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ARTIGO ARTICLE 121

Enfrentando a pobreza, reconstruindo vínculos


sociais: as lições da Ação da Cidadania contra
a Fome, a Miséria e pela Vida

Combating poverty and rebuilding social


ties: the lessons of Citizens’ Action in the
Struggle Against Hunger and Destitution
and in Defense of Life

Rosana Magalhães 1

1 Departamento de Ciências Abstract To reflect on Citizens’ Action in the Struggle Against Hunger and Destitution and in
Sociais, Escola Nacional
Defense of Life is to seek to approach the dilemmas and challenges involving the consolidation
de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz. of citizenship and social justice, as well as the forces in action in contemporary Brazilian society.
Rua Leopoldo Bulhões 1480, However, many questions remain open in this effort. The intertwining issues of poverty, politics,
Rio de Janeiro, RJ
and solidarity and the concrete shapes and multiple social developments of Brazil’s “Campaign
21041-210, Brasil.
rosana@ensp.fiocruz.br Against Hunger” leave room for various possible interpretations. Thus, considering the breadth
of the theme on the one hand and the limits of this article on the other, the objective is to explore
some relevant issues in the debate on destitution and exclusion and the process of constructing
new kinds of public social intervention and civic participation, arising over the course of the
study conducted by the “Citizens’ Action Committees” in Rio de Janeiro during 1996 and 1997.
The basic idea is to focus on volunteer practices to discuss the dilemmas posed for solving im-
poverishment and social fragmentation through cooperative activities and mutual help in
Brazil.
Key words Poverty; Non-Governmental Organizations; Citizenship; Solidarity; Social Justice

Resumo Refletir sobre a Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida é buscar uma
aproximação com os dilemas e desafios que envolvem a consolidação da cidadania e da justiça
social e, também, com as forças em ação na sociedade brasileira contemporânea. Neste esforço,
porém, muitas interrogações ficam em aberto. O entrelaçamento dos temas da pobreza, da polí-
tica e da solidariedade, os contornos concretos e os múltiplos desdobramentos sociais da chama-
da “Campanha da Fome” dão margem a diferentes possibilidades interpretativas. Dessa forma,
considerando por uma lado, a amplitude do tema e, por outro, as limitações deste artigo, o obje-
tivo é explorar algumas questões relevantes em torno do debate sobre a miséria, a exclusão e o
processo de construção de novos perfis de intervenção pública e participação cívica, suscitadas
ao longo da pesquisa realizada junto aos “Comitês da Ação da Cidadania” no Rio de Janeiro, en-
tre 1996 e 1997. Em linhas gerais, a idéia é discutir, a partir das práticas dos voluntários, os dile-
mas postos para o equacionamento da pobreza e da fragmentação social por meio de ações de
cooperação e ajuda mútua no país.
Palavras-chave Pobreza; Organizações Não Governamentais; Cidadania; Solidariedade; Justiça
Social

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Introdução No âmbito da sociedade, movimentos so-


ciais e associações voluntárias vivem dificulda-
A emergência da “nova questão social” e o fra- des cada vez mais expressivas para contornar
casso em definir argumentos capazes de con- as tendências ao privatismo e ao isolamento.
tornar os impasses contemporâneos, têm im- Há uma perda da “clareza política” que outrora
plicado ceticismo e desconfiança tanto em re- orientava as organizações civis e participativas.
lação ao Estado quanto à sociedade. Sem po- “Surge um engajamento múltiplo contradi-
dermos contar com descrições previsíveis e tório, que mistura e combina pólos clássicos da
uniformes da realidade ou, ainda, com fórmu- política de forma que, se pensarmos nas coisas
las acabadas para a solução dos problemas so- em relação à sua conclusão lógica, todo mundo
ciais, vivemos sob uma tensão que mistura an- pensa e age como um direitista ou um esquer-
gústia e incerteza. Assim, neste contexto em que dista, de maneira radical ou conservadora, de-
os significados da cidadania, da justiça e da in- mocrática ou não democraticamente, ecológica
tegração social sofrem intensas metamorfoses, e antiecologicamente, política e não politica-
o propósito de forjar novos arranjos institucio- mente, tudo ao mesmo tempo. Todos são pessi-
nais articulados a formas de participação so- mistas, pacifistas, idealistas e ativistas em as-
cial criativas torna-se extremamente oportuno. pectos parciais do seu ser. Entretanto, isso só sig-
Na trajetória histórica em que as desigual- nifica que as clarezas atuais da política – direi-
dades sociais deixam de ser naturais e inelutá- ta e esquerda, conservador e socialista, retrai-
veis e, a pobreza torna-se um fenômeno coleti- mento e participação – não são mais corretas ou
vo e uma questão política, irrompe um proces- efetivas” (Beck, 1995:33).
so inconcluso em direção à busca de alternati- Nesse panorama, parece claro apenas um
vas para a estabilização das condições de vida fato: não é mais possível pensar uma política
e manutenção da coesão social. Na maioria das para o enfrentamento das novas formas de pri-
sociedades industriais desenvolvidas e media- vação centrada unicamente na esfera do Esta-
das por modelos de “welfare state”, iniciativas do. Novos espaços públicos e arenas decisó-
de proteção social mais amplas e articuladas rias, incorporando necessariamente um leque
ao campo dos direitos sociais, deslocam a pers- amplo de atores coletivos e interlocutores em
pectiva de responsabilização individual pela direção a um novo perfil de gestão social, tor-
miséria. Dessa forma, até os anos 70 nos países nam-se fundamentais. No Brasil, esse quadro
social-democratas, a solidariedade contratual de reordenação social e política tem importan-
voltada ao trabalhador sob risco e a ênfase na tes especificidades. Sem a pretensão de discu-
função redistributiva do Estado, ou em outras ti-las profundamente neste artigo, é importan-
palavras, a emergência da cidadania ligada ao te, porém, ressaltar alguns aspectos ligados à
trabalho, equacionam com razoável sucesso o nossa experiência histórica de cidadania. Dife-
problema da vulnerabilidade social. rentemente da trajetória inglesa analisada por
No entanto, os impactos da crise da socie- Marshall (1967), o país não experimentou um
dade salarial e da perda de autonomia dos es- progresso seqüencial dos direitos civis, políti-
tados–nacionais, impõem novos rumos para as cos e sociais e a construção lenta da cidadania
políticas sociais. O desemprego em massa e o como um valor coletivo. No caso brasileiro, uma
surgimento de novos processos de exclusão so- versão híbrida e frágil dos direitos civis, marca-
cial, desafiam este ideal de cidadania ligada ao da pela escravidão e pelas grandes proprieda-
trabalho. Ao mesmo tempo, a família, a comu- des de terra, não contribuiu para o amadureci-
nidade ou ainda, como ressalta Beck (1995:33), mento da cidadania plena. Os direitos sociais,
“as fontes de significado coletivas e específicas como analisa Carvalho (2001), foram instituí-
de grupo como, por exemplo, a consciência de dos em contextos autoritários e, portanto, de
classe sofrem exaustão, desintegração e desen- baixa participação política.
cantamento”. Nesse contexto, como contornar “Este pecado de origem e a maneira como
as ameaças e riscos crescentes de “desafilia- foram distribuídos os benefícios sociais torna-
ção”? Que papel deverá assumir o Estado? ram duvidosa sua definição como conquista de-
“Depois do vigia noturno e da babá, não é fá- mocrática e comprometeram, em parte, sua
cil dizer o que o Estado vai ser: um animador que contribuição para o desenvolvimento da cida-
faz com que as pessoas se sintam bem? Um guia dania ativa” (Carvalho, 2001:110).
de viagem que afirme estar no controle, mas do Ou seja, tivemos a consolidação das políti-
qual se pode fugir de vez em quando? Ou talvez cas sociais sem o necessário fortalecimento das
um jogador técnico que faz parte do jogo mas instituições democráticas. Como analisou San-
também é responsável pela atribuição de papéis tos (1979), sem a presença de partidos políticos
e pelo espírito do time?” (Dahrendorf, 1992:144). fortes e instituições representativas da socie-

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dade civil capazes de encaminhar demandas Desse modo, a solução do quadro de fome
mais amplas, a política social não foi capaz de e miséria é expressa pelos principais articula-
forjar projetos consistentes em direção à eqüi- dores da chamada “ Campanha da Fome”, co-
dade. Pelo contrário, historicamente, o cliente- mo uma exigência ética e principal alvo da mo-
lismo e a competição por privilégios no âmbito bilização pública. A questão da fome é, assim,
das políticas públicas obstaculizaram a con- reinventada. Ou seja, se nos anos 40 e 50, se-
quista de níveis aceitáveis de justiça social. A gundo o pensamento de Josué de Castro (Ma-
privatização da lógica estatal e o baixo nível de galhães, 1997), a fome é essencialmente um
responsabilização social foram associadas à obstáculo ao desenvolvimento e, dessa forma,
condução seletiva e particularista das ações, ocupa um lugar decisivo no processo de for-
construindo um fosso, um verdadeiro abismo mulação e implementação de programas esta-
entre os trabalhadores dos setores formais e tais, décadas mais tarde o tema incita senti-
mais dinâmicos da economia e o restante da so- mentos e aspirações, os quais, combinando so-
ciedade. lidariedade e cidadania, buscam reverter um
Nosso perfil de cidadania aponta, assim, pa- quadro de crise dos laços sociais. A visão da
ra a existência de amplos contingentes da po- ação estatal como inócua, fragmentada e cor-
pulação à margem da comunidade política, o rupta e, todavia, a concepção da sociedade co-
que certamente tem implicações no que se re- ma a esfera capaz de romper a apatia e propor
fere ao nosso padrão de intervenção pública e alternativas à burocratização e à ineficiência,
integração social. Ao mesmo tempo, nossos vín- ganham força e ressonância. Após o processo
culos associativos tendem a ser precários, frou- de impeachment do governo Collor e inúmeras
xos e pouco eficazes na consolidação de laços denúncias de corrupção, paira uma suspeita
de solidariedade horizontal (Da Matta, 1978). A generalizada sobre o corpo político. No que se
organização de interesses e a ação coletiva – ele- refere às políticas de alimentação e nutrição,
mentos centrais para a consolidação da convi- por exemplo, a situação encontrada pelo go-
vência democrática e para a garantia de solu- verno de Itamar Franco, após a posse, é crítica.
ções perenes para os problemas sociais, não são, Em estudo realizado por Ana Maria Peliano e
muitas vezes, potencialmente capazes de insti- Nathalie Beghin, no Instituto de Pesquisa Eco-
tuir novas arenas de negociação. Como aponta nômica Aplicada (IPEA) em 1992, fica patente a
Dulce Pandolfi (1999:45), “a despeito da im- redução de verbas para os programas nutricio-
plantação de um Estado de direito, os direitos nais. O Programa Nacional de Alimentação Es-
humanos ainda são violados e as políticas pú- colar, o Programa de Apoio Nutricional e de
blicas voltadas para o controle social permane- Distribuição de Leite da Legião Brasileira de
cem precárias”. O personalismo parece ser con- Assistência (LBA), sofrem drásticas reduções
tinuamente renovado em nossas relações so- orçamentárias. No total, como mostra o estu-
ciais dificultando, no âmbito das políticas pú- do, em 1992 houve uma redução de 64% nos re-
blicas, a vigência de regras pactadas capazes de cursos destinados aos programas de alimenta-
redefinir objetivos e garantir impactos na pro- ção e nutrição em relação ao ano de 1990. As-
moção da eqüidade e da justiça social. Para Reis sim, em meio à ávida necessidade de mudan-
(1995:59), “nossa identidade social ainda guar- ças e crise moral do Estado, a sociedade é vista
da muito de orgânico, elitista, populista”. como lugar de construção de projetos inovado-
As exigências para a superação das vulne- res voltados para o bem-estar.
rabilidades ligadas à situação de trabalho e ci- Em 1993, a mobilização contra a fome e a
dadania são complexas e substancialmente dis- pobreza divide-se, assim, em dois eixos princi-
tintas das que podem ser percebidas em ou- pais: um reúne governo e sociedade com a cria-
tros contextos sociais. Assim, a Ação da Cida- ção do Conselho Nacional de Segurança Ali-
dania contra a Fome, a Miséria e pela Vida sur- mentar (CONSEA), o outro desenvolve-se a par-
gida em 1993 como uma mobilização de cará- tir de iniciativas voluntárias ligadas à Ação da
ter nacional voltada ao enfrentamento da fome Cidadania. No bojo da divulgação dos dados do
e da miséria e, impulsionada por comitês for- Mapa da Fome – estudo realizado pelo IPEA
mados por um voluntariado heterogêneo, re- (1993) – surge um arranjo institucional e asso-
presenta uma aventura rica de possibilidades e ciativo complexo. Por um lado, há o reconheci-
desafios. O problema da fome e as possíveis so- mento do papel do governo e dos diferentes mi-
luções e alternativas para minorá-lo tornam-se nistérios na transformação da situação de po-
os fios condutores de uma rede de solidarieda- breza no Brasil. Atores e grupos sociais ligados
de e ajuda mútua, a qual em última análise, ao movimento vão reiterar a necessidade de
busca refazer vínculos entre indivíduos e gru- priorizar a discussão sobre a destinação dos re-
pos sociais. cursos públicos e a articulação entre os gover-

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nos municipais e estaduais. Entretanto, as al- sa e investigação. Neste artigo, a proposta é


ternativas societais e a ação voluntária são pri- contribuir nesta direção, apresentando e dis-
vilegiadas em oposição às ações estatais e bu- cutindo algumas das principais tendências re-
rocratizadas. Na verdade, no Brasil assim como veladas a partir dos encontros com voluntários
em outros países da América Latina, apesar de “Comitês da Fome” localizados no Rio de Ja-
dos anos 90 representarem um período de in- neiro, entre 1996 e 1997.
flexão em relação à hegemonia das propostas
neoliberais da década anterior e, portanto, su-
blinharem novos parâmetros de reestruturação Comitês da Fome: tensões
econômica e política, não trazem um consenso na construção de um compromisso
em torno dos novos papéis do Estado e da so-
ciedade em torno da pobreza. Como ressaltou “...não há mais regras que nos poupem da novi-
Lopes (1994), nos anos 80, os programas de dade. Precisamos ser condottieri de nossas vi-
ajuste estrutural preconizados para os países das, estadistas de nosso destino. Isso, porém, que
latino-americanos pelo Banco Mundial busca- à primeira vista parece embriagar, de poder e de
ram, sobretudo, a contenção de gastos públi- perspectivas, não é nenhum consolo; ao contrá-
cos, a privatização e a desregulamentação do rio, é um desafio para cada pessoa. Um desafio
Estado. Nesse receituário neoliberal, o enfren- que inclui a exigência de articular o pessoal e o
tamento da pobreza estava previsto mediante social, o ético e o político, o privado e o público”
a adoção de políticas sociais compensatórias e (Ribeiro, 2000:221).
focalizadas. As prestações universais de servi- Inicialmente, a vitalidade e a capacidade
ços públicos deveriam, nesta abordagem, ce- propositiva da Ação da Cidadania irão concen-
der espaço para um acesso diferenciado a par- trar-se em uma dupla construção: por um lado
tir de critérios mais rígidos de seleção de clien- a cidadania é entendida como um objetivo a
telas, privilegiando, assim, os setores mais po- ser atingido para a maior parte da população.
bres da população. No início da década de 90, Malgrado a incorporação dos direitos de cida-
porém, essas teses recebem profundas críticas. dania pela Constituição, a questão-chave para
Como produto da onda neoliberal, mecanis- o movimento é a existência de um hiato entre a
mos cada vez mais perversos aprofundaram as lei e as práticas cotidianas dos indivíduos. Nes-
desigualdades sociais e ampliaram a pobreza se aspecto, é reforçada a visão de que os direi-
na América Latina. A proteção social, direciona- tos, no Brasil, não estão enraizados nas rela-
da apenas para os mais excluídos dos benefí- ções sociais enquanto valores coletivos. Por
cios econômicos e sociais, mostrou-se intensa- outro lado, essa perspectiva é desdobrada em
mente problemática. Para Therborn (1995:161), uma análise do perfil de acesso às necessida-
“a funcionalidade da seletividade é posta em des básicas da população, isto é, na medida em
causa pela impossibilidade de se eliminar im- que os direitos não operam como princípios
portantes armadilhas de pobreza – poverty reguladores da dinâmica social, a pobreza é en-
traps – através de direitos seletivos”. tendida como a contra-face de um precário pa-
Com efeito, novas propostas surgem para o drão de integração social.
equacionamento dos problemas sociais, desa- A fome adquire a força de uma idéia – sín-
fiando concepções anteriores. Pensar a pobre- tese capaz, ao mesmo tempo de estabelecer
za e as múltiplas formas de privação como um uma fronteira entre integrados e não-integra-
problema com o qual todos estamos confron- dos e de, também, construir um consenso mo-
tados e com o qual nos identificamos, inaugu- ral e legítimo entre o justo e o injusto. A fome
ra portanto, uma nova perspectiva. Sem dúvi- é, assim, a situação limite, “indigna”, em que
da, o movimento da Ação da Cidadania não es- vivem os não-cidadãos. Na impossibilidade de
tará imune aos problemas práticos e às exigên- reverter tal situação por meio de suas próprias
cias teóricas deste ponto de partida. A metáfo- iniciativas, este amplo contingente de famin-
ra da guerra e a retórica humanitária associa- tos crônicos necessita da ação e da mobiliza-
das à “Campanha da Fome”, muitas vezes são ção dos “incluídos”. Nessa perspectiva, excluí-
percebidas como estratégias voltadas ao desvio dos e incluídos confrontam-se com as mesmas
da responsabilidade estatal e à recriação do as- necessidades e exigências incondicionais. É a
sistencialismo em um cenário de ofensiva neo- partir dessa inferência, portanto, que são cria-
liberal. No entanto, exatamente por suscitar das e ampliadas as possibilidades de constru-
polêmica e reflexão em torno dos papéis do Es- ção de laços de solidariedade.
tado e da sociedade na melhoria do bem-estar, No entanto, ao longo do tempo a imagem
a Ação da Cidadania é capaz, ainda hoje, de fa- de “milhões de famintos”, de imensas parcelas
zer proliferar esforços significativos de pesqui- da população regidas pelo “imperativo inarre-

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dável de sobreviver”, ou seja, grupos de cida- ligados”. Desse modo, a ação contra a exclusão
dãos de um lado, e pobres anônimos, incapa- está intimamente associada ao objetivo de re-
zes de representação e articulação de deman- criar e recompor laços sociais. Além disso, ain-
das de outro, conduz a Ação da Cidadania a um da que haja um enfoque processual e dinâmi-
paradoxo. O discurso da exclusão presente no co, é difícil nomear a vontade que provoca a
movimento aponta a existência de dois mun- exclusão. Não há, como discute o autor, a iden-
dos distintos, separados de tal modo que che- tificação de agentes concretos desencadeado-
gam a ser invisíveis um para o outro e, ao mes- res ou responsáveis pela exclusão. Isso não sig-
mo tempo, busca provocar o envolvimento re- nifica, porém, que a descrição das experiências
cíproco e a troca solidária. Em que termos, que de privação é neutra. Para Didier (1996), julga-
não os postos na relação assimétrica ligada tra- mento e condenação, embora pouco precisos,
dicionalmente à matriz religiosa da caridade, alternam-se e alimentam a mobilização social.
esta solidariedade é possível? Como construir “...esta imprecisão é particularmente propí-
uma dinâmica integradora entre cidadãos e cia ao desenvolvimento do valor performático
pobres no limite da sobrevivência física? Qual do vocabulário da exclusão ... Através de uma
noção de igualdade está, neste aspecto, infor- noção fluida, coexistem, ao mesmo tempo, sin-
mando a Campanha? gularidade e generalidade” (Didier, 1996:24).
O dilema de construir uma rede de solida- Assim, por um lado, ao referendar a imagem
riedade em torno da pobreza e da fome na Ação de uma sociedade cindida pela fome, a Ação da
da Cidadania, tendo como ponto de partida a Cidadania atualiza mecanismos tradicionais
existência de 32 milhões de indigentes sem voz de cooperação e ajuda, que embora distantes
e ação torna-se, neste sentido, inescapável. Pa- dos padrões de solidariedade social erigidos a
ra Giumbelli (1994), ele se tornará mais claro a partir do enraizamento da noção de igualdade,
partir das etapas subseqüentes da Campanha mostram grande eficácia na consolidação do
da Fome. Na análise do autor, se em um pri- movimento. No entanto, por outro lado, ao ten-
meiro momento, a percepção de uma diferen- tar vencer o desafio de construir alternativas
ça entre a “sociedade” e os “excluídos” tornou- de gestão social da miséria para além das estra-
se a própria condição para a realização dos tégias tradicionais de doação e cooperação so-
atos de solidariedade na Campanha, posterior- cial, a Campanha confronta-se com problemas
mente, ao agregar as questões do emprego e do novos. Na verdade, as referências à generosida-
trabalho à agenda de mobilização, o “discurso de e ao fim da indiferença na Ação da Cidada-
da alteridade” começa a apresentar fraturas nia tentam deslocar a discussão dos direitos de
importantes. Ao invés de “indigentes” e “caren- sua dimensão jurídico-política, incorporando-
tes de ajuda”, as novas estratégias ligadas à cria- a, também, ao debate sobre os perfis cotidia-
ção de postos de trabalho e inserção profissio- nos de convivência e interação sociais. Há o re-
nal, passam a demandar, de maneira mais inci- conhecimento de que, isoladamente, a solida-
siva, formas de atuação articuladas às agências riedade estatal e institucionalizada não é capaz
estatais e, também, à presença de atores so- de garantir a integração social. Ou seja, se a ci-
ciais com maior grau de autonomia e capaci- dadania exponencia as possibilidades de esco-
dade propositiva. lha e as chances dos indivíduos, essas novas
Na verdade, apesar do drama da indigência, opções perdem o significado sem “as estruturas
ou seja, da existência de milhões de “párias” e profundas de vínculos” (Dahrendorf, 1997:55).
pessoas excluídas não só da sociedade como
destituídas da “condição humana”, ter sido ca-
paz de contornar os impasses postos pelo cor- Entre a dádiva e o direito
porativismo, pelo partidarismo e pelas distintas
correntes ideológicas, o desdobramento poste- “Autônomos, independentes, suprapartidários,
rior da Campanha em direção à “questões es- criativos, concretos, que sejam capazes de iden-
truturais” iria revelar os limites desta aborda- tificar os problemas, propor soluções e traba-
gem. Assim, principalmente após 1994, a Cam- lhar sem esperar nada, sem esperar ordens, sem
panha se depara com a necessidade de rever o esperar verticalismos, burocracias e centraliza-
enfoque dado à pobreza e, também, aos graus ção” (Betinho, em depoimento registrado no
de autonomia, consciência e “responsabiliza- vídeo Betinho Fala sobre a Ação da Cidadania,
ção” dos pobres, a fim de fortalecer seu projeto produzido pelo Instituto Brasileiro de Análises
de ampliação da cidadania (Giumbelli, 1994). Sociais e Econômicas em 1993).
Como aponta Didier (1996), o discurso da Os Comitês de Combate à Fome põem em
exclusão pressupõe a existência de dois mun- prática a Ação da Cidadania. Será nestes espa-
dos, só que não totalmente separados, mas “mal ços de interação entre atores sociais diferen-

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ciados que serão pensadas e experimentadas para a intervenção, também serão viabilizadas
as alternativas de enfrentamento da pobreza e e mesmo reavaliadas, estratégias de combate à
da miséria. Trata-se, originalmente, de uma pobreza.
mobilização dos grupos mais favorecidos (ou O primeiro Comitê da Fome é criado em
de cidadãos) em direção à realização de ações março de 1993, na cidade de Barra do Piraí, no
para a melhoria das condições de vida de seg- Rio de Janeiro, articulando “mais de 30 entida-
mentos da população vivendo sem cidadania, des entre sindicatos, igrejas, centros espíritas,
na miséria e na pobreza. Assim, a Ação da Ci- bancos, associações comerciais, etc...” (Gohn,
dadania nasce como um contra-exemplo do 1996:26). O fato irá expressar o papel do Estado
que Adam Smith sinalizou como “the desire of do Rio de Janeiro como centro irradiador do
bettering our condition” (Smith, 1948, apud movimento, fruto não só de sua história políti-
Hirschman, 1984). Ou seja, diferentemente da ca e da agudização dos conflitos urbanos liga-
trajetória da maioria dos movimentos sociais, dos à deterioração das condições de vida, no
a Ação da Cidadania não tem como ponto de início dos anos 90, como também da presença
partida a história de uma complexa estrutura- significativa na região de Organizações Não-
ção de espaços de colaboração entre sujeitos Governamentais (ONGs) e empresas públicas.
sociais concretos, capazes portanto, de elabo- Assim, passos decisivos para a divulgação e es-
rar demandas e reivindicações e, transpô-las truturação da Campanha, como a realização de
de um plano privado para a esfera pública. Na shows e eventos promocionais, a dinamização
verdade, a demanda pelo fim da fome e da mi- do jornal Primeira e Última, editado por qua-
séria tem uma vocalização mais difusa. É a tro ONGs: IBASE, Instituto de Estudos da Reli-
Ação da Cidadania voltada aos “excluídos”. gião (ISER), Instituto de Ação Cultural (IDAC) e
Pode-se dizer que, sob um certo ângulo de Federação de Órgãos para a Assistência Social
análise, a Ação da Cidadania expressa a con- e Educacional (FASE), e a criação do Comitê das
juntura política e social dos anos 90. Após um Estatais, ocorreram no âmbito do Estado. O
longo processo em que a negação ao Estado e a Comitê Rio, criado em abril de 1993, dada a in-
qualquer institucionalidade política é revista, tensa participação de comitês locais, adquiriu
os movimentos sociais passam a buscar espa- um papel de destaque, irradiando novas pro-
ços de negociação mais amplos. Parcerias in- postas e, também, novas perspectivas e dile-
tersetoriais e interinstitucionais surgem como mas organizacionais.
desdobramento de um discurso menos rígido É importante ressaltar, porém, que a Cam-
acerca das possibilidades de interação e, tam- panha da Fome durante todo o ano de 1993,
bém, construção pactada de iniciativas públi- cresceu também nas demais regiões do país.
cas para a solução dos problemas sociais. Praticamente cada uma das 3.800 agências vin-
O movimento contra a fome e a miséria culadas às duas principais instituições estatais
busca escapar, portanto, de uma dinâmica po- financiadoras ligadas ao movimento – o Banco
larizada, de uma luta entre agentes sociais an- do Brasil e a Caixa Econômica Federal – se tor-
tagônicos. Sem dúvida, alguns atores, grupos e naram Comitês da Fome (Rodrigues, 1994).
segmentos sociais, podem ser identificados e Conjuntamente, igrejas, sindicatos, escolas, as-
descritos como forças significativas na organi- sociações profissionais diversas, empresas pri-
zação e condução do movimento. No entanto, vadas e organizações comunitárias também fo-
antes que imputar responsabilidades ou quali- ram transformados em espaços de discussão
ficar oposições, há um esforço generalizado no sobre a fome e a miséria. Evidenciando diversi-
sentido de tecer alianças e compromissos con- dade em sua composição, criatividade e capa-
tra a exclusão. Os valores tradicionais da gra- cidade de mobilização, os comitês implemen-
tuidade, da caridade e do altruísmo misturam- taram múltiplas estratégias de ação. Assim, ape-
se à perspectiva de criação de formas mais am- sar da grande ênfase inicial na atividade de ar-
plas de solidariedade. A existência de algumas recadação e distribuição de alimentos, a cria-
diretrizes e propostas oriundas das instâncias ção de empregos, o plantio de sementes, a cons-
de coordenação da Campanha, como a Secre- trução de moradias e a promoção de eventos
taria Executiva Nacional criada em abril de esportivos, foram também importantes campos
1993, e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais de atuação dos voluntários, sobretudo após 1994.
e Econômicas (IBASE) por exemplo, não invali-
da a observação de que os comitês serão mar-
cados pela informalidade e descentralização. A ação dos voluntários
No âmbito destes núcleos de participação so-
cial, marcados pela perspectiva de autonomia “Seja qual for o seu conteúdo específico, a ação
e liberdade, além de serem traçados caminhos sempre estabelece relações, e tem portanto a

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tendência inerente de violar todos os limites e temente marcadas pela dinâmica de coleta e
transpor todas as fronteiras” (Aendt, 1999:293). distribuição de alimentos. O “sopão” comuni-
Segundo a cartilha divulgada pela Ação da tário, a doação de cestas básicas de alimentos
Cidadania em 1993, “um comitê reúne cidadãos para creches, escolas e comunidades, e a arre-
que querem fazer história, cansados de esperar e cadação de alimentos junto a comerciantes lo-
que descobriram que as soluções para os proble- cais são as principais ações dos voluntários nos
mas do Brasil estão na vontade de cada um” comitês. No entanto, como já sinalizado ante-
(IBASE, 1993:2). O desejo de fazer mudanças e riormente, após 1994 e nos anos seguintes, a
a disposição para implementar práticas con- trajetória da Campanha no país e, especifica-
cretas e eficientes contra a miséria são, assim, mente, no Rio de Janeiro, vai indicar a existên-
os principais elementos para a ação voluntária. cia de maiores dificuldades e obstáculos para a
“O que se espera de cada grupo são valores e criação de circuitos mais amplos de solidarie-
comportamentos que estejam em sintonia com dade e engajamento contra a fome e a exclu-
os princípios do movimento. Em última análise, são. Um certo esgotamento em torno das ativi-
que se exerça a cidadania no seu mais profundo dades de doação, na avaliação dos principais
significado, que é da responsabilidade diante da articuladores da Campanha e de Betinho, vai
realidade social e da permanente preocupação implicar a busca de novas propostas de partici-
em mudá-la para melhor” (IBASE, 1993:2). pação dos voluntários.
Os resultados obtidos na pesquisa realizada “O estímulo ao aumento do número de em-
por Landim em novembro de 1993 (Landim, pregos e as propostas alternativas de geração de
1998), mostram uma adesão importante, no renda foram anunciados como a nova etapa da
período, de pessoas da classe média – como Campanha contra a Fome. Seriam os rumos a
professores, bancários, donas de casa e profis- tomar para o ano de 94 – e isso foi reiterado com
sionais liberais em geral. A expressiva partici- insistência por várias pessoas ligadas à Campa-
pação de mulheres e também de grupos de in- nha. Em primeiro lugar, o próprio Betinho,
divíduos com pouca ou nenhuma história de diante do governador de São Paulo e do Minis-
engajamento em movimentos sociais, é ressal- tro do Trabalho, durante o 30o Fórum Nacional
tada. De alguma forma, isto se reflete na cria- de Secretarias do Trabalho” (Giumbelli, 1994:49).
ção de um grande número de comitês na zona Assim, segundo Giumbelli (1994), a Campa-
sul da cidade. nha sofre após 1994, um deslocamento impor-
Avaliação semelhante é feita por Pedro Ja- tante, priorizando iniciativas voltadas à gera-
cobi, a partir da pesquisa por ele coordenada ção de emprego e renda: “Agora estamos diante
em 1994, acerca dos contornos da Ação da Ci- de um desafio maior. Não somente distribuir co-
dadania em cinco Regiões Metropolitanas do mida, mas dar trabalho. Inventar emprego, in-
país: São Paulo, Recife, Belém, Brasília e Porto tegrar todas as pessoas na atividade remunera-
Alegre (Jacobi, 1996). Nas experiências estuda- da. Com salário cada um pode exercer minima-
das, o autor aponta o impacto significativo da mente sua cidadania” (Souza, 1994).
Campanha na multiplicação de participantes e
voluntários. Ainda que para Jacobi, cada região
apresente singularidades em relação ao perfil Os comitês pesquisados:
de voluntários, na emergência da Campanha, desvendando práticas e valores
ou seja, entre os anos de 1993 e 1994, a atuação
nos comitês envolve principalmente esponta- Após um mapeamento dos comitês da Ação da
neidade e setores sociais sem um percurso his- Cidadania, realizado entre dezembro de 1995 e
tórico em movimentos populares. fevereiro de 1996, foram escolhidos comitês
Na verdade, como salientam as pesquisas para a realização de entrevistas com o volunta-
sobre o processo de “irrupção” da Ação da Ci- riado. Ao todo, foram sistematizadas 25 entre-
dadania, o apelo inicial do movimento, no sen- vistas, entre março de 1996 e setembro de 1997,
tido de fomentar a responsabilização indivi- envolvendo 39 depoimentos, colhidos indivi-
dual pela grave situação do país, consegue sen- dualmente ou em pequenos grupos. Segundo
sibilizar pessoas que nunca participaram de os dados do Comitê Rio, o número total de co-
ações coletivas ou de ajuda mútua. Uma mobi- mitês atuando no Rio de Janeiro entre 1995 e
lização plural, com uma significativa presença 1997 eram respectivamente, 191 (1995), 218
de empresários e funcionários públicos, forja (1996) e 326 (1997). Embora esses números se-
uma convivência inusitada entre grupos com e jam superestimados, revelam uma significativa
sem história prévia de trabalho comunitário. presença de comitês no estado, no período. A
As práticas desenvolvidas por esses grupos escolha dos comitês, dentro do enfoque quali-
no início da Campanha, vão ser preponderan- tativo adotado na pesquisa, não teve como pa-

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râmetro a busca de uma amostra representati- dos figurões” (membro do Comitê do Banco do
va em termos numéricos. Sem cristalizar, po- Brasil/Andaraí).
rém, uma oposição entre dados quantitativos e No comitê Laranjeiras, primeiro comitê de
qualitativos, foram escolhidos, no âmbito de bairro criado no Rio de Janeiro, também estava
um vasto número, aqueles que apontavam al- presente a percepção acerca de um desloca-
gumas características relevantes para os obje- mento da Ação da Cidadania em direção aos
tivos da análise, tais como a continuidade das bairros mais pobres: “A maioria dos comitês de
ações, a diversidade das práticas e o perfil das bairro da zona sul estão fechados, só o comitê
relações estabelecidas com os beneficiários. Botafogo parece estar em atividade” (membro
Dessa forma, o intuito foi colher dados e expe- do Comitê Laranjeiras).
riências entre comitês com trajetórias distin- Por outro lado, uma das primeiras observa-
tas, seja em relação ao tempo de mobilização, ções colhidas nas entrevistas, foi a de que, dife-
seja ao perfil do voluntariado ou às parcerias rentemente da tendência apontada por vários
com grupos ou instituições. autores nos dois primeiros anos da Ação da Ci-
O roteiro das entrevistas serviu de ponto de dadania, uma parcela expressiva dos voluntá-
partida para apreensão das diferentes dinâmi- rios participava de atividades religiosas (28,92%)
cas de trabalho e participação. A flexibilidade ou apresentava alguma ligação com associa-
foi exercitada ao máximo, com vistas a garantir ções de moradores (21,88%). Só 3,12% não ti-
espaço para que os voluntários falassem tam- nham participado de nenhum outro trabalho
bém de questões não previstas, em salas cedi- comunitário ou militância política. Assim, a
das por ONGs, creches comunitárias, igrejas, motivação para trabalhar nos comitês pesqui-
agências bancárias, escolas e associações de sados, entre 1996 e 1997, estava, em geral, inse-
moradores. O acesso a alguns comitês foi bas- rida em uma trajetória de trabalho social em
tante dificultado dado à sua localização em associações de moradores, igrejas, creches co-
ruas sem pavimentação, saneamento, ilumina- munitárias, sindicatos, movimento de mulhe-
ção ou transporte coletivo. No entanto, esses res, partidos políticos etc.
obstáculos e outros mais graves, como a inse- “Antes eu trabalhava independente de comi-
gurança sentida em locais dominados pelo trá- tê” (membro do Comitê Parque Alvorada).
fico de drogas, foram satisfatoriamente contor- “Esse trabalho aqui começou com um grupo
nados. Na verdade, o anseio demonstrado pela da igreja, que fazia círculos bíblicos nas casas.
maioria dos entrevistados de falar sobre sua Éramos dezesseis, fazíamos reuniões nas portas
experiência, ainda que nem sempre revelando das casas. Em 1992, o pessoal da Fundação Ben-
entusiasmo ou esperança, tornou-se um ele- to Rubião fez uma reunião na Cidade de Deus e
mento chave para a superação das dificulda- foi aparecendo ajuda. Foi assim que a gente ini-
des. Comparando o número de comitês exis- ciou um trabalho em favor das famílias desa-
tentes nos diferentes bairros do Rio de Janeiro brigadas” (membro do Comitê Taquara).
e da Baixada Fluminense, foi possível perceber “Nós éramos de um grupo chamado Reno-
um certo deslocamento espacial em direção às vação Cristã do Brasil, que tem uma igreja mais
áreas do subúrbio carioca e municípios da Bai- atuante, mais dentro das casas... Aí a gente pro-
xada ao longo do período da pesquisa. Em No- curou o Comitê Rio para saber como montar
va Iguaçu, por exemplo, o número de comitês um comitê” (membro do Comitê Freguesia).
sobe de 60 em 1995 para 94 em 1997. Em Du- “Nós éramos da associação de moradores,
que de Caxias, o fenômeno é semelhante: de 12 começou um incêndio em barracos da favela
comitês em 1995, o número cresce para 33 em Correia Lima. As pessoas não tinham nada, per-
1997. Ao mesmo tempo, no Município do Rio deram tudo. Começamos a arrecadar roupa, co-
de Janeiro, os comitês existentes nos bairros da mida, utensílios e depois partimos para a for-
Zona Sul diminuem no período e os bairros de mação de um banco de empregos. Aí o Comitê
Campo Grande, Santa Cruz, Ilha do Governa- Rio veio nos procurar, o MEC, o Banco do Bra-
dor e Jacarepaguá, os quais apresentavam ape- sil” (membro do Comitê Vila Isabel).
nas 20,83 % do total de comitês no município Em todos os comitês havia a predominân-
em 1995, passam a conter cerca de 40% em cia de mulheres no desempenho das ações. No
1997. Essa tendência também é revelada no de- entanto nos comitês das estatais e da Zona Sul,
poimento de voluntários: “Talvez nós sejamos o a presença masculina era mais expressiva. É in-
único comitê de classe média ... a composição teressante notar que nesses comitês, os volun-
dos comitês está mudando, as pessoas de classe tários apresentavam um perfil heterogêneo do
média estão se afastando e pessoas carentes es- ponto de vista ocupacional, embora homogê-
tão participando mais. Outro dia fui no Comitê neo em termos de classe média. No comitê Gra-
Rio e não conhecia mais ninguém, com exceção jaú, bairro cuja composição social se asseme-

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AS LIÇÕES DA AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A FOME, A MISÉRIA E PELA VIDA 129

lhava aos da Zona Sul, segundo relato do grupo necessariamente fazendo parte de suas redes
entrevistado, dois professores, um sargento da sociais de parentesco ou amizade, o que os fa-
polícia militar e três comerciantes do bairro, zia tender para um estilo mais paroquial de agir.
participavam da distribuição de alimentos e Eram os miseráveis de seus bairros, de suas fa-
mochilas e, também, realizavam palestras so- velas, de suas igrejas, os mais atingidos por es-
bre cidadania em um espaço cedido por uma sas ações.
escola municipal.
No Comitê Lapa, um sindicalista e um ex-
militante do partido comunista, ambos funcio- De novo a ação emergencial
nários do Banco do Brasil, discutiam com um e o desalento
proprietário de padaria, formas de intervenção
sobre as condições de vida da população de Os comitês muitas vezes eram formados a par-
rua. Já no comitê Vila Isabel, um membro do tir de eventos dramáticos, tais como enchen-
Conselho Distrital de Saúde e um militante do tes, incêndios e desmoronamentos em favelas,
movimento negro, criavam iniciativas conjun- que deixavam famílias inteiras desabrigadas.
tas com o presidente e vice-presidente da asso- No entanto, para a maioria dos voluntários en-
ciação de moradores. Além da doação de ali- trevistados, a Campanha, ainda que despertas-
mentos, roupas e brinquedos para as comuni- se muitos indivíduos para a ação coletiva, ape-
dades do Morro dos Macacos e Pau da Bandei- nas dinamizava práticas voluntárias já existentes.
ra, um curso sobre plantas medicinais e outro Concomitantemente, pode ser identificado
de alfabetização de adultos, ambos em fase ex- na fala dos voluntários, uma visão crítica acer-
perimental, foram descritos como ações do co- ca dos rumos do movimento e, até mesmo, um
mitê. Os laços construídos através dessas ações certo desapontamento com o resultado de suas
é tecido com pessoas socialmente mais distan- ações. A desmobilização e a “perda da euforia”
tes e quase sempre desconhecidas inicialmen- em relação a 1993 era, em geral, identificada
te, mas que são incorporadas em novas redes como um dos desdobramentos da permanente
de sociabilidade e de solidariedade. dificuldade vivida pelos comitês em ultrapas-
Nos comitês pesquisados na Baixada Flu- sar as ações direcionadas para a doação de ali-
minense, e Campo Grande e Jacarepaguá – bair- mentos aos grupos carentes.
ros da periferia do Município do Rio de Janeiro, “No início eram doze voluntários, depois foi
com grande concentração de pobres, os volun- diminuindo porque dar comida é muito fácil. O
tários apresentavam um perfil mais homogê- nosso povo pra dar é muito solidário” (membro
neo. Em geral, tratavam-se de pessoas e grupos do Comitê Freguesia).
ligados a uma mesma instituição religiosa, co- “...a Campanha da Fome teve um pique que
mo as Igrejas Católica e Batista. Nessas áreas, realmente atendeu...veio aquele impacto que
surgiam ainda, comitês formados por um úni- empolga, emociona, nós somos muito emoti-
co voluntário. Apoiados por familiares apenas, vos...mas aquela emoção não é duradoura. Nem
esses voluntários – na maioria dos casos mu- pode, a pessoa não pode viver vinte e quatro ho-
lheres pensionistas –, em geral não relatavam ras emocionado...Então aquilo dá e passa e o
envolvimento prévio com sindicatos, movimen- problema não é esse. Por isso os comitês vêm
tos ambientalistas, feministas ou negros. O que caindo... o único jeito é a gente investir em ter-
os diferenciava era a disponibilidade de tempo, mos de trabalho, de gerar emprego” (membro
pelo fato de serem aposentados ou terem a do Comitê Grajaú).
pensão como fonte de renda principal, e o in- Sem dúvida, como identificado em outros
vestimento pessoal no trabalho comunitário, estudos sobre a Ação da Cidadania após 1995,
especialmente aquele fomentado por grupos um novo contexto político e econômico reper-
religiosos. Apesar da ausência de militância cute nos rumos do movimento. As estratégias
nas organizações políticas que caracterizaram de racionalização e redução dos gastos no âm-
a cultura política em torno do eixo do trabalho bito do Estado atingem o cotidiano dos Comi-
( Jacobs, 1992), discorriam sobre uma “vida de tês das Estatais e também dos formados por
luta pelos pobres” e ressaltavam a importância profissionais liberais em geral: “Quando entrou
do reconhecimento comunitário pela vontade o novo governo houve uma chamada ‘reestru-
de ajudar pessoas próximas e manter laços de turação’ no Banco do Brasil... saíram cerca de 16
confiança. Este era o caso dos Comitês Cabuçu mil funcionários. O perfil da maior parte desses
e Chatuba, em Nova Iguaçu; Dos Amigos, em funcionários era de gerência. Esse pessoal tinha
Campo Grande e do Pra Frente Brasil, em Bel- uma participação ativa na Ação da Cidadania,
ford Roxo. Suas práticas voltavam-se para quem como incentivadores à doação de tíquetes por
está mais próximo socialmente, embora não exemplo...” (membro do Comitê Lapa).

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“Alguns colegas nossos que saíram pelo tal “O comitê e a associação é tudo junto... a
de Programa de Demissão Voluntária, tão so- gente vai junto porque pela associação conse-
frendo dificuldades econômicas seríssimas. A guimos colocar o poder público contra a parede.
gente soube pelo sindicato que eles estão em si- Hoje, por exemplo, uma senhora da comunida-
tuação de completa insolvência” (membro do de precisa de um ecocardiograma. Se eu ligo pa-
Comitê Banco do Brasil/Tanque). ra o Hospital Pedro Ernesto e digo que é do co-
“O clima do funcionalismo ficou ruim... di- mitê, vão dizer que o aparelho está quebrado.
minuiu a arrecadação e com a saída das pes- Mas se eu me identifico como a vice-presidente
soas, houve desorganização...” (membro do Co- da Associação de Moradores de Vila Isabel, ele
mitê Jacarepaguá). agenda o exame para amanhã” (membro do
Segundo o relato dos voluntários entrevis- Comitê Vila Isabel).
tados, diferente do quadro verificado no início Sem dúvida, este tipo de articulação entre
da Campanha em 1993, há uma maior rotativi- diferentes instâncias associativas é benéfica
dade de funcionários e, também, redução do para o alcance de demandas da população. Nes-
tempo disponível para a participação nas ativi- se sentido, os comitês liderados por um único
dades ligadas à Ação da Cidadania. voluntário e tendo apenas a ajuda de familia-
“Nós aqui estamos recebendo, quase diaria- res – uma das tendências que acompanharam
mente, funcionários de órgãos extintos ou ven- o deslocamento dos comitês em direção a bair-
do pessoas saindo do banco. Enfim nós estamos ros mais pobres –, têm maior dificuldade em
nos rearrumando, porque muitas pessoas que manter as atividades. Este é o caso do Comitê
estavam engajadas, que tinham aquela vonta- Chatuba, em Nova Iguaçu, formado por Luzi-
de de fazer, saíram e nós temos que recomeçar” nete, uma senhora de 71 anos, evangélica. Em
(membro do Comitê Banco do Brasil/Cande- seu relato, existia uma longa luta pelo acesso a
lária). um espaço físico próprio para o funcionamen-
to do comitê. Após reuniões e encontros reali-
zados em casas particulares, igrejas e escolas
A multiplicação das ações municipais, somente com ajuda de outro co-
mitê foi possível manter o vínculo com a Ação
Apesar do contexto adverso vivido pelos comi- da Cidadania.
tês formados por funcionários das estatais, as
entrevistas realizadas entre 1996 e 1997, reve-
lam não só a permanência de indivíduos enga- A percepção da pobreza, dos pobres
jados desde o início da Campanha como, tam- e as soluções possíveis
bém, o deslocamento de voluntários de asso-
ciações de moradores, igrejas e sindicatos em Dentre os comitês pesquisados, foi importante
direção à formação de novos comitês da Ação tematizar as concepções mais recorrentes em
da Cidadania. Esse fato, aparentemente para- torno da pobreza e dos pobres. Sem dúvida,
doxal, parece sugerir que muitos indivíduos e dentro do esforço de aproximação com cren-
grupos encontraram formas de tornar perenes ças e valores de diferentes grupos em torno da
e atualizar suas práticas de colaboração e soli- miséria, surge um leque amplo de sentidos e
dariedade social através da Ação da Cidadania. convicções. Sem pretender analisá-lo em toda
Nesse aspecto, a experiência do comitê da Fre- a sua complexidade, é importante aqui apon-
guesia, na Ilha do Governador é ilustrativa. O tar algumas tendências relevantes. Assim, foi
grupo insatisfeito com o trabalho ligado à Igre- possível identificar no depoimento dos volun-
ja Católica do bairro, percebia na criação do tários uma perspectiva generalizada de que a
comitê da Ação da Cidadania a oportunidade pobreza ultrapassa a dimensão da fome, en-
de construir novas práticas. Ao mesmo tempo, quanto experiência ligada à sobrevivência físi-
indivíduos que participam há anos de associa- ca. Ou seja, a pobreza representava diferentes
ções de moradores, ao entrar em conflito, por privações, irredutíveis em uma só dimensão.
exemplo, com uma nova gestão, decidem criar Além disso, foi comum a avaliação de que há
um “comitê da fome”. Em outros casos é difícil sempre uma saída para não passar fome. Já a
estabelecer fronteiras nítidas entre as organi- estabilidade no emprego, o acesso à educação,
zações já existentes, e os novos espaços aber- à saúde, à escola e à habitação, enfim a possi-
tos pela Ação da Cidadania. Muitas vezes, os bilidade de planejar a vida um pouco mais a
comitês funcionavam como “mais uma frente longo prazo, configuravam problemas de solu-
de mobilização”, embora nem sempre com a ção mais complexa, para além, portanto, das
mesma capacidade de solucionar problemas e estratégias de auto-ajuda ou da solidariedade
impasses vividos pela comunidade. inter e intraclasse.

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AS LIÇÕES DA AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A FOME, A MISÉRIA E PELA VIDA 131

“Pobre não morre de fome, ele dá o jeito de- “As pessoas aqui estão passando fome e tam-
le” (membro do Comitê Guarabu). bém estão doentes porque quando chove, o va-
Essa perspectiva estava presente na maio- lão transborda e as ruas ficam cheias de esgoto.
ria dos comitês, sendo ainda mais forte naque- Esta vala foi aberta para colocarem manilhas...
les localizados em bairros da periferia da cida- mas, na verdade, não colocaram. A Defesa Civil
de. Muitos desses comitês eram formados por tem que vir aqui fazer uma vistoria” (membro
voluntários que apresentavam carências e ne- do Comitê da Amizade/Campo Grande).
cessidades muito próximas daquelas vivencia- Junto a este reconhecimento do papel do
das pelos beneficiários da Campanha da Fome. Estado no equacionamento dos diversos pro-
Nesse aspecto, a pobreza se apresentava como blemas que afetam cotidianamente os grupos
um fenômeno mediado por várias formas de destituídos, estava presente a visão de que os
precariedade e privação, para além da incapa- pobres e beneficiários dos comitês, antes que
cidade de adquirir alimentos em quantidade e “vítimas de uma opressão sistemática”, eram
qualidade adequadas. A expectativa em torno indivíduos capazes de interferir para mudar
da participação na Ação da Cidadania, nesses suas condições de vida. Dignidade para conse-
comitês, era conseguir recursos para manter guirem seu próprio sustento e condição para
creches para filhos de “mulheres sozinhas e serem úteis eram vistas, então, como as verda-
que trabalham”, conseguir documentos e regis- deiras “necessidades da população”. Não ter
tros civis, criar mutirões para resolver o proble- trabalho, nem saúde, nem capacidade para par-
ma da moradia, organizar cursos de capacita- ticipar dos circuitos de trocas sociais é, portan-
ção profissional e possibilitar empregos para to, o quadro mais grave da miséria. Por isso, re-
jovens. Nesse aspecto, apesar da crítica aos ór- ceber sem retribuir era uma atitude desaprova-
gãos públicos em geral, a solução da miséria e da, pois tinha o sentido da perda da dignidade
das diferentes formas de destituição envolvia e da desistência da luta cotidiana: “Tem pessoas
algum tipo de intervenção do Estado, além de que são descansadas. Elas não querem catar
múltiplas parcerias. uma lata, catar um papelão para vender, elas
Para uma voluntária do Comitê Parque São não querem nada. Se você sustentá-las um mês,
Bento, em Belford Roxo, a dificuldade em man- um mês elas não irão trabalhar e vão sempre di-
ter a alimentação de uma creche comunitária zer que estão com fome” (membro do Comitê
para 28 crianças em horário integral sem a aju- da Amizade/Campo Grande).
da do Estado, tornava-se dramática. Apenas Em muitos depoimentos, a idéia de agregar
com a colaboração da Organização Mundial pa- algum tipo de contrapartida à ajuda prestada,
ra a Escola e a Pré-Escola, era quase impossível está presente: “Nós vinculamos à doação de
manter as atividades e o compromisso com três cesta de alimentos para uma moça alcoólatra
monitoras e uma professora. Funcionando em com filhos pequenos a sua participação nos Al-
duas salas cedidas pela associação de morado- coólatras Anônimos; nós fizemos uma parceria
res, a escassez era generalizada. Segundo ela, a para montar um curso de corte e costura no
participação no “Natal sem Fome” foi abando- Morro dos Macacos, mas não demos as máqui-
nada devido à falta de transporte e pessoal pa- nas de presente e sim colocamos em comodato,
ra coletar os alimentos doados. No Comitê Fra- não quer dizer que vamos tomar de volta, mas
ternidade Sol, situado no Bairro de Fátima, os queremos ver funcionando...” (membro do Co-
voluntários (ligados a um grupo espírita) fa- mitê Banco do Brasil/Andaraí).
ziam, basicamente, a distribuição de sopas e bol-
sas de alimentos para as pessoas que moravam
e viviam na rua. Nesse comitê, a iluminação das Avaliando a pobreza dos beneficiários:
ruas e a garantia de acesso ao Hospital Souza particularismos e clientelismos?
Aguiar pelos grupos atendidos eram algumas
das principais demandas. Ao mesmo tempo, Na medida em que os comitês tinham contato
muitos voluntários apontavam a construção de direto com a “clientela” e permaneciam alheios
um projeto amplo na área de educação que in- aos mecanismos burocratizados ou técnicos de
tegrasse a população como um todo, como um definição dos grupos de beneficiários, formu-
passo fundamental para a solução da miséria. lavam critérios próprios de seletividade e ava-
“A saída para este país não é cidadania não, liação de resultados. Nesse processo de “ma-
é educação. Porque educação vai gerar cidada- peamento da pobreza”, a visita domiciliar, a
nia. É a pessoa ser inteira, ser dona do nariz de- avaliação da idade e do número de filhos eram
la, ter a vontade dela” (membro do Comitê Cai- algumas das principais estratégias utilizadas
xa de Assistência dos Advogados do Estado do pelos voluntários para a caracterização dos gru-
Rio de Janeiro/Andaraí). pos a serem assistidos.

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“Nós somos quatro coordenadoras, nós va- tatos, conhecer trajetórias de vida, inserir indi-
mos nas ruas, fazemos as visitas, aí a gente vem víduos em um conjunto de atividades mais
com uma base se a pessoa merece. Se a gente vê amplo, inclusive os de natureza política ou re-
que não tem carência mas que por algum moti- ligiosa que transcendiam a própria Ação da Ci-
vo conseguiu fazer a inscrição, a gente tenta con- dadania.
versar, mostrar a situação dos outros...” (mem-
bro do Comitê Projeto Semente/Nova Iguaçu).
Mas, existiam outras: “A nossa definição de A relação com o Estado e as instituições
família faminta vem do lixo das casas. A nossa públicas: a construção de parcerias
observação era da lata do lixo, se tinha ou não o
que se aproveitar...”(membro do Comitê Guara- Apesar de configurarem uma esfera distinta do
bu/Ilha do Governador). Estado e do mercado, os campos das práticas
Os comitês podiam direcionar suas ações voluntárias e da ajuda mútua, tendem a articu-
para clientelas específicas como, por exemplo, lar-se freqüentemente a instituições, empresas
a promoção de cursos de artesanato para mães privadas e agências estatais, no combate à po-
de crianças e adolescentes atendidos no Insti- breza. Conseqüentemente, segundo Godbout
tuto Benjamim Constant (Comitê Laranjeiras) (1999), na medida em que recebem recursos e
ou ainda, a distribuição de alimentos para fa- financiamento de diferentes organismos esta-
mílias carentes atendidas no Hospital Anda- tais e não-estatais, os limites e fronteiras tor-
raí (Comitê do Banco do Brasil/Andaraí). Essa nam-se menos rígidos. Na Ação da Cidadania,
orientação poderia estar pautada pela familia- esse movimento em direção à pluralidade de
ridade e proximidade com os problemas vividos parcerias é, inclusive, estimulado e valorizado.
pelos grupos carentes, mas também por crité- No entanto, essas relações não são simples. Em
rios prévios ligados, por exemplo, a perspecti- um contexto social e político onde o Estado, co-
vas religiosas. Esse era o caso do Comitê Leo- mo aponta Carvalho (2001:221), é “sempre visto
poldina, onde a maior parte da arrecadação e como o todo-poderoso, na pior hipótese como
distribuição de alimentos era realizada pelos repressor e cobrador de impostos, na melhor hi-
Vicentinos, que também cediam o salão da Igre- pótese como um distribuidor paternalista de
ja Nossa Senhora das Mercês para os encontros emprego e favores”, a criação de redes interins-
com beneficiários. Assim, para o cadastramen- titucionais e de parcerias multiformes com os
to das famílias, nesse comitê, as condições de comitês torna-se problemática. Relatando ex-
morador da comunidade e católico eram fun- periências “traumáticas” as quais, em geral,
damentais. As pessoas e grupos atendidos pe- combinam a manipulação eleitoreira de doa-
los voluntários, caracterizavam-se, assim, pela ções e o descaso pela população destituída, al-
diversidade de critérios de seleção. guns depoimentos revelavam a difícil convi-
Nesse sentido, a autonomia e a liberdade vência entre lógicas e perspectivas de ação dis-
na condução das atividades de cada comitê é tintas. Esse é o caso, por exemplo, do Comitê
expressa sobretudo neste processo de delimi- Parque Alvorada em Duque de Caxias. Para uma
tação dos grupos atendidos. Nem sempre isso voluntária, o comitê havia perdido seu “verda-
significa a garantia de maior eqüidade, enten- deiro objetivo” para se transformar numa agên-
dida pelos seus critérios universalistas de igual- cia eleitoral de favorecimento a pessoas e gru-
dade no tratamento e de diferenciação para su- pos específicos. Funcionando em um espaço
prir desvantagens iniciais (Rawls, 1997). Con- cedido pela Prefeitura de Caxias, o comitê pos-
vicções religiosas, que particularizavam as es- suía uma secretária remunerada pela prefeitu-
colhas de beneficiários e de benefícios a serem ra, telefone e até carro à disposição. O coorde-
realizados, e princípios técnicos, que busca- nador do comitê, segundo ela, fazia a distribui-
vam a universalidade, a isenção e a igualdade, ção de cestas e “santinhos” com seu nome com
conviviam e se articulavam permanentemente. a Kombi da prefeitura: “Na distribuição em
A idéia de uma “pobreza meritória” estava pre- 1996, o coordenador e candidato a vereador,
sente entre muitos voluntários, assim como a destinava a carcaça de frango, pé e pescoço para
de que há níveis mais e menos graves de neces- as comunidades faveladas e as outras partes ele
sidades e carências. No entanto, mais que res- doava para a Igreja. Assim, as pessoas aqui se
saltar a pluralidade de “critérios de justiça”, uti- envolvem com o trabalho, mas depois desistem...
lizados nos comitês, é importante perceber uma eu mesma já tentei dar outra condução mas não
outra natureza do vínculo estabelecido entre consegui” (membro do Comitê Parque Alvorada).
os voluntários e a população beneficiária. Tra- Ao mesmo tempo, existia um forte apelo
tava-se, na grande maioria dos casos pesquisa- para que os órgãos públicos “fizessem a sua
dos, de uma relação que buscava estreitar con- parte”, ou seja, implementassem políticas pú-

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blicas capazes de impactar positivamente a si- “Um dia chegou aqui um caminhão cheio
tuação vivida pela população. Demandas vol- de frutas e legumes, o motorista não quis dizer
tadas à utilização do espaço dos comitês para a imediatamente quem tinha enviado, mas de-
realização de campanhas de vacinação em par- pois disse que era doação de um traficante com
ceria com secretarias municipais de saúde ou dois sobrinhos na creche do comitê. Ele queria
ainda, ao acesso a documentos de identidade, contribuir mensalmente, mas eu falei que não
a registros de nascimento, bem como ao direito precisava...” (membro do Comitê Parque São
assegurado de mover ação e ser defendido em Bento/Belford Roxo).
questões cíveis e criminais, também era fre- A Campanha da Fome surge, assim, para re-
qüente. criar laços sociais independentemente do mer-
“Nós conseguimos a presença da Defensoria cado e do Estado e, ao mesmo tempo, oferecer
Pública no comitê e em um dia, cerca de 124 alternativas de ações de combate à pobreza
pessoas, que não tinham nenhum documento, frente ao Estado ineficiente na contenção de
tiraram suas carteiras de identidade...” (mem- desigualdades, a partir do funcionamento de
bro do Comitê Parque São Bento/Belford Roxo). ambos. Todavia, no processo mesmo de con-
As parcerias com a iniciativa privada, mui- cretizar uma agenda política e criar múltiplas
tas vezes garantiam recursos para a viabiliza- possibilidades de ação coletiva, os comitês es-
ção de projetos voltados à criação de postos de barraram em velhas questões, interagiram com
trabalho. A trajetória do Comitê Freguesia, na e demandaram sempre do Estado, nos seus vá-
Ilha do Governador, exemplificava esse percur- rios níveis governamentais. Dessa interação e
so, às vezes longo, em que a iniciativa privada por vezes mimetismo de mão-dupla, se os pro-
era atraída para a Ação da Cidadania. A partir blemas da fome e da miséria não foram resol-
da doação de duas máquinas de costura pela vidos, ganharam novas descrições e estabele-
igreja do bairro, o comitê expôs em uma agên- ceram novas formas de associação, reinventan-
cia bancária do Banco do Brasil o trabalho de do velhos padrões e criando novos modos de
costureiras da comunidade. A visibilidade al- participar da vida econômica, política e cultu-
cançada com o evento repercutiu na imprensa, ral do país. Nesse sentido, pode-se dizer que a
e a Singer e a Lufthansa decidiram possibilitar Campanha teve o mérito de buscar um novo
a aquisição de máquinas industriais. Recursos significado para a cidadania, ou nas palavras
financeiros advindos de ONGs internacionais e de Godbout (1999:90), articular “dois princípios
instituições ligadas à Igreja Católica, como a diferentes: o da responsabilidade formal, defini-
Fundação Bento Rubião, também foram relata- da contratualmente em referência a direitos, e a
dos nos depoimentos de voluntários. No Comi- responsabilidade dos vínculos, perante os que
tê Taquara, por exemplo, a Fundação Bento Ru- para nós são únicos e para quem somos únicos”.
bião não só destinou recursos financeiros, mas
também garantiu o apoio de pessoal técnico es-
pecializado para a construção de casas populares. Algumas considerações finais
Mas a necessidade da presença do Estado
na solução dos problemas sociais, ainda que Como ressalta Godbout (1999), as experiências
em permanente interlocução com os outros se- associativas diferenciam-se do modelo estatal
tores da sociedade, era continuamente enfati- de intervenção principalmente por evitarem a
zada. Por vezes, nas áreas dominadas pelo trá- “solidariedade delegada” ou imposta. Ao invés
fico de drogas, a intervenção do Estado, ainda de clientelas definidas a partir de critérios téc-
que apenas para garantir a segurança de volun- nicos como, por exemplo, nível de renda e as
tários e população atendida, tornava-se uma “reais necessidades” de cada um, as organiza-
condição fundamental para o funcionamento ções participativas tendem a estabelecer laços
do comitê: “...a boca de fumo fez desaparecer as e vínculos pessoais. Esse “circuito da dádiva”
ONGs do mapa. A última pessoa de fora que que envolve a ação dos voluntários, ao escapar
veio aqui foi um representante da Universidade do cálculo, ou seja, do princípio mercantil da
Federal do Rio de Janeiro, trazendo uns folhetos equivalência e, também, do princípio público
explicativos sobre a AIDS. Mas logo ele saiu de- da igualdade, confronta estas práticas com as
sesperado, quando começou um tiroteio em contradições próprias de uma lógica peculiar
frente à creche comunitária” (membro do Co- de intervenção em torno da pobreza. Assim, o
mitê Parque São Bento/Belford Roxo). Estado tende a tomar decisões independentes
Além desse problema, os voluntários têm das características pessoais dos beneficiários
de estabelecer regras de convivência com trafi- ou usuários de seus serviços, em função dos
cantes, as quais garantam, a duras penas, a au- critérios abstratos decorrentes dos direitos de
tonomia e a liberdade das ações. cada um. Com isso é o intermediário que im-

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põe sua lógica ao doador e ao receptor, os quais ção contra a pobreza e a exclusão. A percepção
se transformam em “contribuinte” de um lado, da diversidade dos problemas sociais e a pers-
e “administrado” ou cliente, de outro, cada um pectiva de construção de diferentes compro-
com seus direitos precisos. Do lado oposto, os missos públicos contra a deterioração das con-
organismos baseados na dádiva fazem a liga- dições de vida dos setores mais vulneráveis da
ção pessoal e organizacional entre doadores e população, têm pautado, assim, as novas exi-
receptores, estreitando os vínculos entre eles e gências da sociabilidade moderna. Um esforço
colocando-os num circuito ininterrupto de tro- significativo envolvendo o Estado, o mercado e
cas de diversos conteúdos e objetivos. a sociedade civil é realizado com vistas à pro-
“A dádiva vive de afinidades, ligações privi- posição de mudanças concretas no perfil buro-
legiadas, personalizadas, que não apenas carac- cratizado e “passivo” dos esquemas de seguri-
terizam, por definição, as relações pessoais, mas dade social, de combate à pobreza e à desigual-
também são a base dos organismos cujo princí- dade. No bojo desse processo, é empreendida
pio de funcionamento é a dádiva. Mesmo quan- uma profunda revisão em torno do significado
do se aplica a estranhos, a dádiva é um sistema e da abrangência da solidariedade. Para Rorty
de circulação de coisas imanentes aos próprios (1994:19), na medida em que a solidariedade
vínculos sociais, ao passo que a circulação go- não é descoberta pela reflexão, mas “criada
vernamental se faz num sistema situado exter- com o aumento de nossa sensibilidade aos por-
namente aos cidadãos e a suas relações” (God- menores específicos da dor e da humilhação de
bout, 1999:77). outros tipos, não familiares de pessoas”, a cria-
Apesar das práticas voluntárias não impli- ção de uma perspectiva mais expansiva de so-
carem o retorno ou retribuição, se não instau- lidariedade significa alargar o sentido do “nós”.
ram algum tipo de dívida ou estado de depen- “Na minha utopia, a solidariedade humana
dência, tendem a marcar a exclusão do vínculo seria vista não como um fato que haveria ape-
social: “(...) quando damos uma esmola a um nas que reconhecer, uma vez removidos os pre-
mendigo na rua, sentimos um vago mal-estar, conceitos ou alcançadas as profundezas até en-
uma vergonha que se origina do fato de que no tão ocultas, mas sim um objetivo a atingir. Um
próprio gesto de dar, confirmamos aos nossos objetivo a atingir não pela investigação, mas
olhos e aos olhos do mendigo, sua exclusão da sim pela imaginação, pela capacidade imagi-
sociedade, pois nosso gesto não pode instaurar nativa de ver em pessoas estranhas, companhei-
um vínculo social. Fugimos do olhar do mendi- ros de sofrimento” (Rorty, 1994:18).
go e nos afastamos rapidamente após ter dado, Dessa forma, a compreensão da trajetória
recusando assim, sinais de reconhecimento re- de enraizamento e fortalecimento de laços so-
cebidos com alegria” (Godbout, 1999:213). ciais e das formas mais amplas de integração
As iniciativas que deslocam a solução do dos indivíduos, adquirem maior relevância. Na
quadro de privação e desamparo social das verdade, a participação ativa na vida política,
agências estatais para organizações societais econômica e social torna-se a principal meta
ou para campos de parcerias mais amplos, têm da agenda pública. O chamado non-profit sec-
despontado no cenário mundial contemporâ- tor, em países como a Inglaterra e os Estados
neo, enquanto importantes inovações frente à Unidos, passam a atuar significativamente jun-
crise dos arranjos institucionais tradicionais to ao setor privado, às instituições governamen-
naquilo que um autor denominou “nova cultu- tais e às organizações comunitárias. Sem dúvi-
ra política” (Jacobs, 1992). Dessa forma, muitos da, tensões e conflitos emergem, permanente-
países com sólida institucionalidade voltada ao mente, dessa interação. Muitas vezes a parceria
bem-estar, vêem emergir um horizonte de “po- com o Estado, em momentos de transição polí-
líticas transversais”. Como salienta Affichard tica, torna as instituições voluntárias vulnerá-
(1995), tais políticas buscam equacionar o dile- veis. No entanto, ao serem estabelecidos novos
ma que envolve a definição de princípios de canais de disputa e fluxos de integração para
justiça para as ações públicas voltadas ao bem- camadas políticas antes alijadas de processos
estar. Frente à complexidade das sociedades decisórios locais, surgem diferentes possibilida-
urbanas modernas, tanto as fórmulas univer- des de cooperação social e combate à exclusão.
salistas e comunitaristas de justiça e integra- Assim, entendido como um movimento que
ção social, são revistas. Ou seja, as dificuldades propõe uma alternativa contra a miséria no
em fazer valer um único princípio de legitimi- país, a Ação da Cidadania foi analisada em seus
dade para as políticas públicas e, também, em contornos mais amplos e, também em seus
conviver com diferentes (e, por vezes, irrecon- desdobramentos cotidianos nos “Comitês da
ciliáveis) concepções de bem-estar, suscitam Fome”. Nesta “leitura” do movimento, perce-
importantes redefinições no perfil da interven- bem-se circuitos de solidariedade que ultra-

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AS LIÇÕES DA AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A FOME, A MISÉRIA E PELA VIDA 135

passam aqueles advindos do trabalho, do par- mento de um abismo social, para além da desi-
tido ou da inserção no processo de produção, gualdade de renda, impõe a busca de elemen-
considerada como a cultura política da socie- tos de ligação e estratégias de convivência. No
dade em que o trabalho é o eixo principal da âmbito dos comitês, os pobres são vistos como
sua organização e a solidariedade de classes, a pessoas, com trajetórias particulares e que, so-
principal manifestação dela. Para além desses bretudo, estabelecem relações únicas com os
circuitos definidos por categorias que dividem voluntários e com suas organizações, sejam
a sociedade em classes sociais e as atravessam, elas os próprios comitês ou outras de cunho re-
em alianças partidárias no jogo da representa- ligioso e político.
ção política, a Ação da Cidadania aponta a pos- Nesse sentido, a dádiva unilateral, da doa-
sibilidade de encontrar redes ainda mais am- ção de alimentos a desconhecidos em redes
plas, embora mais frouxas, abertas e não buro- amplas e extremamente abertas nas quais o
cratizadas. São essas redes que vão criar novos doador não chega a ter contato com o receptor,
elos entre as pessoas e instituições. Vários inte- embora estimulada no início da Campanha,
resses podem estar, assim, representados no jo- aos poucos é redefinida em práticas que visam
go político que se segue e novos atores vão ne- criar algum tipo de elo entre quem dá e quem
le participar. recebe a ajuda. O cadastramento de beneficiá-
Aos poucos, desenham-se compromissos rios, as iniciativas voltadas à criação de postos
em torno de demandas diversas como habita- de trabalho e de cooperativas, assim como o
ção, acesso a registros civis, manutenção de fortalecimento de ações comunitárias, mais do
creches ou criação de postos de trabalho. Nes- que introduzir critérios comparáveis e racio-
ses deslocamentos e construção de uma nova nais para a distribuição de alimentos ou supe-
cultura política, a Ação da Cidadania envolve rar a fase emergencial da Campanha, criam la-
desde funcionários públicos, nos comitês das ços entre os indivíduos que participam dos cir-
estatais inicialmente os mais atuantes, até do- cuitos mais localizados e personalizados do
nas de casa, estudantes, aposentados e desem- dom. Dessa forma, no movimento da Ação da
pregados, principalmente nos comitês locali- Cidadania surge um arranjo institucional e so-
zados em bairros pobres na periferia da cida- cietário peculiar, que busca consolidar uma al-
de. Nesses últimos, o perfil social de seus mais ternativa de intervenção contra a pobreza e a
ativos participantes não difere daquele encon- miséria. Exercitando, de maneira implícita,
trado em outras organizações vicinais existen- uma crítica tanto àqueles movimentos sociais
tes, tais como associações de moradores e agre- que se caracterizaram pela oposição ferrenha
miações recreativas, que por diversas razões, ao Estado e valorização da participação popu-
esvaziaram-se na crise política em 1980 e 1990. lar como um fim em si mesmo, como também
Conseqüentemente, a Ação da Cidadania, en- à visão estatizante de bem-estar, a Campanha
quanto uma ação voluntária engajada, busca mostra que há uma transição em curso. Sem
combinar, por um lado uma luta pela respon- dúvida, muitos dilemas permanecem em aber-
sabilização formal do Estado com os cidadãos to. Após 1994 e 1995, o deslocamento de comi-
portadores de direitos civis, políticos e sociais tês para áreas mais carentes de serviços públi-
e, por outro, a reconstrução de vínculos pes- cos e equipamentos coletivos, e a tendência a
soais entre voluntários e beneficiários, entre uma maior homogeneidade entre os voluntá-
organizações e grupos sociais em situação de rios, revelam a dificuldade em manter a pers-
precariedade ou de necessidade. Trata-se, por- pectiva interclasse e polifônica inicial. Nesse
tanto, de uma combinação criativa e única das aspecto, a lógica de criação de novos canais de
culturas políticas mencionadas, em que uma interlocução e fluxos de participação de múlti-
missão pública, embora não-estatal, com con- plos atores sociais na definição de políticas
tornos próprios, é aliada à idéia de garantir e “plurais” de combate à pobreza, sofre rever-
ampliar a solidariedade mais ampla, indepen- sões. Surgem sinais de isolamento e desmobili-
dente do Estado e do mercado. Não se perde, zação. Ao confrontarem-se com a pluralidade
assim, o exercício da cidadania em sua dimen- de situações de privação e, com a multiplicida-
são contratual e de direitos formais da pers- de de critérios e procedimentos distributivos,
pectiva universalista, mas adiciona-se alguns os comitês não conseguem criar compromis-
elementos da perspectiva comunitarista-parti- sos duráveis com escolas, instituições públicas
cipativa. Se por um lado, a imagem de milhões de proteção social ou com setores do mercado.
de excluídos cria dificuldades na percepção As parcerias, nesse sentido, limitam-se à busca
das relações e interdependências entre os gru- de complementariedade das ações.
pos sociais, ele permite uma descrição “engaja- Conseqüentemente, o exercício de interlo-
da” da pobreza. De algum modo, o reconheci- cução torna-se frágil e, principalmente, inca-

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paz de garantir trocas substantivas entre os é capaz de recuperar o valor do vínculo na dis-
agentes sociais e suas respectivas concepções cussão da cidadania, retirando-o das redes pa-
de bem-estar, princípios de eqüidade e regras roquiais de amizade e familiariedade para a so-
de avaliação das ações. Ao mesmo tempo, a in- lidariedade entre estranhos, deslocando-o da
terrogação acerca de como as políticas sociais mera filantropia para lançá-lo na pauta das po-
podem combinar institucionalização e engaja- líticas públicas. Nesse sentido, buscando supe-
mento pessoal fica sem resposta. O Estado, rar dualidades e oposições entre Estado e so-
apesar de requisitado pelos comitês, ausenta- ciedade e, também, entre incluídos e excluídos,
se de suas responsabilidades públicas, inviabi- a Ação da Cidadania contribui para reverter o
lizando um aprendizado maior acerca das pos- isolamento social, consolidar novas redes asso-
sibilidades de trabalho conjunto. Mas apesar ciativas e revigorar o conceito de espaço público.
desses obstáculos e dificuldades, o movimento

Agradecimentos

Este estudo foi parcialmente financiado pela Funda-


ção de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janei-
ro (FAPERJ) e orientado pela Profa. Alba Zaluar no
âmbito do curso de doutorado do Instituto de Medi-
cina Social da Universidade do Estado do Rio de Ja-
neiro. Agradeço ao apoio institucional do Departa-
mento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saú-
de Pública, Fundação Oswaldo Cruz e, respectiva-
mente a Ana Fiorentino, Maria de Fátima Menezes e
Mônica Delgado, pela dedicação durante o trabalho
de campo e desenvolvimento da pesquisa. Agradeço,
igualmente, a Luciene Burlandy, pelo estímulo, cola-
boração e valiosas sugestões.

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