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Caderno de textos EREM SUL 2 - 2009

Introdução

Olá, estudante de medicina. É com imenso prazer que apresentamos o caderno de textos do XX
Encontro Regional dos Estudantes de Medicina. Neste ano o tema “Medicina Para Que(m)?” traz a
tona um questionamento sobre a relação da educação médica com o trabalho em medicina. Ao
longo dos últimos 40 anos assistimos a um processo de reestruturação do trabalho em saúde,
passando da medicina liberal enquanto prática hegemônica para o atendimento no sistema público
ou planos e serviços de saúde privados. Além disso, mudanças no próprio sistema de saúde
público (consolidação do SUS) geraram transformações importantes na organização do trabalho e
atualmente cerca de 75% dos médicos tem vínculo empregatício com o Sistema Único de Saúde.
Essas modificações do mercado de trabalho produziram impactos sobre a educação médica e
orientou transformações no sentido de adequar currículos a essa nova fase de organização da
saúde no país. Como essas transformações ocorreram? Por quê? Para quem? Estamos sendo
formados para trabalhar onde?

Esse é um debate relativamente recente e que ainda não chegou à graduação nos cursos de
medicina. Portanto, fomos buscar referências na pós-graduação e selecionamos textos de livros e
teses de mestrado e doutorado. Apesar da densidade em conteúdo, acreditamos que uma boa
leitura trará reflexões e contribuições importantes sobre o próprio futuro na profissão em medicina.

O primeiro texto “Transformações da Prática e Ideologias Médicas”, capítulo do livro “Saúde e


Trabalho” da pesquisadora Cristina A. Possas, aborda a inversão da prática médica, os impactos
da incorporação de tecnologia e o contexto em que se deu o surgimento dos planos de saúde, à
exemplo da UNIMED. Este texto traz o referencial das mudanças do mundo do trabalho em
medicina.

O texto número 2 representa as considerações finais da tese de mestrado de Rogério Miranda


Gomes, intitulada “As mudanças no mundo do trabalho e a qualificação do trabalho em saúde “.
Nela o autor discorre sobre a forma que se organiza o trabalho em saúde e sua determinação
sobre os processos educativos e de qualificação técnica. Uma vez que se exige a necessidade de
formar profissionais para o mercado de trabalho, este, em diferentes medidas, subordina a
educação aos seus interesses.

O terceiro texto também é um excerto de uma tese de pós-graduação, no caso doutorado em


educação, intitulada “As determinações do capital sobre a formação do trabalhador em saúde: um
estudo sobre reformulações curriculares em dois cursos de medicina do Paraná”. Essa tese foi

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produzida pelo professor Guilherme de Albuquerque como fruto da análise das transformações
curriculares em medicina e as suas origens do ponto de vista econômico e político. Nesse capítulo
da tese, o autor argumenta sobre as influências internacionais no sistema de saúde e educação
médica brasileira no sentido de reduzir gastos em áreas sociais. Essa redução de gastos exige um
médico mais barato de qualidade mais baixa e por isso faz-se necessário reestruturar os currículos
de medicina.

O quarto texto é na realidade continuação do terceiro. Neste capítulo o autor faz a análise do
Sistema de Saúde, e aponta críticas em relação à focalização da atenção primária em saúde
naquilo que chama de cesta básica da saúde e relaciona esse processo com as adequações das
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de graduação em Medicina.

O texto seguinte, de Marcos Sousa, foi escrito para subsidiar o debate sobre a educação médica
na ocasião do XXI Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina, realizado em Fortaleza – CE.
Nele está presente de forma crítica a discussão em torno da CINAEM (Comissão Interinstitucional
Nacional de Avaliação do Ensino Médico). Além disso o autor faz um histórico das orientações da
educação e ciência do ponto de vista epistemológico e aponta para as necessidades de se
compreender o “imbricamento” das políticas de saúde e educação com o ideário liberal.

Os dois últimos textos são produções de estudantes de medicina sobre atividades extra-sala-de-
aula como iniciação científica e ligas acadêmicas, esclarecendo sobre seu funcionamento e sua
importância na formação.

Esses textos foram selecionados com o objetivo de embasar as discussões que ocorrerão
durante o encontro tendo por finalidade questionar o nosso papel como médicos na sociedade e
sobre qual é o papel da medicina em geral. Para quê(m) estamos sendo formados? Para quê(m)
serve o conhecimento? A medicina serve para quê(m)? É com o objetivo de compartilhar esse
debate com os estudantes de medicina que a CO-EREM dá as boas vindas a todos que vem ao XX

Encontro Regional dos Estudantes de Medicina e deseja uma ótima leitura.

1. TRANSFORMAÇÕES DA PRÁTICA E IDEOLOGIA MÉDICAS*

Cristina A. Possas

O cuidado médico como processo de trabalho

O cuidado médico é um processo de trabalho em que o profissional com sua própria ação
impulsiona, regula, controla e transforma funções vitais do organismo humano. Em um

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determinado meio de trabalho põe em movimento o conhecimento científico corporificado na
técnica (habilidades e instrumentos), decodificando necessidades orgânicas e sociais em
necessidades instrumentais, na medida em que imprime à vida humana um determinado valor de
uso. Sua atividade objetiva o desenvolvimento de potencialidades vitais submetendo ao seu
domínio o jogo das funções orgânicas.

O profissional médico constrói mentalmente um projeto de “organismo normal”, antes de tentar


molda-lo em realidade. No final do processo de trabalho deverá aparecer um resultado que já
existia em sua consciência, em tese, os valores vitais a serem atingidos. O produto é um valor de
uso atribuído à vida, em que o organismo como material da natureza é adaptado a necessidades
sociais1.

Nesse processo de transformação, ao privilegiar determinados valores vitais recortados do


amplo espectro de alternativas oferecido pelas ciências biológicas, a técnica médica impõe-se
como prática social. Utilizando-se de propriedades mecânicas, químicas e psíquicas para a
modificação dos corpos bem como para o seu julgamento, subjugando as leis naturais que
estabelecem a normatividade da vida em determinadas condições de equilíbrio ecológico, impõe-
lhes uma outra forma de normatividade, a social, que se propõe vencer as “infidelidades da
vida” apesar das condições que as geraram2.
O objeto se configura enquanto projeto no momento em que se realiza o cuidado. É um ato de
criatividade que implica uma elaboração de leis gerais sobre um caso particular. E é justamente
através desta possibilidade de criação que o social se imiscui, permitindo que na técnica médica a
ciência caminhe lado a lado com os valores e com a ideologia.

O processo extingue-se ao considerar-se concluído o produto. No final do processo, o cuidado


está incorporado ao organismo e concretizado na forma que este, em tese, acaba de assumir.

O cuidado médico, que acabamos de descrever em seus termos mais gerais, caracteriza-se
como atividade geradora de valores de uso, reafirmando a vida contra o sofrer e a morte, presente
portanto em todas as relações sociais entre os homens, ainda que variem os padrões de

normatividade e as categorias e as técnicas empregadas em sua prática.

O trabalho médico como prática social

A análise das transformações históricas da Medicina, na busca das distintas definições dos
objetos que delas emergem, indica-nos que a especificidade do trabalho médico em uma dada
formação social não se explicita nas modificações de ordem técnica e organizaciona que se
processam ao longo do temo no interior do saber e da prática médica; ou seja, a especificidade da

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Medicina em um dado momento histórico não deve se esgotar na singularidade de suas práticas, e
sim em sua articulação com o modo de produção social. Desta forma, o específico da prática
médica não é dado apenas pelo estágio de desenvolvimento da Medicina, e sim pelas
características próprias do modo de produção no qual se insere. Em outras palavras, a Medicina
não se “autodetermina”, mas é socialmente determinada.

Esta conceituação geral exige em primeiro lugar uma definição mais precisa do que
entendemos por Medicina e, em segundo, das condições em que esta emerge como prática social.

Adotamos aqui a definição de Canguilhem (1966), que considera a Medicina como “uma
técnica ou arte situada na encruzilhada de muitas ciências”. Nesse sentido, interessa-nos enfocar a
Medicina mais como uma técnica do que como um saber, pois um estudo do saber médico fugiria
ao escopo de nosso trabalho, por implicar uma análise epistemológica das diversas ciências que o
compõem e das condições históricas e científicas que irão determinar, em dado momento, sua
incorporação e instrumentalização pela Medicina. Um estudo do saber médico transcende portanto,
o âmbito da própria Medicina, estabelecendo-se ao amplo e complexo domínio das distintas
ciências que têm como objeto o organismo, o que constituiria por certo tarefa por demais
ambiciosa.

Preferimos tratar a Medicina no que tem de particular, isto é, o fato de ser uma técnica, Nesse
sentido, definimos técnica como uma forma instrumentalizada de conhecimento, que implica uma
combinação adequada entre habilidades e meios para a transformação de um dado objeto.

Chegando neste ponto à questão central de qual seria o objeto da Medicina, podemos dizer
que ao invés de tentar busca-lo no interior das ciências geradoras do saber médico, pretendemos
explicar de que forma emerge, ao invés da técnica médica enquanto prática social de
transformação biológica e/ou psíquica dos seres humanos, um dado objeto, dentre as
possibilidades definidas social e cientificamente. Cabe assim examinar o objeto da Medicina como
um projeto de transformação, que se realiza como expressão técnica das exigências sociais que
determinam a natureza do seu processo de trabalho.

Definindo a técnica médica como prática que se origina no social e sobre ele se constitui,
situamos os limites da Medicina em relações socialmente determinadas.

Na verdade, as articulações da Medicina com o conjunto da sociedade são bem mais amplas,
situando-se em distintos níveis: percepção e classificação social das doenças, produção e
reprodução social das doenças, produção do saber e constituição da técnica e, por fim, a
organização social do cuidado médico.

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No entanto, para os fins deste trabalho, que se resumem a uma análise da organização técnica
e social do trabalho médico em um período histórico determinado, detivemo-nos basicamente em
dois aspectos: de um lado, em linhas gerais, a produção social de doenças vinculadas às
condições específicas de trabalho da sociedade em questão, e de outro lado, mais detidamente,
como a medicina se organiza socialmente para atender estas e outras necessidades geradas por

uma forma particular de produzir e de viver.

As transformações do trabalho médico

Foucault define o cuidado médico em geral como a relação entre o que alivia o sofrer e o que
sofre, relação esta definida sobre uma expropriação social, historicamente determinada, em que o
saber sobre o coro, a saúde e a doença deixa de ser um patrimônio comum a todo o grupo social e
passa a ser monopolizado por sujeitos socialmente legitimados que, detendo o conhecimento e a
técnica , têm o controle do processo de trabalho. (Foucault, 1963).

Esta produção independente do cuidado passou a ser realizar uma troca comercial, em que o
médico vende o seu trabalho no mercado e em troca recebe honorários pagos a posteriori. O termo
“honorários” tem uma importante função ideológica no contexto da chamada medicina liberal,
revestindo com véu mítico a relação mercantil na qual se vende o trabalho médico e conferindo à
remuneração recebida um caráter despojado de mera retribuição agradecida. O cuidado médico
segue neste esquema um padrão artesanal em que o profissional possui o controle de sua
produção. Na o obra “Os honorários Médicos”, o jurista Alcântara Machado (1922) relata processos
em que os médicos reivindicam honorários não recebidos:

“.... Repugna a certos espíritos a equiparação das “operae liberales” aos serviços manuaes e
há quem não se conforme com a idea de constituírem offícios mercenários as profissões de cunho
intellectual. Esquecem-se de que hoje o salários as profissões de cunho intellectual. Esquecem-se
que hoje o salário é, na phrase de ihering, o nível determinante de todo o commercio jurídico:
aluídos os velhos preconceitos, ninguém se julga diminuído em sua própria estima iu estima alheia
pela circumstância de exercer uma profissão assalariada. (...) O que actualmente nos parece tão
simples e tão lógico levou longos anos a impor-se ao consenso universal. Deve-se o fato à
influência persistente dos princípios que, particular, dominavam o direito romano. Em Roma
somente os serviços manuaes podiam ser apreçados e pagos, e, portanto somente eles podiam
constituir objetos de locação. Não se consideravam passiveis de estimação e pagamente os
trabalhos imateriais”.

Com o advento do capitalismo monopolista ocorre uma nova forma de expropriação em que
“produtor independente” do cuidado médico passa a coexistir com uma Medicina que é

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gradualmente incorporada como um setor capitalista sob intervenção direta do Estado, o que irá
implicar numa progressiva perda do controle da produção, fazendo com que passe a ser por ela
comandado.

Nesse momento, aquela definição mais geral de Foucault, da relação entre o que sofre o que
alivia o sofrer, mantém sua validade apenas enquanto garante o valor de uso do cuidado médico
como mercadoria, conceito que representa o ponto de partida de Arouca (1975) em sua análise

das relações entre capitalismo e medicina.

A organização capitalista da medicina contemporânea

Ao longo da evolução histórica da Medicina, esta sofreu profundas transformações no que diz
respeito ao conhecimento médico, às técnicas empregadas, à divisão técnica e social do trabalho
e, finalmente, à sua articulação com o conjunto da sociedade.

Analisando a Medicina contemporânea, vemos que no mundo capitalista ela se transforma


numa atividade empresarial, com importantes modificações no interior da própria organização
técnica e social do trabalho médico, reorganizando-se como decorrência do desenvolvimento das
forças produtivas e da introdução de capital no setor.

Tais transformações ocorreram, em particular, após a 2ª Guerra Mundial, e deveram-se


basicamente a dois fatores a dois fatores: de um lado, à expansão do setor saúde como um setor
capitalista e, de outro, à incorporação de tecnologia moderna constituindo um setor de crescente
concentração de capita. Nesse sentido, o salto qualitativo na indústria farmacêutica na década de
40, que acompanhou a descoberta de novas substâncias – como os principais antibióticos –
cumpriu um papel fundamental, juntamente com a produção dos novos equipamentos médicos.

A introdução de tecnologia na área médica operou-se em distintos níveis expandindo-se no


sentido de uma complexidade e sofisticação crescente. As atuais conquistas caracterizam-se pela
aplicação de análise de sistema e pesquisa operacional utilizando-se computadores para a
administração e controle de sistemas tão complexos como hospitais, os programas nacionais de
assistência médica ou programas de pesquisa. A aplicação da automação se estendeu também a
situações médicas complementares, tais como testes laboratoriais para análise química do açúcar
no sangue e contagem de células sanguíneas; máquinas medidoras para a leitura de
eletrocardiograma e outros registros eletrônicos; instrumentação analítica para ajudar o médico no
diagnóstico clinico, bem como a utilização de equipamentos de monitoragem pela enfermagem ,
para os seguimentos de pacientes no cuidado intensivo hospitalar ou na unidade de emergência.

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O processo técnico no setor levou a um vertiginoso aumento no custo do cuidado médico. Esse
fenômeno verifica-se em vários paises do mundo e tem a relação com a natureza da tecnologia
incorporada, que é complementar e não substitutiva. Isto significa que a medicina, em sua
evolução tecnológica, incorpora novas técnicas às já existentes, adicionando novos procedimentos
aos anteriores, sem substituí-los.

O aumento dos custos de produção leva as formas conjuntas de produção de serviços – em


face, por exemplo, da dependência de um equipamento centralizado -imposição que se manifesta
assim por motivos que vão além da simples interdependência técnica das especializações.

Em oposição ao modelo individual, artesanal e autônomo do trabalho médico, realizado em


padrões liberais, vemos surgir assim o trabalho coletivo, em que o médico aparece como o agente
intelectual de trabalhos cada vez mais parcializados, definidos pelo médico ou pela equipe médica
sob forma de normas ou condutas e racionalizados do ponto de vista da eficiência e da
profundidade por um corpo administrativo, composto por médicos, enfermeiros ou simples
administradores. O trabalho passa a depender cada vez menos da habilidade artesanal de cada
um dos elementos que compõem e cada vez mais de uma organização coletiva da produção,
caracterizando-se por interdependência crescente em torno de uma diversificação técnica.

Nesse contexto ocorre uma certa dissociação entre a produção dos instrumentos técnicos e
sua utilização, tendência esta reforçada pela crescente subdivisão do trabalho, criando situações
em que operar um instrumento para obter um diagnóstico se torna mais importante do que
conhecer o que o instrumento é realmente capaz de medir, ou utilizar um recurso terapêutico
polivalente, como um antibiótico, tem prioridade sobre a busca dos fatores que geraram o sintoma
eliminado. Em outras palavras, a racionalidade da produção se impõe a racionalidade do
conhecimento.

A acumulação de capital no setor médico leva como conseqüência a uma perda de controle
dos meios de produção, de um lado pelo aumento progressivo dos custos desta mesma produção
e, de outro, pela dificuldade crescente de se manter um serviço individualizado num mercado
controlado por capital crescentemente concentrado.

Diante desta reorganização da Medicina, que se define como atividade capitalista e no interior
do mesmo subordinado ao capital, o assalariamento médico é uma tendência inexorável. Quer
surja o médico como empresário ou assalariado, fica caro que a compreensão desta transformação
do trabalho médico deve ser buscada na penetração do capita no setor.

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Este assalariamento progresso se dá no Brasil com a ampliação do controle estatal de modo
que o médico passa a vender seus serviços num mercado de trabalho em que predominam formas
combinadas de compra de serviços pelo Estado em associação com as empresas médicas.

O controle crescente do Estado sobre a atividade médica, na medida em que é o grande


comprador da iniciativa privada, passa a impor limitações à liberdade de atuação profissional,
tabelando e controlando o preço do trabalho médio, garantindo sua realização a baixo custo e
possibilitando de forma, o seu consumo por parte de uma grande parcela da população, a classe
trabalhadora, sem suficiente poder de compra direto.

No Brasil, o controle do processo de trabalho por terceiros e o consequente assalariamento,


infringindo o Código de Ética Médica, constituem uma realidade relativamente ? Como mostra
Donnangelo (1975), é por referência à medicina liberal, pela perda de autonomia, que se torna
mais claras as atuais formas de integração do profissional médico no mercado e as atuais
resistência por algumas frações da chamada “classe médica”, que tende a perder sua
homogeneidade enquanto grupo profissional, na medida em que os profissionais se posicionam de
formas distintas e mesmo antagônicas no mercado.

Esse contexto exige que a medicina capitalista redefina seu projeto social e supere estas
contradições, de um lado lutando pela assimilação e conquista ideológica de seus porta-vozes
tradicionais, presos a relações sociais anteriores, e de outro, criando novos intérpretes que
expressem os interesses de um novo empresário em ascensão e de um número crescente de
profissionais médicos assalariados.

Tendo em conta que transição da prática médica como atividade liberal autônoma para as
formas capitalistas atuais tem como implicação mais evidente a perda de autonomia, fica claro que
a tentativa de manutenção do projeto liberal esbarra em relações de produção que o tornam cada
vez mais inviável, dado o suporte em relações sociais tendentes a desaparecer..

Nesse sentido, a Escola Médica desempenha um papel fundamental, mantendo, no plano das
representações, as condições objetivas de denominação e possibilitando ainda a criação de uma
ideologia afim com a estrutura de poder existente. Realiza a tradução do conhecimento médico em
linguagens técnicas diversificadas sobre relações sociais distintas, ou seja, faz com que o saber
médico seja socialmente filtrado, passando de saber em geral a prática ajustadas a diferentes
relações sociais.

O estudante da área médica aprende desde o início, implícita ou explicitamente (a inculcação


é tanto mais eficiente quanto menos explícita e consciente for a apreensão das relações de

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dominação de classe), a diferenciar um paciente em classes, treinando a diversificar sua técnica
em cuidados diferentes para cada grupo da população: o paciente de “interesse cientifico”, o
paciente do INPS3 , o paciente do posto de saúde, o paciente da indústria, o paciente da clínica
privada.
Como já vimos antes, o objeto do cuidado médico é construído e identificado no momento de
sua efetivação. Esta singularidade criadora do cuidado médico, que confere uma autonomia
preservada pela ética médica, ao adequar conhecimentos gerais a um determinado organismo que
é único e particular, permite e exige mesmo uma abordagem específica para cada caso clínico.

É justamente esta particularidade que possibilita que sob o aval da legitimidade científica e
técnica se façam medicinas diferentes para cada classe social, pois “cada caso é um caso”, e
como afirma Arouca (1975), em Medicina consome-se o cuidado médico e não o seu resultado. Na
verdade, o resultado importa apenas para garantir, em termos globais, o valor de uso da
mercadoria a ser trocada no momento. Isto porque é pela definição do objeto do cuidado no
momento mesmo em que se realiza que se torna possível a abertura da técnica médica para
práticas ideologicamente orientadas.

A Escola Médica possibilita desta forma que se produzam nos níveis técnico e ideológico as
representações condizentes com as relações de produção existentes. No entanto, esta reprodução
não se dá sem contradições. Como Bourdieu e Passeron (1975) vemos que: “Conceder ao sistema
de ensino a independência absoluta à qual ele pretende, ou ao contrário, não ver nele senão o
reflexo de um estado do sistema econômico ou a expressão direta do sistema de valores da
“sociedade global”, é deixar de perceber que a sua autonomia relativa lhe permite servir às
exigências externas sob as aparências de independência e de neutralidade, isto é, dissimular as
unções sociais que ele desempenha e, portanto, desincumbir-se delas mais eficazmente”.

É necessário então desvendar a vinculação que se estabelece entre o sistema de ensino e a


estrutura das relações de classe em um dado contexto social, ou seja, apreender os mecanismos
pelos quais a Escola Médica seleciona de forma implícita ou explícita aqueles que vão integrá-la,
impondo no processo de formação exigências teóricas e técnicas que em última análise expressam
as exigências sociais.

A assimilação da ideologia liberal se dá tradicionalmente no interior da Escola Médica, embora


crescentemente através de conflito entre o discurso liberal e as práticas empresariais. O discurso
liberal ainda se mantém, pois preenche uma unção importante: preservar no plano ideológico do
médico assalariado o ideal de autonomia, ainda que se constitua concretamente numa perspectiva
remota.

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A análise das resistências da categoria médica à sua assimilação pela produção capitalista e
de suas manifestações ideológicas torna-se bastante complexa, pelo fato do trabalho médico se
apresentar no mercado numa infinidade de combinações que podem coexistir no mesmo
profissional, reunindo formas tão distintas como profissional liberal e empresário. Na verdade, as
formas combinadas são extremamente freqüentes e atualmente predominam no mercado
profissional. Como nos mostra Donnangelo (1975), refletem a busca pelo profissional médico de
diferentes alternativas de participação num mercado em transição, da forma liberal para uma forma
capitalista de Medicina.

Não pretendendo desenvolver aqui uma análise do debate político que se trava entre as
diferentes associações médicas4, expressando seus interesses antagônicos no mercado, mas tão
somente explicitar o impacto no plano ideológico da assimilação do médico como profissional
liberal peã medicina capitalista, julgamos que uma referência às condições em que surge a
cooperativa médica – UNIMED – ilustraria bem a forma através da qual a classe médica conseguiu
atenuar este conflito, organizando-se numa estrutura empresarial competitiva no mercado, que ao
mesmo tempo lhe permitiu preservar a ideologia liberal e com ela a ilusão de autonomia.

A UNIMED surgiu em 1969. em Santos, São Paulo, como uma reação da classe médica ao
assalariamento, pela sua subordinação crescente ao sistema previdenciário e às empresas
médicas de grupo. Embora os órgãos de fiscalização (Conselho Regional de Medicina) e de
representação (Associação Médica Brasileira) de classe já viessem repudiando a mercantilização
de sua prática, ameaçando com sanções os profissionais que se assalariassem a serviço de tais
empresas, com base no artigo 3º do Código de Ética Médica (que impede a exploração do trabalho
médico por terceiros), a verdade é que ficavam na crítica sem oferecerem alternativas viáveis no
mercado, o que só vinha agravar a situação.

Ante a iminente entrada, em grande escala, de empresas médicas de grupo na cidade de


Santos, um grupo de médicos reunidos em torno do sindicato resolveu estudar o problema e tentar
resistir, através da criação de alguma forma alternativa de organização empresarial de serviços. A
conclusão foi de que a única empresa no sistema capitalista que permitiria a manutenção de uma
prática semelhante à liberal seria a cooperativa. Apesar de certo controle e fiscalização, permitiria a
manutenção da clínica particular e ao mesmo tempo evitaria que o médico tivesse que prestar
contas de seus serviços a não-médicos, assinando livro de ponto ou submetendo-se à exploração
de seu trabalho.

A contestação das condições de trabalho impostas pelas empresas médicas de grupo não era
feita apenas por razões éticas, mas assumia também um significado técnico na medida estas eram
vistas como uma séria interferência na relação médico-paciente. Esta é considerada como

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indispensável ao bom resultado terapêutico e só se configura como satisfatória se o doente puder
escolher o seu médico, senti-lo responsável pelo seu atendimento e ter confiança em seu trabalho,
não o vendo apenas como comerciante ou empregado cujas decisões técnicas encontram-se na
dependência direta do lucro de uma empresa.

As associações de classe, sob a direção da Associação Médica Brasileira, apoiaram a


iniciativa pioneira de Santos, o que estimulou médicos de outras cidades e Estados a se
organizarem nos mesmos moldes. Em fins de 1977 já existiam mais de 64 cooperativas médicas
no país, cobrindo cerca de 300 cidades, reunidas em 6 Federações Estaduais e na Confederação
Nacional de UNIMEDs. Naquele ano já contavam com 11 mil médicos cooperados,
responsabilizando-se pela assistência médica a mais de 2 milhões de usuários.

Embora competindo fortemente no mercado com as empresas médicas de grupo, a


cooperativa médica conseguiu conciliar sua expansão com certos princípios e objetivos, bem
sintetizados na carta de apresentação da UNIMED – Campinas:

“As UNIMEDs foram criadas e implantadas pela classe médica com o apoio e reconhecimento
dos órgãos normativos da ética médica, mantendo seus mais elementares princípios de
relacionamento médico/cliente e de outros que fazem parte da filosofia cooperativista: !) Manter a
liberdade de escolha do médico de família; 2) Descentralizar os atendimentos. Atendimento no
consultório dos médicos; 3) Não permitir o lucro de terceiros sobre o serviço profissional do
médico; 4) Retribuir o médico somente pelo serviço prestado e pelos valores previamente
acordados; 5) Restanelecer a sadia concorrência pelo estímulo da procura direta do cliente; 6)
Com isso, estimular o permanente aprimoramento do médico; 7) Manter a liberdade do exercício
proissional; 8) Desburocratizar a medicina; 9) Manter o mercado de trabalho para a permanente
formação de novos profissionais, que já atinge a 9.000 médicos por ano; 10) Enfim, socializar os
meios para democratizar a medicina e o médico. Não tendo interesse lucrativo, podem as
UNIMEDS oferecer Planos de Assistência Médica para Empresas, Entidades, Sindicatos,
Cooperativas e outras, mantendo um elevado padrão de assistência médica coletiva sem
massificar o usuário, pelo seu custo real, que pode ser controlado e fiscalizado permanentemente
pelos usuários, através do Conselho Consultivo da UNIMEDs”.

Por não dispor de infra-estrutura própria – hospitais, laboratórios clínico – (“faz parte do
cooperativismo não capitalizar ou capitalizar o mínimo possível”), a UNIMED se constitui em
importante compradora de serviços particulares, pagando pelos mesmos, taxas pré-fixadas,
sempre maiores do que as estabelecidas pelo INPS.

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Embora se proponha “não capitalizar”, na verdade a proposta da UNIMED é de não capitalizar
sobre o trabalho médico assalariado, fazendo com que o médico co-participe dessa capitalização.
A UNIMED defende e realiza a expansão da medicina capitalista, constituindo-se em importante
compradora da rede privada de hospitais e laboratórios clínicos. Dispondo de recursos para
remunerar os serviços quem compra a preço bem acima da tabela do INPS, favorece a
concentração dos serviços sobre uma parcela mais privilegiada as população assalariada,
absorvendo uma parte considerável dos recursos do INPS transferindo a rede privada.

Muitas empresas, dado o custo elevado dos serviços prestados pela UNIMED, chegam a propor
convenio apenas para parcela diferenciada pelo seu pessoal. Nesse esquema, acaba ocorrendo
uma divisão de trabalho entre a UNIMED e o INPS, ficando este ultimo com a massa dos
trabalhadores. Isso ocorre no caso dos chamados convênios não-homologados, em que o INPS
não atuar como intermediário no convenio entre empresa e empresa médica, continua responsável
pelo atendimento de todos os trabalhadores de empresa nas filas de seus ambulatórios próprios.

A UNIMED, embora aceite a divisão do trabalho com o INPS, recusa-se por principio a assinar
convênios em que o trabalho seja dividido com as empresas médicas de grupo, embora estas
ultimas, por colaborarem mais barato, pudesse encarregar do restante dos trabalhadores não
cobertos pela cooperativa.

De qualquer forma, ao favorecer a concentração dos recursos sobre os empregados de nível


mais alto na hierarquia das empreses, a UNIMED contribui para acentuar a desigualdade para
assalariados.

Os trabalhadores que conseguem se beneficiar deste sistema empresarial médico vêm nesta
modalidade de prestação de de serviços uma atraente forma de salário indireto. Determinados
sindicatos, de inicio contrários á criação de cooperativas, vendo-as como mais uma forma de
empresa médica, costumam considerar a UNIMED como uma das melhores alternativas de
atendimento. Muitos trabalhadores , ao buscarem novo emprego, já indagam o tipo de cuidado
médico oferecida, preferindo as empresas que se servem das cooperativas médicas.

A entrevista realizada a pesquisas de campo em Campinas5 com um executivo vinculado ao


departamento de pessoal de empresa multinacional ligada ao setor eletro-eletrônico é bastante
esclarecedora que os convênios como a UNIMED assumem como salário indireto:

“... as empresas costumam seguir certa ética, não pagando salários diretos mais alto do que as
congêneres. Como o nível de aspiração e expectativa dos trabalhadores que mais nos interessam

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está acima do que o INPS ea medicina de grupo oferecem, a UNIMED é uma forma de salário
indireto e serve para atrair o pessoal melhor.”

Aos benefícios que tiverem sua assistência transferida para a cooperativa médica, a mudança
agradou bastante. Diante as entrevista referentes à UNIMED foram realizadas em Campinas sob
nossa coordenação pelo Dr. Maurício Jacinto da Silva como parte do trabalho de campo da
pesquisa Trabalho em Saúde, Arouca eldii (1978). Cabe ressaltar que foram estudadas apenas
algumas das inúmeras (consta que existem mais de 100) modalidades de contato da UNIMED da
situação deprimente e humilhante de enfrentar as filas do INPS, a UNIMED representa um novo
padrão de consumo de serviços médicos: significa a possibilidade de escolha do médico (ainda
que limitada à disponibilidade dos médicos da cooperativa), não ir para a fila de madrugada e ser
atendido no consultório particular. Como expressou um ex-usuário em entrevista em Campinas:

“Eu era empregado, mas saí para trabalhar ‘por conta própria’. A única coisa que eu, e
principalmente minha mulher, lançamentos foi a perda da UNIMED. Eu fui operado, meu filho e
minha mulher estiveram internados com o médico que agente escolheu, sem qualquer despesa.
Hoje, se eu quiser o mesmo tratamento, tenho de pagar do meu bolso. Eu quis fazer convenio
pessoal da UNIMED mas eles não aceitaram e disseram que o assunto ainda estava em estudos.”
(o depoente trabalhava m multinacional em ramo elétrico e atualmente é construtor autônomo).

Para muitos médicos o surgimento da UNIMED representou a garantia de sua prática liberal,
conforme dois depoimentos obtidos com médicos em Campinas:

“O número de consultas que atendo aumentou bastante, depois que entrei para a UNIMED. O
povo precisa de tratamento mais não gosta de INPS e não tem dinheiro para pagar. Dos pacientes
que me procuram pela cooperativa, no máximo dez pó cento teriam condições de pagar a consulta.
Além disso, é um pessoal fácil de lidar. Só de pisar ali no meu consultório bonitinho, já fica
satisfeito. Não reivindica muito; não enche o saco” (depoimento de cooperador que se indica a
clinica geral e endocrinologia, formado há 12 (doze) anos e bem conceituado entre os colegas e
clientes).

“Olha, a UNIMED é a salvação para muito médico. Tinha colega que só não fechava o
consultório pata manter o “status”. Não fazia nem para pagar as despesas. Agora ele recebe um
outro salário.” (depoimento de cooperado formado há cinco anos, dermatologista).

Prosseguindo em seu processo de expansão no mercado, a UNIMED pretende obter uma maior
transferência de recursos do INPS. Através de estudos e pesquisas mostrar – e em comparação ao
INPS – a boa qualidade dos serviços que oferece, objetiva uma ampliação da cobertura de

13
previdenciários, através de maiores incentivos. As principais reivindicações estão expressas em
estudos realizados pela UNIMED Campinas :

“a) facilidade de convênios de todos os portes com os sistemas cooperativos.

b) elevação do valor do reembolso pago pelo INPS às empresas, para 8 ou 10% do salário-
mínimo real por trabalhadores, estimulando-as participarem do convênios.

c) possibilidade de entrada de pessoa física no sistema, havendo desvinculação do INPS,


mediante a devolução da mesma parcela

d) permissão para cobrar do usuário parte do custo da assistência prestaa determinada faixa
salarial.

e) manutenção dos serviços próprios do INPS apenas para a faixa previdenciária de menor
poder aquisitivo (domésticos, usuários do FUNRUAL, etc.)”.

O questionamento da privatização da medicina, gerando os conflitos que acabaram culminando


na UNIMED, encontrou na própria privatização, através da estrutura da cooperativa, uma
possibilidade de defesa da “classe médica” como categoria profissional, criando um mercado
compatível com os padrões éticos da categoria. Na verdade, este questionamento só existiu
enquanto a privatização, através da empresa médica de grupo, ameaçava o completo
assalariamento da categoria. Quando o esquema cooperativista passou a permitir a expansão da
empresa médica sem absorver o médico na condição de empregado, mantendo a ilusão de

autonomia, passou a contar com classe médica como importante aliada.

O processo de assalariamento médico no Brasil teve sua origem na constituição de uma


medicina de massa, que decorreu da expansão da expansão da assistência médica previdenciária
e de sua privatização.

À expansão da medicina privada no país, que se intensificou na década de 60, correspondeu


uma expansão das escolas médicas, gerando um contingente de profissionais que pudesse se
constituir em força de trabalho para as novas forma de organização da Medicina que emergiam no
mercado.

No período compreendido entre 1966 e 1972, o número de matrículas nas escolas médicas, na
primeira série, elevou-se de 3.800 a 9.000. Só em São Paulo, no ano de 1971, o total de alunos

14
nas Faculdades de Medicina ascendia a 6.403, como resultado também de uma grande expansão
do ensino privado6.

Lançou-se, dessa forma, no mercado, um contingente de profissionais que dificilmente seriam


absorvidos pela estrutura de emprego existente, o que acabou criando condições favoráveis ao
barateamento do trabalho médico e ao aviltamento de suas condições de trabalho, ao ponto que
em pesquisa realizada Donnangelo (1975) mostrava que, para manterem condições de trabalho
minimamente compatíveis com sua condição de “profissional liberal”, os médicos chegaram ao
ponto de ter que trabalhar em média 50 horas semanais, combinando as mais diversas
modalidades de vinculação empregatícia.

Estas precárias condições de trabalho acabaram fazendo com que mais recentemente os
órgãos representativos viessem a adotar, cada vez mais intensamente, por força de movimentos
internos de renovação e pela pressão dos profissionais recém-ingressos no mercado, uma nova
postura diante do assalariamento, assumindo-o como uma realidade a ser enfrentada. Na condição
de trabalhadores, passaram a lutar por condições de assalariamento condigno, abandonando a

postura liberal e posicionando-se deste modo junto aos demais assalariados.

Conclusão

Este trabalho teve como principal objetivo mostrar que a ótica correta para o exame das
relações entre as condições de saúde da população e a organização social da medicina está no
estabelecimento de um corte analítico que parta das formas de absorção e consumo da população
pelo sistema produtivo. Propõe partir de um conceito socialmente determinado de saúde para
entender a medicina e não o inverso.

Embora necessário, não basta examinar o problema pelo lado das instituições médicas e das
políticas sociais: o ponto de partida fundamental consiste em tomar como base a determinação
social da doença e a partir daí tentar compreender como o “sistema de saúde” se organiza frente
às necessidades socialmente geradas

A estrutura institucional acompanha, como vimos na análise do “complexo previdenciário”, as


relações da população como a organização da produção. As instituições médicas não devem ser
vistas como constituindo apenas um núcleo homogêneo sobre o qual se realiza a maior parte da
acumulação capitalista no “setor saúde”, gerando pressões no sentido de transferir recursos do
setor público para o privado. A diferenciação da cobertura, não apenas entre medicina pública e
privada, mas no interior mesmo da medicina capitalista responde à heterogeneidade no

15
atendimento da demanda gerada pela própria atividade produtiva.

2. As mudanças no Mundo do Trabalho e a Qualificação do Trabalho em Saúde –

Considerações Finais 1

Rogério Miranda Gomes2

A qualificação do trabalho em saúde é, portanto, processo histórico de adequação entre esses


constituintes do trabalho – trabalhador, meios e objeto – e a correspondência dessa conformação
com as finalidades socialmente instituídas para o trabalho em saúde. Estar qualificado para o
trabalho em saúde, significa, em última instância, corresponder às expectativas postas para o
processo produtivo pelas relações sociais de produção, sejam expectativas no plano da técnica,
sejam no plano da subjetividade. É sempre importante lembrar que o processo de qualificação para
o trabalho, ao contrário do que costumamos pensar, não se restringe aos aparelhos formais de
treinamento, como escolas técnicas e universidades. A dimensão superestrutural da qualificação,
que se refere à internalização de normas, valores e relações sociais que, por sua vez, expressar-
se-ão em padrões de comportamento e disciplinamento em relação ao mundo da produção, é
adquirida a partir dos mais diversos mecanismos presentes na sociedade. Desde relações
familiares até a escola, passando pelas formas institucionais e não institucionais de convívio social,
todas essas esferas tendem a reproduzir, com suas diversas particularidades, os padrões sociais
de comportamento necessários a uma adaptação ao mundo do trabalho. Inclusive os próprios
serviços de saúde são parte desse processo, pois, ao reproduzirem os padrões de normalidade
aceitos socialmente e as representações sociais acerca do corpo, do normal e do patológico,
ajudam a conformar padrões de comportamento que influenciarão a adaptação dos sujeitos ao
mundo do trabalho, aí incluído o trabalho em saúde.

A dimensão infraestrutural da qualificação para o trabalho, por sua vez, que se refere ao
treinamento técnico (manual e intelectual) para o exercício de determinadas atividades, tende a
realizar-se em dois espaços: Nos aparelhos formadores, como escolas técnicas e universidades, e
no próprio processo produtivo. Os primeiros tendem a centrar-se na dimensão teórica, no ensino
das técnicas e saberes necessários à realização das práticas. Os segundos correspondem ao lugar
da práxis, onde agente do trabalho e processo prático de produção encontram-se mediados pela
teoria adquirida. Aqui acontecerá o processo prático de qualificação, onde o trabalhador deparar-
se-á com problemas práticos do mundo da produção e terá de enfrentá-los, seja recorrendo a
saberes adquiridos externamente, seja recorrendo e (re)inventando conhecimentos práticos
próprios desse espaço.

16
No caso do trabalho em saúde, temos visto que o processo de qualificação técnica ao realizar o
movimento, típico do trabalho sob o capitalismo, de subordinação do trabalho aos preceitos das
ciências modernas e de definição de espaços institucionais para difusão desses conhecimentos
vinculou a qualificação técnica às escolas formadoras (universitárias e técnicas). Esse foi um
processo fundamental para dar legitimidade social a essas práticas ao mesmo tempo em que
deslegitimava as demais práticas que não se subordinaram à racionalidade médica positivista,
como aquelas oriundas de saberes populares ou exercidas por “práticos” advindos de períodos
históricos anteriores. Porém, uma particularidade do trabalho em saúde, em relação a outras
apresentações de trabalho “mais intelectual”, refere-se à estreita vinculação das instituições
formadoras com os espaços produtivos. SCHRAIBER (1989) ao analisar a educação médica, e
pensamos que podemos extrapolar para os demais trabalhos em saúde, ressalta a importância que
teve a consolidação do hospital nesse processo. A partir disso, o processo de qualificação técnica
do trabalhador em saúde passou a constituir-se do que a autora denominou como momento-escola
e momento-hospital, referindo-se à formação mais teórica, nas escolas de saúde, e aos momentos
mais práticos nos serviços de saúde. Não obstante as modificações a que esse processo tem sido
submetido, pensamos que, em essência, a qualificação dos trabalhadores da saúde continua
seguindo esse método geral. As particularidades referem-se principalmente aos diferentes
conteúdos que cabem a um ou outro trabalhador parcelar, particularidades que se expressam
também nos tempos requeridos e na divisão prioritária entre um ou outro dos momentos-formação.
Os trabalhadores mais intelectuais (de cursos superiores), por exemplo, são submetidos a um
processo mais longo de formação teórica, enquanto que os de nível técnico têm sua formação
direcionada para a educação profissional, ou seja, maior dedicação aos treinamentos em serviços.

O movimento de qualificação técnica tenderá a acompanhar, com maior ou menor


correspondência temporal, as transformações ocorridas ao nível do processo de trabalho em
saúde. Portanto, todos os aspectos por nós analisados ao longo dessa dissertação – constituição
do trabalho coletivizado e parcelarizado; especialização do trabalhador; impacto das diversas
apresentações tecnológicas, entre outros – assim como suas contradições, irão impactar os
processos educativos em saúde. Geralmente, as transformações ocorridas no processo de
trabalho, e suas contradições, não apresentam reflexo imediato nos conteúdos e métodos
utilizados nos aparelhos formadores. Costuma haver uma distância entre esses dois mundos
(acadêmico e do trabalho), porém, quando as transformações consolidam-se e universalizam-se, a
academia é obrigada a acompanhá-las. Inclusive, pensamos que grande parte das novas
elaborações acadêmicas acerca das mudanças do trabalho em saúde reflete uma apreensão
dessas transformações em curso, ainda que em germe.

Um exemplo atual dessa interseção entre academia e trabalho parece ser a atual “exaltação” da
“pedagogia das competências” nas atuais propostas de reformas curriculares, principalmente de

17
cursos técnicos, mas também de cursos superiores. Como vimos, a idéia de competências surge
na década de 70, muito vinculada à aquisição de habilidades técnicas parcelares, e, com o advento
de formas produtivas mediadas pela microeletrônica, passa a ganhar uma dimensão de habilidades
cognitivas de articulação de tecnologias e conhecimentos teóricos e práticos, além de enfatizar
características mais comportamentais/disciplinares de adesão aos projetos instituídos no trabalho.

Não é nossa intenção, como já dissemos antes, adentrar o mundo das polêmicas acerca das
inúmeras propostas que cotidianamente apresentam-se em relação aos currículos da área de
saúde. Não obstante, pensamos ser oportuno tecer alguns comentários acerca dessa proposta
específica, visto que tem se tornado quase uma “unanimidade” quando o assunto é educação e
trabalho.

Um primeiro aspecto que queremos ressaltar é a pluralidade de concepções acerca do que


seria a chamada qualificação baseada em competências. Apresentam-se, desde concepções mais
voltadas ao treinamento de habilidades técnicas parcelares, que são em menor número e parecem
estar perdendo espaço, até concepções que praticamente colocam a competência como sinônimo
moderno de qualificação para o trabalho, com toda a complexidade que a totalidade concernente a
essa categoria constitui. Uma primeira ressalva que pensamos ser importante fazer é que, assim
como KUENZER (2002b), compreendemos a categoria competência como advinda e inerente ao
processo de trabalho. Independente da idéia, dita taylorista-fordista, de competência como
treinamento de habilidades parcelares, ou de competência baseada na articulação de tecnologias e
saberes da “especialização flexível”, tratam-se efetivamente de técnicas e “modos de operar”
adquiridos nos processos de trabalho concretos. Referem-se ao exercício prático no trabalho. As
conseqüências de trazer essa categoria do trabalho para a educação, no caso da área de saúde,
tem sido a formulação de diretrizes, como essa, que defendem que

A orientação dos currículos por competência, na área da saúde, implica a inserção dos estudantes,
desde o início do curso, em cenários da prática profissional com a realização de atividades
educacionais que promovam o desenvolvimento dos desempenhos (capacidades em ação),
segundo contexto e critérios. Nesse sentido, cabe ressaltar como aspectos de progressão do
estudante o desenvolvimento crescente de autonomia e domínio em relação às áreas de
competência. Essa inserção pressupõe uma estreita parceria entre a academia e os serviços de
saúde, uma vez que é pela reflexão e teorização a partir de situações da prática que se estabelece

o processo de ensino-aprendizagem (LIMA, 2005: 376).

18
Esse aspecto, no caso do trabalho em saúde, pode ser uma alternativa de método para a
organização dos treinamentos nos momentos-serviços da qualificação, porém, o processo de
qualificação, principalmente do trabalho em saúde, não é constituído somente por essa dimensão
da qualificação. Exige-se, para o exercício das práticas em saúde, a apreensão dos conhecimentos
científicos produzidos pela humanidade ao longo de sua história e sistematizados no corpo das
ciências que ajudam a compreender e intervir sobre o objeto do trabalho em saúde. Conhecimento
acerca do corpo, dos padrões de normalização, simultaneamente biológica e social, definições
acerca do patológico e suas nuances etc. Se a categoria competência referese à articulação de
saberes e tecnologias, é preciso, antes, dominar esses saberes e tecnologias a fim de articulá-los.
Se no caso da produção industrial de “bens materiais” a tecnologia está consubstancializada em
máquinas, no caso da produção da assistência à saúde a tecnologia, como vimos, encontra-se
hegemonicamente consubstancializada em saberes científicos, que precisam ser apreendidos,
sendo que o espaço prioritário para isso não é o do trabalho, mas o da escola.

Entretanto, é preciso buscar as raízes que fazem com que a categoria competência ganhe
tantos adeptos no meio acadêmico da saúde. E aí, pensamos que a parcelarização do trabalho,
cada vez em estado mais avançado no trabalho em saúde, contribuindo para a distinção entre
trabalhadores intelectuais e manuais, pode ser identificada como o substrato material da pedagogia
das competências. Os trabalhadores ditos de “nível técnico” tendem a restringir suas práticas a
tarefas manuais, supervisionadas pelos de “nível superior”. Se a lógica é formar trabalhadores
manuais parcelares, com saberes muito restritos, subordinados a trabalhadores “mais nucleares”,
um método que se proponha a centrar na formação prática em habilidades parcelares pareceria
representar uma alternativa adequada1. Porém, vimos como a questão da interconexão das
práticas parcelares é hoje, mais do que nunca, um problema posto para o trabalho coletivo em
saúde. Trabalho que não possui a maquinaria como elemento unificador e tem de recorrer à
riqueza e complexidade do trabalhador coletivo e seus saberes como catalisadores dessa
unificação. Pois bem essa unificação somente pode dar-se caso os trabalhadores possuam pontos
de interface, sejam campos de domínio comum, sejam saberes/tecnologias-mestras direcionadoras
do processo de trabalho. Por exemplo, o exercício da gestão coletiva, como vimos, pode ser um
instrumento que ajude os trabalhadores parcelares a conhecerem, mesmo de forma abstrata, o
processo de trabalho em sua totalidade, facilitando, assim, a integração entre as práticas
parcelares. Ou as normatizações com base em um saber comum, aepidemiologia, por exemplo,
pode constituir-se nesse fio condutor. Mas para que isso seja possível é necessário que cada
trabalhador possua um arsenal de saberes que extrapole seu campo de práticas parcelares.
Articular saberes envolve o domínio dos mesmos, ainda que em níveis diferenciados. Isso exigiria,
por exemplo, que os trabalhadores de nível técnico possuíssem uma formação que privilegiasse o
domínio de alguns campos de saberes centrais para a articulação do trabalhador coletivo, para
além das habilidades manuais parcelares. Noções de epidemiologia, de gestão no trabalho, de

19
determinações sociais sobre os conceitos de corpo, normal, patológico. Isso não são habilidades a
serem adquiridas como competências no processo de trabalho, mas conhecimentos que somente
podem ser adquiridos a partir do aprofundamento no mundo das ciências. E o espaço para essa
abordagem não é aquele do mundo do trabalho, do treinamento em serviços de saúde, é o espaço
da escola, da academia.
Mas não são somente as profissões de “nível técnico” que sofrem o assédio da pedagogia das
competências. O processo de parcelarização também atinge o trabalho mais intelectual, como
vimos, sendo a especialização médica um exemplo emblemático. Pois bem, já começam a surgir
experiências de reforma curricular para essas profissões, também baseadas, em diferentes graus,
na teoria das competências. No caso do curso de medicina isso se expressa, ainda que não
explicitamente, na proposta do PBL (Problem based learning) que foi implantada em algumas
faculdades do país e que tem como diretriz a utilização de “problemas práticos” como pontos de
partida para a reflexão teórica dos alunos e para a articulação das diversas disciplinas (BERBEL,
1998). A idéia geral dessas propostas é direcionar os estudos para os problemas mais práticos do
trabalho, hipertrofiando a parte do curso relativa a essas atividades em detrimento de carga “mais
teórica”, como forma de estimular mais os alunos a se interessarem pelos conteúdos. Como os
médicos deixam progressivamente de se constituírem como profissionais centralizadores do
processo de trabalho em saúde em sua totalidade, restam às propostas curriculares reduzirem a
carga de formação voltada para as ciências básicas, aquelas que propiciam uma apreensão menos
prática e mais científica (mais ampla) acerca do corpo. Em compensação, cabe direcionar o
processo de formação para atividades mais práticas, resolutivas de problemas concretos, porque

se entende que

Na abordagem dialógica de competência, a construção de significado pressupõe a transferência da


aprendizagem baseada nos conteúdos para uma aprendizagem baseada na integração teoria-
prática. É na reflexão e na teorização a partir das ações da prática profissional, preferencialmente
realizadas em situações reais do trabalho, que estudantes e docentes constroem e desenvolvem

capacidades (LIMA, 2005: 374).

Não estamos aqui questionando a importância de se aprender a resolver os problemas práticos


no processo de trabalho. Em última instância, é esse o fim último do trabalho: resolver os
problemas práticos postos para a vida dos homens. Trata-se aqui de demonstrar como para
resolver os problemas está sendo necessário um aporte progressivamente menor de saberes
científicos adquiridos, enquanto aumenta a necessidade de treinamento prático em áreas
parcelares. Decresce a necessidade do saber acerca do trabalho enquanto predomina a formação
voltada para o fazer. Não configura novidade a medicina ser apreendida como atividade
essencialmente prática, terapêutica. Como vimos, o caráter relativamente contemplativo dos

20
antigos físicos em relação à doença foi completamente abolido do trabalho médico moderno,
guiado pela racionalidade positivista. Esse foi um processo pelo qual passaram as ciências de uma
maneira geral, ou seja, as relações sociais capitalistas colocam como critério de legitimidade para
o saber, sua interferência sobre as demandas práticas colocadas pela produção. Foi preciso que
as ciências perdessem seu caráter “contemplativo” e

adquirissem uma dimensão “produtiva” para o capital. As ciências vinculadas à saúde e à doença
também percorreram esse caminho, liberando as forças produtivas para darem saltos fantásticos
na capacidade de apreensão da organicidade humana. Logo, as práticas em saúde a partir do
século XX passaram a ser guiadas pelos preceitos científicos acerca do corpo anatomofisiológico,
fazendo com que os saberes outros (como, por exemplo, o conteúdo “mais humanístico” presente
na medicina até o renascimento) fossem progressivamente secundarizados nesse processo. A
parcelarização, por sua vez, não aboliu a indissociabilidade entre saber e fazer nas práticas em
saúde, embora a tenha restringido a campos parcelares. Um odontólogo, embora domine um
campo parcelar do trabalho em saúde, domina o conhecimento científico acerca das patologias
bucais como pressuposto para exercício das práticas tecnológicas que opera cotidianamente. Se
no trabalho industrial a ciência está na maquinaria, no trabalho em saúde ela continua no
trabalhador, individual (parcial) e coletivo (integral). Os exaltadores da pedagogia das
competências não negam essa articulação teoria-prática, pelo contrário, enfatizam-na. A questão é
que, a nosso ver, incorrem em um equívoco ao confundirem processo de transmissão com
processo de construção do conhecimento. Um autor, por nós muito utilizado nessa dissertação,

nos ajudará uma última vez.

É mister, sem dúvida distinguir, formalmente, o método de exposição do método de pesquisa. A


investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes
formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de
concluído esse trabalho é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se
consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a

impressão de uma construção a priori (MARX, 2001: 28).

Essa citação do autor é fundamental para diferenciar construção e transmissão do


conhecimento. No primeiro caso, da investigação do real que leva à construção do conhecimento,
parte-se da matéria, ou seja, da ação prática sobre o mundo, dissecando-o em seus pormenores e
descobrindo seus processos e interconexões. Já na exposição, ou transmissão do processo
conhecido, parte-se do pólo contrário. É a partir das categorias teóricas elaboradas acerca do real
que se lhe explica seu processo de desenvolvimento. Portanto, é da teoria que se parte no
processo de educação escolar. Portando-a é que se torna possível intervir sobre o mundo de forma
a transformá-lo e, concomitantemente construir novos saberes, constituindo o movimento

21
ininterrupto da práxis. O processo de formação técnica para o trabalho é, fundamentalmente,
processo de transmissão de conhecimento já produzido. Quando a autora nos diz que “Na
abordagem dialógica de competências, a construção de significados pressupõe a transferência da
aprendizagem baseada nos conteúdos para uma aprendizagem baseada ma interação teoria-
prática.”(LIMA, 2005: 374. Grifos nossos) esquece-se que “os conteúdos” já se referem a
sistematizações anteriores da relação teoria-prática. E que para participar da interação “teoria-
prática” é preciso dominar a teoria, e não se domina a teoria no espaço dessa interação, pois esse
espaço é o trabalho. O local para se acessar a teoria é, principalmente, o espaço da escola. A cada
movimento que os aparelhos formadores fazem no sentido de abrirem mão desse papel, sob o
pretexto de “melhor integrarem-se ao mundo do trabalho”, a nosso ver, mais contribuem para o
afastamento da possibilidade de acesso aos conhecimentos científicos pelo conjunto dos
trabalhadores. Se no caso da produção dominada pela maquinaria isso não afeta o processo de
trabalho, receamos que no caso do trabalho em saúde não se possa dizer o mesmo.

Bem, mas esse processo, sempre bom lembrar, somente encontra eco porque corresponde a
necessidades postas pelas relações sociais de produção hegemônicas. Vimos como é tendência
inerente ao modo de produção capitalista, o processo progressivo de expropriação do saber acerca
do trabalho do conjunto dos trabalhadores a fim de estabelecer pleno controle sobre o processo
produtivo. No entanto, também vimos como, no caso do trabalho em saúde, esse processo cria
contradições que ameaçam a efetividade do processo de “produzir assistência à saúde”.

As experiências que se propõem a solucionar algumas dessas contradições apresentam-se,


tanto do ponto de vista do capital, quanto do ponto de vista de projetos mais comprometidos com
ideais emancipadores. Pensamos, portanto, que os conhecimentos construídos no trabalho, a partir
da relação teoria-prática, sua maioria na forma de saberes tácitos, devem ser objeto dos diferentes
processos particulares de trabalho; não sendo função dos centros formadores o de propiciá-lo,
embora, no caso da qualificação técnica do trabalho em saúde, esse processo inicie-se já nos
espaços de interação escola-serviço. Logo, a nosso ver, deve caber aos aparelhos formadores
centrarem sua ação naquilo que o trabalhador dificilmente encontrará nos processos de trabalho: a
socialização da ciência produzida historicamente pela humanidade em cada campo particular do
trabalho.

Tentou-se nessa dissertação demonstrar a existência de um movimento. Essa nem sempre é


tarefa simples, pelo contrário, geralmente a dificuldade é de dupla origem: primeiro, conseguir
apreender o movimento e, depois, conseguir demonstrá-lo. Demonstrá-lo significa dissecá-lo em
seus múltiplos aspectos buscando a interrelação entre eles, elementos nem sempre de fácil
acesso. Como dissemos no início, somos adeptos de um método, método que, ao mesmo tempo
em que tenta se afirmar, vive em constante disputa com outros métodos advindos de diferentes

22
concepções acerca da realidade. Fazer essa disputa, entretanto, entre quais são as teorias mais
fidedignas em interpretar como a realidade existe, conserva-se, transforma-se, etc., não é motivo
de angústia. Esse processo, ao contrário, torna-se fonte permanente de prazer e realização,
sentimentos esses advindos da possibilidade que se vislumbra, ao proceder tais incursões, de
poder contribuir, na dimensão daquela gota de oceano, para a compreensão e intervenção sobre
nosso objeto. Mormente quando o objeto que se apresenta para nós é algo de uma complexidade
e importância tão grande para a humanidade quanto a que possui o trabalho em saúde. Portanto, o
processo de disputa com outros métodos acerca da melhor interpretação e, consequentemente, da
melhor intervenção sobre o real é inerente ao processo do conhecimento e nos causa gratificação.
Não obstante, a disputa mais desgastante é a que se tem de fazer com outras compreensões
típicas do período histórico que vivemos que negam a existência de métodos capazes de
apreender o real em sua complexidade. Coerentemente com um período em que se afirma o “fim
da história”, a superação de teorias que se proponham apreendedoras de totalidades, o surgimento
de tantos “pós”, surgem diversas concepções que negam a existência de determinações maiores
dos processos sociais. A realidade passa a ser, para essas teorias, por demais fragmentada, não
somente constituída por múltiplas determinações como destituída de hierarquia entre elas, sem

nexos apreensíveis e sem leis a serem compreendidas. O real passa a tornar-se algo
incognoscível, incapaz de apreensão, sem leis em seu desenvolvimento. As produções teóricas
passam a centrar-se em experiências “do cotidiano”, categoria muito valorizada nesses tempos.
Mas não como expressão singular, que após o conhecimento das leis do universal poderão
propiciar a apreensão da complexidade inerente ao seu caráter particular. O cotidiano, o singular,
passa a representar o único ponto passível de apreensão para essas concepções, quase como se
criassem uma interdição no processo de passagem do concreto sensorial para o concreto
pensado. Por isso, optamos por uma investigação que não tivesse como objeto, novos “relatos do
cotidiano”, mas que se aproveitasse de relatos já realizados como forma de tentar apreender suas
determinações, suas leis.

Tentamos mostrar como qualificar-se para o trabalho significa tornar-se apto para execução de
práticas determinadas por necessidades históricas dos homens, sob certos “modos de existir”,
certos modos de organizar a vida social. “Modos” que ao serem constituídos constituem os homens
que, por sua vez, os (re)constituem. Tentamos mostrar também como esse processo não se
apresenta linear e harmonicamente, mas, pelo contrário, apresenta-se em movimento
permanentemente contraditório. Criando “tensões”, ao mesmo tempo em que reproduz o instituído.

A qualificação do trabalho em saúde apresenta-se, assim, como esse estar-sendo “tenso”,


contraditório, porém seguindo algumas tendências que nos ajudam a apreender aspectos de seu
devir. Cabe optar quais tendências são importantes de serem impulsionadas, mesmo que sua

23
efetivação não esteja posta nos padrões de temporalidade que nosso apego ao ser individual nos
limita a vislumbrar, em razão da incompreensão do gênero humano como histórico. Em meio a
essa limitação, as palavras de BRECHT (2000: 294) podem proporcionar um alento:

As novas eras não começam de uma vez

Meu avô já vivia no novo tempo

Meu neto viverá talvez ainda no velho.

A nova carne é comida com os velhos garfos.

3. ORIGEM DA NECESSIDADE DE MUDANÇA NA EDUCAÇÃO MÉDICA1

Guilherme Albuquerque*

A argumentação mais freqüente em torno das necessidades de mudança da educação médica


gira em torno da sua inadequação para a produção de uma prática que responda às necessidades
atuais do cuidado médico, originadas pela transição epidemiológica e pelo avanço significativo dos
meios de produção ligados à atenção médica. Uma reflexão mais profunda, no entanto, é
necessária, se não para refutar completamente tais argumentos, para complementá-los.

Num contexto no qual o desenvolvimento da produção em geral obteve grande incremento de


produtividade, ao lado da substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto2 e a reprodução da vida
de significativa parcela da humanidade passou a ser desnecessária para o Capital, as
conseqüências para o setor da saúde devem ser avaliadas com muito cuidado.

Como os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução


estão intimamente associados (MÉSZÁROS, 2005), caberia questionarmo-nos acerca das
possíveis repercussões sobre as políticas de educação e de saúde nas sociedades Capitalistas,
decorrentes do surgimento desta massa de (ex) trabalhadores sobrantes.

Seguindo a lógica Capitalista, de subordinação da vida aos interesses do Capital, como


seriam as políticas voltadas para esta imensa parcela da população mundial?

Para Offe (1994), não há perspectiva de utilização e manutenção desta força de trabalho. Não
há perspectiva de reconstrução do pleno emprego e, portanto, dos fundos públicos serem
utilizados para a reprodução da força de trabalho. Como são pessoas desnecessárias tanto para a

24
produção de mercadorias, como para o seu consumo, uma vez que seus ingressos não lhes
permitem consumir os produtos que interessam ao grande Capital comercializar, sua sobrevivência
não interessa à sociedade globalizada.

A revolução tecnológica e a globalização competitiva resultam no desaparecimento estrutural


de empregos. Neste sentido, a formação de grande parcela de profissionais parece perder
completamente o sentido. (CATANI, OLIVEIRA e DOURADO, 2001).

Mas se a massa de desvalidos não é necessária para o mercado, sua insurreição contra o
regime, pelas intoleráveis condições de sobrevivência, poderia abalar a ordem. É preciso, então,
mantê-los minimamente satisfeitos. Diante do desamparo, manter a sensação de amparo, manter a
idéia de alívio das condições de miserabilidade que seriam advindas de sua própria incapacidade
de inserção no circuito principal de produção e consumo.

Nestas condições, cabe à saúde, executar ações simplificadas ao máximo, porque de menor
custo, mesmo que ineficazes para recuperar as condições de funcionamento destes corpos como
força de trabalho, já que sua utilização para este fim não será necessária. Esta simplificação
visando a redução de custos, mesmo que resultando em piora da qualidade, segundo Rizzotto
(2005), já estaria ocorrendo, de alguma forma, em nosso Sistema Único de Saúde (SUS).

Vivemos atualmente no Brasil em meio a uma intensa disputa entre aqueles segmentos que
defendem um sistema de saúde com as características definidas em nossa constituição e aqueles
que defendem os interesses rapaces dos segmentos nacionais ou internacionais da subordinação
da vida e da saúde à lógica do lucro. Grande parte do movimento que hoje observamos deve-se à
influência dos organismos internacionais. Da Organização Mundial da Saúde ao Banco Mundial, as
influências são diversas e, em especial nos tempos atuais, bastante nefastas. Vale a pena
recuperar brevemente a história da intervenção destes dois organismos para melhor compreensão
da atual conjuntura.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) é uma agência multilateral especializada do sistema


da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo Brown, Cueto e Fee (2006), antes de sua
criação outras instituições e agências internacionais já se envolviam com as questões da saúde
internacional. Em 1902 já se pensou em uma instituição permanente para a saúde internacional
com a organização da Oficina Sanitária das Repúblicas Americanas, que décadas mais tarde
converteu-se na Oficina Pan-Americana de Saúde e, a partir de 1959, na Organização Pan-
Americana da Saúde.

Também a Fundação Rockefeller com sua divisão internacional de saúde teve grande
importância no início do século XX, pela influência nas ações e direcionamentos de saúde em

25
diversos países, implementando várias campanhas contra ancilostomose, febre amarela e malária,
além de oferecer bolsas de estudo para estrangeiros para medicina, saúde pública e enfermagem
nos EUA.

Outras duas importantes agências internacionais da saúde, que se estruturaram em torno do


ideário da saúde internacional, foram a Office International d’Higiéne Publique e a Organização de
Saúde da Liga das Nações. A Office International d’Higiéne Publique iniciada em 1907 em Paris
concentrava suas atividades na administração de acordos sanitários internacionais e no
intercâmbio rápido de informação epidemiológica e a Organização de Saúde da Liga das Nações,
que começou seus trabalhos em 1920, com sede em Genebra na Suíça, investiu na publicação de
vários informes técnicos e de vigilância epidemiológica sobre as epidemias que ameaçavam as
principais cidades e portos do mundo.

Dentre as medidas tomadas para viabilizar a nova ordem mundial no pós-Segunda Guerra, em
1945, numa conferência realizada em São Francisco, aprovou-se a criação das Nações Unidas e a
realização de uma reunião que criasse uma nova agência especializada em saúde. Formou-se
então a Comissão Interina da Organização Mundial da Saúde que se reuniu entre 1946 e 1948
para estabelecer a nova organização da saúde internacional, cuja constituição acabou
incorporando as antigas agências. A sobrevivência da Oficina Pan Americana de Saúde, criada
anteriormente, foi permitida, mantendo certa autonomia como parte de um esquema de
regionalização e descentralização das ações da Organização Mundial da Saúde. Em 1948 a
primeira Assembléia Mundial da Saúde reuniu-se em Genebra e criou formalmente a Organização
Mundial da Saúde, com sede em Genebra.

Os EUA principal contribuinte do financiamento da Organização Mundial da Saúde mantinha,


no entanto, uma postura contraditória: apoiava o sistema das Nações Unidas com seus objetivos
mundiais amplos, mas, ao mesmo tempo, primava por sua soberania e mantinha o direito de
intervir unilateralmente em nome da “segurança nacional”.

Sobre os EUA e seus aliados, aliás, sempre pairou a desconfiança, ou reinou a certeza de que
utilizavam os organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde para viabilizar
seus intentos imperialistas. Em meio à Guerra Fria, a URSS e outros países comunistas retiraram-
se da Organização Mundial da Saúde entre 1949 e 1956, acusando a instituição de não estar
cumprindo seu trabalho e de constituir-se em instrumento da política exterior imperialista norte-
americana. Como resultado, os EUA e seus aliados ficaram com o caminho livre para exercerem
sua influência de forma quase que absoluta. Neste período as ações da Organização Mundial da
Saúde estiveram então voltadas para os problemas de saúde e a pobreza extrema dos países
subdesenvolvidos, para evitar que fossem tentados a aderir às propostas comunistas. Para isso

26
investiu-se no controle das principais enfermidades epidêmicas do mundo. Os EUA e seus aliados,
na busca da adesão a seus projetos de desenvolvimento, alinhados aos interesses capitalistas,

apregoavam, por exemplo,

que a erradicação global da malária promoveria o crescimento econômico e criaria mercados no


exterior para a tecnologia e os bens manufaturados estadunidenses. Isto ajudaria a obter um apoio
para os governos locais e os que apoiassem os Estados Unidos e faria com que se ganhassem

‘corações e mentes’ na batalha contra o comunismo. (BROWN, CUETO e FEE, 2006, p. 80-81).

Este modelo de apoio para o desenvolvimento ajustava-se claramente aos esforços dos EUA
da Guerra Fria de promover a modernização com uma reforma social limitada alinhada ao desejo
da manutenção ou abertura de novos espaços de acumulação capitalista.

Com o passar do tempo explicitou-se a insuficiência das medidas propostas para a solução de
problemas de origem tão complexa como, por exemplo, a questão da erradicação da malária,
reconhecendo-se assim a impossibilidade de erradicação absoluta desta doença em muitas partes
do mundo para populações que viviam em condições tão precárias. Como não se pretendia intervir
diretamente sobre estas condições, que era a proposta socialista, substituiu-se a idéia da
erradicação pela do controle. O mundo capitalista deveria reconhecer que manter as pessoas
vivas, na companhia permanente da doença, era possível de se realizar.

A Organização Mundial da Saúde, como estratégia para sobreviver à Guerra Fria, nunca
havia reconhecido a saída dos países do bloco socialista e em 1956 a URSS e seus principais
aliados retornam efetivamente e marcando sua presença ao afirmar com energia que a varíola, por
não contar em sua transmissão com um vetor - como no caso da malária - e por contar com uma
vacina, poderia ser efetivamente erradicada. URSS e Cuba destinam 25 e 2 milhões de doses da
vacina respectivamente e se inicia uma grande batalha mundial para a erradicação da doença.

Os EUA relutaram em aderir decididamente ao movimento, mas em 1965 assumiram o


compromisso com um programa internacional para erradicar a varíola e, somente em 1980, após
luta intensa no Brasil e África, se alcançou o objetivo de erradicação.

A ação da Organização Mundial da Saúde, desde então, sempre esteve orquestrada pelo
interesse geral de expansão do modelo capitalista, mesmo que em freqüente tensão com os
diversos interesses particulares das nações filiadas e de pessoas integrantes cujos anseios
individuais divergissem. No percurso de sua trajetória observamos, no entanto, que de 1948 a 1998
esta organização passou de líder inquestionável da saúde internacional a ter que buscar seu lugar
no competitivo mundo da “saúde global”.3

27
Dentro da Organização Mundial da Saúde sempre houve tensões entre os enfoques centrados
na determinação social e econômica da saúde da população e aqueles que apontam a utilização
de diferentes tecnologias para o controle ou erradicação de determinada doença. A ênfase num ou
noutro enfoque modifica de acordo com as correlações de força que se estabelecem em torno dos
interesses dos agentes internacionais, do compromisso intelectual e ideológico dos indivíduos
chaves e do resultado disto tudo na definição das políticas de saúde. (BROWN, CUETO e FEE,
2006).

Durante as décadas de 60 e 70 diversas mudanças ocorridas na Organização Mundial da


Saúde foram fortemente influenciadas por: um contexto político marcado pelo enfraquecimento da
hegemonia norte-americana na Guerra Fria; pelo aparecimento das nações africanas; pela difusão
de movimentos nacionalistas e socialistas e pela emergência de novas teorias de desenvolvimento
que punham ênfase na independência econômica dos países periféricos, em relação aos
industrializados e no crescimento em longo prazo, mais que na intervenção tecnológica em curto
prazo. (BROWN, CUETO e FEE, 2006).

Nesta conjuntura, a Organização Mundial da Saúde passou a apregoar, nos anos 70, que o
provimento de uma infra-estrutura sanitária desenvolvida ao lado de pessoal que atendesse as
enfermidades mais comuns e o surgimento de serviços básicos de saúde a nível nacional eram
pré-requisitos para o êxito dos programas de controle de doenças como a malária entre outras,
especialmente na África.

Com base em experiências de Organizações Não Governamentais, de missionários médicos e


no trabalho dos médicos descalços da China, foi-se constituindo um corpo de conhecimento e um
novo modelo de organização dos serviços de saúde que passou a ser denominado de Atenção
Primária de Saúde (APS). A Atenção Primária de Saúde, caracterizada por centrar a atenção nas
necessidades essenciais de saúde, incluía treinamento de trabalhadores comunitários de saúde e
a resolução dos problemas econômicos e ambientais básicos que causavam os principais
problemas de saúde.

O enfoque soviético era diferente, centrado muito no médico para a provisão dos serviços de
saúde. Decidiu-se então por realizar a próxima conferência mundial de saúde em solo soviético, na
localidade de Alma Ata, buscando angariar a adesão daquela nação ao novo ideário. Uma reunião
anterior à conferência, visando aparar as diferenças, produziu a Declaração da Atenção Primária
de Saúde que colocava como objetivo “Saúde para todos no ano 2000” e recomendava o enfoque
inter-setorial, multidimensional para a saúde e desenvolvimento econômico. Sublinhava também a
necessidade de usar “tecnologia apropriada” e a urgência da participação ativa da comunidade na
assistência sanitária e na educação sanitária em todos os níveis.

28
E a Conferência de Alma Ata tornou-se um marco fundamental da instituição dos princípios da
Atenção Primária de Saúde e da idéia do alcance da “saúde para todos no ano 2000”.

Agências internacionais, multilaterais e instituições privadas pressionaram para que ao invés


de promover grandes mudanças nos sistemas de saúde fossem estabelecidos objetivos “mais
tangíveis” e “menos utópicos” como era o da saúde para todos no ano 2000. Isto levou à
introdução do conceito de Atenção Primária Seletiva de Saúde. Em 1979 realizou-se uma pequena
conferência com forte presença dos EUA, ocorrida em Bellagio, Itália, sob os auspícios da
Fundação Rockefeller e apoio do Banco Mundial, que contou com a participação de instituições
como Fundação Ford, Agência Estadunidense para o Desenvolvimento Internacional (USAID),
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) entre outras de menor expressão. Ressaltava-
se, nessa conferência, a necessidade de intervenções pragmáticas focais, de baixo custo e fáceis
de avaliar. A idéia da saúde integral para todos reduziu-se drasticamente para ações pontuais
dirigidas ao monitoramento do crescimento, à re-hidratação oral, ao aleitamento materno e às
imunizações. Nascia assim a Atenção Primária de Saúde Seletiva.

Seguindo esse caminho, na década de 80 a crescente influência do Banco Mundial começava


a ser sentida na saúde. Este Banco, que foi criado em 1944 na Conferência de Bretton Woods e
abriu suas portas em 1946 para fomentar a reconstrução da Europa e mais tarde expandiu suas
ações no sentido de fornecer empréstimos, subvenções e assistência técnica para os países “em
desenvolvimento”, começava a investir em políticas de controle da natalidade, saúde e educação.
Aliando a idéia da saúde ao crescimento econômico, começou a realizar empréstimos diretos para
os serviços de saúde, exigindo um uso “mais efetivo” dos recursos, assim como uma revisão nos
papéis dos setores público e privado no financiamento e assistência. As medidas de ajuste
econômico, impostas pela Banco Mundial, produziram crescente falta de recursos para os gastos
em saúde. Impulsionou, desta forma, a privatização dos serviços com a redução da presença dos
governos em programas sociais.

A década de 80 assistiu a crescente influência do Banco Mundial na saúde ao lado da queda


de prestígio da Organização Mundial da Saúde. Diante de posicionamentos contrários aos
interesses dos países mais ricos, em especial dos EUA, como, por exemplo, na questão dos
medicamentos genéricos, a Organização Mundial da Saúde foi perdendo suas fontes de
financiamento, angariando inimigos importantes como a UNICEF e cada vez mais se acirrou a
disputa entre os modelos da Atenção Primária de Saúde Integral e a Atenção Primária de Saúde
Seletiva.

As ações da Atenção Primária de Saúde promovidas pela Organização Mundial da Saúde


que, se por um lado, representavam uma resistência contra a absorção irracional da tecnologia

29
médica, mas por outro possuíam um caráter de extensão racionalizadora da assistência em busca
de aliviar tensões sociais, tomava agora um rumo ainda mais nefasto: restringia-se a ações focais
sobre problemas pontuais cuja relação custo-benefício fosse muito favorável.

A identificação das “necessidades essenciais” passara, gradualmente, a ser dirigida


fortemente pelo olhar da economia de mercado. As prioridades e os rumos políticos eram, naquela
época, decididos pela Assembléia Mundial da Saúde, que, composta por todos os estados
membros, começou a ser dominada pelos países pobres e não mais controlada pelos países
industrializados. Diante disso, as nações mais ricas e as agencias multilaterais começaram a
manipular o financiamento conforme seus interesses, contrariando muitas vezes as decisões da
Assembléia.

A Organização Mundial da Saúde começou a perder força e prestígio e, a partir de então, fins
dos anos 80 e início da década de 90, o Banco Mundial começou a deter a hegemonia das
decisões globais em torno da saúde.

A intervenção do Banco Mundial na saúde, durante a década de 90, esteve marcada pela forte
imposição do recuo das políticas sociais com a presença direta do Estado, ao lado de medidas
rigorosas de ajuste econômico. O aumento da pobreza e do abandono de milhões de pessoas à
própria sorte por parte do Estado, gerou uma situação de sofrimento crescente de difícil
dissimulação. Diante disso, o Banco viu-se obrigado a modificar seu discurso, buscando dar uma
face mais humana a suas intervenções.

Passou então a afirmar que o desenvolvimento é um processo global centrado nas pessoas
das sociedades nas quais opera. Diante disto, os programas de Saúde, Nutrição e População
(SNP) tornam-se centrais no trabalho e missão do Banco, que aumentou significativamente seus
investimentos neste sentido, tornando-se atualmente o maior provedor externo de fundos de saúde
no mundo.

Sua intervenção, no entanto, continuou e em muitos casos acentuou a ênfase nas


necessidades básicas, na atenção básica seletiva, na definição de uma cesta básica de
assistência, no controle da natalidade, no ciclo da pobreza, na necessidade de educação e
empoderamento das mulheres, como solução para a maioria das deficiências do cuidado à saúde
das populações pobres. Insistiu na promoção do seguro privado, na privatização de setores
públicos, e em medidas como a instituição do co-pagamento por parte do usuário, obtendo
resultados muito desfavoráveis. Segundo da UNICEF, os programas de ajuste estrutural, que
seguiram invariavelmente essa receita, podem ter contribuído para a morte de 500 000 crianças ao
ano. (RUGER, 2006).

30
Obtidas as mudanças inicialmente induzidas, o Banco Mundial passa, a partir do final da
década de 90, a “afastar-se dos serviços básicos de saúde para optar por outras formas de
políticas mais amplas que estão dirigidas ao sistema de saúde em seu conjunto”. (RUGER, 2006,
p.126).

No sentido de recobrar a credibilidade maculada pelos maus resultados, o Banco reaproxima-


se da Organização Mundial da Saúde, tendo, recentemente, firmado acordos para que aquela
organização forneça assistência técnica para nas questões de saúde.

Ainda neste sentido o Banco Mundial tem retirado de seu discurso o apoio explícito ao co-
pagamento, à privatização, às medidas gerais de ajuste econômico, centrando suas análises e
recomendações em questões atinentes à boa administração dos serviços de saúde, buscando uma
boa relação custo-benefício.

É preciso entender, então, que embora o Banco Mundial tenha apresentado uma retração em
suas intervenções claramente nocivas à saúde em geral e ao setor saúde em particular, sua
influência continua ocorrendo, seja porque “o serviço já está feito”, seja porque pretende dar a suas
idéias uma aparência mais humana.

Persistem, no entanto, em seu discurso, as explicações simplistas como a lógica mecanicista


do círculo vicioso da pobreza - alta natalidade - saúde deficiente, como causas de baixo
crescimento econômico, assim como a supervalorização do controle da natalidade dos pobres
como medida de redução da pobreza. (WORLD DEVELOPMENT REPORT, 2000-2001).

Em decorrência disso, assim como descrito anteriormente para a Educação, também na


Saúde começa a ganhar relevo a idéia de se contemplar as necessidades básicas para a
sobrevivência dos indivíduos.

Convém não nos esquecermos, porém, que há distintas formas de conceituar e identificar
necessidade, bem como de planejar formas de satisfação nas diversas formações sociais, em cada
momento histórico, de acordo com o referencial adotado.

Segundo Breilh (2006), atualmente a lógica utilizada para a definição de necessidade em


saúde é disputada entre as correntes liberal e solidária. A corrente liberal compreende a
necessidade humana como um valor relativo, que se identifica na dependência de opções
individuais e das possibilidades de cada pessoa e sua família para satisfazê-las através do
consumo realizado segundo as leis do mercado. Na corrente solidária, por sua vez, a necessidade
é vista como processo determinante da vida, cuja realização constitui, por isso mesmo, um direito
inalienável, ao qual se deve aceder através de uma distribuição eqüitativa e segura por parte de

31
todos os membros de uma sociedade, a qual deve constituir-se solidariamente em prol do máximo
bem comum. Ou seja, a visão liberal realiza uma substituição do direito universal por necessidades
discricionárias, preparando, desta forma, o terreno para sua mercantilização. Se o atendimento à
saúde e os programas de prevenção já não são direitos inalienáveis, mas “necessidades
discricionárias”, o Estado tem a possibilidade de decidir quais necessidades deve incluir num
pacote mínimo para os pobres e quais deve deixar a cargo do mercado e do ‘livre’ arbítrio dos
‘clientes’.

De acordo, ainda, com esse autor, o conflito de idéias sobre a questão da necessidade tem-se
polarizado, na atualidade, entre uma teoria objetiva e uma teoria subjetiva. A teoria objetiva
é aquela segundo a qual todos os seres humanos têm as mesmas necessidades, historicamente
produzidas. A teoria subjetiva, por sua vez, marcada pelo relativismo, sustenta que as
necessidades são uma construção sociocultural, conformada, portanto às características
particulares de cada agrupamento social, com seus costumes, desejos e possibilidades próprios.
(BREILH, 2006)

O processo de definição das necessidades nos grupos humanos não é nem exclusivamente
objetivo, nem exclusivamente subjetivo. Toda necessidade objetiva se expressa no sujeito a partir
elementos subjetivos, mas a necessidade subjetiva só pode ser construída a partir de uma
necessidade concreta e possibilidades socialmente construídas.

Se a saúde for entendida como a condição que permita a realização do humano, ou o


desenvolvimento máximo do potencial de cada um, de acordo com as possibilidades sociais dadas
pelo desenvolvimento dos meios de produção, as necessidades serão entendidas como um
patamar universal a partir do qual cada um poderá se desenvolver. Por outro lado, numa formação
social marcada por relações de exploração, que não permite o acesso igualitário ao produto da
civilização, necessidade de saúde pode ser entendida apenas como a atenção restrita a
determinadas situações que impeçam a livre exploração da força de trabalho de alguns, ou à mera
satisfação da sensação de não abandono.

O conhecimento científico da necessidade humana não tem como ponto de partida um


elemento objetivo abstrato nem um esquema subjetivo abstrato, mas a atividade prática social de
seres concretos, historicamente dados pelo modo de produção vigente e pelo grau de
desenvolvimento das forças produtivas.

Numa sociedade de classes a construção da necessidade humana ocorre no plano individual


das necessidades fisiológicas e psicológicas, determinadas e delimitadas pelas condições
particulares de existência, pelos modos de vida de cada grupo social. As possibilidades das

32
classes subalternas estão dadas pelo avanço dos meios de produção e constrangidas pelas
limitações impostas pelas necessidades das classes dominantes. Numa sociedade Capitalista, as
relações de produção, impedem que as classes exploradas desfrutem, em sua plenitude, do
desenvolvimento, ou seja, da possibilidade da passagem “de um grau ontologicamente inferior a
um grau ontologicamente superior”. (LUKÁCS, 1978, p.53).

Podemos exemplificar a questão com o caso da necessidade dos trabalhadores que ficam
expostos à poeira de sílica na perfuração de túneis, para abertura de estradas ou na mineração. A
silicose, doença pulmonar causada pela inalação de poeira de sílica, foi descrita já em 1700 por
Ramazzini. (AMÂNCIO, 1993). Assim como já se conhece sua patologia, já se dispõe de meios
para a perfuração de rochas que não exponham de forma intensa os trabalhadores à inalação da
poeira de sílica. Por uma questão de economia, nos meios de produção, persistem processos
primitivos que acabam impondo uma condição extremamente perniciosa para os trabalhadores que
se vêm obrigados a inalar grandes quantidades de sílica, que os levará à lesão pulmonar
irreversível. É sob estas condições, dadas pelo grau de desenvolvimento dos meios de produção,
mas constrangidos pelos interesses do Capital, que se gera, para este grupo de trabalhadores, a
necessidade de cuidados respiratórios paliativos ou eventualmente, a necessidade de um
transplante pulmonar, que diante da possibilidade criada pelo desenvolvimento dos meios de
produção da Medicina, ao ser possível, torna-se objeto do desejo dos trabalhadores com silicose.

Realmente, este tipo de necessidade, devido à inalação de sílica nestas condições, a classe
dominante muito provavelmente jamais terá. Somente nessas condições de desigualdade de
direitos e possibilidades, dadas pelas relações de exploração, podemos entender que as
necessidades sejam diferentes conforme o “desejo”, limites e possibilidades de cada grupo social.

Do mesmo modo, a educação, entendida como o acesso ao produto cultural da civilização,


surgiria como necessidade igual para todos. Entendida, no entanto, restrita a seu papel de
reprodução da força de trabalho, como o adestramento dos diferentes grupos conforme sua
inserção na produção, apresenta-se como necessidade bastante diversa de acordo com o lugar
ocupado pelos referidos grupos no mundo da produção.

A sobrevivência e o acesso aos meios necessários para garanti-la são necessidades


essenciais em qualquer sociedade, porém, falar delas no vazio, sem levar em conta os processos
históricos determinantes da reprodução social - processos estes ligados à produção e ao consumo,
bem como às relações sociais que se estabelecem entre as classes -, que definem a divisão social
da produção, constitui uma abstração que empobrece ao extremo a análise da questão.

33
O direito à sobrevivência e sua possibilidade de realização é socialmente determinado
conforme o modo de produção, o grau de desenvolvimento das forças produtivas e a inserção dos
diferentes grupos no processo de produção em cada momento histórico. Num momento histórico
como o que vivemos, marcado pelo imenso desenvolvimento das forças produtivas, diante do qual,
mantendo-se as relações de exploração, grande parte da força de trabalho torna-se dispensável,
constituindo, como já referimos, uma grande massa humana de sobrantes, a possibilidade de
realização da sobrevivência deste grupo está seriamente ameaçada, como preço para que, ao
mesmo tempo, possa ocorrer a melhoria substantiva das condições de vida para a outra parcela da
sociedade. A produção econômica dos bens e a distribuição dos que são repartidos pelo Estado
não são simples instrumentos a serviço da satisfação de necessidades preexistentes, mas estão
ligadas aos interesses das classes dominantes que criam esses elementos de satisfação de acordo
com sua conveniência. A sobrevivência dos sobrantes definitivamente não é conveniente para o
Capital.

Para Breilh (2006), as abordagens liberais sobre a necessidade situam-na como um problema
individual, ligado ao consumo e à escolha pessoal, e, nos planos retrógrados da reforma neoliberal,
isso adquire uma importância capital, porque é assim que os cidadãos deixam de ser ‘detentores
de direitos’ e se transformam em ‘clientes’. Segundo esse autor, formulada desta maneira, a
necessidade substitui o direito e a distribuição insuficiente de serviços – que é ocasionada pela
monopolização da riqueza, mas não é reconhecida como tal – passa a constituir um recurso de
sobrevivência, medido por técnicas múltiplas, como a da ‘linha da pobreza’ ou a da ‘satisfação de
necessidades básicas’ às quais os clientes do mercado podem ter acesso.

A expressão clara deste ideário, no âmbito da saúde, se dá na definição, pelo Banco Mundial,
da “cesta básica de assistência” a que deveria ter direito aquela parcela da população que não
tivesse qualquer possibilidade de escolher livremente e consumir os serviços de saúde no
mercado.

Em nosso país, embora tenhamos, felizmente, um sistema de saúde universal, que coloca
como direito de todos a atenção integral à saúde, a grande dificuldade de acesso a procedimentos
de média complexidade – os mais atraentes para a iniciativa privada-, que ultrapassam os limites
da “atenção básica”, pode também ser sinal da influência daquele ideário. Vivemos, atualmente,
um momento de defesa visceral da centralidade absoluta do sistema de saúde na atenção básica,
com o que concordamos, desde que isto não signifique o impedimento do acesso aos
procedimentos mais complexos sempre que necessários. Negar à população, que custeia o
sistema através dos impostos, o acesso a estes procedimentos é tão nefasto quanto submeter o
sistema ao consumo irracional dos mesmos, atendendo à voracidade do Capital. Fleury (2009),

34
partilha desta preocupação e observa que “concentrar-se na atenção primária não é equívoco
técnico, é opção política oposta a sistemas universais e integrais”. (FLEURY, 2009)

Pochmann (2006), também se posiciona nesse sentido afirmando que

A possibilidade de uma atenção à saúde integral e de qualidade para todos, fica muito ameaçada
em nosso país diante do movimento do Estado no sentido da privatização de amplos setores,
redução do orçamento que seria destinado à universalização dos direitos sociais e focalização das

ações sociais em geral, mesmo diante do aumento da arrecadação. (POCHMANN, 2006)

Segundo Pochmann (2006), entre 2001 e 2004 as restrições fiscais concentraram-se


justamente no orçamento social. Neste período o orçamento social total da federação, por
habitante, experimentou uma redução da ordem de 8,31% e o orçamento da saúde, em particular,
sofreu um decréscimo de 6,71% por habitante.

Dessa forma, não apenas o contexto macroeconômico manifestou-se predominantemente


anti-social como também os recursos públicos per capita direcionados à área social apresentaram
um movimento de regressão em termos reais. (POCHMANN, 2006, p.124).

Diante disso, no âmbito formação médica, poderá ocorrer o que ocorre no mundo do trabalho
em geral: a polarização de competências. A qualificação dos processos de trabalho, pela
introdução de tecnologia, se, por um lado, exige um trabalho mais qualificado de um número cada
vez mais restrito de trabalhadores, por outro lado possibilita a dispensa ou a desqualificação da
grande maioria dos trabalhadores, uma vez que o conhecimento estará objetivado no trabalho
morto. Isto significa que será possível realizar o trabalho com menor dependência do conhecimento
do trabalhador. O que já pode estar ocorrendo, como citamos anteriormente, em casos de
utilização de protocolos de atendimento, elaborados por profissionais de boa qualificação, mas
colocados em prática por profissionais menos qualificados.

Os profissionais de maior qualificação, cuja reprodução é mais onerosa, destinam-se ao


atendimento das parcelas da população que ainda mantém a capacidade de compra de seus
serviços, seja diretamente, ou, o que é mais freqüente, intermediado pelos planos de saúde. O
acesso a estas práticas deverá, ainda, além de contemplar os interesses da indústria médico-
farmacêutica, restaurar as regularidades anátomo-funcionais dos corpos, de modo a mantê-los
como força de trabalho.

Como para o atendimento daquelas parcelas da população sobrante, as possibilidades de


retorno financeiro são muito mais restritas, a força de trabalho aqui utilizada deverá ter um custo de

35
reprodução inferior. Todas as formas de redução dos custos da formação desta mão de obra
serão, portanto, bem-vindas, mesmo que resultem na formação de profissionais de menor
capacitação. Estes, além de terem um custo de reprodução inferior, poderão recorrer menos
freqüentemente à utilização dos procedimentos de maior complexidade, uma vez que realizam
práticas simplificadas e de menor custo. Se estas práticas serão menos eficazes na restauração da
normalidade anatômica e fisiológica dos corpos, para poderem funcionar como força de trabalho,
não importa, pois, sua utilização para este fim, como já dissemos, será desnecessária.

Entre as recomendações do Banco Mundial para a saúde, está a idéia de que o cuidado
médico curativo voltado às populações pobres seja limitado e baseado em protocolos e
procedimentos simples que possam ser administrados por trabalhadores de saúde com um
“adestramento breve”. (RIZZOTTO, 2000, p.127). É como um retorno à Idade Média, quando a
assistência médica qualificada (dentro das limitações da época) destinava-se aos poderosos, aos
artesãos e aos burgueses, enquanto, para os pobres restava entregar-se às mãos dos curandeiros

e barbeiros ou morrer sem qualquer ajuda. (GARCIA, 1989)

4. REFLEXÕES GERAIS SOBRE AS MUDANÇAS EM ANDAMENTO NO ENSINO MÉDICO NO

BRASIL1

Guilherme Albuquerque

O ensino médico no Brasil, assim como em diversos países de todo o mundo, passa, nas
últimas décadas, por intenso processo de reflexão e reorganização.

Em nosso país, diversas escolas médicas têm implantado, de forma mais ou menos intensa,
inovações pretensamente voltadas a adequar o perfil do profissional ali formado às necessidades
atuais da sociedade brasileira. Numa conjuntura de precarização da vida em que se encontram os
países devedores, subordinados aos organismos econômicos internacionais, torna-se imperativo
analisar a implementação de tais mudanças. É preciso avaliar com muito cuidado se as alterações
propostas qualificam a formação médica ou a precarizam e se, em conseqüência, a atenção à
saúde se aprimora ou se pauperiza.

Segundo diversos autores2, as exigências neoliberais, veiculadas pelos organismos


multilaterais entre os quais se destaca o Banco Mundial, criam a forte tendência de focalizar o
gasto público apenas na atenção a grupos populacionais marginalizados, com recursos de baixa

36
densidade tecnológica e custos mínimos. Tais exigências, uma vez adotadas, influenciam de forma
extremamente danosa setores fundamentais como a educação e a saúde.

Em contraposição à integralidade da atenção e universalidade do acesso, conquistadas em


lei, entre outros direitos, pelo povo brasileiro com a instituição do SUS, apresenta-se a idéia da
cesta básica de serviços, visando universalizar o acesso apenas à atenção primária, nos limites
dos recursos disponíveis para cada agrupamento social.

A reflexão sobre as práticas de saúde e a formação médica necessária para o


desenvolvimento e o bom desempenho de tais práticas tem-se mantido na ordem do dia,
principalmente nas últimas décadas, devido aos novos desafios com que se deparam, tanto os
serviços de saúde e o trabalho médico, que neles desempenham papel central, quanto a educação
médica. Neste sentido podem ser citados desde o emblemático estudo sobre a Educação Médica
de Juan César Garcia, realizado em 1972 e inserido em sua obra “Pensamento Social em Saúde
na América Latina” (1989), até as contribuições mais atuais de autores brasileiros como Schraiber
(1989), Campos (1994), Mendes (1996), Feuerwerker (1998, 2001, 2002), Marcondes e Gonçalves
(1998), Batista e Silva (1998), Almeida (1999), Lampert (2002), Merhy (2002), entre outros.

As tensões, constantemente atualizadas, pelo confronto apresentado de práticas médicas


cada vez mais dispendiosas pela crescente incorporação de tecnologia, às quais não
correspondem ganhos proporcionais em termos de saúde da população, têm, freqüentemente,
colocado em cheque a adequação da formação médica.

Além disto, como observa Feuerwerker (2001), devido à transição demográfica e à introdução
de novas tecnologias, que recolocam a atenção do espaço prioritariamente hospitalar para o
ambulatorial, modifica-se o perfil do profissional capaz de atender às necessidades do sistema de
saúde. Tanto o setor público quanto o privado, buscando a racionalização dos gastos e a melhoria
da qualidade da atenção, clamam por um profissional com formação geral, capaz de trabalhar em
equipe multiprofissional e de articular aspectos da atenção individual e da saúde coletiva.

Cabe, no entanto, apresentarmos dois questionamentos a respeito destas idéias. Em primeiro


lugar, o custo crescente do cuidado médico precisa ser analisado como fruto, também, da
medicalização da sociedade, ou seja, da “redefinição de uma quantidade cada vez maior de
contradições no plano individual, familiar ou social, como problemas de saúde”. (SINGER,
CAMPOS e OLIVEIRA,1981). Este processo, segundo Singer, decorre da expansão acelerada, não
só dos recursos absorvidos pelos serviços de saúde, mas do próprio âmbito de ação destes
serviços.

37
Em segundo lugar é preciso desvelar as mediações da relação entre formação e prática
médica em nossa sociedade. Principalmente no que diz respeito à inadequação da formação. Para
Schraiber (1989), a contradição entre o papel efetivo e o papel apresentado, da escola é re-
traduzida ideologicamente como inadequação.

Apresenta-se a educação escolar como processo de ajuste às necessidades do conjunto da


sociedade, ocultando-se as contradições originadas nas relações de classe. À educação médica,
no Capitalismo, cabe produzir profissionais que mantenham a prática médica Capitalista - no que
diz respeito à realização do lucro da indústria médico-farmacêutica, à reprodução da força de
trabalho necessária para a produção Capitalista e à manutenção da hegemonia da ideologia
Capitalista - para a aceitação das relações de exploração.

A Educação e a Medicina, práticas hegemônicas nas sociedades Capitalistas, estão, portanto,


a serviço da classe dominante. O que as coloca em cheque é sua aparente inadequação no
sentido de satisfazer as necessidades do conjunto da população.

A crise da Medicina ocidental é parte integrante da crise mais ampla do Capitalismo


contemporâneo, demarcada, segundo Navarro (1979b), pela crise de legitimação e acumulação do
Capital, com a conseqüente crise das sociedades ocidentais e seus sistemas de saúde. A crise da
Medicina em particular, tem se explicitado por seu intenso crescimento acompanhado da ineficácia
para resolver os principais problemas de saúde.

Para o citado autor, as principais características desta crise - crescimento e ineficácia - são
devidas às necessidades criadas pelo processo de acumulação do Capital, somadas às demandas
expressadas pela população trabalhadora. Estas necessidades, por serem geradas pelo Capital e
pelo Trabalho, estão intrinsecamente em conflito.

As necessidades do Capital e a invasão pelo Capital de todas as esferas de nossas vidas


criam, cada vez mais, problemas de saúde que requerem um aumento dos serviços sociais em
geral e de saúde em particular. Desta forma se impõe à Medicina a tarefa de realizar o impossível,
de resolver os problemas que estão fora de seu controle. Os problemas são criados pelo processo
de acumulação do Capital e se incumbe a Medicina de resolvê-los no âmbito restrito da ação
médica. Esta é, para Navarro (1979b), a causa real da ineficácia médica.

No momento atual, além desta aparente inadequação, contribuem para colocar em cheque,
tanto a Medicina quanto a educação médica, os interesses de outros setores do Capital.

38
Às companhias de seguro saúde, interessa que se mantenha a imagem da necessidade do
consumo de produtos médicos, para obter a saúde, ao lado do real interesse de que o consumo
destes produtos não se realize.

Do mesmo modo aos Estados, que se responsabilizam pelo acesso aos serviços de saúde,
interessa a realização de uma prática de não consumo, viabilizando este setor com parcos
recursos.

É o caso do Estado Brasileiro que tem direcionado suas políticas de saúde e educação no
sentido de incentivar as mudanças para a formação de um profissional mais adequado a uma
prática menos onerosa, mais resolutiva e, portanto, mais racionalizadora.

No Brasil vivemos, atualmente, no setor saúde, um momento marcado por grande esforço
para reorganizar e incentivar a atenção básica, como estratégia central de substituição do modelo
tradicional de atenção à saúde, centrado na doença, no atendimento hospitalar, permeado por
intenso consumo de tecnologia.

Como já dissemos, os médicos, formados para o modelo tradicional, têm-se mostrado pouco
adequados para esta “nova” prática.

As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de graduação em Medicina redirecionam os


cursos de Medicina, orientando-os para a formação de um médico generalista, com postura ética e
humanista, senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, voltado para a
proteção, promoção da saúde e prevenção das doenças, capacitado para atuar nos níveis primário
e secundário de atenção e resolver os problemas mais comuns, além do primeiro atendimento às
situações de emergência. (BRASIL, 2001)

O Ministério da Saúde anuncia ainda, como uma de suas prioridades essenciais, a atenção
básica, mediante a qual pretende ordenar a formação de recursos humanos para a saúde. Neste
sentido, busca induzir mudanças curriculares, visando deslocar o eixo central do ensino médico, da
idéia exclusiva da doença, incorporando a noção de integralidade do processo saúde/doença e da
promoção da saúde, com ênfase na atenção básica. Visa, também, propiciar a ampliação dos
cenários e da duração da prática educacional na rede de serviços básicos de saúde, além de
favorecer a adoção de metodologias pedagógicas ativas e centradas nos estudantes, com o intuito
de prepará-los para a auto-educação permanente.

Embora desde os anos 90 observe-se uma intensificação dos estudos e debates sobre a
educação médica em nosso país, o sentido das mudanças ora propostas pelo governo brasileiro,

39
tem origem bem mais remota e faz parte de uma realidade que não se restringe ao Brasil, uma vez
que ocorre, em variados graus, nos demais países da América Latina e de outros continentes.

A influência sobre a educação médica na América Latina, de início, marcadamente européia,


passa a ser exercida, com grande predominância, pelos estados Unidos da América após a
Segunda Guerra Mundial. O número considerável de médicos residentes que se especializou nos
EUA na época, proporcionou uma verdadeira invasão das idéias de Flexner na América Latina.

No decorrer dos anos, porém, aquela influência se institucionalizou, com a criação de


associações e organismos nacionais e internacionais. Pela grande importância que assumem na
América Latina podemos citar como exemplo destas instituições internacionais a Federação de
Associações de Escolas de Medicina – FEPAFEM e a Associação Latino-Americana de
Faculdades e Escolas de Medicina – ALAFEM, que contribuíram diretamente para a formação de
um movimento de educação médica na América Latina, composto por, pelo menos, duas correntes
e que, segundo Almeida (2001), caracteriza-se por ser polêmico e conflituoso.

Segundo este mesmo autor, os processos de criação e de desenvolvimento das ações da


FEPAFEM foram alvo de polêmicas e de suspeição sobre sua condição de entidade manipuladora
e manipulada por certos setores da sociedade e do governo norte-americano, em aliança com
alguns líderes latino-americanos da educação médica, em defesa dos interesses e políticas
neocolonialistas. Em contrapartida, sempre houve referências veladas à ALAFEM como
instrumento da política externa cubana. (ALMEIDA, 2001, p.45).

Estas divergências se reproduziram ao nível das escolas e refletem as contradições existentes


nas práticas médicas e na educação médica, fundadas em diferentes concepções de sociedade,
políticas sociais, de saúde e de educação médica.

As críticas e propostas de reformulação do ensino médico de base Flexneriana, surgem nos


Estados Unidos, já na década de 40. A integração dos ciclos básico e profissionalizante, a
incorporação dos princípios da Medicina Preventiva, da Medicina Integral e da Medicina
Comunitária, marcaram as discussões que se seguiram nas próximas décadas em toda a América
Latina, assim como em outros continentes.

Nos anos 70, o 2o. Plano Decenal de Saúde das Américas ressaltava que a prática e a
educação médica deveriam tratar a saúde como função biológica e social, serem multidisciplinares
e estabelecerem relações dos organismos de saúde pública e instituições privadas com as
universidades, por meio da regionalização docente-assistencial, da Medicina de comunidade e da
participação precoce do estudante nos serviços.

40
Segundo Almeida (2001), já nesta época se recomendava que o ponto de partida para o
processo formativo do médico fosse a atenção à saúde; deveria haver a superação das dicotomias
teoria/prática, básico/clínico e preventivo/curativo; precisaria existir a integração multidisciplinar e a
inserção do processo de ensino em toda a rede de serviços, em todos os níveis, não apenas no
hospital especializado.

Surgiram, assim, as propostas de integração docente-assistencial (IDA). As relações entre


instituições educativas e de serviços foram reiteradamente discutidas nas décadas de 70 e 80,
refletindo, nas práticas educativas, em experiências que variavam desde a utilização dos serviços
como espaços de prática, até tentativas de reorganização do processo educativo ao redor de um
novo modelo de organização dos serviços.

As reformas propostas para a prática médica estão aí tomando concretude nos projetos como
o da “Saúde da Família”, para o qual, segundo Feuerwerker (2001), é preciso formar os médicos
de família, pois o médico formado hoje é em geral um “especialista”, que não se encaixa no novo
modelo de atenção proposto.

A fragmentação dos conteúdos, o desprezo à determinação social da saúde-doença, a


dificuldade para o enfretamento de problemas cuja solução foge do âmbito daqueles modelos,
muitas vezes importados, para os quais o médico foi preparado, reforçam a idéia de que realmente
existe uma inadequação na formação.

Na verdade há problemas na formação. Muitas das questões apontadas são reais. O enfoque
é predominantemente ou exclusivamente biológico, especializado, fragmentado, desprovido de
humanidade, desconsiderando o ser humano em sua totalidade. O ensino se dá por pedagogias
que tendem à memorização mecânica de conceitos, técnicas e comportamentos, o que, somado ao
processo incompleto de análises, não seguidas das sínteses correspondentes, reduz,
sobremaneira, a capacidade do futuro médico para contribuir com as transformações necessárias
principalmente ao nível social.

Em resposta a estas "inadequações" da educação e às crises apresentadas em torno da


prática médica, o governo brasileiro tem apresentado a necessidade da articulação serviço,
docência e investigação; a pertinência das mudanças pedagógicas no sentido de aprender através
da solução de problemas, aprender fazendo e aprender transformando as condições reais dos
serviços, o ensino orientado à comunidade, em cenários extra-hospitalares.

Diversos aspectos das mudanças na formação e na prática médica, com as linhas gerais
acima apontadas, vêm sendo recomendados há mais de cinqüenta anos, e, neste período, embora

41
tenham sofrido um processo de contínuo aperfeiçoamento teórico, na prática a mudança foi quase
inexistente, configurando segundo Feuerwerker (1998) “a mudança que não houve”. A autora
levanta, como uma das causas desta não mudança, a falta de um sistema de saúde bem
estruturado que fornecesse a base material necessária para a mudança.

Mas se estas propostas tiveram anteriormente um caráter prescritivo e idealista, hoje a


realidade mudou. Já há uma base material mais condizente com a mudança proposta. Há um
sistema de saúde onde uma nova prática está sendo implementada e há interesse dos organismos
internacionais, que estão incentivando esta remodelação (p. ex.: OMS/OPS, do Unicef, da Unesco,
do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, do Banco Mundial, da Fundação Kellogg,
da Fundação Robert Wood Johnson etc.).

No final de 2002, no Brasil, numa iniciativa dos ministérios da Saúde e da Educação em


conjunto com a Organização Pan-Americana de Saúde, a Organização Mundial da Saúde, as
Instituições de Ensino Superior (IES) foram convidadas a participar do Programa de Incentivo a
Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina – PROMED. (BRASIL, 2002a).

Tratou-se de um convite à apresentação de projetos de mudança, que, se adequados às


diretrizes propostas, implicaria no repasse de um milhão e duzentos mil reais a estas instituições
formadoras, no período de três anos. Síntese das propostas de mudança acumuladas a partir da
metade do século passado até os dias atuais, esta iniciativa do governo brasileiro visa tornar real a
reforma tantas vezes anunciada, pretendida, mas não ocorrida.

A proposta tem como objetivo geral, segundo o edital de convocação, reorientar os produtos
da escola médica – profissionais formados, conhecimentos gerados e serviços prestados -, com
ênfase nas mudanças no modelo de atenção à saúde, em especial aquelas voltadas para o
fortalecimento da atenção básica.

Como objetivos específicos o documento enuncia o seguinte:

• Estabelecer, de forma sistemática e auto-sustentável, protocolos de cooperação entre os


gestores do SUS e as escolas médicas.

• Deslocar o eixo central de ensino médico da idéia exclusiva da enfermidade, incorporando


noção integralizadora do processo saúde/doença e da promoção da saúde, com ênfase na
atenção básica.

• Propiciar a ampliação dos cenários e da duração da prática educacional na rede de serviços


básicos de saúde.

42
• Favorecer a adoção de metodologias pedagógicas ativas e centradas nos estudantes, visando
prepará-los para a auto-educação permanente num mundo de constante renovação da ciência.
(BRASIL, 2002a, p.19).

O referido edital indica, também, como imagem objetivo a intervenção no processo formativo
para que os programas de graduação possam deslocar o eixo da formação – centrado na
assistência individual prestada em unidades hospitalares – para um outro processo em que a
formação esteja sintonizada com o SUS, em especial com a atenção básica, e que leve em conta
as dimensões sociais, econômicas e culturais da população, instrumentalizando os profissionais
para enfrentar os problemas do binômio saúde-doença da população na esfera familiar e
comunitária e não apenas na instância hospitalar.

Tal movimento deve estar sustentado na integração curricular, em modelos pedagógicos mais
interativos, na adoção de metodologias de ensino-aprendizagem centradas no aluno como sujeito
da aprendizagem e no professor como facilitador do processo de construção de conhecimento.

As novas interações devem estar sustentadas também em relações de parceria entre as


universidades, os serviços e grupos comunitários, como forma de garantir o planejamento do

processo ensino-aprendizagem, focalizado em problemas sanitários prevalentes.

5. Educação em Saúde: Quais os rumos da reorientação profissional? 1

Marcos Rogério Capello Sousa 2

A proposta desta mesa é a de discutir a educação em saúde – rumos da reorientação


profissional - considerando os trabalhos do Projeto CINAEM (comissão interinstitucional de
avaliação do ensino médico) realizado no decorrer da década de 90 (século XX).

Uma reorientação profissional, ou novos rumos para educação médica indicam


descontentamento com o Projeto atual. Ainda que rapidamente, vale conhecer a proposta do
Projeto CINAEM e mais do que isso, identificar a motivação deste Projeto e a sua orientação
teórica que no final levou às novas proposições para educação médica, muito distintas das que lhe
antecederam e que ainda prevalecem no cenário nacional.

A CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico) tinha objetivo


preparar as mudanças na educação médica brasileira. O histórico do Projeto CINAEM demonstra
que em 1991 entidades dedicadas ao ensino universitário, em geral, e na área médica, em
particular, propuseram-se a reformular o ensino médico. Participaram, inicialmente, entidades

43
representativas de docentes e discentes das universidades; entidades associativas – ABEM
(Associação Brasileira de Ensino Médico), etc.; entidades sindicais – Sindicato dos médicos e
entidades reguladoras – Conselho Federal Medicina (CFM) e conselhos regionais de medicina
(CRMs). Posteriormente, em 1999, foram incluídos nesta participação o Conselho Nacional dos
Secretários de Saúde dos Municípios (CONASEMS). Devemos notar que a participação das
secretarias municipais de saúde neste Projeto demonstra o caráter estratégico da educação
médica que vai formando recursos humanos para assistência à saúde. Nesta perspectiva é
inegável o potencial político e ideológico das escolas médicas no cenário nacional se
considerarmos a participação dos alunos no campo da assistência médica.

O Projeto foi dividido em 3 Fases e para sua execução, recebeu apoio financeiro de instituições
como UNIMED, Fundação Kellogs, Conselhos regionais e federal de medicina, Ministério da Saúde
e Educação além de assistência da empresa de consultoria TELOS.

Na primeira fase, através de um questionário, foi feita a avaliação dos médicos formados pelas
escolas brasileiras baseado na resposta dos representantes de 76 escolas sobre: a estrutura
administrativa – política e econômica -, recursos materiais e humanos, modelo pedagógico,
atividades de pesquisa e extensão e características dos médicos formados. Segundo este
resultado, os médicos formados atingiam 45% da qualificação esperada para um perfil desejado de
médico sintonizado com as necessidades sociais brasileiras.
Na segunda fase foi feita uma análise profunda dos dados da primeira fase

procurando os principais determinantes do desempenho médico.

A terceira fase, além de avaliar a cognição dos alunos durante a graduação, procurava definir
o perfil do médico desejado, o modelo de escola necessário para formar o médico desejado, o
processo educacional através do qual isto seria feito e o perfil do docente adequado para
concretizar as mudanças. 55 escolas aderiram à 3a fase do Projeto, definindo-a como preparatória
ao processo de transformação. Desta última fase saíram seis produtos:

1º produto: formulação e desenvolvimento de 4 linhas de ação: processo de formação,


docência médica, gestão e avaliação. Estas linhas surgiram de sucessivos encontros e debates,
baseando-se inclusive em revisão bibliográfica em bibliotecas do País e do exterior.

2º produto: contribuições de qualificado corpo de consultores que aportaram críticas e


sugestões às linhas de ação em desenvolvimento.

3º produto: contemplou a realização de 3 oficinas de trabalho (Campinas, Rio de Janeiro,


Aracaju) e o Fórum Nacional (Brasília), onde se debateram as 4 linhas de ação.

44
4º produto: preocupou-se com o teste de progresso ou avaliação cognitiva dos estudantes de
escolas participantes. Este teste possibilitou a criação de uma curva de crescimento cognitivo dos
alunos.

5º produto: definiu diretrizes para cada uma das linhas propostas, aceitando contribuições das
oficinas, consultores e membros do colegiado da CINAEM.
6º produto é uma síntese realizada pela equipe técnica de todos os produtos e contribuições
anteriores, obtidos durante as três fases do Projeto CINAEM. Este produto representa uma
"proposta de eixo de desenvolvimento curricular". A proposta orienta a transformação da atual
matriz de desenvolvimento curricular das escolas médicas, com o propósito final de
responder adequadamente "às necessidades e demandas de saúde de indivíduos e
populações em nosso país.”

O material do Projeto CINAEM é muito extenso e vários pontos já foram analisados (doutorado
2003 disponível). De modo geral há uma crítica ao médico formado atualmente por ele não atender
as necessidades sociais atuais na área da saúde, mas não há uma análise do médico formado e
da assistência que ele presta à sociedade como sendo resultado de vários determinantes históricos
– políticos, sociais e econômicos – que no contexto do capitalismo neoliberal adquiriram outras
características. Aliás, é importante ressaltar que não há nenhuma menção ao neliberalismo em
todo Projeto CINAEM, o que pode fazer alguns leitores menos avisados e esclarecidos suporem
que é possível blindar a educação médica e formar um novo médico adequado as necessidades
sociais sem discutir os efeitos da economia neoliberal na produção das condições materiais de
subsistência do povo brasileiro e na sua organização social.

Como não é possível no tempo permitido detalhar vários aspectos do Projeto CINAEM penso
que a tarefa mais importante para os participantes deste evento, os quais se propõem a discutir a
educação médica, seja procurar compreender a importância de se ter um referencial teórico que
permita análises radicais do que é promoção de saúde num país em desenvolvimento, no contexto
do capitalismo neoliberal. Não está no roteiro desta discussão, mas as críticas também valem para
o Projeto EMA (EDUCAÇÃO MÉDICA NAS AMÉRICAS) que foi uma experiência prévia (década
de 80) envolvendo vários países da América Latina.

Lembremo-nos que hoje, janeiro de 2009, um segmento dos estudantes de medicina do Brasil
se reunem em Fortaleza para discutir a educação médica, e este é um ato cuja intenção se
assemelha ao dos atores sociais que um dia participaram do Projeto CINAEM e do Projeto EMA.
Nesse caso cabe a pergunta aos presentes: o que de fato vai mal na educação médica e na
formação de recursos humanos para área da saúde? Quais instrumentos serão usados na análise

45
da educação médica considerando os trabalhos prévios dos Projetos EMA e CINAEM e os quase
10 anos que decorreram desde finalização deste último?

Esses aspectos são importantes por que podem dar maior consistência à discussão e evitar
que as reuniões esvaziem-se antes do seu desfecho. No contexto da pós-modernidade não têm
sido infrequentes os debates em que o ecletismo, a retórica e os discurssos vazios de conteúdo
predominem. Isto dificulta a compreensão do tema abordado e por vezes o transforma em algo
esotérico. Aliás, estas são características de um dos teóricos que vem embasando as reflexões
sobre a medicina e o modelo de educação médica vigente e que pode ser incluído no movimento
intelectual da geração de 68, também com as mesmas características segundo alguns
historiadores. Trata-se de Michel Foucault. Este movimento é considerado por alguns críticos como
sendo formado por teóricos representantes de trajetórias intelectuais individuais, portadores de
ambições revolucionárias frustradas e descrentes da possibilidade de transformação social global.

Nas análises destes teóricos sobre médicos e a medicina e, em particular no caso de Foucault
que é citado no Projeto CINAEM, não são consideradas as transformações sociais, políticas e
econômicas do século XIX e XX as quais se constituem a base material para mudanças sociais
profundas no ensino e na prática médica. Muitas destas transformações ainda estão em curso e
talvez isto esteja motivando o debate de hoje.

Portanto, é preciso ter em mente o curso da história e das transformações capitalistas mundiais
para podermos nos situar, nos posicionarmos e orientarmos nossas ações. Talvez, a partir dessa
reflexão inicial, que não pode ser feita somente em um evento, mas deve ter continuidade, o
debate ganhe maior densidade. Ou não.

Creio que este seja um bom momento para fazermos este resgate histórico e compreendermos
em linhas gerais como a educação médica foi se ajustando no cenário capitalista mundial. Isto, de
certo modo, alivia o “peso das costas” de alguns grupos que lideraram as mudanças na educação
médica nas últimas décadas e nos mostra a importância da conscientização e participação de

grupos maiores.
Um pouco da história das tendências da educação médica no século XX que nos permitem

preparar um terreno para o século XXI.

Na transição da idade média para modernidade haveria dois modelos interpretativos, isto é,
modelos a partir dos quais a “humanidade poderia se enxergar”, trilhar seus caminhos:

- o religioso, teocêntrico, em que a verdade está dada, que nos reporta a Idade Média, ao
modo de produção das condições de vida feudal;

46
- o científico, antropocêntrico, em que a verdade pode ser descoberta- iluminada pelo
racionalidade científica, que nos reporta a modernidade, ao modo de produção das condições de

vida capitalista.

Do segundo modelo – científico - surgem duas bases filosóficas que influenciarão o modo como
a sociedade promoverá saúde e, portanto, conceberá uma forma distinta de preparar os
profissionais de saúde (educação médica). São eles:

• a base marxista (Karl Marx) – que na perspectiva materialista histórica disseca o capitalismo e
considera conceitos fundamentais a totalidade, a globalidade, o processo onde não há
separação entre sujeito-objeto. O sujeito adquire uma dimensão histórico-social e estabelece
uma relação dinâmica com um objeto que se constrói. A construção do objeto gera um
processo que transforma o sujeito. Este se modifica, se enriquece. O processo de construção
desta relação estaria atrelado ao desenvolvimento das forças produtivas.

• a base positivista (Augusto Comte) – pautada por métodos científicos rigorosos, objetivos.
Respaldada pelas ciências empírico-analíticas próprias das “ciências naturais” (física, química,
biologia), o positivismo admite que métodos interpretativos, subjetivos comprometem o rigor
científico e a neutralidade axiológica e não garantem a qualidade do conhecimento produzido.

Nenhuma dessas bases filosóficas prestou para reflexão durante a realização do Projeto
CINAEM. Uma terceira tendência – pós moderna - que surgiria na década de 60 e da qual Foucault
faz parte, é que serviu de instrumento interpretativo para os problemas da educação médica.

Após a década de 50 do século XX, no período pós guerra, toda discussão sobre a educação
médica não ficou isolada dos aspectos ideológicos permitidos pela polarização entre o capitalismo
e o social -comunismo. De um lado, a base filosófica positivista deu forte impulso aos avanços
científicos-tecnológicos que já vinham sendo produzidos desde o século XIX no capitalismo
incipiente (ex.: máquina vapor, tear, a vacina da raiva criada por Pasteur, etc.). Os princípios do
relatório Flexner (1906) que orientaram a regulamentação da formação médica levando-a para as
universidades (aulas em laboratórios, período integral, etc.) e tirando-a das mãos dos profissionais
liberais foi bastante favorecido pelo positivismo e pela avalanche de novos avanços científicos-
tecnológicos proporcionados pelas duas grande guerras mundiais. Este movimento dá origem a
uma base conceitual para um modelo de educação médica usado na maior parte do mundo onde o
foco é a doença, o agente causador da doença, o tratamento em hospitais, o uso de tecnologia
avançada, etc. Doença e doente são isolados do contexto social para que se faça um tratamento
adequado. Não é considerado o momento social, político e econômico que leva ao adoecimento e
a morte. Embora os defensores do positivismo saibam que estes aspectos são importantes para

47
promoção da saúde, eles acreditam que não devem fazer parte da discussão sobre educação e
assistência médica. Na década de 60 a psiquiatria tradicional /positivista sofrerá forte oposição do
movimento Antipsiquiatria, do qual Foucault faz parte, por não considerar o contexto social como
também sendo responsável pela gênese das doenças psiquiátricas.
De outro lado, a base filosófica marxista deu suporte ao avanço do social comunismo pelo
mundo. Alguns podem perguntar como isto interferiria na promoção de saúde de uma sociedade?
Ocorre que a mudança dos regimes políticos permite uma organização do sistema de saúde
distinta daquela observada nos países de economia capitalista. Além disso, são propiciadas
modificações estruturais nestas sociedades (programas alimentares, de renda, saneamento básico,
educação, lazer, esporte, assistência médica, etc.) que mostram forte tendência de melhoria nos
indicadores de saúde, mas não necessariamente atrelados às ações médico-assistenciais. As
experiências socialistas-comunistas na segunda metade do século XX, parciais ou integrais,
disseminam-se pelo mundo como observado em Cuba, Chile, África, Indonésia, etc. Em todas elas
há uma ensaio com a promoção de saúde que foge dos modelos observados nas economias
capitalistas, ou seja, a promoção da saúde é encarada de um modo em que comer, beber, dormir,
morar, brincar, praticar esporte, estudar, divertir-se, etc., têm papel tão importante quanto ir ao
médico. A doença não é vista apenas na perspectiva de um olhar médico procurando uma doença,
um agente (biológico, físico ou químico), ou de um equipamento de ponta para diagnosticar um mal
. O olhar médico nestas economias trabalha com o conceito de
totalidade/globalidade/complexidade para promover saúde e isto é resultado de uma outra
concepção de saúde que não é permitida pelo positivismo e nem mesmo pelas concepções
derivadas do pensamento de Marx, como visto nos Projetos EMA e CINAEM. Nestas economias
socialistas são consideradas as condições materiais da sociedade (nível educacional, condições de
moradia e saneamento básico, acesso a alimentação, programas de esporte e lazer, etc.) que uma
vez não contempladas propiciam o adoecimento e a morte. Este é um conceito fundamental na
promoção da saúde que difere daquele das economias capitalistas, pois nessas, a
promoção da saúde apoia-se fundamentalmente na assistência médica – primária,
secundária, terciária ou quate rnária - e as condições materiais de subsistência dos
usuários do sistema de saúde são analisadas noutras esferas governamentais do Estado.
As experiências socialistas-comunistas que poderiam influenciar novos arranjos nas sociedades
capitalistas latino-americanas foram fortemente interrompidas pelos governos ditatoriais. Com elas
prevaleceu o modelo de educação médica de base positivista mas num novo cenário mundial onde

misturavam-se:

• repressões e surgimento de ditaduras militares anti-comunistas, dúvidas e descrença em


relação as experiências socialistas-comunistas pelo mundo;

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• êxodo rural e crescimento populacional urbano desordenado propiciados pelos avanços
tecnológicos que invadem o campo e pela industrialização na cidade: “o campo espanta os
trabalhadores e suas famílias e a cidade os acolhe na sua periferia”;

• custos crescentes da assistência médica (hospitais, equipamentos, medicamentos, etc.)


forçam a revisão de gastos pelo Estado que é obrigado a redimensionar o modelo de
assistência médica segundo os preceitos do Banco Mundial e do FMI.
• avanço do neoliberalismo.

A fim de encaminhar as modificações no sistema de assistência à saúde suscitadas pela


sociedade em expansão nas metrópoles e centros industriais e respeitando a cartilha neoliberal do
FMI e Banco Mundial, uma outra base filosófica - paradigma pós-moderno - sustentará o
debate, a reflexão e a orientação das mudanças na educação médica brasileira. Seus criadores
apropriaram-se do pensamento de Marx que lhes serviu como referência teórica para reflexões e
críticas ao positivismo por este não considerar o contexto social na gênese das doenças, porém
não levaram em conta a radicalidade do materialismo histórico e da crítica marxista ao capitalismo.

Na década de 60 surgiram 4 movimentos contrários à sociologia positivista: Freud-marxismo,


ideologia crítica, modelo médico-marxista e o marxismo ortodoxo. Nesta perspectiva Foucault, a
partir de um enfoque hermenêutico-subjetivista, torna-se talvez o principal crítico da medicina o que
justifica sua adoção como referencial teórico para reflexões sobre o passado-presente da
educação e assistência médicas e sua possível organização do futuro em várias discussões sobre
a formação de recursos humanos em saúde. Podemos notar sua “marca registrada” numa leitura
mais atenta do Projeto CINAEM.

Hoje, século XXI, teríamos então o paradigma iluminista que incluiria o marxismo e o positivismo
e o paradigma pós-moderno a orientar o modo como a “humanidade se enxerga”, se orienta e
planeja seus passos. São os dois novos modelos interpretativos que orientariam o
desenvolvimento da humanidade, distintos daqueles da transição século XIX-XX. Enquanto o
primeiro modelo considera aspectos macro e microestruturais da evolução material humana, o
segundo dispensa apreensões históricas mais amplas/globais. E uma vez adotado este referencial,
admite-se analisar a realidade da educação médica no século XX e XXI com as mesmas lentes.
Talvez este seja o problema central da proposta de transformação da educação médica e não só
do Projeto CINAEM, mas também do Projeto EMA e dos demais Projetos dispostos a rever a
educação médica. Isto inclui esta nova experiência em Fortaleza. Daí a necessidade de escolher
uma lente adequada para enxergar a educação médica, porém não restrita aos limites da
universidade, mas articulada a trama social que é muito mais complexa. Embora as experiências
do Projeto EMA e CINAEM tenham sido relevantes, não contemplaram uma discussão radical

49
acerca do que é promoção de saúde num país de terceiro mundo, numa economia capitalista
globalizada e neoliberal. Nesta perspectiva a realidade material de milhares de indivíduos que
utilizam o sistema de saúde há anos é tão miserável que coloca em cheque qualquer possibilidade
de sucesso do PSF (programa de saúde da família) seja no interior do país ou na periferia das
regiões metropolitanas. O mesmo ocorre com o PBL (aprendizagem baseada em problemas) e
suas variações, ou outras propostas de ensino médico. Porém, tudo isto está dentro do que foi
previsto pelo Banco Mundial, FMI, ou seja, a assistência à saúde nos países em desenvolvimento
foi pensada também como forma de “aliviar a pobreza”.

Propostas futuras para formação de recursos humanos em saúde não devem ignorar esta

trama.

O exercício da medicina na perspectiva de um novo intelectual

As mudanças no mercado de trabalho médico, principalmente no último quartel do século XX,


ainda não chegaram ao fim e têm sofrido das mais variadas formas as influências do
neoliberalismo como, por exemplo, através da ciência e tecnologia, do empobrecimento mundial e
do avanço de doenças (infecciosas, degenerativas, psíquicas, obesidade, etc.), da mercadorização
da medicina, entre outras situações. O perfil do médico tem mudado em função destas variáveis
que interferem diretamente no mercado de trabalho. Há um crescimento do trabalho médico
assalariado e redução da atividade como profissional liberal. Em função destas alterações nas
relações de produção entre a ação do médico e a sociedade contemporânea pode haver uma
transformação no seu papel tradicional junto à própria comunidade. Suas ações não deveriam ficar
limitadas ao campo da prevenção e cura, mas englobar a ação política que, por sua vez, seria
elemento motivador imperativo da prática cotidiana. Mas estes profissionais podem ter um papel
ativo e decisivo nas transformações materiais sociais se carregarem para o campo da educação e
assistência médicas a reflexão crítica e global sobre o processo de adoecimento, o que será
possível somente a partir do ingresso de outras áreas do conhecimento (história, política,
economia, sociologia, etc.). Desta forma, caberia a este profissional que no processo de formação
intelectual e durante o exercício da profissão desenvolve uma interpretação do mundo que oscila
entre a possibilidade de promover a vida longa-saudável e o seu oposto – a doença e a morte -,
partilhar sua visão peculiar com os outros atores sociais co-responsáveis pela promoção de saúde.
Neste processo, a interface entre “distintos campos científicos” (ex.: economia-urbanismo-
medicina), ou distintas profissões, que tem sido timidamente explorada, ganharia status científico
a partir do embasamento materialista histórico e da dialética marxiana podendo então ser
detalhada e ampliada. Esta prática talvez fortaleça as ações de transformação social e lhes dê
maior sustentabilidade e legitimidade.
De acordo com as características materiais-ontológicas da profissão, os médicos apresentam
um potencial significativo para promover as transformações concretas de que a sociedade

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carece. Mas para dar início a este processo é preciso dar-lhe formação intelectual ampla
para que compreenda o significado lógico e radical da saúde e do que é necessário para
promovê-la. Esta deveria ser a meta fundamental de qualquer proposta de educação médica.

O médico atualmente desempenha seu trabalho na penumbra, isto é, há uma meia luz
iluminando os “porquês” da sua atividade. Quanto maior a luminosidade permitida a partir de novos
e esclarecedores conhecimentos (à semelhança do que ocorreu na transição entre o teocentrismo
e o antropocentrismo), maior a possibilidade de despertar sua capacidade transformadora. Vários
estudos mostram que a medicina e o médico gozam de importância econômica, ideológica, política
e social, e isto os torna “pontos estratégicos”, reforçando a idéia de grande poder transformador
social, mas que ainda está adormecido. Uma meta a ser perseguida neste processo é tentar
subsidiar a compreensão do paciente como sendo um indivíduo desprotegido, vulnerável, também
em função, ou principalmente, devido ao modo de produção da vida atual.

Nesse sentido o médico pode trabalhar para denunciar e apontar o que falta para a construção
de uma sociedade mais saudável, que por sua vez está atrelada à organização de uma sociedade
menos desigual do ponto de vista material. É a diferença, por exemplo, entre o médico que
combate a obesidade com anorexígenos e cirurgias bariátricas e o médico que combate a
obesidade antes do seu surgimento e/ou agravamento através da prática de atividade física mas
que inclui a reivindicação de praças e programas esportivos e de lazer, de subsídios para uma
alimentação balanceada, etc.

Embora prevaleça o lado sacerdotal e/ou de arte da medicina, ou ainda aquele tradicional
excessivamente bio-técnico, radicalmente sabemos que a medicina possui, numa perspectiva
ontológica, uma base materialista histórica. De acordo com isto, se consideramos o médico como
sendo expressão do refinamento e da evolução humana no campo da promoção da saúde,
principalmente no período moderno, é inegável que ele também tem dever moral e científico, além
de compromisso de evitar a morte.
E se, como pudemos notar, doenças como câncer têm também relação com as condições
materiais e estas, por sua vez, são dependentes e determinadas pelo modo como o homem nas
suas relações com os outros transformam a natureza e a si mesmos, podemos inferir que numa
abordagem mais avançada da educação médica, não cabe mais formar médicos para
atuarem limitados às ações curativas, preventivas, e da epidemiologia, na luta contra
doença e a morte.
O médico deve compreender detalhadamente a construção material histórica da
doença que por sua vez está atrelada à construção material histórica do homem em sociedade.
Com isto as concepções da medicina como sendo “sacerdócio ou arte” podem ser definitivamente
abolidas evitando que se mantenha uma falsa idéia deste profissional, do seu poder e da sua

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onipotência. Estas idealizações “originais”que surgiram a partir das mais remotas relações entre
medicina e sociedade e que também expressam desde então as relações humanas entre
dominantes e dominados, ainda estão na raiz das análises e propostas pedagógicas para o
campo da medicina.

Durante o século XX percebemos que ambas as idéias foram favorecidas pela associação
medicina-tecnologia e serviram, neste mesmo período, para engrandecer a ação da técnica e
esconder a exploração capitalista (face onipotente que se perpetua com Projetos como GENOMA,
pesquisas com biologia molecular, etc).

Agora, se realmente considerarmos a medicina como uma área que permite estudos científicos
de base materialista-histórica, e onde é imprescindível para maior compreensão do fenômeno
doença-doente-adoecimento o aluno e/ou o profissional adquirirem conhecimentos oriundos de
outra área, poderemos então criar uma nova meta para o médico alcançar, qual seja, a de
estabelecer uma adequação entre o desempenho profissional e o desenvolvimento material
humano, ambos direcionados para construção de uma sociedade menos desigual do ponto de vista
material.

Assim, o médico pode abandonar a posição histórica construída predominantemente ao longo


dos séculos XIX e XX de eminente curador-preventivista, ou pesquisador “neutro”, “a-histórico”, e
passar a ter uma postura crítica e de liderança na escolha de conhecimentos das mais variadas
áreas e mesmo atuar em conjunto com elas, sem desprezar os aspectos curativos–preventivos e
da pesquisa, mas fazendo valer sua posição social de detentor de conhecimentos que lhe permite
poder coordenar algumas das transformações sociais. Uma das tarefas seria a de organizar o
conhecimento produzido até hoje na direção de uma transformação social efetiva e filtrar a
avalanche constante de conhecimentos específicos produzidos, usando para isto o caráter inter e
multidisciplinar destas informações que lhes pode conferir eficácia na construção material social
para humanidade. Esta é uma opção-alternativa para o processo médico-educacional que não
pode ser ignorada e também não deve ser imposta. Esta mudança de postura, uma opção a ser
adotada sem imposições, mas baseada em elementos concretos do cotidiano que devem ser
interpretados pelas áreas do conhecimento específico atuando de forma inter e multidisciplinar
para estimular e possibilitar o amadurecimento intelectual social que gradativamente vai tornando-
se mais amplo.

De acordo com as necessidades que identificamos, a atualização do pensamento de Marx


serve à reformulação do modelo de educação médica de modo a lhe dar coerência e sintonizá- la
às reais "necessidades sociais" de saúde, permitindo que desprezemos aquilo que ilude e nos faz
"patinar" sem avançar.

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Nós entendemos que com o crivo da história os problemas habitualmente admitidos como da
“esfera médica” podem ser “revisitados” por outras áreas específicas do conhecimento que
fornecerão novas e adicionais informações e estas, por sua vez, na perspectiva do pensamento de
Marx, tendem a confluir diante dos desafios comuns que a própria humanidade se coloca. Esta
também é uma forma de “atualizar” a obra de Marx que poderia ser coroada com um novo modelo
de associação política e científica institucionalizada, multi e interdisciplinar, voltada para s
pesquisas que consagrem o imbricamento das informações em história, educação, medicina,
economia, estatística, ciência política, sociologia, geografia, ecologia, etc.

Hoje a possibilidade de superar a alienação renova-se também a partir da integração dos


conhecimentos específicos. E a motivação para que esse processo se concretize pode ser
extraída das análises fundamentadas no materialismo histórico e na dialética marxiana. Devemos
trazer a discussão sobre a formação médica, portanto relacionadas à educação e ao currículo
médico, para um outro campo da instrução onde não haja privilégio desta ou daquela área do
conhecimento, evitando que o debate fique restrito aos domínios da medicina. Deste modo, se
espera a participação específica e especializada de várias esferas da ciência, além da própria
medicina, na construção de um arcabouço teórico para orientar, primeiramente, a formação de
médicos para o Brasil. Isto pode fazer avançar as discussões e enriquecer a reflexão crítica e
histórica que a orientação e fundamentação filosófica inerente ao materialismo histórico e a
dialética marxiana possibilitam.
De acordo com o materialismo histórico, a partir da indústria surgem os meios básicos,
concretos para que o homem seja efetivamente conduzido a uma situação de satisfação material e,
portanto, a um estado saudável (psíquico e somático), distanciando-se da morte. E por que esta
situação ainda não pôde ser alcançada suscita reflexões e respostas que incluem elementos
similares àqueles que podem esclarecer os motivos pelos quais a educação médica atual insiste
em conservar pressupostos teóricos que limitam a abrangência do processo de reformulação do
currículo médico e sua interferência nos rumos da sociedade neste início do século XXI. Ou seja, à
semelhança do que ocorreu no início do século XX quando a reformulação do ensino
médico (Relatório FLEXNER) foi feita sem considerar radicalmente aquelas transformações
sociais determinadas pelo desenvolvimento capitalista, hoje, através do Projeto CINAEM,
também se pretende dar novos rumos à educação e assistência médicas sem haver um
necessário detalhamento do imbricamento das políticas de saúde e educação com os
princípios do ideário liberal, na forma de um “novo liberalismo”.
É importante lembrar que nas décadas de 80 e 90 tivemos ganhos para a sociedade ligados às
mudanças institucionais e políticas, brasileiras e mundiais, e que ainda apontam para novos
horizontes históricos talvez com a consequente possibilidade de uma medicina socializada,
tecnicamente competente e comprometida com a vida. As mudanças na Constituição Brasileira

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(1988), a democracia, os estatutos protegendo os direitos da criança, do adolescente, das
mulheres, os movimentos sociais reivindicatórios (urbanos e rurais) são alguns exemplos dessas
transformações. E o Projeto CINAEM, desde o início, não está à margem desse processo que
continua canalizando os desejos de modificação da formação médica. No bojo dessas
transformações podemos avançar ainda mais no campo da promoção da saúde nacional e criar a
consciência necessária de que a educação médica e a formação de recursos humanos em saúde
não é tarefa exclusiva da medicina, mas sim um Projeto social estratégico de crescimento e

desenvolvimento econômicos que deve envolver outros atores sociais.

6. Iniciação Científica – O Primeiro Contato com um Universo

Milena Moreira Arruda1

Quando entramos na tão sonhada faculdade de MEDICINA após o cansativo vestibular e após
vários penosos anos de cursinhos para muitos dos “privilegiados” não que conseguiram entrar
direto do colégio, pensamos que nossos problemas acabaram. Porém, após a alegria de ser “bixo”
e de festejar o ingresso na tão sonhada faculdade de Medicina, descobre-se que iniciar um curso
superior do porte do Curso de Medicina requer maturidade acadêmica e esta vem acompanha por
muitos desafios, responsabilidades e obrigações que e muitas vezes geram ansiedades e medo
frente à falta de informações a seu respeito. Um destes desafios é realizar um trabalho de iniciação

cientifica.

O que é um trabalho de iniciação científica?

É um trabalho que envolve produção científica, baseado em uma hipótese que se quer provar
ou negar. Para isso realiza-se o estudo de uma determinada hipótese (Eficácia de um
medicamento, incidência e/ou prevalência de uma doença em uma população...) e tenta-se
estabelecer correlações com outras variantes (fatores de influência), utilizando-se metodologia
científica para uniformizar os dados obtidos com a linguagem científica universal. Também se
comparam os dados obtidos ao longo do trabalho com outras produções científicas que tenham a
mesma linha de pesquisa, a fim de se estabelecer correlações e aprimorar os novos dados e

descobertas.

Por que devo fazer um trabalho de iniciação científica?

Os avanços tecnológicos e científicos, na área médica, têm se desenvolvido com uma


velocidade assustadora nas últimas décadas devido ao advento da internet e aperfeiçoamento dos
meios de comunicação. Para a atualização médica é imprescindível a leitura de publicações como

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periódicos, consensos, trabalhos científicos, estudos e Trials, a fim de se acompanhar essa rápida
evolução e não se desatualizar sobre os novos conceitos e terapias.

O estudante de medicina deve se familiarizar com esse tipo de publicações, entendendo a sua
linguagem, como são realizados e a sua metodologia, além de saber interpretar os seus resultados
através de uma análise crítica e bem estruturada no raciocínio científico. Para tal, é necessária a
inclusão deste estudante na realização de trabalhos científicos. Fomentar a pesquisa significa
ampliar o aperfeiçoamento das habilidades acadêmicas no que diz respeito ao desenvolvimento de
um raciocínio cientifico e metodológico, fundamentais para a formação científica.

Além disso, incentivar a pesquisa científica, com rigor e critérios, dentro das instituições de
Ensino Superior significa formar não só médicos, mas sim pesquisadores que irão promover
melhorias no desenvolvimento tecnológico, científico, econômico e social, uma vez que objetivam o
aprimoramento de terapias menos agressivas e invasivas e de menor custo.

A Iniciação Cientifica é um instrumento que permite introduzir os estudantes de graduação,


potencialmente mais promissores, na pesquisa cientifica. É a possibilidade de colocar o aluno
desde cedo em contato direto com a atividade científica e engajá-lo na pesquisa. Nesta
perspectiva, a iniciação científica caracteriza-se como instrumento de apoio teórico e metodológico
à realização de um projeto de pesquisa e constitui um canal adequado de auxílio para a formação
de uma nova mentalidade no aluno. Em síntese, a iniciação científica pode ser definida como

instrumento de formação.

7. Ligas Acadêmicas – Uma Breve Introdução

São grupos formados por acadêmicos que visam aprofundar seus conhecimentos sobre uma
determinada área médica ou uma determinada área da saúde. A estruturação de uma liga
acadêmica baseia-se no tripé ensino, pesquisa e extensão, buscando complementar as atividades
curriculares. É dever das ligas equilibrar a realização destas atividades, caso contrário, não
passarão de meros grupos de estudos.

Fomentar a pesquisa significa ampliar o aperfeiçoamento das habilidades acadêmicas no que


diz respeito ao desenvolvimento de um raciocínio cientifico e metodológico, fundamentais para a
formação científica, através da realização de trabalhos científicos orientados por docentes e
relacionados aos temas relativos à especialidade a qual a liga se refere.

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Fomentar a extensão traduz-se automaticamente na aproximação do acadêmico com a
comunidade, que em questão de pouco tempo se tornará seu público alvo de atendimento.
Fortalecer essa relação através do contato direto com a comunidade, fará com que o acadêmico
aprimore suas habilidades e passe a entender o indivíduo como um todo dentro de seu contexto
social, contribuindo para a visão holística da saúde. Os projetos de extensão são apoiados pela
Diretoria Adjunta de Extensão e realizados junto à comunidade que procura o serviço saúde,
através da realização de projetos, campanhas, caravanas e jornadas, entre outros eventos.

Fomentar o ensino significa que as ligas complementam um conhecimento que o aluno adquire
curricularmente, abordando de forma mais pormenorizada ou sob outros pontos de vista, suprindo
a demanda de conhecimento extracurricular, acrescentando ao acadêmico informações sobre um
assunto de seu interesse, aumentando seu conhecimento e complementando a sua formação,
através da realização de aulas com temas específicos de cada especialidades as quais as ligas se
referem.

Assim, uma liga acadêmica, visa contribuir para a formação de alunos completos e com uma
formação generalista e voltada tanto para o ensino, como para a pesquisa, como para a extensão,
abrangendo as três áreas.

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