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RAYOM RA
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Pequeno Wan tinha agora doze anos e sua alma não digeria de forma
adequada o volume de ensinamentos que recebia. Era próprio da idade e
ultimamente isso vinha causando-lhe ansiedades. Os problemas de seu
pequeno universo começavam a parecer-lhe grandes demasiados para que
os resolvesse sozinho. Os passeios pelos jardins ajudavam-no a libertar-se
de certa carga de preocupações, mas isso era só momentâneo, e logo
retornavam. Era um começo de duelo entre duas almas: a que ele ia
deixando para trás, com sua infância e ingenuidade, e a que se apresentava
para assumir-lhe outros desejos e atos mais compatíveis com sua
transformação orgânica. Ele não compreendia essas coisas e ora se
excitava ora se deprimia.
Atravessou pela ponte. A gruta foi deixada e prosseguiu por outro longo
trecho. Quando isto terminaria? Sentia-se sufocado, ansiava por ar puro.
Alguns metros adiante viu degraus encavados numa rocha, e os galgou.
Vinham terminar numa pedra côncava no desenho de uma marquise;
estreito facho de luz penetrava por quase imperceptível fenda do teto
indicando a proximidade da saída. O mesmo forte cheiro impregnava em
torno e reconheceu entre os grossos arbustos e matos, as plantas que
repugnavam répteis. Largando a lamparina, se lançou sobre eles – eram
longos e cerrados, havia curvas na sua extensão - conseguindo atravessá-
los com extrema dificuldade, pondo-se finalmente de pé. Com satisfação
respirou novo ar e novo aroma, verificando encontrar-se no interior de uma
floresta, provavelmente naquela a leste dos muros da cidade, na qual nunca
estivera!
Tendo observado o que seu guia lhe apontara, pequeno Wan voltou-se
e procurou lugar para sentar, encontrando um toco de árvore ceifada. Yang
Te-Chun, vendo-o assim, aproximou-se e sentou-se defronte a ele na verde
relva que ali principiava, que se estendia até o início dos trigais, cobrindo o
chão em declive.
- Como você me encontrou?
- Mestre Keng orientou-me.
- Como ele sabia que eu ali estava?
- Ele sabia.
Pequeno Wan mirou-o com mais atenção. Yang Te-Chun olhava-o
tranquilamente. Vestia-se de branco com simplicidade, como era hábito dos
neófitos do mosteiro e calçava sandálias
- Penso que não deveria ter deixado o palácio. Como estarão todos
agora? - falou Wan inconformado, com fisionomia entristecida.
- Príncipe Wan, suas preocupações procedem, por que é sua família.
Porém, tendo deixado o palácio por que arrepender-se disso uma vez que
sua alma ousou experimentar? O filhote de pássaro ao pular fora do ninho
não o faz por rebeldia. Logo ele aprende a voar e escolher o seu próprio
alimento.
- Que faço então? - perguntou ainda desanimado.
- Confie, príncipe, confie.
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Por outro lado, a vida dentro do mosteiro decorrera nesses cinco anos
como se fora um universo à parte. No início, pequeno Wan permanecia
como um refugiado que se escondia do mundo, como de fato era. O
mosteiro era grande, tinha três largos salões onde os monges e discípulos
realizavam suas meditações e rituais, além de alojamentos, cozinha,
refeitório e outras dependências. Quase não havia móveis, mas o
estritamente necessário, e quando conversavam, meditavam ou realizavam
algum ofício religioso, faziam-no geralmente, de pé ou sentados no chão. Os
mais velhos, cujas juntas já não lhes permitissem ocupar posturas de pernas
cruzadas, usavam bancos ou cadeiras de bambu. Corredores ligavam as
alas do interior do prédio e escadas uniam os andares. Entretanto, a maior
parte do tempo eles o despendiam ao ar livre. Havia dentro dos limites
internos do mosteiro, o jardim e o pomar, onde cultivavam e colhiam, além
da área arborizada em que algumas figueiras se levantavam e pequeno
córrego deslizava. Nesse agradável recanto, se reuniam em atividades
meditativas ou simplesmente para caminhar. Para além dos limites internos
do mosteiro, perdendo de vista entre montes ou em planície aberta, as
plantações de trigo, milho e arroz, em primeiro plano, e nalgumas áreas
menores verduras ou tubérculos, vicejavam na generosa terra. Em tempos
de plantações ou de colheitas era intenso o movimento dos camponeses a
trabalhar, cujas famílias, por vezes, viam seu efetivo de mão de obra
somado de um ou outro dos budistas do mosteiro, que, voluntariamente,
desejassem labutar mais duramente, como parte de sua formação e
disciplina.
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Pequeno Wan partiu com o grupo. Nos cinco dias seguintes, até
alcançarem o vilarejo tiveram alguns percalços. Pegaram chuva, dormiram
em celeiros, viajaram de carona em carroças puxadas por bois ou cavalos e
comeram pouco. À chegada, nem mesmo puderam descansar, começando
logo a atender o povo, preparando remédios, realizando rezas e atos de
curas. Pequeno Wan auxiliava aos mais experientes e ajudava no amparo
aos doentes. O trabalho despendeu-lhes mais de trinta dias, ao cabo dos
quais deixaram o vilarejo sob reverência da população, que se ajoelhava ou
beijavam-lhes as mãos.
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Mas o rei, pai do príncipe Wan, não pôde esperar mais tempo. Os
mandatários dos reinos aliados determinaram que seus exércitos atacassem
definitivamente a cidade, visto Kuang não ter condições de oferecer-lhes
grande resistência. E assim fizeram, sendo ajudados ainda por um fator que
somou decisivamente na sorte da batalha: os jovens soldados da cidade,
sensibilizados pelas exortações de seu verdadeiro rei, em dado momento
atacaram corajosamente aos guardas dos portões principais, abrindo-os
para a penetração dos aliados. Isso tonteou aos homens de Kuang fazendo-
os debandar, assegurando dessa maneira a vitória dos aliados. Kuang
tentou fugir, mas foi cercado. Ao ver-se perdido, correu para o alto de uma
das torres do palácio e de lá se jogou, morrendo instantaneamente. O povo
então saiu às ruas para saudar os soldados e conduzir o rei em seus braços
depositando-o no trono do palácio. Ali mesmo, no palácio, os três reis
reafirmaram o antigo pacto de não agressão mútua, pois não interessava a
nenhum deles apossar-se de outro reino.
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Manhã seguinte Wan partiu, mas não sem levar mensagem da rainha
para Meng Keng, convidando-o ao palácio para conversarem, tão logo lhe
permitissem suas ocupações. O rei não quis despedir-se do filho. Alegando
um compromisso ausentara-se do palácio, ficando somente a rainha para as
despedidas. Aliás, durante a semana em que Wan a assistira, o rei e o filho,
haviam trocado somente poucas palavras, evitando falar sobre o principal
assunto que os dividia e separava. Na tarde do dia seguinte, chegava ao
palácio um mensageiro do mosteiro trazendo a resposta do monge. No
pequeno pergaminho ele dizia ter imenso prazer em visitar aos reis o que
pretendia mesmo fazer em poucos dias, visto nova fase do tratamento
precisar iniciar-se. Porém, nada urgente, já que tivera notícias por Wan de
sua excelente recuperação. Despedia-se da rainha e enviava aos monarcas
augúrios de longa vida e sábias decisões.
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Para não tornar aquela reclusão perniciosa para a mente, Meng Keng,
findo o sétimo dia, ordenava-lhe sair do pequeno santuário e reintegrar-se ao
cotidiano do mosteiro. Após a readaptação alimentar misturava-se aos
demais religiosos, passando a executar as tarefas que já conhecia. Dessa
maneira, ele quebrava aquela cadeia forjada nas práticas ou posturas
mentais, não permitindo um desnecessário e prematuro mergulho do
emocional no ascetismo, decorrendo daí que a consciência do ego não
perderia as rédeas do comando e nem a lucidez do pensamento. Caso
contrário, poderia ser desastroso para o neófito uma desordem mental, pois
adviria a consequente demência pela sufocação da razão e proporção
humana dos fatos. Renovando suas energias, Wan retornava ao santuário,
quatro ou cinco dias depois, e novamente isolava-se por outro período de
sete dias, recomeçando os mesmos passos com a mesma determinação e
sob a vigilância do monge, seu mestre.
Nesta última fase da meditação, algo que até então desconhecia vinha
acontecendo em sua mente. Ao invés de visões, luzes ou sons a se
desdobrarem ante a exaltada percepção, uma vontade superior forçava-o a
refletir e conjeturar. Pensamentos se concatenavam e emergiam de sob a
isolante capa que formara no subconsciente. Eles escapavam e se
apresentavam, obrigando-o a repassar fatos de sua vida e colocá-los diante
de situações de dúvida. Em vão tentou abafar esse desfile de intenções; os
pensamentos teimosamente permaneciam a falarem-lhe - podia até escutar
suas vozes a inquiri-lo! Como não pudesse mesmo fugir disso, passou a
conviver com eles.
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Chegando ao palácio foi logo procurar a rainha. Não era ainda meio dia
e informaram-no que ela estaria na sala de banhos, em sua piscina, como
não devesse lá entrar, procurou, ele próprio, aposentos, dispensando o
auxílio da criadagem. Nos aposentos, foi de imediato para a janela,
parcialmente aberta, abrindo-a completamente, permitindo à generosa
claridade penetrar mais. A janela descortinava vista para verde gramado
entremeado de pequenas plantas roxas em minúsculos canteiros, ao redor
dos quais faixas de outras tonalidades mais claras de grama se dispunham.
Era um arremedo dos belos jardins do palácio, ao qual Wan já conhecia de
seu tempo de menino, e que, apesar da ocupação inimiga, pouco modificara
na aparência. Vinha terminar poucos metros adiante, nos limites de florida e
viva cerca, onde novo lance da propriedade, amplo e aberto, e com poucas
árvores, continuava.
Debruçando-se, Wan lançou olhar para fora a fim de apreciar o lugar,
mas quedou surpreso, apoiando as mãos sobre o peitoril, ao ver uma jovem
correndo sobre o gramado, perseguindo o voo inconstante de amarela
borboleta.
- Venha, não fuja, você é tão bela! - dizia. A borboleta ameaçou pousar
sobre pequeno ramo verde num canteiro, e ela apressou-se em sua direção.
Entretanto, fugitiva, bateu de novo as grandes asas e arremessou-se em
direção da janela onde Wan observava, passando ao largo.
RAYOM RA