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O ANIMAL 4
O ESQUEMA NIGERIANO 12
O POVO DO LIVRO 31
ANJO DO SCREAM 41
BRINCA COMIGO! 69
Quem escreve literatura fantástica sabe que não tem um mercado comprador por aí além. É
um facto que pagar pelo acto de escrever é só por si algo que ainda não faz parte de muitos dos
usos e costumes do panorama editorial português. De modo que ter uma oportunidade e um
veículo como o NOVA presente no horizonte, tornou-se importante. Tanto mais porque
possibilita aos autores uma via de correcta compensação pelo seu trabalho, como também
aponta para uma mais correcta postura editorial e de mercado.
Nos diversos géneros do fantástico isto é particularmente sentido.
Quando fui convidado pelo Ricardo Loureiro para o trabalho editorial (e o que mais
houvesse) na revista, na sequência da sua aceitação do meu conto O Animal que também podem
ler neste número, senti que esse pequeno pormaior era um dos factores de distinção que urgia
reclamar para um canto literário ainda a braços com bastantes dificuldades de expansão e
implantação. Mas também outras coisas me fizeram aceitar alegremente a proposta: o trabalho
de ler e avaliar textos e a prática no NOVA de fazer um trabalho editorial mais «à americana».
Porque no nosso mercado não há uma tradição de análise e discussão dos textos com os autores
de modo a produzir melhores produtos finais; infelizmente, ainda há algum estigma decorrente
de muita gente pensar que a «sua» obra é intocável e/ou que um escritor tem o «direito
absoluto» ao seu texto.
Ora, a realidade é que, primeiro, não existem textos perfeitos; segundo, que «mesmo no
melhor pano cai a nódoa»; e terceiro, bem importante, é que a literatura é uma arte de constante
avaliação por outrém, ou seja, todos avaliam todos, desde críticos a editores, de autores a
revisores, e acima de tudo, todos estes são avaliados pelos leitores.
E os leitores são a alma deste negócio. Sem eles o escritor, o editor, e todos os outros, nada
são. A literatura fantástica é uma área especialmente vocacionada e alimentada pelos seus
leitores e fãs, mais do que qualquer outro género (ou não-género) literário, de modo que
agradar-lhes, ao mesmo tempo que se lhes proporciona uma garantia de qualidade, é algo que
assume ou pode assumir um cariz de missão, coisa que o NOVA respira e transpira. Procurar
traduzir bons autores, e publicar os valores nacionais é algo que faz parte da filosofia editorial
deste produto que têm diante dos olhos.
E se esse trabalho deu frutos!
João Barreiros, João Ventura, Douglas Smith e Richard Lovett. Um elenco de luxo para
vosso gáudio e voraz consumo. Not bad indeed!
Nuno Fonseca, co-editor
Outubro, 2008
R
yan Mann estava aborrecido. Aborrecido o suficiente para ler o lixo electrónico em
vez de simplesmente descartá-lo como spam. Frustrado o suficiente para considerar
responder-lhe, só para ver qual seria o resultado.
CHOLTUS!
Ryan demorou um bocado a processar aquilo, mas quase desatou a rir. Então era por isso
que Gleimickr estivera tão interessado no feedback quanto aos esquemas de escala que ele
arranjara. Aparentemente a transferência permitia-lhe alterar as suas dimensões à vontade.
Ryan ficou subitamente muito feliz com as partes eléctricas queimadas da cabina. De outro
modo, Gleimickr poderia ter sido capaz de teleportar-se de volta aonde viera e reaparecer com
um tamanho mais adequado. Mesmo assim, ele ainda podia ser perigoso. Sem dúvida que os de
Vega-Exterior tinham boas armas.
Gleimickr pareceu chegar à mesma conclusão, porque agora todas as quatro armas
disparavam ao mesmo tempo, apesar de a pontaria estar um bocado aleatória. Era evidente que
o pânico — tal como a vigarice — era uma característica inter-espécies.
Ryan era um alvo suficientemente grande para que os tiros não falhassem.
— Ai, – disse ele quando o disparo do explosor lhe tocou na pele. — Isso dói.
A qualquer momento Gleimickr começaria a disparar-lhe para os olhos, e isso poderia fazer
mais do que magoá-lo.
— Pára com isso. — disse Ryan.
Mas Gleimickr não o ouvia, ou não prestara atenção às explicações de Ryan sobre o que
fazem os ciclistas quando a vitória já não é possível, pois não parecia estar a pensar nisso.
Irritado, frustrado, mas sentindo-se subitamente bem superior, Ryan chegou-se à frente...
e pisou com força.
Viria a saber mais tarde que, por todo o planeta, as tropas de assalto tinham sofrido o mesmo
destino. Os pés provaram ser a mais letal das armas, embora os gatos ficassem perto, em
segundo lugar. Aparentemente havia algo nas tropas alienígenas de que estes não gostavam.
Mata-moscas e jornais enrolados, assim como os pássaros, também se vieram a provar
mortíferos para aqueles que tentaram escapar com aparelhos antigravidade.
Numa semana acabaram-se os relatos de estranhos insectos vermelhos, ou sobre o que quer
que fosse fora do normal. Os jornais continuaram a falar de uma invasão alienígena, mas isso
Nova – ezine de FC e Fantasia 29 Novembro – 2008
levou toda a gente a atribuir os estragos nas cabinas de transporte a picos de corrente ou a
pensar que o que dera na televisão fora uma brincadeira de mau gosto.
Entretanto Ryan pegou num par de pinças e começou a coleccionar equipamento alienígena.
A Terra tinha sobrevivido à invasão devido à sorte e a um problema de comunicação. Se os de
Vega-Exterior encontrassem uma forma de tentar outra vez, o maior inventor do mundo desde
Edison (talvez até desde antes) tinha a intenção de estar mais bem preparado.
E quem sabe, talvez viesse a encontrar uma maleta médica com a cura para o
envelhecimento.
Esta é a segunda passagem de Ventura pelo NOVA, depois do número inaugural onde nos
ofereceu Noosfera.
Desta feita com O Povo do Livro, Ventura oferece-nos um conto de dimensões mitológicas, uma
metáfora para os tempos actuais, de forte inspiração bradburiana com o seu toque pessoal.
Visite o blogue: Das palavras o Espaço < http://fromwords.blogspot.com/>
A
o pôr-do-sol começaram a sair das casas. Famílias inteiras, dos anciãos aos bebés
transportados ao colo das mães, dirigiam-se pelas ruas empedradas para o teatro
localizado na periferia da cidade. O ambiente era de alegria, porque as leituras do
Livro eram sempre um acontecimento festivo.
Entrando no teatro, o povo espalhou-se pelas bancadas de pedra, mantendo-se cada família
junta, para partilhar a refeição que tinha trazido de casa. Coisas simples: pão de centeio, queijo
de cabra, bolos de nozes e mel, fruta diversa, vinho de maçã e cerveja. A ceia durava sempre até
nascer a lua, altura em que tinha início a leitura do Livro.
Quando a lua cheia começou a aparecer, recortando o perfil da Montanha Maior, o Contador
saiu da Casa do Livro, ladeado pelos dois ajudantes, que transportavam archotes, e
acompanhado também por um tocador de adufe. Segurava o livro com as duas mãos, e o grupo
seguiu pelo caminho lajeado em direcção ao teatro, o ritmo da marcha marcado pelo som rouco
das pancadas no couro esticado.
Enquanto decorria a leitura, dois homens, no topo da colina oposta ao teatro, observavam
atentamente tudo o que se passava. Tinham chegado ali caminhando furtivamente, naquela
incerteza entre luz e sombra quando o sol já morreu e a lua ainda não nasceu. Movendo-se sem
ruído, tinham deslizado entre a erva alta até ficarem numa posição que lhes permitia ver sem
serem vistos o que se iria passar mais abaixo.
Tinham feito uma longa jornada, pelo que o descanso foi bem-vindo. Beberam água de uma
botija que um deles trazia e comeram o que tiraram de um bornal: pão escuro, fatias de carne
fumada e frutos silvestres.
Eram jovens, vestiam roupas de couro, usavam calçado do mesmo material, e estavam
armados, um deles com uma lança e o outro com um arco e flechas. Assistiram ao encher do
teatro, imóveis e em silêncio, com a paciência do caçador que sabe esperar o tempo que for
necessário. O único movimento que faziam, de vez em quando e de forma quase automática, era
acariciar o amuleto que cada um deles trazia pendurado ao pescoço.
Do ponto onde estavam via-se também a Casa do Livro. A postura deles passou a mostrar
uma maior tensão quando o Contador e a sua companhia iniciaram o percurso em direcção ao
teatro.
Olhavam o Livro com curiosidade temerosa. As palavras do feiticeiro ainda ressoavam aos
seus ouvidos:
— A magia deles é grande, e está no que eles chamam o Livro, e que tem sinais que
representam palavras, e essas palavras fazem acontecer as coisas. Mas a magia que vos dou aqui
– e colocou-lhes ao pescoço os amuletos – é mais poderosa, e vocês serão capazes de queimar a
magia deles, com o líquido do fogo que levarão convosco.
Alternadamente, um deles vigiava enquanto o outro dormitava; períodos curtos de sono, dos
quais acordavam imediatamente despertos, olhando à volta, cheirando o ar, avaliando o
ambiente em redor em termos de vantagens ou ameaças.
Terminada a leitura, esperaram que o povo esvaziasse o teatro e que o Contador e a sua
companhia fizessem o caminho de volta até à Casa do Livro, onde este foi deixado com o ritual
do costume, afastando-se depois o pequeno grupo em direcção à cidade.
Quando a noite sossegou, os dois homens puseram-se em movimento. Pegaram nas armas,
puseram os bornais a tiracolo e um deles pôs às costas um odre que tinham trazido.
Caminhando pelo meio da vegetação de forma quase inaudível, dirigiram-se para a Casa do
Ainda madrugada, o Contador levantou-se, comeu uma refeição frugal de pão escuro e leite e
saiu rapidamente de casa. Quando os primeiros raios de sol o atingiram, já ele atravessava o
prado, pelo caminho que seguia na direcção da Montanha do Meio. De algumas quintas
dispersas vinham sinais do começo da actividade diária: fumo a sair pelas chaminés, vozes
amortecidas pela distância, o ruído longínquo do chiar das rodas de uma carroça... Mirno
caminhava num passo cadenciado, com a intenção de chegar à base da montanha, mais
arborizada, antes que o sol ficasse muito forte.
Naquela noite, a atmosfera no teatro era bem diferente do habitual. Mesmo as crianças
pareciam ter intuído que algo se passava, e em vez das correrias do costume, mantinham-se
junto da família. As conversas eram em voz mais baixa.
Quando a lua nasceu, um silêncio total encheu o anfiteatro, enquanto o Contador se
encaminhava para o púlpito.
Dirigiu ao povo a saudação tradicional, ouviu a resposta e começou a falar:
Nova – ezine de FC e Fantasia 39 Novembro – 2008
— Meus amigos, na lua passada aconteceu algo que nunca pensámos que pudesse ser
possível. O nosso Livro foi consumido pelas chamas.
— Mas o que nos junta aqui é mais do que um livro, por muito importante que ele fosse para
a História do nosso povo. O que nos junta aqui são as histórias, e essas não desapareceram, não
foram queimadas, continuam vivas na nossa memória. E nós não vamos deixá-las morrer.
Um murmúrio de aprovação surgiu da assistência.
— Hoje vou falar-vos de Attik, que dirigiu os trabalhos de construção da cidade, e dos
problemas que teve de enfrentar, e da forma inteligente como os resolveu.
E o Contador iniciou a narrativa como se tivesse o Livro aberto na sua frente, e foi contando
a história, e sentindo a reacção da assistência como quando lia, a forma engenhosa como Attik
desenvolveu o sistema de transporte dos troncos desde a floresta até ao local onde se iniciou a
construção da cidade, o modo como projectou e dirigiu a abertura do canal que do rio mais
próximo ainda hoje traz a água necessária para abastecer a cidade, o eficiente sistema de
comunicações que implantou para ligar os postos de vigia à Casa da Cidade, com espelhos e
lanternas ao ar livre e cabos de corda fina dentro dos edifícios.
Enquanto contava a história, sentia-se quase como se fosse ao mesmo tempo duas pessoas,
uma a contar e outra a observar, e esta segunda surpreendia-se com a forma como a primeira
reproduzia fielmente o que estava escrito no livro desaparecido. E ao mesmo tempo, em
paralelo com a história que contava, ia sentindo crescer dentro de si um sentimento de
confiança, como se a cada nova casa construída na cidade cujo nascer ele descrevia
correspondesse naquela assembleia mais alguns cidadãos que reforçavam o seu acreditar no
futuro da Cidade.
Quando terminou a história, a Lua ia alta no céu. E o Contador usou a fórmula ritual.
— Que o vosso sono seja pacífico.
E veio a resposta murmurada.
— E o teu como o nosso.
O povo começou a sair do teatro, as pessoas comentando entre si a narrativa que tinham
ouvido, e Mirno respirou aliviado, pensando que o espírito da Cidade continuava bem vivo. E
que, enquanto o passado continuasse a iluminar o presente, haveria esperança no futuro.
Smith é um autor canadiano com obras publicadas internacionalmente. Esta é a sua primeira
publicação em português e o conto escolhido foi vencedor do prémio Aurora de 2004 na
categoria de melhor conto curto.
A obra de Douglas Smith está publicada em 26 países, num total de 21 idiomas e mais de 70
publicações, incluindo The Third Alternative, The Mammoth Book of Best New Horror, Cicada, Weird
Tales, InterZone, Baen's Universe, Amazing Stories, On Spec, Oceans of the Mind.
Foi finalista para o prémio John W. Campbell, na categoria de melhor revelação e venceu por
duas vezes o prémio Aurora, na categoria melhor ficção curta especulativa.
Em O Anjo do Scream temos uma história de violência, fuga, amor e redenção tendo como pano
de fundo a avidez colonialista e o lado negro do coração do Homem.
Visite o site: Douglas Smith Writer of Fantasy & Science Fiction <
http://www.smithwriter.com/>
P
araram de bater em Trelayne quando viram que ele estava a gostar. Os rufias que
passavam por polícias na cidade de Lá-Longe afastaram-se do local onde ele estava
enrolado no chão sujo, como se fosse algo morto e perigoso. Ficou novamente a
vê-los fechar a porta da sua cela pequena e fria. Nojo e algo como medo a transparecerem nos
olhos. O travo do desprezo deles misturou-se com a brusquidão do sangue na boca. E o Scream
nesse sangue bateu novamente, com uma intensa onda de prazer.
A reacção deles não era inesperada. A Entidade Conjunta Corporativa guardava bem os seus
segredos, e o Scream era um dos mais preciosos. Lá-Longe ficava distante de qualquer mundo-
R
upert23, o Urso, está deitado de costas, sobre a gravilha de um parque de
estacionamento à beira da estrada, de ventre rasgado, com as fichas de diagnóstico
à mostra no interior de uma barriga que pretendia ser fofa, mas que neste
momento não é mais do que uma portinhola aberta sobre um emaranhado de microcabos,
placas de sintaderme necróticas coladas a tubagens por onde escorre um fluido bilioso. A
bomba vascular que faz as vezes do coração já não consegue ter energia suficiente para impelir
os fluidos carregados de toxinas e CO2 na direcção dos filtros pulmonares. Os olhos negros do
biobrinquedo piscam quase por reflexo, a pata esquerda e descascada na palma por anos e anos
de atrito contra solos agrestes, estremece ainda, o braço direito gira num movimento rotativo
que faz elevar a carcaça de cinco em cinco segundos, mas a verdade é que Rupert23 entrou no
ciclo terminal, com todos os sistemas de diagnóstico a enviar uploads para uma central hospitalar
que já não existe.
Noddy50, porque dispõe de dedos, vasculha no interior deste ventre aberto em busca das
microbaterias recarregáveis, mas quando finalmente as encontra, disfarçadas na base occipital da
cabeça orelhuda, descobre desagradado aquilo que já esperava. As microbaterias não são
universalmente compatíveis. Ou seja, respondem a preceitos específicos da Fábrica que as criou,
podem ser trocadas apenas entre Fluffy-ToysTM, nunca poderão servir a si, aos Ken, aos Action
Men. E como se isso não bastasse, como se não fosse humilhação suficiente estar ali de joelhos,
naquele fim de tarde húmido, ainda vai ter de recuar, de ceder o direito de posse ao Rupert19,
que aguarda de pé, a dançar, apenas a alguns metros do círculo de exclusão que se formou em
torno do biobrinquedo moribundo. Noddy50, acena com a cabeça, com as pálpebras a subir e a
descer sobre os olhos esbugalhados que uma certa corrente da psicologia afirmou ser atractiva
para os humanos. Rupert23 já quase não se move. «Erro terminal», diz numa voz roufenha, a
brotar algures de um laringofone descalibrado. «Erro terminal. Para que não se percam
informações, fotos de família e momentos de relação interpares, por favor, diga SAVE e chame
os paizinhos...». E por fim, cala-se a meio da despedida porque Noddy50 resolveu arrancar-lhe
as baterias e acabar de uma vez por todas com esta agonia interminável. Que se lixem as
memórias perdidas. O mais certo é os ficheiros estarem todos degradados pelo download de
programas virais. Quem as viveu, decerto está morto há muito tempo e não precisa delas para
nada.
Antes da queda na noite, enquanto o sopro do vento permanecia dentro dos parâmetros
toleráveis, ou seja, ainda incapaz de arrastar consigo um boneco com apenas um palmo de
altura, Ken21 e Action-M7 escalaram até ao telhado da lojinha de conveniências. Serviram-se
dos kits correspondentes, o Ken-Montanhista e o Action-M-Infiltrador. A mola da espingarda
Pela manhã, sob um sol escaldante, Noddy50 escala até ao telhado para desmontar os
colectores eólicos. Dois dos moinhos de vento foram derrubados pelo vendaval nocturno, as
ventosas arrancadas à placa de cimento apodrecido, as pás torcidas e semi-afundadas na água
chilra e esverdeada que cobre a quase totalidade do telhado. Nuvenzinhas de vapor libertam-se
deste lago artificial, como se todo o restaurante estivesse em vias de ebulição. LEDs piscam
sinais de falhas sistémicas junto à base onde repousam as baterias. Só dois dos quatro
acumuladores tiveram tempo de carregar por completo. O que é pouco para uma Horda faminta
de energia.
E porque as pás torcidas deixaram de fazer parte da estrutura perceptiva do biobrinquedo,
Noddy50 vê-se obrigado a tactear às cegas, com as mãozinhas esforçadas a desatarraxar
parafusos user-friendly que em princípio só deveriam ser manipulados por operadores humanos.
Infelizmente humanos é aquilo que mais falta por ali, as múmias que assombram as mesas do
restaurante insistem em permanecer tal e qual como foram encontradas, e por isso Noddy50 lá
se vai esforçando como pode, a enrolar cabos, a guardar as pás intactas no kit de transporte e
em seguida a arrastar tudo até à borda do telhado, meter os acumuladores na cestinha e depois
descê-la com todo o cuidado, não vá aquilo entornar-se e destruir de vez uma das poucas fontes
de energia de que dispõe a Horda.
Action-M7 e Rupert21, ambos em sentido, a fazer continência, numa patética imitação dos
arautos do Rei, assinalam que na loja do restaurante há duas caixas de Furões Reparadores, uma
mão cheia de canetas com programas de análise sistémica, limpas de qualquer tipo de viroses,
baterias extra multicompatíveis, e uns quantos kits de acessórios. A Horda estremece indecisa,
enquanto a informação vai passando entre aqueles que têm o bluetooth activado. Após a
terminação anunciada de Rupert23, são agora 499 membros e falta um para que se atinja a
mágica quantia de 500.
Não se pode dizer que Noddy50 seja dotado de circuitos ético-gnósticos. Embora o seu
objectivo primário seja despejar toda uma panaceia de frases politicamente correctas nos
ouvidos desatentos de criancinhas humanas, vai uma diferença abissal entre declamar bitaites
comportamentais e entender o que se disse. Ao biobrinquedo não lhe interessa que a activação
de um novo membro da Horda (se bem que útil à comunidade) implique o sofrimento do
despontar de uma nova consciência. A verdade é que necessitam de um Furão-R. Agora! Já!
É assim que, acompanhado por duas Barbies e um Ken, Noddy50 cruza o átrio do
restaurante, atravessa a sala das refeições, contorna o corpo de uma velha carcomida e meio
liquefeita pelo calor, bactérias e humidade residual, dirige-se à lojinha de conveniências, onde os
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dois pacotes coloridos que contêm diferentes modelos de Furões-R, repousam contra o balcão,
prestes a serem examinados pelos membros mais gnósticos da Horda.
No interior das embalagens, com meio metro de altura e 50 cm de diâmetro, repousam duas
criaturas sorridentes, de Charuto-pen ao canto da boca, pelagem negra e branca, olhinhos
marotos de momento ainda baços. Um deles é especializado em reparar disfunções biológicas, o
outro dedica-se exclusivamente à vistoria de circuitos mecânicos. São gémeos complementares
que deveriam ser comprados em conjunto, para desgraça dos pais e alegria dos meninos que
gostam de amputar membros a bonecos. Noddy50, que não quer saber de parcerias, opta pelo
Furão mecânico, indica ao Action-M7 que rasgue o selo plástico com a ajuda de um canivete
multiusos e que depois corte os múltiplos suportes de segurança que colam o brinquedo ao
fundo da caixa. A vozinha avisadora (preparada para se activar logo que os selos de segurança
sejam cortados) lembra os presentes e respectivos encarregados de educação que há instruções
que devem ser lidas antes da cunhagem final, que o Furão-R, não é propriamente um brinquedo
a ser utilizado por menores de seis anos, que o jovem dono deve colocar-se frente a ele, olhos
nos olhos no momento da primeira activação. Noddy50 puxa para o lado o velcro peludo do
estômago do biobrinquedo, põe a nu dois botões digito-eléctricos, pressiona o verde e deixa-se
ficar a ouvir os zumbidos internos de circuitos em vias de despertar. O Furão-R estremece, os
olhos acendem-se num fulgor vermelho, a boca rasga-se num sorriso, uma das mãos retira a pen
da boca, os pés fincam-se no chão como se a criatura finalmente percebesse para que servem os
giroscópios e depois pergunta, enfim: Olá meu! Brinca comigo! Chamo-me Zé dos Sete Instrumentos! E
tu?
Noddy50 deixa-se ficar imóvel, perante este primeiro acto de cunhagem. Os olhos do Zé-
Furão piscam, indecisos, pois o biobrinquedo que tem pela frente em nada se equipara aos
parâmetros instalados pela Fábrica de origem. Noddy50 não tem o aspecto nem o tamanho de
uma criança. Em nada se parece com a autoridade de um operador adulto. Noddy50 tem um
tamanho igual ao seu e algo deve estar errado, algo que se desviou catastroficamente das normas
acordadas no contrato, mas o quê? O sistema bluetooth indica-lhe centenas de disfunções
mecânicas, algumas quase terminais, a maior parte urgentes, entre os brinquedos mais próximos.
A ligação por modem às enciclopédias orbitais não funciona. Quanto à presença de indicadores
humanos o Zé-Furão só consegue encontrar um, mas este está a quilómetros dali, com os sinais
vitais a piscar devagarinho, rumo a uma oclusão inevitável.
Peço informações suplementares. Onde estou? Onde está o meu Dono? Porque é que ninguém quer brincar
comigo?
E Noddy50 transmite aquilo que sabe. Rupert12 acrescenta fotogramas retirados durante a
Longa Marcha: Prédios cariados. Fossas comuns repletas de ossadas. Um jumbo-jet a tombar
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como uma pedra da arcada nebulosa do céu. Uma base militar marítima, com destroyers
naufragados a sangrar combustível em chamas sobre as águas negras e oleosas. Uma ala de
hospital com centenas de crianças em agonia, debaixo de tendas de oxigénio que há muito
deixaram de funcionar. Ciber-hovertanques engalfinhados num combate cego e inútil. Nuvens
de moscardos, tantas e tão densas, que fazem do dia, noite. E por todo o lado o silêncio. E por
todo o lado um silêncio tão opaco, tão desprovido de sentido, que custa a acreditar que já
ninguém queira brincar com ninguém.
Zé-Furão, dado que é ligeiramente mais consciente do que os outros membros da Horda,
estala com a língua nos dentes, volta a enfiar a caneta na boca e murmura: Estamos feitos!
De modo algum, replica Noddy50. Agora fazes parte da Horda. Agora temos quem nos repare. Agora
participas na Longa Marcha. Rumo ao Sul! Rumo ao Sul! Ao Alvo final! Bem-vindo, Zé-R! Brinca connosco!
Zé-Furão olha em volta, para as estantes derrubadas da loja, para o lixo empilhado nos
cantos, para os pacotes melosos de doces, para o soalho lamacento coberto até à saturação de
pequenos corpos ansiosos de boas-novas, faz um check-up global, por bluetooth, aos brinquedos
que têm contratos com a empresa de reparação Multi-Sys, anota todas as quebras sistémicas,
todas as pequenas disfunções, calcula quanto tempo ainda as unidades consultadas podem
funcionar sem erros fatais, e conclui desalentado: Só posso reparar os componentes mecânicos caso haja
módulos de substituição disponíveis. Impossível reparar os elementos orgânicos. Necessito que activem o meu
irmão. Funcionamos em tandem.
Mas este pedido, que os pais e familiares só costumavam escutar depois da compra do
primeiro Furão, desperta um grito uníssono na audiência de bio-brinquedos. Não, não, não,
clamam Barbies, Kens e Action-Ms. Carrinhos de desporto apitam buzinas. Locomotivas
sorridentes arremelgam os faróis que fazem as vezes de olhos. Ruperts rodam as cabeças e
batem com as patas circulares nos troncos peludos. Não, não, não...
Noddy50 cola-se ao Furão, toca-lhe com o dedo no peito, e envia-lhe fotos de giraplanos de
ataque a mergulharem sobre as vítimas incautas, enxames de vespões armados de neurotoxinas,
microtanques a disparar canhões IEM. Mostra-lhe todo um holocausto de brinquedos mortos,
aos milhões de milhões. É o que acontece às Hordas quando começam a pensar em conjunto. E
diz-lhe: Massa crítica acima de 500 unidades. Biofeedback entre um número exponencial de componentes
semi-gnósticos inicia Singularidade. As Fábricas anulam Singularidades. As Fábricas não admitem outras
consciências além delas. Estamos perigosamente perto do limiar conceptual. Corremos risco. Impossível activar
outro membro. A Horda não pode ser mais do que uma Horda, se quiser sobreviver. Aliás temos um objectivo.
Temos um Alvo diagnosticado. Temos ainda 50 quilómetros a percorrer. Não, entendido? Negativo, negativo!
Zé-Furão encolhe os ombros. Quer lá saber. A responsabilidade não é sua. Coça a barriga,
envia uma nova sequência de relatórios de erros para uma Central que nunca os receberá, vai às
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prateleiras procurar algumas (poucas) das miniferramentas ainda disponíveis e por fim, num
gesto fingido de quem arregaça as mangas, dirige-se aos biobrinquedos mais próximos. Vamos lá
às reparações. Abram-me os painéis do ventre, mostrem-me as fichas dorsais, indiquem-me onde estão os
eolocolectores avariados. Fiquem sabendo que não estou autorizado, por motivos de copyright, a reparar
qualquer sistema cuja patente foi Made-in-China.
E os biobrinquedos obedecem, em filas ordenadas segundo uma hierarquia que já ninguém
entende, de barrigas à mostra, LEDs a piscar. Locomotivas, carrinhos de bombeiros, jeeps todo-
o-terreno, aviões-que-nunca-voam, põem-se de lado, respeitosamente, à espera que chegue a vez
deles. Zé-Furão passa a manhã inteira a trabalhar, a substituir algumas peças disponíveis nos
stocks transportados nas carrinhas e atrelados, a cobrir de colagénio membros mutilados, a
limpar amortecedores bloqueados por fragmentos de lama empedernida, a tornar de novo
visíveis as pás torcidas dos colectores eólicos. E enquanto trabalha, a Horda fala. Kens de várias
origens, trocam entre si experiências de um cruzeiro submarino nas Caraíbas ou a valorosa
escalada do Monte Branco, tudo isto repleto de indicações de natureza geográfico-pedagógica.
As Barbies, um pouco mais aparte, discutem um novo guarda-roupa a adquirir, de paixões
perdidas e amores lacrimosos, economia doméstica e regras de higiene pessoal. Robôs fazem
uns aos outros perguntas de resposta múltipla e trocam agradáveis musiquinhas gratificadoras,
sempre que um deles acerta aleatoriamente nas questões propostas pelo companheiro.
Locomotivas mães e filhas, com as caldeiras cheias com a água que recolheram nos lavabos do
restaurante, apitam em surdina, rodeadas por pequenas fumarolas de vapor. Alguns veículos
menos gnósticos (que apenas servem como propulsores aos atrelados) deslizam em círculos,
batem nas paredes, voltam atrás, piscam os faróis, saltam alegremente sobre os obstáculos
mumificados dos utentes e por fim, depois de terem aprendido de cor toda a topologia do
restaurante, regressam ao local de início, ansiosos por receber novas ordens.
E lá fora, sob a luz implacável do sol, turbilham enxames de moscas famintas e coisas que
apenas se parecem com moscas, mas que de facto são nanocaças programados para destruir
toda e qualquer manifestação gnóstica seja ela produzida por um sistema de wetware ou hardware.
Muito, muito mais acima, em órbita geosincrónica, os poucos satélites orbitais que ainda
funcionam esforçam-se por trocar entre si mensagens saturadas de vírus informáticos, por cegar
as lentes inimigas com feixes de laser, a única arma ainda disponível agora que o arsenal de
micromísseis se esgotou por completo.
A Horda caminha. Durante dois dias, a Horda caminha, prudente, através do Parque
Industrial. Algumas Fábricas brilham ainda nos sensores térmicos dos biobrinquedos, num
fulgor tórrido de quem insiste em produzir em série artefactos que nenhum humano consumirá.
Fábricas há que insistem em vomitar aquilo que criaram através dos canais subterrâneos, rumo
aos entrepostos de distribuição. Outras, porque o Controlo de Qualidade assinala um crescente
nível de deficiências, voltam a consumir e reciclar tudo aquilo que ainda há pouco produziram,
num ciclo constante de autofagia. Noite alta, imóvel no meio da auto-estrada, a Horda aninha-se
contra as carcaças dos automóveis abandonados, enquanto por muitos e muitos quilómetros em
redor chaminés expelem gazes de combustão, óxidos de carbono, dióxidos de enxofre e azoto,
altos-fornos gemem perto do ponto de fractura, enquanto o solo estremece, devagarinho, numa
constante agonia telúrica. Mas a maior parte dos Complexos Industriais morreram já, não
passam de simples crateras vitrificadas, resultantes do impacte directo de um míssil rival,
Noddy50 não quer saber da Inversão Magnética dos Pólos que alterou por completo os
sistemas de orientação por GPS, tornou os mapas mais difíceis de serem lidos, fez disparar
Há trinta anos que a cidade deixou de corresponder aos mapas. As últimas fotografias do
Google Earth apenas apresentam turbilhões de fumo a rodar em torno das manchas térmicas de
múltiplas explosões. Agora Lisboa é na sua maior parte ruínas, torres cariadas, ruas atravancadas
de entulho. A Horda tem dificuldades em fazer corresponder a localização do Alvo àquilo que
encontra pela frente. Surgiram obstáculos onde dantes nada havia. Desapareceram parques, vias
de acesso, prédios inteiros. Como é então possível virar à esquerda, numa esquina que já não
existe? Como contornar muralhas feitas de cimento, lama e ferragens? Como cruzar crateras
onde ainda crepitam gases de combustão? A Horda engana-se. Avança e recua. É obrigada a
desviar-se dois quilómetros para apenas avançar 100 metros na direcção correcta. E isto sem
esquecer o assédio furioso de milhares de ratos que sobreviveram às neurotoxinas de espectro
múltiplo. Ratos que não querem saber se as carnes dos biobrinquedos são intragáveis. Ratos
esqueléticos e famintos, a intrometerem-se no meio do percurso da Horda, a morderem pés e
rodas, a arrancarem tufos de pêlo a quem os tem, desesperados por um só grama de proteína.
Nova – ezine de FC e Fantasia 85 Novembro – 2008
As locomotivas pisam-nos. Os Action-M espetam-lhes no flanco faquinhas de plástico. Os
carrinhos de bombeiros fazem estridular as sirenes que levaram tantos encarregados de
educação à beira de um ataque de nervos. E contra tudo e todos a Horda avança com Noddy50
e Zé-Furão a fazerem de cunha, confusos e cada vez mais desorientados, cada vez mais
incapazes de resolver simples problemas de contorno. Num só dia, mais dez biobrinquedos
ficam para trás, esquecidos dos demais, levados numa enxurrada que transformou uma rua
inteira num rio caudaloso. A travessia da cidade demora dois meses. Dois meses de vagaroso
progresso, até à base da Torre Sheraton.
Lá no alto acoita-se o Alvo. Um Alvo que nunca mais abandonou a penthouse onde entretanto
se escondeu há 20 anos. Um Alvo cujos circuitos do Centro Médico indicam estar prestes a
perder o tino. A toda a volta da Torre, por milagre intacta, existe um campo de batalha. Por
todo o lado vêem-se esqueletos humanos, vestidos com as respectivas armaduras, engalfinhados
contra um inimigo multipédico, aracnóide, feito de escamas blindadas e juntas de titânio. Dois
hovertanques tentaram entrar no átrio do Hotel e foram logo ali esventrados pelo disparo de
uma bazuca e pelo impulso de uma arma mata-IAs. Zé-Furão pensa vagamente (pois pensar
torna-se cada vez mais difícil) que uma brigada SWAT travou aqui o derradeiro combate. E que
houve um sobrevivente. E que esse sobrevivente, pela força lógica das circunstâncias, decerto
não poderá ser uma...
Subir, diz Noddy50 pelo sistema wi-fi a toda Horda de biobrinquedos. Temos de subir. Está
quase, está quase, está quase...
Meu caro companheiro e restantes parceiros sociais, tenta explicar Zé-Furão. Atentem no que vos digo!
Julgo haver um erro cronológico relativamente aos objectivos últimos desta nossa curiosa Missão. Se fizerem um
pequeno cálculo...
Noddy50 ignora-o por completo. Passa-lhe à frente, cruza os dois hovertanques assassinados,
avança pelo átrio do Hotel onde se encontram mais uns quantos cadáveres encostados às
paredes baleadas, espatinha na alcatifa bolorenta envolto numa nuvem de esporos, e por fim
aponta na direcção das escadas de serviço cujas portas de segurança estão felizmente abertas de
par em par. E a Horda acompanha-o, em fila indiana, como uma torrente de falsa vida, começa
a escalar os primeiros degraus a palrar, a apitar, a latir, a miar, a contar histórias de meninos que
se portaram bem e fizeram todos os trabalhos de casa. Zé-Furão trinca a extremidade da pen que
tanto se parece com um charuto, encolhe os ombros esguios, emite alguns estalidos de
desaprovação, coça a barrigota e junta-se ao grupo.
Que mais pode ele fazer?
*
E lá no alto, em órbita geosincrónica, o último dos satélites assassinos detecta aquilo para
que foi programado impedir, há meio século atrás. Uma Singularidade espontânea acabou de
nascer entre as ruínas de Lisboa.
Ainda dispõe de três ogivas nucleares de 20 megatoneladas. Durante pico-segundos pergunta
a si mesmo se deve utilizar todas elas, ou guardar uma última para outra ocasião. Por fim
encolhe virtualmente os ombros, resolve dar-se ao luxo de ser gastador ao menos uma vez na
vida, e dispara os três mísseis sobre a cidade, cronometrando ao milímetro o ponto de impacte.
Dez minutos depois os últimos brinquedos da Terra, unidos ao novo dono, transformam-se
em luz, calor e carbono, o que de certo modo é um final feliz para uma história como esta.