Você está na página 1de 36

Seminário de Tese IV

2023.2 | nov.2023

O LUGAR DA UNIVERSIDADE
PÚBLICA NA POLÍTICA URBANA
Expropriação, privatização e refuncionalização
do espaço público brasileiro

Autor: Vitor Halfen


Orientador: Cláudio Rezende Ribeiro
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO À TESE, 3

2. RESUMO DOS SEMINÁRIOS, 5

2.1. Seminário I, 6

2.2. Seminário II, 6

2.3. Seminário III, 6

2.4. Seminário IV, 7

3. O ESPAÇO DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA, 8

3.1. O campus universitário como uma tipologia urbana?, 8

3.2. Sobre as noções de tipo e modelo em arquitetura, 11

3.3. O primeiro modelo: a cidade universitária modernista, 18

3.4. O segundo modelo: o campus integrado, 25

3.5. Esboço de uma tipologia do campus universitário, 30

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 35

2
1. INTRODUÇÃO À TESE

Este trabalho consiste em uma investigação de caráter exploratório


sobre o processo de privatização do espaço da universidade pública brasileira
no atual contexto de contrarreforma do Estado e desmonte do sistema público
de provisão de direitos básicos, relacionando-o ao avanço do chamado
“complexo imobiliário-financeiro” sobre as dinâmicas de produção do espaço
urbano, culminando em projetos de venda ou concessão dos imóveis públicos
das universidades e sua incorporação aos circuitos do mercado financeiro.

Nos últimos anos, vem sendo realizadas diversas ações e disputas em


torno da privatização dos espaços das instituições públicas de ensino superior,
tanto na esfera legislativa e no âmbito da formulação e execução de políticas
públicas de gestão e de financiamento da educação, quanto também no campo
político e ideológico, nos embates sobre o sentido público do espaço, da
educação e do patrimônio imobiliário associado às infraestruturas sociais
urbanas.

O que chamamos aqui de privatização e expropriação das


infraestruturas sociais públicas pode ser entendido como um fenômeno
sistêmico e complexo que se apresenta de diversas formas, seja de modo mais
direto com a transferência de ativos e recursos estatais ou comuns para
empresas privadas, ou pela extinção de meios públicos urbanos de acesso a
bens e serviços de consumo coletivo ou ainda por meio da submissão das
instituições e infraestruturas sociais públicas à lógica de mercado orientada para
a garantia do lucro privado. Nesse sentido, pretendo articular no
desenvolvimento da tese as categorias teóricas de “expropriação” e “capital
imperialismo” a partir de Virgínia Fontes (2010), com os conceitos de
“acumulação por espoliação” de David Harvey (2004) e de “espoliação urbana”
de Lúcio Kowarick (1979).

Nessa abordagem, entendo que esses processos espoliativos são


constitutivos e fundamentais para a manutenção da relação social capitalista e
para a ampliação da acumulação de capital. As inúmeras expropriações e
“privatizações não clássicas” (Frizzo; Silveira, 2020) em curso atualmente
caracterizam a doutrina político-econômica do neoliberalismo, que vem se

3
impondo como forma hegemônica de dominação do capital sobre os territórios
do planeta desde meados dos anos 1970. Essa doutrina tem como uma de suas
marcas a reatualização de dispositivos de despossessão das populações
mundiais subalternizadas em associação com a dinâmica da financeirização,
produzindo constantes e aceleradas transformações sobre os territórios, em
especial sobre as cidades, na forma do que pode ser definido como “ajustes
espaciais” com vistas a garantir as condições para a continuidade da
acumulação de capital nestes moldes, orientando a produção do espaço urbano
nesta direção (Harvey, 2004).

No caso do Brasil, é notável que os últimos dez anos foram marcados


por uma forte política de desinvestimento do Estado em gastos primários, sendo
a educação superior um dos setores mais afetados. A redução das verbas para
investimentos nas IFES neste período foi de 96,4% (Leher, 2021), sendo a
principal razão para os inúmeros problemas no espaço físico das universidades.

Contraditoriamente, a falta de investimento para assegurar as


infraestruturas públicas contrasta com a presença cada vez mais numerosa de
edifícios e espaços privados nos campi universitários, alguns deles associados
a grandes empresas e destinados a abrigar laboratórios e centros de pesquisas
privados voltados para áreas de conhecimento diretamente ligadas às atividades
econômicas destes grupos. Ainda que sejam construídas com recursos privados,
estas instalações se apropriam de todos os recursos da IFES, desde a terra
pública cedida até toda a disponibilização de recursos, pessoal e saberes
colocados à serviço destas empresas por meio destas “parecerias público-
privadas”, que se tornaram cada vez mais numerosas, em especial dos anos
1990 pra cá, introduzindo no campo da educação nova “lógica de cercamentos
globais” que marca o avanço do capital nas últimas décadas sobre bens até
então considerados comuns, dentre os quais a “privatização dos saberes” é uma
das faces que mais impactam as universidades (Bensaïd, 2017).

A consequência espacial deste processo é a produção de uma paisagem


urbana que marca os campi universitários públicos atualmente e que expressa
diretamente essa contradição: edifícios e espaços públicos cada vez mais
precarizados, efêmeros ou em ruínas de um lado e edifícios e espaços privados
cada vez mais numerosos e aparentemente funcionais e eficientes de outro.

4
Em meio a esta grave crise do financiamento público da educação
superior provocada pela mudança na destinação dos recursos do fundo público,
e sob as ofensivas ideológicas da guerra cultural contra estas universidades,
surgiram no debate público nos anos recentes propostas de “soluções
alternativas” que modificam estruturalmente o papel do Estado no financiamento
da educação superior e redefinem a função social das IES públicas.

A pesquisa adota a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)


como caso referência, não só pela dimensão e centralidade que a instituição tem
no sistema universitário público brasileiro, mas também porque nela estão em
curso diversas formas pelas quais o fenômeno da privatização se expressa. Os
dois projetos da UFRJ mais emblemáticos nesse sentido são o Parque
Tecnológico e o Projeto de Valorização dos Ativos Imobiliários da UFRJ,
chamado até 2022 de “Viva UFRJ”. Este segundo se baseia no modelo de
parceria público-privada e na cessão de imóveis públicos para a iniciativa privada
visando dar sustentação ao que se denomina de “autofinanciamento” das
instituições federais de ensino superior. Considera-se que estas iniciativas
integram uma série de ações que representam formas de privatização não
clássica das universidades públicas que comprometem diretamente a autonomia
universitária e a produção de saberes socialmente referenciados.

A subordinação da universidade à lógica da privatização e aos ditames


do mercado financeiro através “valorização dos ativos imobiliários” indica uma
subversão do espaço público da universidade e de sua função social, já que a
instituição passa a atuar como um player do mercado imobiliário urbano. O
espaço sob jurisdição das administrações universitárias se converte em espaço
autônomo da legislação urbanística geral da cidade, configurando uma espécie
de exceção aos instrumentos de regulação da política urbana, como os planos
diretores. Em paralelo, o financiamento da universidade passa a estar
condicionado à valorização destes ativos pela exploração direta de seu uso ou
em fundos de investimentos negociados no mercado financeiro. Em outras
palavras, o processo de privatização da universidade e da educação públicas
corresponde diretamente ao processo de privatização do espaço da
universidade, atrelado a um fenômeno mais amplo de reconversão do caráter
público do espaço urbano em geral.

5
2. RESUMO DOS SEMINÁRIOS
2.1. Seminário I

O primeiro seminário foi focado na apresentação da problemática de


pesquisa, buscando descrever o quadro atual das universidades federais após
oito anos de crise do financiamento púbico da educação superior. Foram
apresentadas também as particularidades do espaço universitário brasileiro,
considerando a excepcionalidade do campus como “tipologia urbana” e a
dimensão do patrimônio imobiliário das IFES. Em seguida, foram debatidos os
principais aspectos das propostas alternativas para a crise orçamentária,
especialmente o Programa Future-se e o Projeto Viva UFRJ, entendidos como
mecanismos de privatização do espaço universitário. Por fim, foram indicadas as
perspectivas metodológicas e o referencial teórico básico que apoia a tese.

2.2. Seminário II

O segundo seminário teve o objetivo de aprofundar alguns aspectos do


caso referência, analisando a paisagem urbana contraditória que se produziu
nos campi da UFRJ nos últimos quinze anos. Identifiquei que esta paisagem
expressa a perversão cada vez mais profunda da função social da universidade
pública através das parcerias público-privadas. Essa análise foi feita com o apoio
de um painel fotográfico, com o objetivo de representar os contrastes da
paisagem pública e privada que disputam o espaço universitário. Em paralelo,
foi elaborada uma linha do tempo, que reunia informações sobre leis, decretos,
políticas públicas, deliberações internas da UFRJ, projetos de expansão e outros
eventos relevantes sobre a transformação do espaço da universidade ao longo
dos últimos 15 anos.

2.3. Seminário III

O terceiro seminário foi focado em uma aproximação com o campo


crítico de estudos sobre os processos de privatização na educação superior
pública no Brasil, através de uma revisão da literatura sobre o tema,
empregando-se a metodologia da “revisão de escopo”. O conteúdo deste terceiro

6
seminário foi dividido em duas partes. Na primeira, apresentei os objetivos, a
metodologia e os resultados preliminares da revisão bibliográfica que venho
elaborando. Na segunda, apresento um esboço inicial da discussão sobre a crise
no financiamento público da educação e sua relação com as disputas de classe
pelo fundo público, a partir do campo crítico de autores delineado por meio desta
mesma revisão de literatura.

2.4. Seminário IV

No ponto atual da tese, a revisão de literatura e os debates sobre a crise


do financiamento que foram suscitados a partir dela ainda não foram plenamente
concluídos. Esta etapa deverá ser complementada futuramente, durante a
preparação do texto que será submetido ao Exame de Qualificação da tese.

No entanto, recentemente percebi a necessidade de aprofundar alguns


aspectos conceituais e históricos relacionados à concepção do espaço
universitário brasileiro, além de aprofundar algumas categorias que, até o
momento, vinham sendo empregadas na pesquisa de forma exploratória e ainda
sem muito rigor. Me refiro especificamente à noção do campus universitário
como uma “tipologia urbana” com características que a particularizam no espaço
urbano brasileiro e também à ideia de que esse espaço foi concebido e
construído seguindo a lógica de um determinado “modelo urbano” cuja
elaboração é tributária direta dos preceitos do urbanismo modernos.

Por esta razão, optei por não dar continuidade à revisão de literatura
que foi iniciada no seminário anterior, interrompendo temporariamente aquela
frente da pesquisa. Neste quarto e último seminário, apresento um esboço da
discussão mais aprofundada a respeito das categorias de tipo e modelo e discuto
a sua aplicabilidade para tratar do espaço universitário brasileiro e suas
particularidades fundiárias, morfológicas e urbanísticas. O objetivo específico
deste debate dentro da tese é investigar em que medida algumas características
da tipologia urbana e do modelo urbano (categorias sob análise) de campus
universitário podem favorecer ou estar relacionadas de algum modo com os
fenômenos recentes de privatização do espaço da universidade pública.

7
3. O ESPAÇO DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA
3.1. O campus universitário como uma tipologia urbana?

Seria oportuno retomar brevemente a forma como venho abordando a


questão do campus universitário como uma tipologia urbana. Essa formulação
tem por base uma comparação com algumas características de uso e ocupação
do solo urbano dos diferentes equipamentos e instalações públicas destinadas
à provisão de direitos sociais, como creches, escolas, postos de saúde, clínicas,
hospitais, centros esportivos, ginásios, piscinas, vilas olímpicas, estádios,
centros de prestação de serviços, terminais, estações de transporte, estações
de tratamento de água e esgoto, caixas d’água, centros de tratamento de
resíduos, equipamentos multiuso, museus, centros culturais, lonas, palcos,
bibliotecas, cemitérios, parques, praças. Enfim, uma miríade de edifícios,
equipamentos, espaços e estruturas associadas a prestação de serviço e acesso
a direitos sociais garantidos pelo Estado.

Dentre essas diversas estruturas urbanas a universidade pública é um


caso singular. Enquanto a grande maioria destes equipamentos tendem a se
dispersar no tecido urbano de modo a estabelecer uma espécie de rede mais ou
menos bem distribuída pelas diversas áreas da cidade, a universidade opera na
lógica inversa, buscando a concentração de suas funções em apenas um ou
alguns poucos locais. Nesses espaços, se constitui um conjunto urbano
edificado com características excepcionais e que, vida de regra destoa do
entorno urbano em que está situado.

Para Gelson Pinto e Esther Buffa (2009), “a história dos diferentes


campus universitários no Brasil, ressalvados alguns aspectos particulares, é
muito semelhante” (p. 47). As universidades públicas quase sempre foram
instaladas em grandes glebas urbanas situadas em regiões periféricas ou
limítrofes da mancha urbana, nas quais os custos de desapropriação ou
aquisição são menores. A forma de ocupação e implantação dos edifícios segue
sempre uma racionalidade definida por processos de planejamento prévio. No
entanto, é comum que os planos não se efetivem em sua totalidade devido a
irregularidade do financiamento do setor, sendo também comum a sobreposição
de diferentes planos correspondente aos diferentes momentos de expansão das
universidades ao longo de sua história (Pinto; Buffa, 2009). Contudo, se

8
analisarmos a situação atual de alguns dos maiores campi, verificamos que
várias dessas glebas originalmente periféricas estão hoje parcial ou inteiramente
englobadas pelo crescimento das cidades (Imagem 1).

Imagem 1: Situação de alguns dos campi universitários brasileiros com relação à mancha urbana: grandes
glebas periféricas, hoje parcial ou totalmente envolvidas pelo tecido urbano. Fonte: Elaborado pelo autor
com imagens do Google Earth e dados da SPU e dos sites das IFES.

Em que pese a inconstância de recursos e o crescimento aos


solavancos, o espaço que as universidades produziram é quase sempre muito
semelhante em vários aspectos. Via de regra, são áreas urbanas extensas e
repletas de amplos espaços livres (embora nem sempre de qualidade),
marcadas pela baixa densidade de construções se comparadas com o entorno,
com edifícios ou conjuntos de edifícios isolados entre si e organizados
espacialmente seguindo algum zoneamento relacionado às áreas do

9
conhecimento (saúde e biológicas, exatas e tecnológicas, humanas e sociais,
artes, etc.). São ainda espaços pouco ou nada integrados ao entorno urbano
imediato, com os quais essas áreas costumam estar ligadas apenas através de
portarias e vias de acesso, sempre por meio rodoviário. São poucos os
equipamentos ou estruturas públicas urbanas que compartilham destas mesmas
características.

Como veremos, há diferenciações de ordem arquitetônica, urbana,


geográfica e histórica que podem particularizar um ou outro aspecto em cada
universidade. Assim como há também diferenciações internas aos campi ou
entre os campi de uma mesma universidade, em decorrência dos já
mencionados planos de expansão sobrepostos. Mas em linhas gerais, essas
características servem para descrever a grande maioria dos campi universitários
brasileiros.

Embora singular do ponto de vista de suas características no espaço


intraurbano das cidades, o fenômeno do campus público é amplamente
generalizado e se faz presente em praticamente todas as cidades de médio e
grande porte do país. Se considerarmos que os momentos de mais intensa
expansão dos espaços universitários quase sempre tenham coincidido com os
períodos de mais intensa urbanização no país, isso nos permite inclusive supor
que o campus universitário seja um elemento constitutivo e estruturante do
processo de urbanização em boa parte das cidades brasileiras.

Atualmente, o sistema de ensino superior público brasileiro abrange 155


Instituições de Ensino Superior (IES) públicas, entre universidades e institutos
federais e universidades estaduais, regionais ou municipais1. Essas 155 IES
estão sediadas em 90 munícipios do país. No entanto, é comum que várias
dessas instituições possuam campi em outras cidades além da sede. Nez e Silva
(2015) destacam que o modelo de universidade multicampi já havia se
consolidado historicamente entre as universidades estaduais e, mais
recentemente, se expandiu ainda mais ao ser adotado como um dos modelos de
expansão efetivados pelo REUNI. A Universidade Federal Fluminense, por
exemplo, além da sede em Niterói, possui campi em outros 14 municípios do

1 Número de IES públicas cadastradas no Sistema e-MEC em 22/05/2022.

10
estado do Rio de Janeiro. Já a Universidade Estadual Paulista (Unesp), embora
sediada na capital São Paulo, tem campi em outros 23 municípios do interior.

O fato é que, considerada a dimensão do sistema de ensino superior


público, sua generalização como elemento urbano das cidades de médio e
grande porte e as características fundiárias e morfológicas desses espaços,
estamos diante de um fenômeno sem paralelo nas cidades brasileiras em termos
de patrimônio imobiliário estatal, dada extensão de terras urbanas e o conjunto
edificado do complexo universitário público brasileiro.

É claro que nem todos esses campi apresentam as mesmas


características típicas que mencionamos. Em alguns casos, os campi do interior
consistem em meros postos avançados instalados em edifícios cedidos ou
alugados, ou mesmo em containers, e não conformam a espacialidade urbana
de um campus. Considerando a variabilidade dos contextos urbanos e do porte
das IES, é possível mesmo considerarmos de saída a hipótese de que não
estamos apenas tratando do campus como um tipo único, mas como um
conjunto de tipos com algumas variações entre si.

Portanto, o campus universitário é uma forma de ocupação do espaço


urbano presente na maior parte das cidades grandes e médias do Brasil e que
se distingue do meio urbano em que está situada por apresentar densidade de
ocupação diferente do entorno, ruptura com o tecido existente, edificações
isoladas ou agrupadas em conjuntos, zoneamento e planejamento rígidos, e
acessos rodoviários pontuais. Tendo em mente essas características do campus
universitário, passaremos a analisar a os conceitos de tipo e modelo e sua
utilização no campo da arquitetura e do urbanismo.

3.2. Sobre as noções de tipo e modelo em arquitetura

As noções de tipo, tipologia e modelo são vastamente empregadas no


campo da arquitetura. No entanto, não se tratam de termos nativos do campo,
menos ainda de conceitos homogêneos. As formulações e usos são muito
variadas e a produção teórica sobre essas categorias é extensa. Meu intuito aqui
não é, de forma alguma, percorrer todas essas diferentes abordagens. Pretendo
apenas apresentar de forma resumida alguns dos principais autores e definições

11
consideradas canônicas para, em seguida, enfocar a dimensão da tipologia
como uma ferramenta analítica para o estudo urbano, diferenciar as noções de
tipo e modelo e, finalmente, analisar a aplicabilidade destes conceitos para o
estudo dos campi universitários. Para isso, adoto como referencial a leitura sobre
tipologias proposta por Phillipe Panerai em Análise Urbana (2006).

As primeiras e mais clássicas formulações sobre a noção de tipo


aplicada à arquitetura são as de Quatremère de Quincy e de Jean-Nicolas-Louis
Durand. A compreensão de ambas é importante pois demonstram duas
maneiras distintas mas não antagônicas de compreender a ideia de tipo.

Panerai (2006) aponta que, embora originalmente o termo tipo tenha sido
empregado para designar a reprodução por meio do caractere tipográfico (túpos,
do grego, remete à impressão feita pela batida do caractere), a palavra acumulou
novas acepções com o desenvolvimento das ciências no contexto do Iluminsmo
e da Revolução Industrial, muito associada a ideia de classificação e
agrupamento de objetos ou seres vivos com características comuns entre si, isto
é, à uma taxonomia. O tipo passa a ser uma redução das características do
objeto analisado a um mínimo que permita ao observador compará-la e
classifica-la em meio a um vasto universo de objetos e explicar as características
que lhe distinguem com alguma economia.

Não por acaso, uma das primeiras conceituações no campo da


arquitetura foi a de Quatremère de Quincy, arquiteto francês ligado diretamente
ao movimento enciclopedista. A definição de tipo que apresenta em seu
Dicionário Histórico da Arquitetura é vastamente abordada na literatura e
distingue o modelo, esse sim voltado à repetição, do tipo, entendido como uma
espécie de conteúdo implícito, princípio formador a partir do qual podem se
desenvolver obras distintas:

A palavra tipo representa menos a imagem de uma coisa a ser copiada


ou imitada completamente do que a ideia de um elemento que deve
servir de regra para o modelo. (...) O modelo (...) é um objeto que deve
se repetir tal como é; o tipo, ao contrário, é um objeto a partir do qual
se pode conceber obras que se assemelham entre si. Tudo é preciso

12
e determinado no modelo; tudo é mais ou menos vago no tipo.
(Quatremère de Quincy, 1932, p. 629, tradução do autor2).

Tourinho (2006) aponta que Quincy tem uma visão metafísica do tipo
como uma espécie de princípio fundamental do objeto arquitetônico associado à
uma suposta racionalidade da natureza. Portanto, essa visão estaria diretamente
ligada ao que Vidler (2006) chamou de “primeira tipologia”, simbolizada na
cabana primitiva de Laugier e na ideia de que “as formas primárias da geometria
preferidas para a combinação dos elementos tipológicos expressavam a forma
profunda da natureza subjacente à sua aparência exterior” (Vidler, 2006, p. 286).

Já Durand não elaborou propriamente um conceito acabado de tipologia,


como fez Quatremère de Quincy, nem estava interessado nos princípios
metafísicos da forma arquitetônica. Segundo Panerai (2006), a metodologia de
Durand está diretamente ligada ao objetivo de organizar e tornar mais eficiente
a produção de edifícios públicos, de representações do Estado-nação
centralizado pós revolução francesa que, naquele contexto, buscava se
consolidar e produzir suas representações institucionais, boa parte delas
espacialmente manifestas em edifícios do Estado. Portanto, a ideia de Durand
de “tipos operativos” e de uma “tipologia generativa” está ligada a esse princípio
de reunir e classificar os elementos principais numa espécie de "manual" para
produzir os edifícios dos variados programas que a sociedade moderna passava
a demandar.

Embora não produza propriamente uma conceituação dos termos, é


possível extrair uma noção de tipo e tipologia a partir do procedimento
classificatório metódico e rigoroso que Durand elaborou. Ele mesmo define este
procedimento classificatório da seguinte forma:

Consideramos que, destacando dos trezentos volumes dos quais


acabamos de falar apenas os objetos essenciais de se conhecer, e os
reunindo em um único volume (...), estaríamos oferecendo aos artistas
em geral, e aos estudantes da Escola Politécnica em particular, um
quadro completo e pouco custoso da arquitetura, um quadro que eles
pudessem percorrer em pouco tempo, examinar sem dificuldades,

2 Do original: “Le mot type présente moins l'image d'une chose à copier ou à imiter
complètement, que l'idée d'un élément qui doit lui-même servir de règle au modèle. (...) Le
modèle, entendu dans l'exécution pratique de l'art, est um objet qu'on doit répéter tel qu'il est; le
type est, au contraire, un objet d'après lequel chacun peut concevoir des ouvrages qui ne se
ressembleroieut pas entre eux. Tout est précis et donné dans le modèle; tout est plus ou moins
vague dans le type.”

13
estudar com fruição, sobretudo se classificássemos os edifícios e os
monumentos por gênero, se os agrupássemos segundo seus graus de
analogia, se os submetêssemos à mesma escala, e foi o que fizemos.
(Durand, 1802, p. 100, tradução do autor3)
O procedimento comparativo e analítico de Durand fica evidente nas
pranchas de seu Précis de Leçons d’Architecture, de 1802. A compilação das
diferentes possibilidades compositivas dos edifícios, apresentados de acordo
com a sua função, e nas suas variações decorrentes da disposição dos seus
elementos: variações no modelo seguindo o mesmo “tipo operativo”. Para
Panerai (2006), “tal maneira de conceber a tipologia tenta penetrar na lógica do
projeto e explicitar, a posteriori, os mecanismos da concepção”. Portanto, para
além da dimensão operativa fundamental, o que fica evidente no estudo
tipológico de Durand é também o uso da tipologia como ferramenta analítica. E
esse aspecto é o que me parece essencial e merece ser aprofundado.

Outro autor que trabalha a dimensão analítica da noção de tipologia é o


historiador de arte inglês Rudolph Wittkower, em seu Architectural Principles in
the Age of Humanism (1971). Assim como Durand, Wittkower não elabora uma
teoria ou conceito sobre tipo ou tipologia, mas sim um procedimento analítico
que emprega em seus estudos sobre as villas de Andrea Palladio. No entanto,
sua abordagem é bastante distinta da ideia de um tipo “operativo” proposta por
Durand. O interesse de Wittkower era tentar identificar os preceitos universais
da arquitetura através do estudo das obras do renascimento italiano. Nesse
sentido, ele está muito mais próximo da dimensão metafísica de Quatremère de
Quincy.

Por sua aparente simplicidade e economia de meios nos parece didática


a forma como ele aborda a questão. A partir de diagramas simplificados e
esquemáticos das plantas de onze das villas projetadas por Palladio, Wittkower
dispõe, em cada uma delas, os mesmos poucos elementos básicos: os principais
eixos da construção, a distribuição interna dos ambientes e a posição das

3Do original: “Nous avons pensé que, si détachant des trois cent volumes dont nous venons de
parler les seuls objets qui sont essentiels à connaitre, nous les rassemblions dans un seul
volume d'un prix tout au plus égal à celui d'un ouvrage ordinaire d'Architecture, ce serait ofïrir
aux Artisfes en général, et aux élèves de l'Ecole polytechnique en particulier, um tableau
complet et peu coûteux de l'Architecture, un tableau qu'ils pourraient parcourir en peu de temps,
examiner sans peine, étudier avec fruit , sur-tout si l'on classait les édifices et les monumens
par genres; si on les rapprochait selon leur degré d'analogie; si on les assujétissait de plus à
une même échelle, et c'est ce que nous avons entrepris de faire.”

14
circulações verticais. Estes diagramas já são, eles mesmos, abstrações das
plantas dos edifícios. Da análise desses onze diagramas, Wittkower produz um
décimo segundo que não corresponde, ele mesmo, a nenhuma das villas de
Palladio, mas que representa um padrão geométrico de composição que é
comum a todas elas (Imagem 2). É uma abstração das abstrações anteriores,
uma redução dos objetos a uma espécie de mínimo denominador comum. É,
essencialmente, um tipo.

Imagem 2: O estudo de Wittkower sobre a tipologia das villas de


Andrea Paladio: o tipo como uma abstração. Fonte: Wittkower (1971).

Interessa pouco aqui as intenções de Wittkower com o estudo das villas


paladianas. O foco é a operação analítica em si que, expressa no diagrama, se
torna didática para compreender que um tipo é fundamentalmente uma
elaboração mental resultado de sucessivas abstrações dos elementos
constitutivos de um conjunto de objetos.

No século XX, a noção de tipo como resultado de um procedimento


classificatório vai se radicalizar para uma redução e abstração extrema. Para
Vidler (2006), essa “segunda tipologia”, resultante da utopia industrial moderna

15
da produção em massa remetia aos princípios de uma nova “natureza”
descoberta: a natureza da máquina. De classificação, passamos à
universalização: um tipo único, reprodutível em série e em larga escala. Le
Corbusier é quem melhor sintetiza essa ideia:

O tipo físico (o corpo humano) é único, padronizado, variando entre


limites suficientemente generalizado para que seja possível
estabelecer um equipamento estandardizado, tipo e único, que lhe
convém perfeitamente (vagão, automóvel, cama, cadeira, poltrona,
copo, garrafa, etc.). Seguindo as mesmas regras, suficientemente
gerais, estabeleceremos para esse tipo físico um equipamento de
habitação estandardizado. (Le Corbusier apud Panerai, 2006, p. 118)
Para Panerai, a “tipificação extrema” proposta pelo movimento moderno
e a radicalização do tipo único da sociedade industrial faz o tipo se tornar
“standard”. Nessa ótica, podemos considerar que a distinção originalmente feita
por Quatremère de Quincy entre tipo e modelo perde o sentido e as categorias
se fundem ou, no mínimo, se confundem. Sob o movimento moderno, o tipo
passa a condição de um "modelo particular proposto para a reprodução"
(Panerai, 2006, p. 119).

Vale dizer que é precisamente este paradigma do tipo universal que vai
conceber originalmente a espacialidade da universidade brasileira. Como
veremos adiante, na sua origem, a cidade universitária é o novo tipo-modelo
proposto pelos arquitetos modernos para uma sociedade que, nas décadas de
20 e 30, começava a pensar as suas primeiras instituições universitárias.

O modernismo tratou da cidade em sua totalidade espacial. Ao negar


a cidade tradicional, impôs – baseado nas proposições dos
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs), em
especial na Carta de Atenas – um “tipo ideal” de cidade, cuja síntese
mais acabada se encontra na Ville Radieuse, de Le Corbusier. Esse
“tipo” se caracteriza, dentre outros: pela rigidez do zoneamento das
funções e da hierarquia viária; pela segregação de fluxos (veículos x
pedestres); pela eliminação dos lotes individuais e a liberação do solo
dos edifícios; e pela implantação de vastas áreas de bosques nos
interstícios dos edifícios. (Tourinho, 2014, p. 146)
Com a crise do movimento moderno e seu urbanismo totalizante, boa
parte da crítica que começou a ser elaborada a partir das décadas de 50 e 60 irá
retomar o conceito de tipologia, voltado agora para em resgate da cidade
tradicional e seu tecido em contraposição à cidade moderna. Em boa medida, os
críticos do modernismo irão reinterpretar a análise tipológica, voltada mais para

16
a análise da morfologia da cidade e do tecido urbano do que para o objeto
arquitetônico isolado. O edifício passa a ser um dos elementos da análise, que
abarca um conjunto mais amplo de variáveis determinantes da forma urbana.
Para Panerai (2006), o que se dá é uma ruptura com a escala tipológica original
em que a unidade de análise e intervenção passa do lote e da casa para o
quarteirão e o loteamento. Esses estudos sobre tipologia e morfologia urbana
terão grande relevância entre arquitetos italianos, como Saverio Muratori, Carlo
Aymonino e Aldo Rossi, por exemplo.

Vidler (2006) enxerga esse momento como uma ruptura com as duas
tipologias tradicionais. Se os paradigmas anteriores buscavam uma legitimação
da arquitetura por uma ordem natural situada fora da própria arquitetura – seja a
da natureza em si, seja a da máquina – nessa “terceira tipologia” a cidade e sua
própria estrutura física é a fonte fundamental: “a cidade é em si e por si uma
nova tipologia” (Vidler, 2006, p. 286).

Contraditoriamente, nessa perspectiva em que a cidade é colocada


como o objeto da análise tipológica, rompe-se com a ideia de totalidade, tão
central para o urbanismo moderno. A cidade pós-moderna emerge como um
novo paradigma e a noção de tipo retoma centralidade como instrumento de
análise e operação sobre uma cidade que se revela, inescapavelmente,
complexa, contraditória e, sobretudo, fragmentada. Assim, “a tipologia urbana se
tornou a tipologia dos fragmentos do espaço urbano, fragmentos esses cada vez
mais desarticulados entre si e de menor dimensão e menos representativos da
totalidade urbana” (Tourinho, 2014, p. 148).

No entanto, é curioso observar que, via de regra, o urbanismo moderno


também produziu seu urbanismo da totalidade apenas aos fragmentos,
produzindo uma espécie de colagem de tecidos, muitas vezes desarticuladas
entre si. Como veremos, os campi universitários são ótimos exemplos dessa
contradição da totalidade moderna produzida aos fragmentos.

Considerando as inúmeras metamorfoses das noções de tipo e modelo


no pensamento urbano, é preciso definir um determinado balizador para o uso
que pretendemos fazer desta categoria. Nesse sentido, parece adequada a
definição de tipo e tipologia formulada por Panerai (2006), mais aberta e focada

17
na dimensão da análise tipológica como ferramenta para análise urbana e estudo
dos fenômenos urbanos. Para ele:

O tipo é o conjunto de caracteres organizados em um todo,


constituindo um instrumento de conhecimento por meio da "abstração
racional" e permitindo distinguir categorias de objetos ou fatos. Dito de
outro modo, um tipo é um objeto abstrato, construído pela análise, que
reúne as propriedades essenciais de uma categoria de objetos reais e
permite explicá-las com economia. A análise tipológica pode ser
aplicada a conjuntos de objetos muito diferentes em uma mesma
cidade. Ela permite mensurar como cada objeto concreto é produzido
por variações do tipo, eventualmente pelo cruzamento de dois ou mais
tipos. E, tendo sido aplicada no ordenamento do conjunto, permite
compreender a lógica das variações, as leis de passagem de um tipo
a outro; em resumo, permite estabelecer uma tipologia.
Tomando essa definição como referencial, poderíamos nos perguntar
qual seria o lugar do modelo. Nesse caso, me parece razoável considerar que o
tipo em arquitetura, diferente da concepção original tipográfica como aquilo que
serve à repetição, pode ser considerado como uma abstração a posteriori, a
partir de uma operação analítica de objetos concretos e da redução de seus
elementos a um mínimo essencial, de tal modo que seja possível explicá-los e
distingui-los de outros objetos com notável economia de meios. O modelo, por
outro lado é uma formulação idealizada a priori, que não tem ou não precisa ter
relação com objetos concretos, mas sim como uma proposição ideal destinada
(ou não) a se materializar. Em suma, “o tipo se constrói” (Panerai, 2006, p. 135),
isto é, se parte da análise do real para construir um objeto abstrato. O modelo,
por outro lado, opera na lógica inversa: parte-se de uma idealização abstrata, da
construção mental da obra, que pode ou não vir a se concretizar.

3.3. O primeiro modelo: a cidade universitária modernista

A concepção do campus universitário brasileiro é, com razão, atribuída


ao movimento moderno, cuja herança é facilmente percebida na espacialidade
de quase todos os campi.do país. Entretanto, há semelhanças e diferenças entre
o modelo originalmente concebido nos primeiros projetos modernos da década
de 30, 40 e 50 para as primeiras cidades universitárias brasileiras, sobretudo da
Universidade do Brasil, e o modelo urbano de campus integrado que surge a
partir da década de 70, proposto pelo consultor estadunidense Rudolph Atcon

18
no contexto da reforma e expansão do sistema universitário conduzida pela
ditadura militar.

As primeiras universidades brasileiras surgem apenas na década de 20,


ainda como instituições frágeis e sem unidade. A consolidação de um modelo
universitário só vai ocorrer a partir da década seguinte. O contexto político do
Brasil da década de 1930, é marcado por uma escalada do autoritarismo e da
centralização de poderes do Estado na figura do presidente Getúlio Vargas, o
que culminará no golpe do Estado Novo em 1937. A Era Vargas caracterizou-se
como um momento político contraditório de cerceamento de direitos civis e
políticos, mas de relativo avanço na institucionalização de direitos sociais,
especialmente nas esferas do trabalho, da saúde e da educação.

Na área da educação, teve papel central a figura do ministro Gustavo


Capanema. Em seu ministério, a ideia de uma instituição universitária
centralizada e vinculada ao Estado ganha fôlego até então inédito. O plano de
criação de uma universidade “modelar” começa a se concretizar em 1937 com a
renomeação da Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920, para
Universidade do Brasil, composta por faculdades e escolas chamadas de
“nacionais” (Cunha, 2000, p. 164).

Para dar forma, lugar e espacialidade à nova instituição e às aspirações


políticas subjacentes, Capanema recorreu à contratação do arquiteto italiano
Marcelo Piacentini, autor do projeto para a Universidade de Roma e um dos
grandes colaboradores do regime fascista de Benito Mussolini, ao qual o governo
de Vargas buscava se alinhar. A encomenda feita a Piacentini indicava como
local para a implantação da nova cidade universitária a área da Quinta da Boa
Vista, entre os bairros de São Cristóvão e Tijuca (Alberto, 2003).

A contratação de Piacentini despertou reações dentre as quais a do


então jovem arquiteto Lucio Costa que, na ocasião, tinha grande proximidade
com o ministro Capanema e coordenava a equipe encarregada do projeto da
nova sede do ministério. Costa fez oposição ao italiano e organizou, em 1936, a
vinda do arquiteto franco-suíço Le Corbusier ao Brasil para colaborar nos
projetos da sede do ministério e da cidade universitária (Alberto, 2003).

19
Esta ocasião foi a segunda e última visita do arquiteto franco-suíço ao
Brasil. A primeira, em 1929, teve poucas consequências além dos célebres
croquis da cidade e da proposta do utópico edifício-viaduto. Contudo, esta
segunda ocasião, embora também bastante breve, foi decisiva para marcar o
impacto que Le Corbusier teve e tem no pensamento moderno brasileira (Mello
Junior, 1988).

Quanto aos projetos para a cidade universitária, o desenho de Piacentini


propunha grandes avenidas e praças conformando “espaços monumentais”
delimitados por imponentes edifícios de forte inspiração clássica com pórticos e
colunatas em uma composição marcada por forte simbolismo e por rígida
simetria (Imagem 3), bem ao gosto do fascismo italiano e aos moldes de seu
projeto anterior para a Universidade de Roma.

Imagem 3: Perspectiva do projeto de Piacentini para a Cidade Universitária da Universidade do Brasil na


região da Quinta da Boa Vista (1936-1938). Fonte: ÑPD-FAU.

Evidentemente, o projeto de Le Corbusier se contrapunha radicalmente:


ignorando eixos do tecido urbano existente, a composição se apoiava em uma
grelha ortogonal abstrata que organiza a disposição dos conjuntos de edifícios
isolados, sendo absolutamente predominante os espaços livres, enquanto os
edifícios são concebidos obedecendo aos cinco pontos da arquitetura moderna

20
corbusiana (Imagem 4), inclusive reproduzindo no conjunto diferentes projetos
não construídos de Le Corbusier, numa espécie de colagem de “modelos”.

A cidade universitária de Le Corbusier era uma composição de várias


proposições urbanísticas e tipologias edilícias anteriores: o
Mundaneum e o Museu Mundial (1929), o Museu de Arte
Contemporânea de Paris (1931), o Palácio dos Sovietes de Moscou
(1931), o Palácio da Liga das Nações em Genebra (1931) e a Ville
Radieuse (1935). A estratégia de colagens ou variações arquitetônico-
urbanísticas de temas desenvolvidos anteriormente fazia parte da
prática projetual corbusiana dos anos 1930, como se pode observar
nos planos de urbanização da margem esquerda do rio Escaut (1933),
em Antuérpia, e da urbanização de Nemours (1933) ou na própria
cidade universitária do Rio de Janeiro. (Segawa, 2008, p. 40)
Com a rejeição do projeto pela Comissão, Lucio Costa elaborara uma
terceira proposta para o terreno da Quinta, seguindo os mesmos princípios
orientadores do plano de Corbusier (Imagem 5). Costa também produz o mesmo
procedimento de colagem, com referências diretas à obra de Le Corbusier, como
no caso da Reitoria e da Aula Magna, uma réplica do projeto do arquiteto franco-
suíço para o Palácio dos Sovietes, em Moscou (Comas, 2015).

Imagem 4: O plano de Le Corbusier para a Cidade Universitária da Universidade do Brasil na região da


Quinta da Boa Vista (1936). Fonte: Segawa (2008).

No entanto, nenhum dos três planos para a cidade universitária na


Quinta da Boa Vista se concretizou e, mais de uma década depois, nova
comissão foi estabelecida. Dessa vez, o projeto ficou a cargo do arquiteto Jorge
Machado Moreira que, chefiando o Escritório Técnico da Universidade do Brasil
(ETUB), traçaria o plano de ocupação da nova cidade universitária situada na
imensa ilha artificial formada por grandes aterros realizados na Baía de
Guanabara na década de 1940 (Pinto; Buffa, 2009). Moreira havia integrado o

21
grupo responsável pelo projeto da sede do Ministério da Educação e Saúde e
compartilhava das mesmas ideias de Costa e Corbusier.

Imagem 5: O plano de Lúcio Costa para a Cidade Universitária da Universidade do Brasil na região da
Quinta da Boa Vista (1936). Fonte: Segawa (2008)

Embora as propostas de Costa e Corbusier para a cidade universitária


tenham sido rejeitadas pela Comissão, o modelo defendido por ambos passou a
ter cada vez mais influência sobre a ideia de modernidade das elites burguesas
do país e sobre o pensamento urbano brasileiro. A predominância deste modelo
já ficava evidente no próprio projeto da Ilhada Cidade Universitária desenvolvido
pelo ETUB, sob a coordenação de Moreira.

A própria ideia de cidade universitária que se estabeleceu no Brasil a


partir daí carrega os genes do projeto modernista brasileiro: segregação de usos,
com a instalação das universidades em grandes áreas relativamente isoladas ou
desconectadas da cidade “tradicional”, circulação por eixos rodoviários,
implantação de grandes edifícios isolados uns dos outros e agrupados por área
(saúde, tecnológicas, humanas, artes, etc.) seguindo uma setorização espacial
bastante rígida (Figura 5).

Le Corbusier em “Por uma arquitetura” colocava o problema da casa


como um problema a ser respondido pela tecnologia industrial e que, portanto,
deveria ser assim formulado: “a casa é uma máquina de morar” escreveu (Le
Corbusier, 2011). A maneira como o urbanismo moderno brasileiro terminou por
formular o “problema” da universidade foi semelhante. Nessa perspectiva, a
universidade é também uma “máquina de educar”

22
Imagem 6: Primeiro plano do Escritório Técnico da Universidade do Brasil
para a Cidade Universitária na Ilha do Fundão (1949). Fonte: Segawa (2008).

Essa lógica purista encontrou na ideia ilha artificial a tabula rasa ideal
para desenvolver livremente os preceitos do urbanismo moderno. Uma grande
extensão de terra delimitada e plana criada “do zero” por volumosos aterros,
conectada à cidade por pontes apenas em pontos específicos e controlados. Em
seu interior, nada para se preocupar além do mais puro exercício da função (e
da forma), que poderia ser levada assim ao seu rendimento máximo, tal como
uma máquina, sem perdas de energia desnecessárias com a profusão de
estímulos e conflitos que a cidade tradicional impõe.

23
Em resumo, o modelo urbano proposto para o espaço da universidade
brasileira pelos arquitetos modernos foi o da cidade universitária, pensada como
uma espécie de cidade autônoma e funcional. Não obstante, esse modelo não
se concretizou na prática do modo estrito tal como foi concebido. Nem mesmo
na Cidade Universitária da UFRJ, um de seus empreendimentos grandiosos,
isso ocorreu plenamente.

Cidade Universitária era, talvez, a aspiração inicial dos primeiros


câmpus instalados no Brasil: uma pequena cidade, apartada daquelas
que poderíamos chamar de regulares. Esse núcleo teria a capacidade
de oferecer ensino, mas também de abrigar centros de pesquisa,
acolher alunos e professores, proporcionar, enfim, todos os serviços
próprios de qualquer cidade. Todavia ,isso não aconteceu. Os serviços
que os câmpus brasileiros oferecem – mesmo um dos maiores, o da
USP – são restritos e deficientes. Os alojamentos para estudantes
disponibilizam poucas vagas e não há moradias para os professores.
Serviços como transportes, só funcionam com regularidade nos dias
úteis e comércios necessários à subsistência são raros. Cinema,
museu e teatro são inexistentes. Os câmpus brasileiros não são
autossuficientes; dependem ainda, e muito, das cidades em que estão
localizados, embora muitas vezes voltem-lhe as costas. O termo
cidade universitária não passa de uma aspiração que nunca se
realizou. (Pinto; Buffa, 2009, p; 46-47)
Na década de 60, especialmente a partir do golpe militar, o projeto da
universidade brasileira começou a passar por uma transformação. A influência
crescente dos Estados Unidos sobre os países da América Latina no contexto
de Guerra Fria deslocou a referência do modelo universitário europeu para o
norte-americano. A Reforma Universitária implementada pelo regime militar a
partir de 1968 teve como foco a “modernização conservadora” e a expansão das
universidades, baseada em um novo modelo formulado com o protagonismo dos
consultores estrangeiros contratados pelos acordos MEC-USAID4, e
concretizado com o financiamento do BID (Cunha, 2000). Esse novo modelo de
universidade propunha um novo tipo de espacialidade para a universidade
brasileira.

4Sobre os acordos de cooperação entre o Ministério da Educação (MEC) e Cultura e a United


States Agency for International Development (USAID), cf. Fávero (1991)

24
3.4. O segundo modelo: o campus integrado

A figura central na formulação deste novo modelo, tanto de universidade


quanto de campus foi o grego naturalizado estadunidense Rudoph Atcon (1921-
1955). Segundo Alberto e Inhan (2016) Atcon tinha uma formação ampla, que ia
de engenharia civil a artes liberais e filosofia das ciências, e atuou boa parte da
sua vida como consultor em universidades latino-americanas. Sua relação com
o Brasil se iniciou em 1952, quando foi convidado por Anísio Teixeira para atuar
na gestão da CAPES, onde permanece por alguns anos. Atcon percorre diversas
universidades do brasil e dos países vizinhos, atuando como consultor. Retorna
ao Brasil em 1965, como consultor da USAID para a área de educação. Entre
1966 e 1968, trabalha também como secretário executivo do Conselho de
Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) (Alberto; Inhan, 2016).

No período entre 1965 e 1970, os trabalhos de Atcon sobre as


universidades brasileiras resultam em duas publicações que produzem grande
influências. Em 1966, publica o documento intitulado “Rumo à reformulação
estrutural da universidade brasileira” que costuma ser referido como “Relatório
Atcon” (Fávero, 1991), que contém sua análise sobre a universidade brasileira e
um conjunto de propostas para sua reformulação, inclusive com várias
considerações sobre as instalações físicas e os espaços universitários. Já em
1970, por encomenda do CRUB, publica o “Manual sobre o Planejamento
Integral do Campus Universitário” este sim um documento diretamente voltado
para a questão do espaço universitário, onde Atcon apresenta um novo modelo
urbano de campus.

Atcon era bastante crítico do modelo de cidade universitária, que


considerava pouco funcional e eficiente, com edifícios monumentais e
perdulários, desconectados entre si e ineficazes para produzir uma real
integração entre as diferentes unidades isoladas que compunham as primeiras
universidades brasileiras. Para ele, a cidade universitária correspondia ao
modelo de “universidade tradicional”, segregada em cátedras e que não passava
de “mera aproximação dos edifícios que abrigam autarquias independentes entre
si” (Atcon, 1970, p. 8). Em contraposição a esse modelo de universidade
fragmentada e de cidade universitária, Atcon propunha o que denominava de

25
“universidade integral” a que corresponderia também uma nova espacialidade: o
“campus integrado” (Atcon, 1970).

A universidade integral é um organismo só e, como tal, necessita de


unidade. Eis o porque de um campus integrado versus os edifícios
isolados da universidade tradicional. Eis o porque, também, do
fracasso das chamadas “cidades universitárias” as quais além de
monumentais, impensadas e anti-funcionais, têm como finalidade
primordial congregar — para efeitos arquitetônicos — numa
determinada área geográfica uma série de escolas
administrativamente independentes, academicamente sôltas e
estruturalmente inconexas entre si. Contra isto, o campus tece um
tecido único, solidamente integrado, maleável e funcional. (Atcon,
1970, p. 12)
Já em seu relatório de 1966, Atcon analisava alguns aspectos sobre as
universidades que havia visitado no Brasil. Nesses relatos, são frequentes as
críticas à arquitetura monumental e ao isolamento entre os edifícios
universitários. Sobre a Cidade Universitária da UFRJ, na ilha do Fundão, por
exemplo, Atcon elogiava o início de uma mudança de paradigma na concepção
arquitetônica e referia-se aos anos anteriores, quando o plano original de Jorge
Machado Moreira fora elaborado e seus primeiros edifícios monumentais foram
construídos, como a “triste história dos últimos vinte anos da Ilha do Fundão”
(Atcon, 1966, p. 74). Seus comentários sobre o modelo de unidades isoladas
entre si e dispersas na cidade também são bastante negativos.

Contra este modelo, Atcon propunha o campus integrado, descrito por


ele na forma de um manual objetivo e direto, estruturado em tópicos suscintos e
numerados que apresentavam definições de conceitos, instruções de
procedimentos e prescrições de planejamento bastante pragmáticas, com
indicações de dimensões ideais, tipologia de edifícios, implantações mais
adequadas, etc. Todo esse conjunto de regras é apoiado por uma série de
diagramas que orientam a forma mais adequada de dispor os diferentes setores,
edifícios e equipamentos da universidade no campus (Imagem 7).

Embora tenha sim importantes diferenças como modelo de cidade


universitária, vários aspectos da proposta de Atcon são comuns a ambos os
modelos. O principal deles é a noção de que o espaço universitário deve se
estabelecer em uma área segregada da cidade “normal”. Se na cidade
universitária essa segregação era garantida pela brutal ruptura com o tecido

26
urbano tradicional e pela baixíssima densidade construtiva, no campus de Atcon
isso era garantido pelo “anel protetor”. Este anel consistia em uma barreira
fundiária não edificada interposta entre o campus e cidade que poderia servir
tanto como “adorno”, embelezamento do campus, ou como potencial para
“inversão” futura, isto é, como estoque de terra mercantilizável. Para Atcon, este
anel tinha a função de “resguardar o campus de indesejáveis vizinhanças e
controlar o seu ambiente acadêmico-científico” (Atcon, 1970, p. 36).

Outro aspecto comum a ambos os modelos é a importância do


zoneamento e o agrupamento dos edifícios por área do conhecimento. No
entanto, no modelo de Atcon esse zoneamento assume um caráter muito mais
rígido, de uma prescrição pré-definida. O manual define o zoneamento do
campus em sete setores: Biomédico (BM); Esportivo (ES), Agropecuário (AP),
Cibernético (CI), Artístico (AR), Tecnológico (TC) e Básico (BA) (Imagem 7) e
estabelece a melhor forma de dispor eles entre si, definindo a posição relativa
de todos dentro do “anel protetor”. Define também a posição dos edifícios que
ele chama de “locais de congregação”: Biblioteca (B), Estádio (E), Casa
Universitária (C), Teatro (T), Hospital (H), Administração Central (A) e a Planta
Física (P), espécie de centro de manutenção e serviços (Imagem 8).

Mas uma das maiores diferenças do campus integrado diz respeito a


tipologia dos edifícios, especialmente os edifícios de aulas, laboratórios e
reuniões, que ele chama de “não específicos”. Em oposição aos edifícios
monumentais e isolados que criticava, Atcon prescrevia a adoção de uma
arquitetura de “pavilhões práticos, flexíveis e modificáveis”, sempre que possível
de baixa altura, com apenas um pavimento, e orientados para a expansão
horizontal. Atcon considerava que os edifícios “não específicos” não deveriam
ser permanentes, facilitando alterações espaciais: “pavilhões simples —
horizontalmente expansíveis e facilmente trocáveis ou até removíveis —
representam a solução para uma instituição em crescimento” (Atcon, 1970, p.
88). No manual, Atcon faz referência a três universidades que, segundo ele, já
estavam construindo os novos edifícios de seus campi de acordo com essa
lógica: UFES, UFPA e UFPB. O projeto da Célula Modular Universitária
(CEMUNI) (Imagem 9) da UFES, talvez seja o que melhor expressa e materializa
a tipologia proposta por Atcon (Inhan; Miranda; Alberto, 2016).

27
Imagem 7: Zoneamento do campus integrado proposto por Atcon: Biomédico (BM);
Esportivo (ES), Agropecuário (AP), Cibernético (CI), Artístico (AR), Tecnológico (TC) e
Básico (BA) envoltos pelo Anel Protetor. Fonte: Atcon (1970).

Imagem 8: Disposição dos edifícios de acordo com o zoneamento do campus integrado


proposto por Atcon: Biblioteca (B), Estádio (E), Casa Universitária (C), Teatro (T), Hospital
(H), Administração Central (A) e a Planta Física (P) e demais edifícios universitários. Fonte:
Atcon (1970).

28
Imagem 9: A Célula Modular Universitária do projeto do Campus da UFE (1968-1969). Fonte: Inhan;
Miranda; Alberto, 2016

Outra diferença importante está na densidade edificada do campus


integrado. Embora a área do terreno que Atcon defina como ideal para o campus
seja bastante extensa (500 hectares), a forma de ocupação é que a distingue.
Os edifícios devem ser concentrados nesse núcleo edificado, com distâncias
próximas de modo a facilitar a integração entre as diferentes áreas. O espaço do
campus deve ser ocupado como um “tecido único, solidamente integrado”. Boa
parte dessa imensa área é destinada ao anel protetor que, embora nos
diagramas pareça de pequenas dimensões, das descrições de Atcon podemos
depreender que se trata na verdade de um grande volume de terra que deve ser
mantido desocupado para expansão futura ou para venda, como veremos.

Houve casos de universidades cujos campi foram planejados e


implementados seguindo o modelo preconizado por Atcon, inclusive contando
com sua participação direta como consultor dos planos. É o caso da já
mencionada Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) (Inhan; Miranda;
Alberto, 2016) e da Universidades Estadual de Campinas (Unicamp) (Pinto;
Buffa, 2009). O projeto de Jaime Lerner para o campus da Universidade Estadual
de Maringá (UEM), embora não tenha tido a participação direta de Atcon,
também teve grande influência do seu modelo (Amarães; Silva, 2023).

No entanto, assim como o modelo de cidade universitária dos urbanistas


modernos, o modelo de Atcon também não se realizou plenamente. Pelo menos,
não como concebia o autor, que considerava sua proposta um modelo único,

29
ideal e pronto para ser reproduzido com o mínimo de ajustes necessários a cada
caso concreto. Não obstante, algumas das concepções e fundamentos
propostos por Atcon foram definitivamente incorporadas e adotadas como
premissas para o planejamento de campus universitário no Brasil a partir da
década de 1970.

Dessa forma, o que se produziu de fato foi uma espécie de “ajuste” do


modelo considerado extravagante e perdulário da cidade universitária moderna
ao campus integrado, mais compacto, enxuto e “eficiente”. O termo ajuste aqui
não é por acaso. Várias das premissas defendidas por Atcon parecem antecipar
os dogmas centrais da doutrina do neoliberalismo que, naquele contexto, estava
ainda sendo gestada. Pelo menos no que diz respeito a sua visão de
universidade, poderíamos considerar Atcon como um neoliberal avant la lettre,

O resultado desse processo é que o modelo que de fato se universalizou


com a expansão das universidades públicas nas décadas de 1970 e 1980 não
foi nem o da cidade universitária, nem o do campus integrado, mas algo entre os
dois. Esse duplo modelo, ou modelo híbrido, produziu materializações diferentes
que se concretizaram seguindo variações que, dependendo de cada caso,
tendem a reforçar um ou outro modelo.

3.5. Esboço de uma tipologia do campus universitário

Para analisar e classificar as diferentes variações de campi universitário


que se produziram no Brasil a partir desse duplo modelo, decidi esboçar um
método de análise tipológica dos diferentes espaços universitários brasileiros.
Nesse primeiro momento, foram selecionados poucos critérios bem definidos,
que pudessem reduzir a complexidade das várias implantações e dos campi em
seus contextos urbanos, geográficos e morfológicos a um mínimo de elementos
que permitisse lidar com o volume de objetos.

Os critérios adotados foram:

• Extensão da área do campus (extensa ou compacta)


• Densidade edificada do campus (alta ou baixa)
• Densidade edificada do entorno (alta ou baixa)

30
• Aspecto do tecido urbano (contínuo, descontínuo ou ausente)
• Posição do campus em relação à mancha urbana (envolvido,
limítrofe ou isolado)

Com base nesses critérios, analisei um conjunto de 24 campi


universitários que pareciam responder aos critérios adotados de forma mais
evidente. Para analisar os campi de acordo com esses critérios, considerei que
a ferramenta ideal seria o mapa de tipo figura e fundo, delimitando um recorte
que apresentasse, além do campus em si, parte considerável de seu entorno
imediato. Nesses mapas, as edificações pertencentes à universidade foram
destacadas em azul, permitindo a identificação dos campi sem a necessidade de
representar sua delimitação. A partir deste primeiro esboço da análise, os campi
foram classificados em quatro diferentes tipos urbanos preliminares (Quadro 1).

A hipótese que emerge como uma sugestão a partir deste estudo da


tipologia dos campi universitários é a de que os diferentes tipos de campus estão
sujeitos, pelas particularidades de suas próprias características fundiárias e
morfológicas, a diferentes estratégias de privatização. Essa hipótese é ainda
muito inicial e será apenas indicada aqui como possibilidade para o
desenvolvimento futuro da tese.

No caso dos campi tipo 1, por exemplo, é comum que universidades


possuam mais de um campus na mesma cidade, sendo um deles deste tipo,
localizado quase sempre em áreas mais centrais, e um ou mais campi mais
periféricos do tipo 2, 3 ou 4. Essa configuração é, quase sempre, resultado de
um processo de transferência das unidades acadêmicas para o campus que não
se concluiu completamente. Nesses casos, a possibilidade latente da efetivação
dessa transferência sempre levanta a questão da destinação dos espaços no
campus tipo 1 após a sua desocupação.

Esse era precisamente o caso, por exemplo, da primeira versão do


Projeto Viva UFRJ, apresentado no primeiro seminário de tese e que,
resumidamente, propunha a transferência das unidades do Campus da Praia
Vermelha para a Cidade Universitária e a cessão de 75% da área do campus
desocupado para a construção de empreendimentos imobiliários privados.

31
QUADRO 1-TI
POLOGI
ADO CAMPUSUNI
VERSI
TÁRI
O

TI
PO 1

Campuscompac t
oedealtadensi
dade
Ent
ornodealt
adens i
dade
Teci
dour
banoc ont
ínuo
Campusenvol
vidopelaci
dade

UFRJ+UNI RIO UFC UFG UFRGS+UFCSPA UERJ


CampiPr
aiaVermelha CampiPor
angabuçu+Benf
ica CampusUni
ver
sit
ári
o CampiCent
ro CampusMar
acanã+HUPE
Ri
odeJaneiro(RJ) For
tal
eza(
CE) Goi
âni
a(GO) Por
toAl
egre(RS) Ri
odeJanei
ro(RJ)

TI
PO 2

Campusext
ensoedebai xadens
idade
Ent
ornodealt
adens i
dade
Teci
dour
banodes cont
ínuo
Campusenvol
vidopelacidade

USP UFMG UFPR UFAM UFBA UFC UEM UFSC


Ci
dadeUniversi
tár
ia CampusPampul
ha CampusPol
i
técni
co CampusUni
ver
sit
ári
o CampusCanel
a+Feder
ação CampusdoPi
ci CampusSede CampusTri
ndade
SaoPaul
o( SP) Bel
oHori
zont
e(MG) Cur
it
iba(
PR) Manaus(
AM) Sal
vador(
BA) For
tal
eza(
CE) Mari
ngá(
PR) Fl
ori
anópol
i
s(SC)

TI
PO 3

Campusex t
ensoedebai xadensi
dade
Entornodealtadensi
dade
Teci
dour banodescont
ínuo
Campusnol i
mit
edac i
dade
(Associ
adoounãoaumabar r
eir
a
oulimit
egeográfi
co)

UFES UFPA+UFRA UNICAMP UFRJ UFPI UFRGS


CampusGoi
abei
ras CampiGuamá CampusZefer
inoVaz I
lhadaCidadeUni
ver
sit
ári
a(Fundão) CampusdoSocopo CampusdoVal
e
Vi
tór
ia(
ES) Bel
ém (
PA) Campinas(
SP) RiodeJanei
ro(
RJ) Ter
esi
na(PI
) Por
toAl
egr
e(RS)

TI
PO 4

Campusex tensoedebaixadensi
dade
Ent
ornodebai xí
ssimadensi
dade
ourural
Teci
dourbanoaus ent
e
Campusi s
olado

UFRRJ UFSCar UFPel UNIR UNIVASF


CampusSer
opédi
ca CampusSãoCar
los CampusCapãodoLeão CampusPor
toVel
ho CampusAgrár
ias Fonte:El
abor
adopeloaut
orcom i
magensdoGoogl
eMaps
Ser
opédi
ca(
RJ) SãoCarl
os(
SP) CapãodoLeão(
RS) Por
toVel
ho(RO) Pet
rol
ina(
PE) Sty
li
ngWizardedadosdossi
tesdasI
FESs obr
eoscampi
.
No entanto, o Relatório Atcon revela que essa proposta não é
exatamente uma novidade. Atcon relata que, durante sua visita à UFRJ em 1965,
o Conselho Universitário discutia uma proposta (o “documento Kafuri”) de
concessão dos imóveis para uma fundação privada após a conclusão da
transferência para o Fundão.

O "documento Kafuri" dá um impulso real, finalmente, à utilização da


Ilha do Fundão, porque prevê a construção rápida de uma completa
cidade universitária, com empréstimos de mais de vinte milhões de
dólares, além dos recursos nacionais disponíveis, para que se possa
transferir a universidade para o novo sítio até o fim da corrente década.
Prevê também, segundo as Diretrizes, a criação de uma fundação
privada para o usufruto do patrimônio que a UFRJ possui na cidade,
uma vez que se liberem os prédios no momento ainda ocupados, a fim
de que se constitua este patrimônio numa fonte de rendas privadas,
em suplementação dos recursos federais, assegurando assim sua
efetiva independência financeira.
Considero acertadas tais premissas e não compreendo porque a
versão final deste documento não foi ainda aprovada pelas
autoridades competentes, nem divulgada pela universidade com o
devido orgulho, e a satisfação que merece o caso, para mostrar a
outras universidades brasileiras como se pode evoluir para um
planejamento integral e procedente. (Atcon, 1966, p.73, grifo do autor)

Já no caso dos campi tipo 2, 3 e 4, a presença de grandes áreas ainda


desocupadas tende a produzir uma pressão para a transformação desse estoque
de terras em “ativo imobiliário”, seja por meio de venda direta ou do
arrendamento de espaços para empreendimentos privados. Também é comum
o estabelecimento de parceria público privadas entre a universidade e empresas
privadas para a ocupação dessas áreas, com a construção de centros de
pesquisas ou dos chamados Parques Técnológicos, cada vez mais frequentes
nas universidades brasileiras.

Voltando a Atcon (1970), essa possibilidade também já era colocada de


maneira explícita em sua proposta. Ele preconizava que uma universidade
integral deveria dispor de uma área de 500 hectares adquirida, se possível, de
uma única vez. As razões que justificariam uma área tão grande seriam a
garantia das “necessidades presentes” imediatas, as “necessidades futuras” de
expansão da universidade, o “controle ambiental” garantido pelo anel protetor e
o potencial de “inversão” futura, nestes termos:

33
B. Razões
(...)
3. Inversão:
É a melhor inversão para o futuro.
a. O mero fato da universidade existir e crescer faz com que a área
inteira se valorize; vantagem esta que deve ser posta a serviço
também da própria universidade e não só dos vizinhos.
b. Se a universidade, no futuro, chega à conclusão de que não precisa
de tôda a terra disponível, seu valor substancial sempre pode ser
transformado em inversões lucrativas:
(1) seja por venda de terrenos como meio de financiamento de
construções ou atividades acadêmico-científicas/ ou
(2) seja pela construção de fontes de renda sobre sua própria terra.
(Atcon, 1970, p. 25)

No caso específico dos tipos 2 e 3, essa pressão tende a ser maior de


acordo com a dinâmica imobiliária das cidades onde estão situadas, podendo
incluir não só empreendimentos privados relacionados com as atividades
universitárias, mas também outros usos com a finalidade única de valorização
imobiliária. Para Atcon (1970), caberia a própria universidade o poder de
“controlar o tipo da vizinhança” pelo poder de determinar ou não a venda de
terrenos a vizinhos “desejáveis” e “indesejáveis” (Atcon, 1970, p. 26).

Investigar essa relação entre os diferentes tipos de campi universitário e


os diferentes processo de privatização a que estes espaços tendem a estar
submetidos me parece um caminho promissor a seguir. Em seu
desenvolvimento, a análise tipológica deverá incorporar outros aspectos,
especialmente no que se refere a tipologia interna dos campi, isto é, a disposição
dos edifícios e suas características principais, por meio da qual será possível
identificar melhor a influência dos dois modelos urbanos aqui analisados.

Essa análise pode permitir sistematizar as diferentes estratégias de


privatização da universidade de acordo com as suas variações na sua
espacialidade. Pode permitir também que sejam estabelecidas conexões entre
os casos referência analisado, sobretudo na UFRJ, e uma dimensão mais ampla,
demonstrando que esses processos não são excepcionais nem se tratam de
casos particulares, mais sim de tendências mais gerais a que a universidade
pública brasileira vem sendo submetida.

34
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTO, K. C. Três Projetos para uma Universidade do Brasil. Dissertação


de Mestrado: PROURB/FAU/UFRJ. Rio de Janeiro, 2003.
ALBERTO, K.; INHAN, G. Rudolph Atcon, entre o educacional e urbanístico. IV
Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo. Porto Alegre: ANPARQ, 2016.
AMARÃES, T.; SILVA, R. Projeto e consolidação do campus sede da
Universidade Estadual de Maringá. Proposições de Jaime Lerner,
influências de Rudolph Atcon e avaliação da comunidade universitária.
Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 273.04, Vitruvius, fev. 2023.
ATCON, R. Rumo à reformulação estrutural da universidade brasileira. Estudo
realizado entre junho e setembro de 1965 para a Diretoria do Ensino
Superior do Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro: MEC, 1966.
ATCON, R. Manual sobre o Planejamento Integral do Campus Universitário.
Florianópolis: CRUB, 1970.
ALBERTO, K. C. Três Projetos para uma Universidade do Brasil. Dissertação
de Mestrado: PROURB/UFRJ. Rio de Janeiro, 2003.
BENSAÏD, D. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito
dos pobres. In: Os despossuídos. São Paulo: Boitempo, 2017.
COMAS, Carlos Eduardo. Leituras sulinas, Lucio Costa sobre arquitetura. In:
Sobre a obra de Lucio Costa. Textos selecionados. Anna Paula Canez e
Samuel Brito, orgs. Porto Alegre: Uniritter, 2015.
CUNHA, Luiz Antônio. Ensino superior e Universidade no Brasil. In: LOPES, E.;
FARIA FILHO, L.; VEIGA, Cynthia (org.). 500 anos de Educação no Brasil.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000, pp. 151-204.
FÁVERO, M. L. A. Da universidade modernizada à universidade
disciplinada: Atcon e Meira Mattos. São Paulo: Cortez/Autores Associados,
1991.
FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro:
EPSJV/Editora UFRJ, 2010.
FRIZZO, G.; SILVEIRA, L. O programa Future-se e o empresariamento da
educação superior. Linhas (Florianópolis), v. 21, n. 46, p. 91–116, 2020.
HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004
INHAN, G.; MIRANDA, C.; ALBERTO, K. Rudolph Atcon e o planejamento do
campus da Universidade Federal do Espírito Santo. Oculum Ensaios, vol.
13, núm. 2, julio-diciembre, 2016, pp. 237|-254
KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 2011.
LEHER, R. Roberto Leher: o orçamento das universidades federais e a
perigosa combinação de neoliberalismo e neofascismo. Esquerda Online,

35
2021. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2021/06/29/roberto-
leher-o-orcamento-das-universidades-federais-e-a-perigosa-combinacao-
de-
MELLO JUNIOR, Donato. Rio de Janeiro: planos, plantas e aparências. Rio de
Janeiro: Galeria de Arte do Centro Empresarial Rio, 1988.
NEZ, E.; SILVA, R. T. P. Levantamento de universidades multicampi das
Regiões sul e centro-oeste. Piracicaba: Comunicações, Ano 22, n. 2, p.
51-64, jul.-dez. 2015.
PANERAI, P. Análise urbana. Brasília: Ed. UnB, 2006
PINTO, G.; BUFFA, E. Arquitetura e educação: câmpus universitários
brasileiros. São Carlos: EdUFSCar, 2009.
QUATREMÈRE DE QUINCY, A. C. Dictionnaire historique d’architecture. Paris
: Librairie d’Adrien Le Clère et C.ie, 1832, tome II, p. 629-630
SEGAWA, H. Rio de Janeiro, México, Caracas: cidades universitárias e
modernidades 1936 - 1962. RUA: Revista de urbanismo e arquitetura , [S.
l.], v. 5, n. 1, 2008.
TOURINHO, H. Tipologia urbana: sobre a derivação de um conceito da
arquitetura do edifício para o urbanismo. Revista Brasileira de Estudos
Urbanos e Regionais, [S. l.], v. 16, n. 1, p. 141, 2014.
VIDLER, A. A terceira tipologia. In: NESBITT, K. (Org.). Uma nova agenda para
a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify,
2006, p. 285-289.
WITTKOWER, R. Architectural Principles in the Age of Humanism. New York:
W. W. Norton & Company, 1971.

36

Você também pode gostar