adoecer humano — belo subtítulo para um livro. Imagino que
preocupa também com esses sejam tópicos merecedores da atenção tanto ao elaborar e desenvolver
o contexto e os
significados."
nossos futuros projetos de pesquisa, como ao empreender as respectivas
discussões teórico-metodológicas.
Zulmira de Araújo Hartz
O título que inicialmente pensei em dar a este debate era Epidemiologia e a antropologia na avaliação
dos serviços: uma questão de indisciplina. No entanto, por já ter comparecido a debates sobre a questão da
indisciplina, com alguns dos participantes desta mesa, alterei a segunda parte para ‘uma questão de rapidez’.
Para entender a história desse ‘meio de campo’ nos países em desenvolvimento é preciso considerar a
preocupação com a ‘rapidez’, demanda esta que vem particularmente da necessidade de adaptação das
metodologias para a avaliação dos programas de cooperação internacional em atenção primária à saúde.
Além da necessária ‘indisciplina’, essa preocupação é talvez o mais importante denominador comum. Pode-
se exemplificar com algumas expressões encontradas na bibliografia entre 1981 e 1993, tais como, Rapid
Epidemiologic Assessment (REA), Rapid Assessment Procedure (RAP), Rapid
"‘ser rápido’ é Ethnographic Assessment (REA) ou Rapid Evaluation Methods (REM), em que
fundamental, podendo- ‘ser rápido’ é fundamental, podendo-se, no período de três meses, concluir
se, no período de três estudos antropológicos e epidemiológicos abrangendo até 16 países. É um pouco
meses, concluir estudos dessa lógica que estarei apresentando, sem pretender entrar nos detalhes das
antropológicos e
epidemiológicos
abordagens, respeitando o limite de tempo.
abrangendo até 16 países A epidemiologia inicia esse processo ao propor abordagens metodológicas
... é a época em que a
antropologia entra no
mais rápidas (REA), que foram validadas cientificamente por um comitê da
‘ritmo’ do RAP." Academia Nacional de Ciências Americanas (Advisory Commitee on Health,
Biomedical Research/ Board for Science and Technology for International
Development, BOSTID). O importante para avalizar a ‘velocidade’ era o fato de não perder o grau de ‘rigor’
tradicional na flexibilização introduzida nos métodos amostrais dos inquéritos epidemiológicos — como, por
exemplo, a amostragem por conglomerado dos inquéritos de cobertura vacinal —, nos exames coletivos de
triagem, na avaliação do estado de saúde dos grupos populacionais e nos estudos de caso-controle. Os
estudos dessa área dedicavam-se, sobretudo, aos temas da mulher e da criança, em projetos de redução da
mortalidade infantil, com os quais muito tenho aprendido e aproveitado em pesquisa avaliativa.
Coincidentemente ou não, é a época em que a antropologia entra no ‘ritmo’ do RAP. Esses primeiros
estudos antropológicos partilham os mesmos universos de análises e preocupações da atenção primária em
saúde em nível internacional, e um dos problemas para os grupos de assessoria é dar conta de projetos nessa
amplitude. Quando se pretende realizar avaliação em escala mundial, a diversidade cultural começa a fazer
diferença e pode dificultar o estabelecimento de critérios de medição e parâmetros de observação. O RAP é
detalhado na Guia metodológica em antropologia prática, que é aplicada a programas de saúde e publicada
pela Universidade das Nações Unidas/Unicef/Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidade da
Califórnia em Los Angeles (UCLA), também intitulada Procedimientos de asesoria rapida para programas
de nutrición y atención primaria de salud. Enfoques antropologicos para mejorar la efectividad de los
programas. O eixo principal é a prevenção e o controle de endemias, principalmente da diarréia, com ênfase
na desnutrição e nas doenças evitáveis por vacinas. As diferentes técnicas de coleta e análise de dados
qualitativos — entrevista formal e informal, conversação, observação com e sem participação, e grupos
focais — são sistematizadas e operacionalmente ‘agilizadas’.
Os estudos etnográficos juntamente com outros estudos de origem qualitativa, principalmente
produzidos pelo grupo de gestão do programa de pesquisa e de intervenção para controle da diarréia, vão
trabalhar de maneira preventiva definindo recomendações relativas à dieta. Esses estudos produzem
recomendações necessárias para que haja mudanças de comportamentos individuais nas intervenções
comunitárias, favoráveis ao uso de reidratantes orais, incorporando abordagens culturais na prática
profissional. Para se ter uma idéia dos vários tipos de dificuldade que eram encontradas, tomemos, à guisa de
ilustração, um fato que envolve antropólogos brasileiros. Eles tiveram muita dificuldade com a representação
de ‘empachar’. As diarréias tinham significados diferentes, como a líquida e a sólida, mas não dava para
entender o conceito de ‘empachamento’. No decorrer do estudo, eles observaram que quando a diarréia era
percebida como ‘empachamento’ a orientação popular era no sentido de estimular a soltar as fezes,
agravando o problema.
No Departamento de Epidemiologia da ENSP/Fiocruz, o grupo do Programa Ampliado de Imunização
(PAI) trabalhou com a metodologia do RAP, como parte de um projeto internacional de avaliação do
programa, com a participação de vários estados do Brasil. O grupo que atuou nesse estudo, com parceria de
antropólogos da UFRJ, adaptou a guia de modo realmente exemplar, com conceitos básicos de observação
participativa, técnicas de entrevista, enfim, com os instrumentos necessários para a abordagem qualitativa.
A rapidez vai finalmente se institucionalizar na Organização Mundial de Saúde (OMS) com o método
rápido de avaliação para performance dos serviços (REM) da Divisão de Saúde da Família, que foi
posteriormente ampliado, para ser aplicado a outros problemas de saúde pela Divisão de Vigilância
Epidemiológica e Avaliação de Tendências. O método foi testado entre 1988 e 1991 em cinco países em
desenvolvimento — Madagascar, Papua, Nova Guiné, Uganda e Zâmbia —, e o Banco Mundial vem
propondo seu uso na avaliação de programas sociais. Um dos méritos desse grupo foram as apresentações
matriciais integrando os problemas de saúde e as informações necessárias para avaliação, o que enriquece
muito os estudos anteriores. A matriz relaciona as áreas de intervenção que se pretendem avaliar e os
diferentes focos — ações comunitárias, gestão, qualificação profissional, recursos e análise de performance
— a serem trabalhados. No seu interior são explicitadas as respectivas modalidades para coleta de dados
quantitativos e qualitativos, tais como, observação em atendimentos tradicionais, entrevistas no momento da
saída dos consultórios, entrevistas domiciliares, análises de prontuários etc. Toda a pesquisa normalmente se
efetua num período de três a quatro semanas, com dois meses de preparação, e apresenta resultados
extremamente interessantes. Um dos pontos positivos da fase preliminar é que se ganha tempo com o
levantamento de dados secundários, num trabalho conjunto com os cientistas locais.
Quando se pensa em termos de uma matriz de avaliação, constata-se que ela pode ser infinita. O que
considerar, então? A validade de ‘conteúdo’ será adequada se as dimensões escolhidas — por meio de uma
técnica de consenso ou de grupo focal, constantes do meu ‘cardápio mínimo’ — e o(s) conceito(s)
subjacente(s) estiver(em) coerente(s). A incorporação de técnicas qualitativas promove uma articulação mais
visível dos conceitos com a prática do avaliador e pode minimizar o que chamei em minha tese de doutorado
de erros de terceiro e quarto tipos, aqueles erros que, na verdade, são impossíveis de serem resolvidos
através de qualquer cálculo estatístico e são inquestionáveis pela epidemiologia. Trata-se da chamada
seleção do objeto, evitando-se problemas de mais difícil delimitação, como a avaliação da satisfação do
usuário e de programas em saúde mental, ou a seleção do método mais simples de operar, mesmo que seja
redutor do objeto que se quer analisar. Essas preocupações adicionais com a validade do estudo, se, por um
lado, podem nos levar a ‘acertar menos’ em precisão, em função das questões trabalhadas, por outro, nos
levam a ‘conhecer mais’, uma vez que ampliamos o foco dos problemas investigados. Disso decorre outra
dimensão incrementada que é a de face validity , uma ‘validade que está na cara’, de natureza subjetiva,
muito importante para a avaliação, pois pode favorecer ou dificultar o uso dos resultados de uma avaliação.
De fato, pode-se ter um excelente estudo sobre a ‘qualidade’ de um serviço, que vai para a prateleira, como
muitas das nossas pesquisas, embora ofereça indicadores tecnicamente relevantes, mas que acabam não
sendo incorporados, porque as pessoas implicadas não se identificaram com eles.
Resumindo, realmente acho que todas essas questões representam avanços importantíssimos, embora
alguns críticos discutam a realização de um estudo ‘rápido’. Alguns grupos de pesquisadores continuam
considerando que a abordagem metodológica que privilegia a rapidez se mostra problemática,
desconfortável. Estudos feitos no Peru e na Nigéria, realizados com a mesma metodologia, indicam que um
grupo de pesquisadores ficou satisfeito com os resultados obtidos e o outro não. De fato, na Nigéria, a
comunidade de análise era muito mais fechada, e no Peru o contexto era mais esparso. Foi difícil alocar o
mesmo tempo para esses dois estudos. Um outro problema aconteceu em uma
"uma ‘etno- investigação no México. Como resultado de uma observação ‘muito rápida’ sobre
epidemiologia’, representações da diarréia, incorporou-se, no treinamento dos profissionais, a
formulada como a
utilização coordenada e orientação de que a batata não era recomendada em caso de diarréia. A partir de
conjunta dos dois uma observação ‘mais longa’, no entanto, descobriu-se que, para não
métodos, é tida pelas comprometer o estado nutricional dos doentes, não era preciso retirar da dieta esse
associações profissionais alimento básico, pois havia um modo de prepará-lo para ser consumido e aceito
de avaliadores como pela população, mesmo em caso de diarréia. Isso é só para mostrar que uma
desejável e inevitável
entre as tendências
avaliação rápida pode levar a resultados discrepantes ou discordantes, exigindo
universais para o século ‘vigilância’ da parte das equipes envolvidas.
XXI".
De qualquer maneira, não tenho dúvida de que se está avançando e a noção de
uma ‘etno-epidemiologia’, formulada como a utilização coordenada e conjunta dos dois métodos, é tida
pelas associações profissionais de avaliadores como desejável e inevitável entre as tendências universais
para o século XXI, englobando todas as intervenções de saúde, particularmente aquelas voltadas para o
comportamento de risco em doenças crônicas, controle de drogas e tabagismo. Esses estudos, apesar de toda
sua complexidade — inclusive de serem oriundos de numerosos países — conseguem trazer respostas
extremamente interessantes, certamente mais oportunas do que as obtidas por meio dos tradicionais
inquéritos epidemiológicos, demasiado longos e muito pontuais. A ‘rapidez’ não tem impedido nem a
apreensão de aspectos importantes da avaliação nem o aperfeiçoamento da intervenção e dos próprios
métodos.
A oportunidade de parceria realmente potencializa os esforços, como foi o caso de uma pesquisa
etnográfica para orientar a construção de um instrumento em estudo de caso-controle, referente à avaliação
de um programa de imunização. Um colóquio científico em Londres, na década de 1980, chegou a
recomendar expressamente que deveria ser dada prioridade máxima aos estudos antropológicos, precedendo
qualquer inquérito de envergadura sobre a saúde, em qualquer que fosse a população. Isto porque, ao se fazer
a análise dos inquéritos epidemiológicos, ficou claro que a maioria dos estudos concluía que, apesar de os
resultados serem positivos, não era possível explicar os achados, decorrentes, em grande parte, das
diferenças de culturas. Seria perda de tempo e dinheiro continuar iniciando os estudos diretamente com as
questões do inquérito epidemiológico, para explicar, por exemplo, diferenças relativas a comportamentos de
risco, incidência de câncer ou de doenças crônicas.
Se fica evidente que o campo da avaliação se beneficia da pluralidade metodológica, na prática, há
problemas a serem enfrentados, como já advertia Annie Hubert (1985). A autora lembra a importância dessa
complementaridade, mas adverte que "uma verdadeira colaboração não poderia se limitar, por exemplo, a
uma tintura antropológica superficial em um médico para torná-lo mais apto a cuidar das populações de
países subdesenvolvidos". Este posicionamento resume um pouco dos cuidados que julgo indispensáveis em
relação a essa pluralidade metodológica na avaliação dos programas e serviços de saúde e reforça a
importância desse debate no momento em que sua generalização é iminente.
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