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ESCOLA DA CIDADE | GOVERNANÇA E TERRITÓRIO | RESENHA CRÍTICA

Professores: Carol Heldt e Mario Reali | Professora Assistente: Amanda Silber | Aluna:
Luiza Minassian

TEXTO ESCOLHIDO | NA FRONTEIRA DA EXPANSÃO DO COMPLEXO


IMOBILIÁRIO-FINANCEIRO: A UTOPIA DA CIDADE PARA TODOS, RAQUEL ROLNIK (p.
255-309)

Raquel Rolnik inicia seu texto no contexto do final dos anos de 1970, período no qual foi
implementada uma reestruturação produtiva durante uma crise fiscal de um Brasil em plena
Ditadura Militar que perdurou até 1985. É importante destacar que durante a década de 70, o
país foi marcado por investimentos em infraestrutura e na indústria, financiados por um “milagre
econômico” baseado no aumento da dívida externa brasileira. O período foi marcado pelo
grande aumento das desigualdades sociais e regionais. Posto que tais investimentos foram mal
distribuídos e concentrados na região suldoeste do país, o acesso aos serviços básicos como
saúde, educação e moradia , assim como uma distribuição de renda desequilibrada, conforma
um cenário problemático.
Com um crescimento urbano acelerado, despreparado e de pensamento enviesado, o
Brasil se torna palco e fluxo. Palco de processos como a favelização e a especulação
imobiliária e fluxo de um planejamento urbano tendencioso e antiético. Tal conformação
política, segundo a autora, contribuiu para a ampliação da base do movimento pela reforma
urbana, passando a incluir tanto moradores de assentamentos informais, periferia e favelas
como setores das classes médias profissionais liberais a partir da criação e inclusão de
“emendas populares” à Constituição. A força do movimento se funda, talvez, na crise pautada
pelas altas taxas de inflação e endividamento externo, assim como o levante da força popular
marcado por protestos e manifestações lideradas por movimentos estudantis e sindicais contra
o regime militar.
As emendas citadas por Rolnik, são salientadas pela autora por meio do
reconhecimento dos assentamentos informais, assim como o movimento de legitimação da
integração dos mesmos na cidade. Tais emendas propuseram medidas de combate à
especulação imobiliária e introduzindo o conceito de função social da cidade, propriedade
urbana e “democracia direta”. Desta forma, a plataforma possibilitou a constituição de espaços
institucionais participativos de escuta, pactuação, elaboração e controle social sobre as
políticas urbanas por meio de conferências, conselhos, plebiscitos e referendos.
O diálogo entre os moradores periféricos e profissionais liberais, fomentou até o
decorrer dos anos 1980, a criação de administrações locais que redistribuíram e ampliaram a
cidadania por meio das “gestões democrático-populares”. Estas, por sua vez, previam a
melhoria de serviços públicos, a inclusão das favelas e periferias como objeto de investimento,
o apoio a cooperativas, programas de geração de renda entre outros tipos de projetos sociais
que enfrentaram “o vazio de políticas desse tipo no nível nacional” (ROLNIK, 2015, p. 256).
Este novo modelo redistributivo local acarretou no estabelecimento obrigatório de planos
diretores nos municípios com mais de 20 mil habitantes, usando do planejamento como
instrumento de reformulação urbana do desenvolvimento urbano que, como já descrito
anteriormente, foi gerado sobre a ótica de exclusão político-territorial da, ironicamente, maioria
da população. Assegurando não só o direito à renda, às oportunidades, à ocupação do solo
urbano e à cidade, mas como um direcionamento da construção da cidadania ao germinar um
sentido coletivo que fosse de embate com um modelo de sociabilidade individualista que não
respeitava o interesse público (ROLNIK, 2015, p. 257).

“Ao longo do processo de redemocratização brasileiro, os investimentos em urbanização -


e, muitas vezes, a própria criação desses assentamentos - ganharam importância
crescente no jogo político-eleitoral. Do ponto de vista das relações de poder e do controle
político que ali se estabelecem, esse jogo é reforçado pelo caráter discricionário das
ações estatais.” (ROLNIK,2015,258)

A década de oitenta trouxe a inserção e reconhecimento das favelas dentro do


planejamento urbano com. Ao identificar e demarcar tais áreas como Zonas Especiais de
Interesse Social (Zeis), estabeleceram um rumo à regularização e à sistematização de uma
gestão que integrava moradores e prefeitura ao projeto de urbanização. A prática da
delimitação das ZEIS também respondiam às propostas das ementas antes citadas pela
autora, garantiam o acesso à habitação nas áreas que já tinham infraestrutura, combatendo, de
certa forma, a especulação imobiliária. Tais dinâmicas se expandiram para a escala Federal
após a incorporação do Estatuto da Cidade e se disseminaram fortemente a partir de 2005 com
a implementação dos planos diretores, aponta Rolnik.
De todo modo, a autora salienta que, por mais que os instrumentos de regularização
tenham sido ampliados, efetivados e normalizados, muitos embates e obstáculos fazem parte
da trajetória de décadas. Os anos que precederam o final dos anos 1990 e o início dos anos
2000 foram marcados pela ampliação dos recursos disponíveis para a urbanização de
assentamentos, que foram moldados de forma extremamente diferentes de sua origem, ou
seja, foram descontinuados processos de participação comunitária, urbanizadas favelas seletas
e implementadas diversas remoções violentas. Não obstante, a urbanista relata que, por mais
que a equipe de Olívio Dutra, ao assumir o Ministério das Cidade visasse planos diretores
participativos, a instalação de instrumentos de mobilização dos cidadãos, a criação de normas
para garantir acordos, ter uma estratégia de articulação política, disseminar novos conteúdos e
métodos, ir de embate com a máquina pública, burocracias estatais, partidos e lideranças
políticas, a pesquisa do Observatório das Metrópoles apontou que muitos dos planos apenas
transcreveram os trechos do estatuto, outros não avaliaram a pertinência dos instrumentos ao
território e incorporaram apenas fragmentos de conceitos desarticulados do plano urbanístico
(ROLNIK, 2015, p. 262-267)
O descolamento entre os enunciados do plano diretor e os grandes investimentos
vigentes ou em processo, exemplificado pela autora com o caso do programa Minha Casa
Minha Vida. É importante sublinhar que Raquel Rolnik participou como relatora especial da
ONU para o direito à moradia adequada entre 2008 e 2014 em paralelo a sua atuação como
professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Dentro desse cenário, Rolnik se coloca
como uma das principais críticas do programa Minha Casa Minha Vida, iniciado em 2009 pelo
governo Lula e viabilizado pelo então ministro das Cidades, Márcio Fortes. O programa
envolveu não só técnicos e especialistas, mas os governos estaduais, municipais, movimentos
sociais e empresas do setor imobiliário. Posto isso, a autora de “Guerra dos Lugares”, aponta
que o programa, embora tenha aumentado a quantidade de moradias populares, não estava
resolvendo o problema do déficit habitacional, pois muitas das moradias construídas estavam
em áreas remotas e sem infraestrutura, distantes dos serviços públicos e do trabalho. Além
disso, frisa a falta de participação das comunidades na definição das políticas habitacionais e
na gestão dos empreendimentos construídos pelo programa.
O contexto paradoxal do programa é dado por Raquel como o período no qual o
Movimento pela Reforma Urbana aborda a desmercantilização do solo urbano em diversas
cidades brasileiras, fomentando disputa entre elas a partir da criação de desenhos urbanos que
atraíssem investimentos internacionais.

“o planejamento estratégico expressou, no Brasil, o paradigma da política urbana voltado


para a competição entre cidades. Também já demonstraram como o planejamento
estratégico tornou-se instrumento fundamental em administrações de cunho político
neoliberal” (ROLNIK,2015, p.269)
O cenário competitivo entre cidades é utilizado para justificar a transposição do modelo
estratégico do mundo empresarial para o âmbito urbano. A aplicação desse modelo permite
que as cidades sejam vendidas como produtos do marketing urbano que, por sua vez, utiliza a
richa para atrair investimentos privados e promover projetos que soam dissonantes às regras
desenhadas pelos planos urbanos e visam, unicamente, a ampliação de fronteiras do complexo
imobiliário-financeiro. Esse processo pode levar à unificação dos habitantes urbanos em torno
de uma visão autoritária e despolitizada da cidade, bem como à instauração de um sentimento
de patriotismo cívico.
Após se debruçar sobre o contexto da política urbana brasileira, Rolnik inicia a análise
das operações interligadas e operações urbanas em São Paulo. Nos últimos anos da década
de 1980, já citada anteriormente, foi dado o convênio de cooperação entre as cidades de São
Paulo e Toronto resultando na primeira experiência de flexibilização do zoneamento, permitindo
alterações das regras de controle do uso do solo mediante o pagamento de contrapartidas por
parte dos incorporadores. O instrumento, conhecido como Lei de Desfavelamento, foi
introduzido para conceder autorização especial à alteração dos parâmetros urbanísticos em
terrenos ocupados por favelas, dando origem às chamadas "operações interligadas". A
permissão foi concedida em troca da construção e doação de habitações de interesse social
para a população favelada em outra localidade. O número de unidades construídas foi
calculado com base no percentual do potencial de lucro que os empreendedores teriam com os
novos parâmetros. Posteriormente, proprietários interessados puderam contratar o Fundo de
Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal (Funaps), criando uma receita
de grande magnitude transferida da iniciativa privada para o Fundo Social.
A autora continua a relatar como os governos paulistanos lidaram com esse
instrumento. Com o ingresso da primeira prefeita do PT em São Paulo, Luiza Erundina, o
instrumento continuou a ser utilizado para financiar a construção de quase 4 mil moradias das
10 mil produzidas pelo município, incluindo projetos de moradias em mutirão e autogestão,
urbanização de favelas e reforma de edifícios no centro da cidade, em um contexto de
ausência de programas e recursos federais. No entanto, na gestão Erundina, o instrumento foi
desvinculado de qualquer ação de desfavelamento. Novos métodos de cálculo e negociação de
contrapartidas foram introduzidos, resultando no aumento do número e do valor pago pelos
empreendedores por metro quadrado. Na administração subsequente, liderada pelo prefeito
Paulo Maluf, as operações interligadas continuaram, embora sob pressão da Câmara
Municipal, que exigia participação no processo de aprovação e negociação. Em 1998, a
aplicação da lei foi suspensa pelo Judiciário. Em 2000, foi declarada inconstitucional e, no ano
seguinte, objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Municipal, após
acusações de desvio de quase 80 milhões de dólares que não foram repassados ao fundo de
habitação nas gestões de Paulo Maluf e de seu sucessor, Celso Pitta. (ROLNIK, 2015, p.273)
Raquel Rolnik aponta que o início da questão se dá pela crise fiscal que as cidades da
coligação enfrentavam, juntamente com o aumento das taxas de juros internacionais,
impactando fortemente no pagamento da dívida. São Paulo estabeleceu uma parceria com
Toronto enquanto a cidade tinha de lidar com a crise fiscal no Canadá e a promoção de casas
próprias em seu país, encontrando novas formas de parcerias público-privadas. Sendo assim, a
solução sugerida pelos canadenses é a tal da cooperação entre cidades, sendo essa um dos
novos mecanismos que redefinem as relações internacionais globais, em que cidades e
municípios ganham maior autonomia e independência em contratos internacionais para
defender seus interesses no ambiente global. Cabe acrescentar que Rolnik como Relatora
Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada (2008-2014) foi responsável por monitorar
e relatar sobre a situação do direito à moradia adequada em todo o mundo, avaliando políticas
públicas, denunciando violações e promovendo boas práticas. A pesquisadora aponta que essa
nova tática do empreendedorismo urbano é conhecida como "paradiplomacia". Essa ligação
permite que cidades e municípios assumam maior autonomia e independência nos contratos
internacionais, a fim de defender seus interesses no ambiente global.
Logo a estratégia janista foi utilizar as palavras mágicas “casa própria”, conseguindo o
apoio dos partidos, como a autora coloca, “de esquerda", minando a resistência ao instrumento
da PPP e flexibilizando o zoneamento. Este por último é, por sua vez, um dos instrumentos
administrativos que interliga os ganhos de potencial com a provisão de casas populares,
resultando na retirada das favelas das cidades e na redução da pressão do setor imobiliário
para aumentar o potencial construtivo. A derrogação do zoneamento, um elemento essencial
do planejamento urbano modernista, por meio de sua flexibilização eletiva, faz parte do ideário
neoliberal. Assim como nas relações de trabalho, trata-se da criação de um ambiente menos
regulado com mais liberdade de ação para o mercado. Entretanto, não se trata de suspender
ou substituir o zoneamento, mas de abrir possibilidades de exceção. As operações interligadas
revelam, na verdade, o obsoletismo do zoneamento. A permanência do zoneamento é
fundamental para o funcionamento do mecanismo interligado, criando uma exceção à regra
antiga, gerando muito mais lucro do que deixando transparecer os laudos dos avaliadores
credenciados e pertencentes ao próprio setor privado.
Historicamente, o setor imobiliário tem enorme poder na gestão urbanística das cidades
brasileiras. Ele não só está presente na construção da legislação urbanística como também
exerce influência nas câmaras municipais e conselhos em que participam representantes da
sociedade civil. A captura do sobre lucro e sua socialização por meio das casas populares
ressoava nas propostas progressistas de urbanistas e juristas. Desde o final dos anos 1970,
eles defendiam o estabelecimento do chamado "solo criado" no país para que o empreendedor
pagasse pela construção acima do coeficiente único, estabelecido pelo município. A proposta
do solo criado visava mais valor imobiliário, decorrente de investimentos públicos em
infraestrutura e serviços. Enquanto a cidade experimentava as operações interligadas, também
desenhava um novo instrumento, as operações urbanas, ou parcerias entre o governo e
empresas, poder público e iniciativa privada, que ampliam a área da cidade e abrem espaço
para o complexo imobiliário financeiro, funcionando como o entrelaçamento entre governos,
empreiteiras e fundos de pensão.
Rolnik aponta para uma lógica que tem orientado os investimentos dos fundos de
pensão no país, baseada na maximização do lucro e na especulação imobiliária, em detrimento
do bem-estar social e da qualidade de vida dos cidadãos. A urbanista aponta para o caso da
Berrini, impulsionada pela construção das vias expressas nas margens do rio Pinheiros, e
constituiu o primeiro polo empresarial fora da região central. Os fundos de pensão têm
assumido uma posição cada vez mais ativa no mercado imobiliário brasileiro, investindo em
grandes empreendimentos urbanos e especulando com o valor da terra. Isso tem gerado uma
série de impactos negativos na produção do espaço urbano, como a expulsão de moradores de
baixa renda de suas áreas de moradia e a gentrificação de bairros inteiros. Caso que também
é salientado por Mariana Fix que aponta que a operação urbana da Berrini teve um impacto
significativo na valorização do mercado imobiliário da região, atraindo investimentos e
empreendimentos de grande porte, como shoppings, edifícios comerciais e residenciais de alto
padrão, que contribuíram para a gentrificação do local.
Outra relação entre interesses públicos e privados e definidora de políticas públicas
sublinhada pela autora é a do Estado e empreiteiras. Imbricamento este marcado pelo
favorecimento de interesses privados em detrimento do interesse público e pela falta de
transparência nos processos de contratação e execução de obras públicas. O resultado do
relacionamento, classificado como promíscuo pela autora, é uma cidade fragmentada, desigual
e caótica, conformada por uma lógica que atende a interesses privados em detrimento do
bem-estar coletivo, valorizando mais os ativos imobiliários e especulação da terra do que a
produção positiva de uma cidade para pessoas. Pontuando do início ao fim, a autora de
“Guerra dos Lugares” escancara em diversas escalas a falta de transparência e participação
popular no processo de definição e execução dos projetos de cidade, o que fragiliza não só a
democracia, como também a possibilidade de uma gestão mais democrática e inclusiva da
cidade.

BIBLIOGRAFIA:

1. FIX, Mariana. Operação Urbana Água Espraiada: planejamento urbano e especulação


imobiliária em São Paulo. São Paulo: Annablume, 2013.
2. ROLNIK, R. Guerra dos Lugares. São Paulo: Boitempo, 2015.

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