Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
JULHO DE 2022
1. INTRODUÇÃO
No caso dos campi universitários públicos, essa dinâmica tem impactos significativos
sobre seu próprio espaço e sobre os contextos urbanos em que estão inseridos,
modificando até mesmo a paisagem urbana destes locais. Na UFRJ, assim como na maior
parte das universidades federais, é marcante a presença de edifícios e estruturas
2
inacabadas cuja construção fora iniciada anos atrás no contexto de expansão das
universidades federais pelo REUNI1 e paralisadas em seguida pelo estrangulamento dos
recursos orçamentários. Essas “ruínas do REUNI” se tornam hoje uma espécie de anti-
monumento presente na paisagem de quase todos os campi universitários públicos,
materializando espacialmente o processo de expropriação em curso.
O forte simbolismo dos edifícios-container expressa a sujeição cada vez mais forte do
espaço público à lógica e ao imaginário do capital privado, produzindo “edifícios
públicos” à imagem e semelhança dos espaços industriais da era da acumulação flexível
e do just-in-time pós-fordista (HARVEY, 1993), encurtando o horizonte temporal do
planejamento urbano e arquitetônico do espaço público pelo Estado e subvertendo a
própria lógica espacial do edifício público, antes central na concepção do urbanismo e da
arquitetura moderna, da qual o próprio plano urbanístico do campus da Ilha do Fundão e
seus edifícios são exemplares representativos. O novo paradigma dos edifícios-container
desloca até mesmo as concepções mais clássicas da noção mesma de arquitetura, como a
tríade vitruviana: em que patamares são recolocadas as noções de solidez construtiva,
adequação ao uso e fruição estética no contexto da “containerização” dos edifícios
públicos? O contraste estético revelado atualmente no edifício Jorge Machado Moreira,
da UFRJ, ilustra de maneira didática este processo (Figura 1).
1
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, instituído em
2007 pelo Decreto nº 6096 de 24 de abril de 2007.
3
anos, sendo os mais significativos os incêndios no oitavo andar do Edifício Jorge
Machado Moreira em outubro de 2016, no Alojamento Estudantil em agosto de 2017, no
Museu Nacional em setembro de 2018 – este o de piores proporções, destruindo quase
inteiramente o edifício e um dos mais importantes acervos museográficos do país – e mais
recentemente um novo incêndio no Edifício Jorge Machado Moreira, em abril de 2021.
O impacto dos incêndios e de outras interdições de espaços por problemas de
infraestrutura acentuam ainda mais a escassez de espaços para as atividades universitárias
e comprometem a própria existência física das instituições de ensino, aspecto agravado
recentemente com a pandemia do novo coronavírus.
Figura 1: Edifícios containers anexos ao Edifício Jorge Machado Moreira, no Campus da Ilha
do Fundão, da UFRJ: mudança de paradigma na concepção do espaço e do edifício público.
Fonte: Do autor.
Outra questão central relacionada ao espaço das universidades públicas e à política urbana
é o problema da moradia estudantil. Também neste aspecto a UFRJ serve como caso
paradigmático. Sendo a maior universidade federal do país, a instituição conta atualmente
com 53.500 estudantes de graduação, dentre os quais cerca de 30% são oriundos de outras
cidades. Não obstante, a única Residência Estudantil da universidade abriga hoje apenas
245 pessoas, o que corresponde a 0,46% do total de estudantes e a 1,5% daqueles oriundos
4
de fora do Rio de Janeiro2. Outra federal situada na mesma cidade, a Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) tem cerca de 14.500 estudantes de graduação e
não possui nenhuma moradia estudantil, oferecendo apenas 90 bolsas de auxílio moradia
no valor de quatrocentos reais mensais, o que atende a 0,62% do corpo discente. É preciso
considerar que a capital fluminense tem um dos mais altos custos de vida e valor do solo
elevado, tornando a questão da moradia crucial para os estudantes com renda familiar
mais baixa, especialmente para aqueles oriundos de outros locais, quase sempre com
custo de vida menor.
Além dos graves problemas educacionais decorrentes da ausência de uma política que
efetivamente garanta a permanência estudantil, a questão do déficit de moradia estudantil
tem impactos importantes na dinâmica urbana de forma mais ampla, já que a grande
demanda por habitação pressiona o aumento do valor do solo nas áreas de entorno dos
campi universitários, comprometendo o acesso à moradia digna não só de estudantes e
trabalhadores da universidade mas também de outros segmentos da população, por vezes
gerando um processo de substituição das populações dos entornos mais pauperizados por
moradias estudantis, num processo que alguns autores denominam como
“estudantificação” em analogia ao de gentrificação (SMITH, 2005). Fenômenos desta
natureza foram identificados e analisados em diversos casos no país (FREIRE, 2014;
SUGAI, 2012; CALDERARI; FELIPE, 2021).
2
Dados extraídos do site da UFRJ, disponível em: https://ufrj.br/acesso-a-informacao/institucional/fatos-
e-numeros/, acessada em 1/11/21, 18:26.
5
(Figura 3) e as salas de aula precariamente instaladas nos já mencionados containers no
mesmo período.
Para compreender o atual estado das coisas no que se refere à produção do espaço da
universidade pública brasileira é preciso analisar de maneira aprofundada de que modo e
por quais atores foram concebidas, propostas e implementadas as diversas políticas
públicas para o setor da educação e sua imbricação com a política urbana nos últimos
anos.
6
Figura 3: Construção abandonada do prédio do CFCH, no Fundão. Fonte: ETU/UFRJ
2. PROBLEMÁTICA
Por essa razão, o recorte temporal sugerido inicialmente para a pesquisa abrange o
período de 2012 até os dias atuais, tendo como marco inicial o ano com o maior volume
de recursos orçamentários federais investidos nas universidades públicas, passando a
decair progressivamente nos anos seguintes até o recrudescimento do ajuste e a
apresentação das propostas de refuncionalização radical do ensino superior pelo atual
governo federal. Esse recorte poderá ser redefinido ao longo do desenvolvimento da
pesquisa, sobretudo em função do avanço ainda incerto das políticas em discussão
atualmente no parlamento e em outras esferas do Estado.
7
2.1. A crise do financiamento público e a refuncionalização da educação
superior
O período temporal que a pesquisa pretende analisar é marcado por uma forte política de
desinvestimento do Estado em gastos primários, sendo a educação superior um dos
setores mais afetados, com o orçamento anual das IFES decaindo ano a ano a partir de
2013. Como o orçamento das universidades é dividido entre as despesas obrigatórias, que
envolvem os salários e aposentadorias dos servidores, e as despesas discricionárias,
ligadas ao custeio das atividades e da estrutura da universidade (bolsas, equipamentos,
energia, água, limpeza, segurança, manutenção, reforma e construção de infraestruturas
físicas), a redução orçamentária incide inteiramente sobre o segundo grupo de gastos.
8
estruturalmente o papel do Estado no financiamento das estruturas de provisão de direitos
sociais e recolocam uma nova função para as instituições públicas de ensino superior. Em
julho de 2019, o Ministério da Educação lançou publicamente um novo programa para a
educação superior federal: o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e
Inovadoras, também chamado de Future-se. O projeto de lei indicava que a finalidade
central do programa seria a de promover o “fortalecimento da autonomia administrativa
e financeira das Instituições Federais de Ensino Superior – IFES, por meio de parceria
com organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios” (BRASIL, 2019).
Neste ponto, é preciso chamar atenção para a centralidade que esta política pública, a
princípio do setor da educação, dá para a questão do patrimônio imobiliário, colocando
este como o principal sustentáculo do dito “autofinanciamento”. O projeto estabelece que,
como condição de participação no programa, as IFES devam “aperfeiçoar a gestão
patrimonial de seus bens, mediante cessão de uso, concessão, comodato, fundo de
investimentos imobiliários, realização de parcerias público-privadas, entre outros
mecanismos” (BRASIL, 2019). Roberto Leher (2019) considera que o Future-se
representa uma política de refuncionalização completa da universidade pública brasileira,
reconvertida assim em uma espécie de agência de prestação de serviços mediante
captação de recursos privados, erodindo seu caráter público de instituição garantidora do
acesso à educação pública gratuita e de qualidade.
Com esse intuito, os dispositivos do projeto de lei preveem a transferência da gestão e até
mesmo a doação de bens imóveis públicos para as Organizações Sociais. Em seu desenho
inicial, o projeto prevê o aporte de um conjunto de imóveis públicos no valor total de 50
bilhões de reais, integralizados pelo fundo de investimento imobiliário. Portanto, mais do
que um programa educacional, trata-se de um mecanismo de transferência direta de
imóveis públicos urbanos para a iniciativa privada. Para Giolo, Leher e Sguissardi (2020),
o intuito do programa consiste em “levar patrimônio, obtido prioritariamente com
recursos públicos, às organizações sociais participantes”. Nesse sentido, fica evidente que
9
o projeto opera por meio de um mecanismo de expropriação e privatização do patrimônio
público vinculado às universidades federais.
Na esteira deste novo marco regulatório, em agosto de 2021 o governo federal lançou o
chamado “Feirão de Imóveis SPU+”. Esta primeira edição do leilão, inicialmente restrita
ao Rio de Janeiro, colocou à disposição do mercado privado mais de 2,2 mil imóveis
públicos avaliados em cerca de 110 bilhões de reais3. Neste primeiro leilão não foram
incluídos imóveis das universidades federais, mas a sua realização aponta para uma
tendência geral que se pretende adotar também no caso do chamado “autofinanciamento”
das universidades.
3
Governo Federal lança feirão de imóveis da União no Rio de Janeiro. Agência Brasil, 27/08/2021.
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-08/governo-federal-lanca-feirao-
de-imoveis-da-Uniao-no-rio-de-janeiro
10
Evidentemente, este patrimônio está distribuído de forma bastante desigual pelo território
brasileiro e entre as universidades. As instituições com maior patrimônio avaliado são
justamente aquelas sediadas em grandes regiões metropolitanas como Rio de Janeiro,
Brasília, Salvador, Belo Horizonte, entre outras. Considerando o contexto urbano das
universidades sediadas nestes grandes centros, é possível supor que haja maior pressão
do capital imobiliário sobre a dinâmica urbana, tanto no que se refere à especulação sobre
o valor do solo quanto à busca por novas frentes para expansão imobiliária.
A tabela também é reveladora da posição de destaque que a UFRJ ocupa neste aspecto,
sendo a segunda maior proprietária de imóveis dentre as universidades federais, atrás
apenas da UnB, que possui a particularidade de estar situada no contexto urbano e
fundiário excepcional da capital federal. No caso da UFRJ, se considerarmos a dimensão
de seu patrimônio imobiliário e as localizações privilegiadas de alguns de seus imóveis,
é possível compreender melhor o volume de recursos públicos na forma de imóveis
urbanos que as atuais políticas de “autofinanciamento” pretendem colocar à disposição
do mercado.
11
Vermelha, menor em tamanho, mas localizado na zona sul da cidade, numa das áreas de
mais alto valor de solo urbano e em meio a uma das zonas turísticas mais movimentadas
do país (Figura 4). Os dois campi principais da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO) também se localizam no mesmo contexto e despertam grande
interesse de agentes imobiliários. Além disso, ambas as universidades possuem diversas
outras unidades instaladas em grandes imóveis localizados na área central da cidade.
Figura 4: Localização dos Campi da Ilha do Fundão e da Praia Vermelha e das unidades
isoladas da UFRJ na Cidade do Rio de Janeiro. Fonte: Google Earth com dados do autor.
No caso do Campus da Praia Vermelha da UFRJ o debate sobre a utilização da área não
é recente. A polêmica em torno da desocupação do campus existe desde o início da
transferência das primeiras unidades para o Fundão na década de 1960 e, com ela, a
questão de qual seria a destinação futura do local. Em 2018 a discussão foi retomada em
novos termos quando a Reitoria da UFRJ iniciou a elaboração do projeto intitulado Viva
UFRJ, desenhado em parceria com o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) e com estudos de viabilidade elaborados pelo Banco Fator S.A.
12
O projeto consiste na cessão de três quartos da área do campus (Figura 5) para a iniciativa
privada pelo período de 50 anos. Como contrapartida, a cessionária aportaria
investimentos na estrutura física da universidade, reformando ou construindo novas
infraestruturas acadêmicas, culturais e de assistência estudantil. Segundo os
coordenadores do projeto, o fato da contrapartida não ser financeira vincularia tal
contrapartida aos interesses da universidade e não apenas aos do capital imobiliário. Não
obstante, para tornar o negócio atrativo e lucrativo aos possíveis investidores, a área
cedida teria seus parâmetros urbanísticos flexibilizados, permitindo uma ampliação do
potencial construtivo (Figura 6) do empreendimento privado em moldes semelhantes ao
de uma operação urbana consorciada.
Embora restrito ao âmbito da UFRJ, a análise das premissas fundamentais do projeto Viva
UFRJ permite considerar que ele se insere na mesma lógica e incorpora as mesmas regras
que, se universalizadas para o conjunto das universidades públicas, conduzem ao modelo
proposto pelo governo federal através do Future-se. Ambas ações tem em comum o fato
de recorrerem a dispositivos de privatização dos espaços destas instituições como suposta
“alternativa” ao financiamento estatal, revelando uma imbricação direta entre as políticas
educacionais e a política urbana atual, especialmente no que tange ao seu caráter
espoliativo.
13
Figura 5: Campus da Praia Vermelha da UFRJ - Indicação dos limites da área do campus e da
área cedida pelo Viva UFRJ. Fonte: COMPUR
Figura 6: Campus da Praia Vermelha da UFRJ - Simulação de ocupação com base nos novos
parâmetros urbanísticos propostos pelo Viva UFRJ. Fonte: COMPUR
14
2.3. Expropriação e privatização do espaço público
Um dos aspectos que se coloca como central a partir do processo descrito acima é a
questão da destruição do caráter público das estruturas de provisão do direito à cidade e,
por conseguinte, do próprio espaço público em si. Podemos aqui retomar a concepção de
Pannerai (1994), para quem “o espaço público se define primeiramente como espaço do
público” e também que “aberto e acessível a todos, a todo momento, ele pertence à
coletividade, ele é, para retornar à expressão latina, coisa pública (res publica)”. É
precisamente esse caráter radicalmente (no sentido de raiz) republicano do espaço público
que parece ser colocado em cheque pelo avanço das políticas de expropriação e
privatização do espaço nas cidades e universidades brasileiras.
Nas ciências humanas de um modo geral, o campo teórico que trata do fenômeno de
desagregação da vida e do espaço públicos na modernidade capitalista é amplo e
15
absolutamente diverso do ponto de vista epistemológico. Friedrich Engels (2010) já
identificava a perversidade do espaço urbano produzido nas cidades industriais inglesas
do século XIX a partir de uma racionalidade própria do lucro capitalista privado que
condenava as grandes massas operárias a condições de vida desumanizadas. Georg
Simmel (1976) também identificou na grande cidade moderna a expressão máxima da
economia monetária capitalista que dominava todas as relações sociais e reduzia a
qualidade e a individualidade sempre à lógica do dinheiro e da quantificação, do cálculo
e do interesse econômico. Hannah Arendt (2001) concebe a esfera pública como
sustentada pela dimensão da comunicação humana e, por isso mesmo, como fundamento
essencial da atividade política, de modo que o espaço público – locus privilegiado da
esfera pública – pode ser entendido como condição da atividade política e da própria
democracia. Mais contemporaneamente, Jurgen Habermas (1984) compreende que, sob
o capitalismo atual, a esfera pública passa a estar submetida a um processo de colonização
sistêmica pelos imperativos da lógica de mercado o que modifica não só a interação dos
indivíduos entre si como também o próprio espaço público. E ainda Richard Sennett
(1989), para quem o equilíbrio e a definição clara dos limites entre público e privado do
passado são borrados pela vida moderna, havendo uma predominância da esfera privada
sobre a pública, num processo que marca o que chama de “declínio do homem público”.
Dentro do campo dos estudos urbanos essa questão é absolutamente central. Arantes
(2015) analisou as contradições da própria concepção de espaço público do urbanismo
modernista, que instituiu a quantidade como o critério de qualidade do espaço público.
Ao conceber a cidade moderna como uma enorme extensão indefinida de espaços livres
públicos, porém abstratos, terminou por produzir seu contrário, isto é, o esvaziamento do
espaço público simultaneamente à desintegração dos limites e à indiferenciação entre
público e privado, homogeneizando indiscriminadamente os espaços de moradia e
trabalho, por exemplo, o que abriria caminho para que, em última instância, a lógica do
privado avançasse sobre o público em meio a esta indiferenciação generalizada. Cabe
ressaltar que foi precisamente este paradigma moderno de espaço público que orientou e
deu forma ao espaço da universidade pública brasileira no século passado, sendo o
campus universitário um de seus programas mais emblemáticos.
16
fortificados” que caracterizam o modo de segregação urbana atual. Para a autora, a mesma
técnica de produção de um espaço público total e unificado idealizado pelo modernismo
se converte na prática em seu contrário e passa a ser utilizada para estender cada vez mais
os limites do espaço privado como nova totalidade que se impõe sobre o conjunto da
cidade, passando inclusive a assumir funções antes públicas, mas agora de maneira
segregada.
Essa mesma tendência de privatização do espaço público é apontada por Ribeiro (2009;
2017; 2018). Operando dentro da lógica de eliminação do espaço público e do acesso
público aos direitos sociais básicos, o urbanismo passa a se constituir de forma
hegemônica como “técnica de privatização do espaço público” (RIBEIRO, 2018) que atua
como legitimadora de um discurso de progresso que se impõe como modelo único de
produção do espaço, escamoteando conflitos de fundo essencialmente político na disputa
entre as classes sociais. Esse modelo opera sempre na busca de uma espacialidade
definida pela autoridade técnico-política que opera e manobra nas zonas cinzentas entre
legalidade e ilegalidade e entre público e privado, produzindo o que o autor chama de
“espaço cordial” (RIBEIRO, 2009).
Rolnik (2015) também nos fala sobre o papel da manutenção de incertezas sobre o urbano
que constitui o que chama de “transitoriedade permanente” como fator essencial para o
estabelecimento de uma massa de reserva de terras à disposição da expansão capitalista.
Essa transitoriedade permanente seria constituída por “zonas de indeterminação entre
legal/ilegal, planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do mercado,
presença/ausência do Estado” (ROLNIK, 2015, p. 174). Poderíamos tratar de modo
semelhante a condição ambígua na qual são colocados também os demais bens e serviços
de consumo coletivo urbanos além da moradia. Em outra obra, Rolnik (2019) aponta o
caráter contraditório que o espaço público possui no capitalismo moderno, sendo
concebido justamente a partir da ideia de propriedade privada controlada pelo Estado.
Basta considerarmos, por exemplo, que o Estado moderno tem como sua
função precípua a de garantidor da propriedade privada e que portanto a
própria noção iluminista liberal de república democrática moderna está
diretamente ligada a uma democracia direta dos proprietários privados
capitalistas.
(...) Esse modelo se consolida sob a forma de Estados-nação, que fornece a
matriz conceitual e prática da noção de “espaço público”– noção que também
é privatista na medida em que surge juntamente (e por contraponto ou
complemento) à de espaço privado. Ao menos desde o século XIX, quando os
governos implantam sistemas de circulação, saneamento, manutenção, lazer,
17
entre outros, o público é entendido como “propriedade privada do Estado”,
essencial para suas táticas de governamentalidade. (ROLNIK, 2019, p. 24)
Essa noção do público como propriedade privada do Estado nos parece central para o
problema de pesquisa em tela, uma vez que cabe ao próprio Estado definir a cada
momento histórico e contexto socioespacial aquilo que deve ou não ser definido como
propriedade estatal.
Nessa perspectiva, o processo que estamos analisando revela que as infraestruturas sociais
urbanas são colocadas justamente nessa zona de transição permanente entre dentro/fora
do mercado e dentro/fora do Estado, constituindo também uma enorme reserva de terras,
edifícios e recursos gerida pelo aparato estatal e passível de ser colocada à disposição dos
capitais sempre que necessário, especialmente nas situações de crise. É no centro dessa
zona de indefinição que o espaço da universidade pública nos parece estar hoje colocado.
Essa transitoriedade permanente é a base que estrutura e possibilita o avanço dos
processos de expropriação que sustentam a acumulação de capital na contemporaneidade.
18
campo do urbanismo, do planejamento urbano e da geografia nas últimas décadas
(HARVEY, 2004; 2005; 2013; ROLNIK, 2019a; 2019b; GONÇALVES; COSTA, 2020).
David Harvey (2005) revisita a teoria marxiana da acumulação de capital e reflete sobre
como esta dinâmica e suas contradições produzem efeitos distintos sobre os territórios
que podem ser analisados do ponto de vista espacial. Para o autor, a perpetuação do
sistema capitalista é garantida por uma racionalidade externa imposta pela ocorrência
contínua de crises autoproduzidas. As crises recolocam permanentemente a possibilidade
de expansão para o capital e o duplo movimento dessa expansão está associada tanto a
intensificação, isto é, uma expansão interna, dentro dos limites territoriais já dominados
pelo capital, quanto uma expansão externa, subordinando novos espaços e expandindo
seu controle sobre o globo.
19
populações urbanas através da subtração ou precarização dos serviços e bens de consumo
coletivo necessários reprodução social da vida. Para o autor,
A partir dos estudos de caso das duas universidades federais sediadas na cidade do Rio
de Janeiro, pretendo buscar compreender em que medida podemos considerar que a
universidade pública hoje se constitui hoje como uma nova fronteira de expansão urbana
do capital, não apenas no sentido estrito, isto é, da criação de um mercado de serviços
educacionais privados, processo que já vem em ritmo acelerado nas últimas décadas, mas
incorporando agora uma dimensão diretamente ligada à expropriação dos espaços
urbanos da educação pública. Isso coloca a universidade no centro do debate sobre a
questão urbana e sobre o processo de produção do espaço urbano na era da hegemonia do
capital financeiro e, em particular, sobre os fenômenos de acumulação por espoliação
(HARVEY, 2004) e espoliação urbana (KOWARICK, 1979).
3. OBJETIVOS
A pesquisa tem como objetivo central analisar, sob o ponto de vista dos aspectos
urbanísticos, as consequências das atuais políticas para o setor da educação superior
pública no Brasil, em especial as propostas baseadas no chamado “autofinanciamento das
IFES”, decorrentes da política de desinvestimento estatal nos gastos primários. Pretende-
se conhecer como operam e quais são os agentes envolvidos na formulação dos novos
dispositivos legais e infralegais de expropriação e privatização de terras públicas e das
20
infraestruturas sociais urbanas instituídos pelos atuais programas governamentais para a
educação superior como o Future-se e por projetos localizados de parcerias público-
privadas como o Viva UFRJ. Pretende-se ainda compreender a extensão e os possíveis
impactos desses novos mecanismos de privatização do patrimônio imobiliário
universitário sobre o espaço público em geral das cidades e, em particular, sobre os
espaços educacionais públicos, especialmente os grandes campi urbanos das
universidades federais.
4. RELEVÂNCIA E JUSTIFICATIVA
Em primeiro lugar, cabe mencionar que o interesse pelo tema e a formulação das questões
apresentadas neste Projeto de Pesquisa advém principalmente de minha atividade
profissional como arquiteto e urbanista técnico-administrativo em educação na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde atuo no planejamento
e concepção de projetos urbanos e arquitetônicos, além do acompanhamento e
fiscalização de obras na instituição. Ingressando no cargo em 2017, pude acompanhar na
prática ao longo dos últimos anos as graves consequências da asfixia do orçamento
público destinado as universidades federais e seus impactos sobre o espaço físico da
instituição.
21
dos imóveis. Enquanto a maioria dos demais equipamentos públicos de provisão de
direitos tendem a se dispersar no tecido urbano de modo a se estabelecer como uma rede
mais ou menos distribuída pelas diversas áreas da cidade – pensemos nos hospitais, postos
de saúde, escolas, equipamentos culturais, centros esportivos, parques, praças – a
universidade opera na lógica inversa, buscando a concentração de suas funções em um
ou poucos locais, constituindo um conjunto urbano edificado com características
excepcionais. Trata-se na maior parte dos casos de grandes espaços situados quase sempre
em áreas urbanas plenamente infraestruturas, conectadas a vias e infraestruturas de
transporte ou próximo às regiões centrais. Por outro lado, via de regra possuem densidade
construtiva muito mais baixa que as áreas do entorno, predominando as extensas áreas
livres e as edificações isoladas.
O único caso análogo talvez sejam as estruturas militares – quartéis, bases e vilas militares
– cujo uso, no entanto, está muito mais ligado às funções de defesa armada do Estado do
que de acesso a serviços públicos coletivos e cuja distribuição no território é muito menos
uniforme. Já o campus universitário público, embora singular do ponto de vista de sua
presença no espaço intraurbano das cidades, é um fenômeno amplamente generalizado e
se faz presente em praticamente todas as cidades de médio e grande porte do país. O fato
de que os momentos de mais intensa expansão dos espaços universitários quase sempre
tenham coincidido com os períodos de mais intensa urbanização no país nos permite
considerar o campus universitário como um elemento constitutivo e estruturante do
processo de urbanização das cidades brasileiras, o que coloca a centralidade de se
investigar a articulação entre políticas educacionais para o ensino superior e o processo
de produção do espaço das cidades de grande e médio porte.
22
Neste contexto, produzir reflexão crítica da universidade sobre si mesma e, no caso do
campo da arquitetura e do urbanismo, sobre seu espaço me parece um compromisso
acadêmico e intelectual inadiável e premente, não só para avançar na defesa da existência
da universidade pública, como sobretudo para reafirmar o papel da universidade como
locus privilegiado da produção do saber científico comprometido com as questões sociais
de seu tempo e com o seu próprio lugar no mundo.
5. METODOLOGIA
A fase exploratória terá como ponto de partida uma ampla revisão da bibliografia
relacionada à problemática da pesquisa. Essa revisão deverá se dar em duas frentes. De
um lado um estudo crítico, sistemático e pormenorizado das obras dos principais autores
que compõe o referencial teórico adotado, sobretudo nas questões que envolvem os
processos de acumulação por meio de expropriações e espoliações, especialmente
consideradas as dimensões espaciais desses processos (MARX, 2013; 2017; LENIN,
2012; LUXEMBURGO, 1970; HARVEY, 2004; 2005; 2013; KOWARICK, 1979;
23
FONTES, 2013; ROLNIK, 2019a; 2019b; GONÇALVES; COSTA, 2020), a
caracterização da doutrina neoliberal e do papel das expropriações nesse contexto dos
novos cercamentos contemporâneos (DARDOT; LAVAL, 2016; FOUCAULT, 2008;
FEDERICI, 2017; 2021; BENSAÏD, 2017), as questões ligadas à corrosão do caráter
público do espaço urbano na atualidade (ARENDT, 2001; HABERMAS, 1984;
SENNETT, 1989; ARANTES, 2015; CALDEIRA, 2000; RIBEIRO, 2009; 2017; 2018),
e os autores do campo ampliado da educação que tratam da constituição sócio-histórica
da universidade pública brasileira (FERNANDES, 2020; CHAUÍ, 2001; LEHER, 2019;
2021; GIOLO; LEHER; SGUISSARDI, 2020).
De outro lado, deverá também ser empreendida uma extensiva revisão bibliográfica da
produção acadêmica recente sobre o problema da privatização dos espaços universitários
públicos, de modo a compor um estado da arte. Como dito anteriormente, o mapeamento
preliminar que fundamenta este projeto de pesquisa indica uma escassez de trabalhos que
tratem da questão. No entanto, é fundamental um aprofundamento deste mapeamento,
especialmente em função da crescente relevância do tema, sendo essencial identificar
possíveis estudos simultâneos, visando estabelecer diálogos, interlocuções e colaborações
com outros pesquisadores.
Nesta fase exploratória inicial deverá ser feita a coleta e análise preliminar dos dados mais
relevantes de modo a compor um inventário geral sobre os casos em estudo. Esse
24
inventário deverá conter um breve histórico das instituições e uma caracterização do
conjunto de seu patrimônio imobiliário e do contexto urbano em que estão inseridas.
Também deverá ser apresentada uma análise preliminar dos projetos de privatização do
espaço universitário, com especial enfoque, em princípio, para o projeto Viva UFRJ e o
caso do Campus da Praia Vermelha.
A análise dos casos será feita com base em dados tanto quantitativos como qualitativos.
As fontes utilizadas para coletas de dados incluem as bases sobre dados imobiliários das
IFES do Ministério da Educação (MEC) e da Secretaria de Patrimônio da União (SPU),
além de informações a serem solicitadas junto as próprias administrações das duas
universidades, especialmente as divisões de patrimônio e outros setores técnicos
análogos, bem como dados produzidos por comissões e grupos de trabalho relacionados
ao tema, como a Comissão Viva UFRJ. Já os dados qualitativos incluem aqueles coletados
através do acompanhamento dos fóruns públicos de debate dentro e fora das
universidades, como também os obtidos através de realização de entrevistas com
gestores, técnicos e demais pessoas envolvidas na formulação, execução e operação das
políticas públicas e dos projetos analisados.
Paralelamente aos estudos de caso, pretendo monitorar e mapear, dentro dos limites
possíveis para esta pesquisa, o surgimento de outros possíveis projetos locais nas
universidades públicas do país, nos mesmos moldes do Viva UFRJ como consequência
25
de eventuais desdobramentos do Future-se. Entretanto, este mapeamento consiste em um
objetivo secundário da pesquisa, podendo ser interrompido em função da priorização dos
objetivos principais no decorrer do estudo.
6. REFERÊNCIAS
26
________. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens das mudanças culturais.
São Paulo: Loyola, 1993.
________. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004
________. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
KOWARICK, Lucio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000.
________. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
LEHER, Roberto. Roberto Leher: o orçamento das universidades federais e a perigosa
combinação de neoliberalismo e neofascismo. Esquerda Online, 2021. Disponível em:
https://esquerdaonline.com.br/2021/06/29/roberto-leher-o-orcamento-das-universidades-
federais-e-a-perigosa-combinacao-de-neoliberalismo-e-neofascismo/
________. Autoritarismo contra a universidade: o desafio de popularizar a defesa da
educação pública. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2019.
LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo, estágio superior do capitalismo: ensaio popular. São
Paulo: Expressão Popular, 2012.
LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica
do imperialismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
MARINI, Rui Mauro. Dialética da Dependência. Germinal: marxismo e educação em debate,
[S. l.], v. 9, n. 3, p. 325–356, 2017.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
________. Debates sobre a lei referente ao furto de madeira. In: Os despossuídos. São Paulo:
Boitempo, 2017.
MINAYO, Maria Cecília (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis:
Vozes, 2002.
RIBEIRO, Cláudio Rezende. História, técnica e política: considerações teóricas para um
ensino crítico de urbanismo. Revista Políticas Públicas & Cidades-2359-1552, v. 6, n. 1, 2018,
p. 32-45.
________. Ouro preto ou a produção do espaço cordial. Tese de Doutorado. Programa de
Pós-Graduação em Urbanismo - PROURB, Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2009.
________. Paisagem urbana do capitalismo dependente: acumulação no processo
produtivo do espaço urbano e o fetiche da mobilidade no Rio de Janeiro. In: Colóquio
Internacional Marx e o marxismo 2017, 2017, Niterói. Anais do colóquio internacional Marx e o
marxismo 2017, 2017.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das
finanças. São Paulo: Boitempo, 2019a.
________. Paisagens para renda, paisagens para vida: disputas contemporâneas pelo
território urbano. Indisciplinar, [S. l.], v. 5, n. 1, p. 18–43, 2019b.
SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 11-25.
SMITH, Darren. ‘Studentification’: the gentrification factory? In:
ATKINSON, Rowland; BRIDGE, Gary (ed.). Gentrification in a global context. The new urban
colonialism. Routledge UK: Housing and Society Series, 2005, p. 72-89.
SUGAI, Maria Inês. A localização dos investimentos públicos e a (re)produção da
segregação espacial: caso de Florianópolis-SC. In: CAVALLAZZI, Rosângela; AYRES,
Madalena (orgs.). Construções normativas e códigos da cidade na zona portuária. Rio de
Janeiro: Editora PROURB, 2012.
27