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Índice

O ANIMAL 4

O ESQUEMA NIGERIANO 12

O POVO DO LIVRO 31

ANJO DO SCREAM 41

BRINCA COMIGO! 69

Nova – ezine de FC e Fantasia 2 Novembro – 2008


Editorial

Quem escreve literatura fantástica sabe que não tem um mercado comprador por aí além. É
um facto que pagar pelo acto de escrever é só por si algo que ainda não faz parte de muitos dos
usos e costumes do panorama editorial português. De modo que ter uma oportunidade e um
veículo como o NOVA presente no horizonte, tornou-se importante. Tanto mais porque
possibilita aos autores uma via de correcta compensação pelo seu trabalho, como também
aponta para uma mais correcta postura editorial e de mercado.
Nos diversos géneros do fantástico isto é particularmente sentido.
Quando fui convidado pelo Ricardo Loureiro para o trabalho editorial (e o que mais
houvesse) na revista, na sequência da sua aceitação do meu conto O Animal que também podem
ler neste número, senti que esse pequeno pormaior era um dos factores de distinção que urgia
reclamar para um canto literário ainda a braços com bastantes dificuldades de expansão e
implantação. Mas também outras coisas me fizeram aceitar alegremente a proposta: o trabalho
de ler e avaliar textos e a prática no NOVA de fazer um trabalho editorial mais «à americana».
Porque no nosso mercado não há uma tradição de análise e discussão dos textos com os autores
de modo a produzir melhores produtos finais; infelizmente, ainda há algum estigma decorrente
de muita gente pensar que a «sua» obra é intocável e/ou que um escritor tem o «direito
absoluto» ao seu texto.
Ora, a realidade é que, primeiro, não existem textos perfeitos; segundo, que «mesmo no
melhor pano cai a nódoa»; e terceiro, bem importante, é que a literatura é uma arte de constante
avaliação por outrém, ou seja, todos avaliam todos, desde críticos a editores, de autores a
revisores, e acima de tudo, todos estes são avaliados pelos leitores.
E os leitores são a alma deste negócio. Sem eles o escritor, o editor, e todos os outros, nada
são. A literatura fantástica é uma área especialmente vocacionada e alimentada pelos seus
leitores e fãs, mais do que qualquer outro género (ou não-género) literário, de modo que
agradar-lhes, ao mesmo tempo que se lhes proporciona uma garantia de qualidade, é algo que
assume ou pode assumir um cariz de missão, coisa que o NOVA respira e transpira. Procurar
traduzir bons autores, e publicar os valores nacionais é algo que faz parte da filosofia editorial
deste produto que têm diante dos olhos.
E se esse trabalho deu frutos!
João Barreiros, João Ventura, Douglas Smith e Richard Lovett. Um elenco de luxo para
vosso gáudio e voraz consumo. Not bad indeed!
Nuno Fonseca, co-editor
Outubro, 2008

Nova – ezine de FC e Fantasia 3 Novembro – 2008


O Animal
Nuno Fonseca

Fonseca estreia-se no NOVA com um conto onde encontramos algumas personagens a


um tempo familiares — quem não visitou já a «terrinha» e deu de caras com estes
estereótipos — e bizarras.
Visite os blogues: Inner Space < http://innerspace22.spaces.live.com/> e Slow Burning,
< http://nfonseca.blogspot.com/>

—Q ue tal Mestre? Que tal? Fiz tudo comadevedeser, ein?


— Sim, – respondeu o outro – foi suficiente.
— Sufecente?!!
— Pois. — Retrucou o outro incomodado por ter de reforçar o óbvio. — É visível que não
te esforçaste muito. Ela ficou limpinha demais.
— Fazi tudo bem, Mestre! O tiro foi tã certinho q’até maravilha, e ela caiu redondinha que tá
mais bonita assim q’dantes... Nã tou a perceber.
— Está bem, deixa lá, — condescendeu o outro. — Não se fala mais nisso.
— Mestre, se fazi alguma coisa mal, quero saber o que foi...
O outro virou as costas. Não valia a pena dizer-lhe do ofício outra vez. Era sempre a mesma
coisa; mesmo que explicasse de novo a maior conveniência de um cadáver ensanguentado, de
aspecto horrível, do que um assim todo arranjadinho, sabia que o Silva não ia entender. Desde
puto que o raio do homem tinha um raciocínio limitado à pseudo-animalidade fiel da genética
canina inceptada à nascença. De um bom cão é certo, mas nada mais. E o problema dos cães é este, —
pensou chateado, — tentam sempre agradar e sentem-se desamparados quando não levam um osso bem gordo;

Nova – ezine de FC e Fantasia 4 Novembro – 2008


aí, não sabendo que mais fazer, vão ao que lhes é mais natural e arreganham um bocadinho os dentes. Até
levarem a apropriada patada no focinho, claro.
— Vem, — disse-lhe.
Silva seguiu-o arrastando o cadáver da mulher magra que acabara de matar. Um tiro de
caçadeira na testa, bem aplicado. Tão bem que os chumbos nem tinham tocado nos olhos dela,
confinando-se esteticamente à fronte larga e escorreita, deixando incólume o resto do belo e
estranho rosto.
O outro agarrou na arma, retirando-a calmamente das fortes e boçais mãos do Silva. Olhou-a
por um momento apenas e de seguida usou-a violentamente na cara afocinhada dele.
— Não me levantes mais vez nenhuma a voz, — disse friamente, — odeio gente que morde
a mão que as alimenta.
Prostrado no chão húmido do entardecer, com o sangue quente escorrendo do nariz para a
barba algo grisalha, Silva balbuciou medrosamente a título de desculpa:
— Mestre…
Mas o outro já se ocupava com diferente coisa, gestos sabidos despindo o cadáver. Se
demorasse muito lá viria o rigor mortis a estragar tudo, ficando mais difícil pô-la nua. Preferia
assim pois toda a gente saberia quem tinha feito o serviço. E a reputação era para ele muito
importante. Quase tanto como o dinheiro que ganhava à custa de a manter.
*
Mariana observou os dois homens. Àquela distância, protegida pelos arbustos e pela ausência
de luz causada pelo crepúsculo, ela rezava para que não a descobrissem. Ficou quietinha. Sabia
que devia ter fugido logo que os vira de caçadeira pronta à espera que alguém passasse. Mas a
curiosidade levara a melhor. Agora via o que queria e não queria, presa ao horror bestial que
acabara de presenciar.
Animais, — pensou, — não são mais que animais. Mataram a pobre mulher, como quem
despacha um bicho e agora atiram-se uns aos outros.
As pernas largas e quietas desenvolviam um perigoso formigueiro que tentou ignorar. Por
vezes ser gorda e ter aquele tamanho todo era uma desvantagem para Mariana. Outras uma
bênção como dizia o marido enquanto rebolavam na cama. Entretanto, a ansiedade martelava-
lhe outra coisa na cabeça. — Não tenho as pernas dormentes, não tenho as pernas dormentes, não...
Não havia vento, mesmo assim ela sabia como o som era capaz de correr pelo planalto fora,
feito lebre fugindo dos lobos. Teve medo de se mexer, e deixou-se estoicamente sofrer a
ausência de sangue nas pernas; a última coisa que queria no mundo era entrar naquele ciclo de
brutalidade sem sentido que tinha pela frente. Continuaria quietinha como um rato até que se
fossem embora.

Nova – ezine de FC e Fantasia 5 Novembro – 2008


Não chegara ali por acaso. Viera ao cheiro do esquisito, do fora do normal, pachorrenta e
calma pela erva fora, de olhos semiabertos, bovinos como ela só, seguindo o Silva desde a
aldeia. Ralhava o ditado que «a curiosidade matou o gato»; quase se riu ao pensar nisso, na
rapariga, mas infelizmente aquilo era a sério. Quando vira o Silva a receber o telefonema, na
tasca do senhor Zé, não resistira. Atraída pela porcaria, como sempre. Gostava de homens
assim; era um gosto, pronto. Homens machos, touros, que a tomassem bem. E toda a gente
sabia o que acontecia no depois desses telefonemas. O Silva e o outro tinham reputação. A de
fazer o que ninguém confessava e por vezes o que ninguém tinha coragem de perpetrar... ou
seja, o que todos gostariam de poder fazer se tivessem coragem para tanto. A soldo, a mando,
por simples maldade ou lá por que demónios fosse, o certo é que a cada telefonema daqueles era
alguém que morria, um quem que ficava mutilado, ou um quem que ficava entrevado para o
resto da vida.
A curiosidade dela pegara fogo. E o calor no ventre. Conhecia-se bem e não resistia a isso.
Para quê? Sabia-se assim, da mesma forma que conhecia os defeitos dos outros, das mancebias
que ali na aldeia corriam, dos podres de toda a gente; mas nunca vira cena daquelas em primeira-
mão. O sorriso animalesco do Silva ao desligar o auscultador. Mariana sentira-o como um
preliminar inevitável. E decidira segui-lo.
Alcoviteira, linguaruda, mete-veneno... esquecia-se dos nomes todos que lhe davam nas
costas. No fundo, não tinha culpa de ser assim; curiosa e coscuvilheira, na fala dos homens,
língua de víbora na das mulheres. Nascera com aquela telha assim como nascera gorda e nada
podia a fazer quanto a isso. A professora das universidades que por lá passara na aldeia antes de
ela entrar na idade do cio bem lhe disse:
— Não fazes nada de mal; é natural essa vontade mole, pachorrenta e ruminante, que te faz
andar de cabeça no ar pelas ruas, pelos campos... — E rematava, — se foste feita assim, por
Deus e pais, que culpa hás-de ter nisso?
Os pais nunca a tinham chateado mas o padre é que não ia em tais conversas; estava sempre
a azucrinar-lhe as orelhas, dizendo que ainda havia de se arrepender, e amargamente, que Deus
lhe andava a reservar justo castigo por linguarejar demais.
Bom, com sorte o juízo não viria agora.
Uma gota de suor escorregou rebelde e despropositadamente do sovaco para junto do seio
fazendo-a estremecer. Raio de coisa, — pensou Mariana, — isto é tudo tão idiota e sem sentido que até
dói; não está frio e transpiro, alguém que passa a correr e que leva um tiro na cabeça, dois homens que nem duas
bestas arreganhando os dentes um ao outro e eu, com o meu comprido e estúpido nariz, para aqui borrada de
medo.
*

Nova – ezine de FC e Fantasia 6 Novembro – 2008


A mulher magra, cujo corpo nu ostentava líquidas e vermelhas as pequenas crateras dos
chumbos por toda a testa, estava morta. A força do impacto das esferas de metal alojadas no
crânio, não tinham logrado atingir o cérebro, o que provava que elas em si não deviam ser
inteligentes mas o impacto fora demasiado, a distância do disparo muito pouca.
Entre o oblívio e o acordar doloroso, dá consigo a reviver os passos que a tinham destinado
ao planalto: como um cordeiro, conscientemente a caminho do sacrifício, fugia da aldeia ainda
com o cheiro do pecado no corpo; a macabra luz dos olhos acusadores e vesgos do marido a
magoar-lhe a pele seminua e adúltera; a certeza de que ele a iria matar. Algo lhe injectava
arrepios na espinha enquanto as pernas corriam desalmadas. Como fora ele descobri-la no Lagar
Velho, justamente na altura em que aliviava o Pedro Rebordo? Quem lho dissera? Que mais
podia fazer senão fugir?
Em terra pequena nunca falta quem fale de mais. Ela suspeitava da gorda e horrorosa
mulherzinha do João Bulhosa. A maldita andava sempre a meter-se na vida de toda a gente.
Uma vez, por raiva, apanhara-lhe o marido junto à mata do pinga-amor. João revelara-se uma
jóia de homem tanto dentro como fora das suas ancas. De alguma forma a cabra devia ter
descoberto e dera com a língua nos dentes. A porca havia de as pagar.
Fugira por não querer morrer; o marido era uma besta mesquinha que de uma forma ou
outra havia de fazê-la pagar por aquilo da pior maneira possível. Ela conhecia bem a peça. Iria
pois, para outra terra. Era a única esperança; atravessar o planalto e fazer-se ao mundo antes que
de Catarina, mulher perdida, passasse a cadáver achado e sem nome. Sabia-se bonita e jovem,
capaz de trabalhar e de satisfazer qualquer tipo de homem que lhe passasse pelos braços. Pior
que agora não ficaria.
De novo viu que estava a meio caminho, algures no centro do planalto, numa zona
particularmente baixa e de vegetação rasteira, quando sentiu o tiro a estacá-la no caminho.
A memória fê-la estremecer convulsivamente.
Nenhum dos facínoras se apercebe. Nem disso nem do pelar necrótico em redor das feridas
na testa cheias de cabelos negros empapados. A preocupação deles é outra. Muito pós-facto.
Entretanto nanofábricas apressam-se, concentrando-se ali na testa, invisíveis, vindas de todas
as partes do corpo pelos canais sanguíneos que ainda aguentam, aproveitando as derradeiras
bombadas da máquina cardíaca. Os membros dela tendem em retesar-se, a tez da pele
esbranquiçando-se. São milhares de nanos que trabalham como formiguinhas neoliberais,
incansáveis, incessantemente descartando os elementos necróticos e replicando em série os
mecanismos genéticos, celulares, moleculares.
Por alguns instantes, os dois homens quase vêem os chumbos a serem expulsos do crânio, a
rebolarem para o solo sem barulho, mas uma brisa maninha abafa-lhes os aguçados sentidos.
Nova – ezine de FC e Fantasia 7 Novembro – 2008
Catarina, para o bem e para o mal, foi bem aviada em menina. Muito dinheirinho se gastara
em clínicas. Do que havia e do que não havia. Ricos, bons paizinhos. Fora-se o cacau mas ficara
ela aviada para a vida. Talvez até demais, pois o facto é que os nanos estão agora a alterar-lhe
radicalmente o destino, alimentados por colectores bioenergéticos nos nódulos linfáticos do
pescoço.
Ela descerra ligeiramente os olhos, inspira devagar e percebe finalmente que está viva. Ou
quase.
O céu escurece mas ela vê bem demais. Como uma gata, — pensa, as ideias estranhamente
claras. — Sete ou nove vidas ou lá quantas eram; — fazia sentido.
Bom, não dava para ignorar a vantagem.
E como uma máquina letal ela própria levantou-se.
*
O outro, ocupado a ajeitar a terra dentro da cova, ouviu o Silva gritar de terror, como se as
hostes dos infernos lhe tivessem aparecido à frente. Sentiu-se chateado com a interrupção.
Porque seria que o cão só lhe dava trabalhos? Antigamente cumpria tudo de boca fechada, mas
agora... por qualquer coisinha desatava a rosnar, ou a ganir que nem um caguinchas.
António contou até dez. Não queria ceder à tentação de sair dali disparado para dar uma série
de pontapés ao estúpido do animal. Que Silva de um raio. No fim de contas eram parceiros. E
precisava dele, nem que fosse por esta última vez.
Largou a pá e sacudiu as mãos. Pôs o tronco ao alto. Deixara-o convenientemente à beira da
cova, de modo a subir mais facilmente. Iria ver o que se passava, acalmar o bicho quanto ao que
o estava a preocupar, e voltaria ao trabalho antes que se fizesse noite escura. Queria voltar cedo
a casa, para contar o dinheiro mais uma vez; a última das maquias ganha naquela difícil vida.
Crimes por encomenda não era ofício para qualquer um, havia que ter estômago. Uma pontinha
de sáurio no X materno também ajudava; bendita a mãezinha que só o tratara depois de começar
a crescer. Gente pobre era feita em plena prenhura, ainda de barriga, para poupar cobres ao
Estado. Nunca saíam completamente bem, pois a arraia-miúda dá ouvidos a tudo e esquece-se
que um gajo também é feito pela vida. E António sabe que a vida é fodida, lixa-nos sempre que
pode. E era sempre melhor saber-se lagarto rasteiro que estúpido cão toda a vida. Essa é que era
essa.
Não reparara que a cova ia tão alta. Ao som dos gritos histéricos do Silva, António ainda teve
de descer, recolocar o tronco e subir de novo. Os gritos não lhe faziam nada. Já gostara, já
odiara, já os ouvira de todas as maneiras. Um predador a sério, como ele sabe, não os ouve a
sério: apenas os assimila. Respirou fundo. O certo é que isto agora ia custando.
Mas friamente continuou subindo, mão a mão, com os pés, esforço a esforço.

Nova – ezine de FC e Fantasia 8 Novembro – 2008


*
MeuDeusMeuDeusMeuDeus, — diziam rugindo os olhos de Mariana. — Ela está VivaVivaViva!
E com a excitação descuida-se.
Uma das pernas toma vida própria ao mal assentar-se num calhau, atirando-a contra os
arbustos e os ramos secos que o fim do Verão ali deixara em abundância.
O ruído até não foi muito. Apenas o suficiente.
*
Silva esbugalhou os olhos para a mulher nua à sua frente. Silva gritou largando a caçadeira
como se ela não existisse. Um pânico crescente levava-o alucinadamente para onde viviam os
fantasmas, os monstros e as bruxas que tinham atormentado a sua infância. Diante da pureza
dessa emoção, o pouco desenvolvido intelecto era incapaz de funcionar devidamente. A
contorcida fisionomia afocinhava-lhe ainda mais o rosto. A bem da verdade aquilo não fora
tanto um grito como um uivo gutural que teria arranhado até ferida a garganta de qualquer
outro.
De cada um segundo as suas limitações. A cena acontecera de forma bastante simples: do
objecto de desejo que era o corpo nu e inanimado da rapariga brotara um horror nada natural;
da bela, o monstro. Silva uivara, ladrara que nem um louco à imagem dela levantada, sangue a
escorrer rosto abaixo, uns lábios vingativos limpando-se vagarosamente. Com puras marteladas
de pânico no peito, Silva esperava ansiosamente por um sinal do dono.
Não sabia que mais fazer, pelo que se deixou estar ali, tenso como uma mola, rígido como
uma pedra, a olhar o cadáver vivo. O mestre viria acudi-lo e tudo ficaria resolvido.
Nesse instante foi o espalhafato vindo dos arbustos, lá ao fundo.
*
A cova ficara maior do que ele pensara. Quando acabou de galgar o tronco, o corpo deu de
si, como se de um saco roto de tratasse. Deixou-se ficar de gatas, arquejando, à espera de novo
fôlego. Sentia-se velho. Dava-lhe a sensação de que a juventude de há muito que tinha feito as
malas e partido para parte incerta. Antigamente um trabalho como aquele não o deitaria abaixo,
quanto mais uma mera subida a um tronco! Mas agora… O tempo afecta-nos a todos, — pensou; e
como consolação, — até à merda deste cão do Silva que já mais parece senil que outra coisa; bom, talvez
mais a ele do que a mim; antes assim.
Aproveitou a pausa, cabisbaixo, para ordenar também as ideias. Decidiu pela milésima vez
que nunca mais aceitaria «encomendas». Outros mais jovens que cumprissem a função dele.
Andava farto de partir pernas, rachar cabeças, matar amantes e ameaçar fracalhotes. A ele
chegava. Já tinha dinheiro que bastasse para se ir embora daquela terra de estúpidos, daquela
vida de meter medo. Levar um boost de neo-enzimas ou mesmo um tratamento geral num biospa,

Nova – ezine de FC e Fantasia 9 Novembro – 2008


daqueles mais modernaços, longe dali e daqueles labregos, daquela vida com cheiro a bicho. Mas
custava-lhe perder a reputação. E ver o marido da magrela a chorar de raiva como um bezerro
desmamado (bezerro bem cornudo por sinal), contribuíra para que ele aceitasse o servicinho.
Coisa fácil, — pensara. O corno pagara bem para lhe lavar a honra com um simples tiro de
caçadeira. Pegara no Silva e arrepiara caminho sabendo que a mulher teria de passar pelo
planalto se quisesse dar à sola rumo a outras paragens. O irónico era que, para além do bom-
nome e da irritação, ele nem precisava do dinheiro. Aceitara o serviço por gula: o cofre, apesar
de cheio, tinha sempre uma fome tremenda.
O fôlego lá voltou um pouco e também a força de vontade para acabar com aquilo de uma
vez. O hábito de ir até ao fim tomou-lhe conta dos gestos. Levantou-se sentindo os joelhos a
estalar, e começou a pôr as ferramentas no saco. Dilatou as pupilas à procura do Silva. Foi
quando ouviu o ruído vindo dos arbustos. Isto não é o vento, — pensou, mesmo antes de ver a
morta de pé.
O seu rosto manteve-se reptilianamente impassível, mas uma espécie de pequeno coice,
extremamente violento, atingiu-o no estômago. Tão forte a acção corrosiva da bílis em refluxo
que só teve tempo enrijecer a derme e os músculos para não se dobrar. E de dizer entre dentes:
— Merda.
*
Um clique do gatilho, e o tiro ressoou como uma bomba no planalto. Catarina, com a testa
ensanguentada e a pele branca exposta ao frio do crepúsculo, empunhava a caçadeira à altura
das ancas. Engatilhando-a de novo.
O momento de distracção causado pela assustada figura da gorda nos arbustos, fora o
suficiente para ela apanhar a arma abandonada no chão, apontar e disparar.
Seria dos seus olhos ou era a Mariana, a mulher do Bulhosa? Que raio faria ali aquela vaca?
Fosse como fosse, o que um cartucho não conseguira nela própria, cumprira agora nos
outros: os dois homens jaziam no chão com as braguilhas ensanguentadas.
O aspecto da cena era feio e sujo. Certamente demorariam horas a esvair-se lentamente em
dor e sangue.
Ainda bem, — pensou ela. — É mais do que justo.
E mais friamente, uma só palavra: — Livre.
*
A gorda Mariana estava em êxtase. Saiu atabalhoadamente dos arbustos e desatou a correr,
descendo para onde a magra Catarina, ainda empunhando a fumegante caçadeira redentora,
retinha a pose de heroína frente aos bandidos prostrados. A cena inteira parecia-lhe tal e qual
saída de uma novela.

Nova – ezine de FC e Fantasia 10 Novembro – 2008


Enquanto as pregas de roupa se enredavam na carne, Mariana ia pensando que aqueles
animais haviam tido o que mereciam. Faria questão de o dizer em voz alta a toda a gente, aos
berros se fosse preciso. Contaria tudo, tintim por tintim. Mariana chegaria à aldeia, abraçada à
outra como duas irmãs de peito e ficariam assim para todo o sempre. Ficariam grandes amigas e
felizes para todo o sempre! Nunca lhe contaria certas coisas obviamente, muito menos aquela
história do homem dela, mas a amizade era também isso, ou não? A selecção natural das
palavras trocadas...
*
Catarina respirou fundo; estava agora mais calma.
A noite caíra por completo. Felizmente para ela, o Silva mantivera a arma recarregada. Agora
perdera o medo e a vontade de fugir. Um outro sentimento, mais fundo e negro procurava lugar
no seu peito.
Pousou a arma. Vestiu-se com as suas roupas e com as da gorda coscuvilheira que jazia
finalmente sem vida por cima de um Silva moribundo. Não estrebuchara: mansa levara o tiro
nos cornos, mais mansa ficara.
Foi-se determinadamente embora, ao som dos gemidos e das súplicas, do choro e do
desespero dos dois homens. Não lhes deu importância, ignorando-os tanto como ao silêncio da
vaca que jazia por cima deles; que apodrecessem ali, bem devagar; Agora tinha de ir tratar do
que faltava.
Morta toda aquela gentalha, só restava o marido para ficar tudo nos conformes.
Não tinha culpa de ser teimosa e vingativa. Não tinha a culpa de ser como era. 

Nova – ezine de FC e Fantasia 11 Novembro – 2008


O E s q ue m a
Nigeriano
Richard A. Lovett
Tradução de Nuno Fonseca

Com um sentido de humor refrescante, O Esquema Nigeriano é a estreia em Portugal de


Richard A. Lovett. Um conto que aborda os perigos do conhecido esquema de burla
nigeriano com uma substancial diferença. O nigeriano mora muito, muito longe.
Por quatro vezes vencedor do prémio AnLab (Prémio Analog Readers), promovido pela
revista Analog Science Fiction and Fact, e colaborador regular da revista, o conto agora
apresentado ao público lusófono foi finalista ao AnLab e publicado originalmente na
Analog de Setembro de 2006.
A sua não-ficção surge regularmente na New Scientist, National Geographic News e Cosmos.
Complementarmente escreve artigos sobre provas de corrida e ciclismo, que inspiraram o
presente conto.

R
yan Mann estava aborrecido. Aborrecido o suficiente para ler o lixo electrónico em
vez de simplesmente descartá-lo como spam. Frustrado o suficiente para considerar
responder-lhe, só para ver qual seria o resultado.

Nova – ezine de FC e Fantasia 12 Novembro – 2008


Fora um longo e vagaroso Verão — um completo desperdício, desde o quatro de Julho,
quando ouviu o som parecido com o tiro de uma caçadeira no meio da corrida de bicicletas
Criterium: 40 voltas de curvas apertadas num percurso de 12 quarteirões através das tortuosas
ruas da Cidade Velha. Tivera à volta de um milissegundo para processar o facto de que o
estrondo viera do pneu da frente, e então passara de líder do pelotão para o ser atropelado por
ele, pelo caminho arranjando maneira de partir ambas clavículas. Antes de ir ao chão, ele fora um
dos melhores ciclistas amadores do Estado; depois passara a nem conseguir vestir-se sozinho —
ou por falar nisso, um número de outras coisas bem mais embaraçantes.
Agora já conseguia levantar de novo as mãos acima da cabeça — mais ou menos — mas
ainda estava de baixa e tinha dois meses sem bicicleta pela frente. Não fosse o PC portátil, Ryan
teria dado completamente em maluco. Era um dos novos modelos ultra-leves que funcionavam
a energia solar e pesavam pouco mais de um quilo, que era o máximo que o tinham deixado
levantar durante as primeiras semanas de recuperação.
— Usa-o sobre os joelhos, — disse o médico. — E vai mudando o ângulo de maneira a
trabalhar-te os pulsos de forma diferente a cada poucos minutos. Os teus ombros não foram a
única coisa a ficar num oito com aquela queda.
Não tinha certeza de ser uma boa coisa ter um médico que achava «ficar num oito» um termo
técnico, mas o resultado era simples: — Será excelente como fisioterapia.
Era também uma óptima terapia psicológica, visto que a maior parte do que passava na
televisão não prestava para nada. Uma vez, apenas para espevitar as coisas, ele ligara para um
daqueles números grátis de anúncio, com a intenção de chatear os vendedores de uma empresa
que dizia ser capaz de desenvolver um corpo de estrela de cinema com um regime de 3 minutos
ao dia e um aparelho que parecia uma fisga gigante.
— Oh, sim, — disse-lhe uma voz empertigada quando ele mencionou o seu estado. — O
WebWam é excelente para fisioterapia. E não tem qualquer risco. Se o utilizar de acordo com as
indicações e não melhorar rapidamente, garantimos a devolução do seu dinheiro. A armadilha,
claro, era o «se». Ryan nunca conseguiria usar o aparelho como indicado até estar bem melhor
que agora. Mas a rapariga parecia tão sincera que nem dera gozo discutir com ela, por isso ele
encolhera-se e disse que iria pensar nisso.
A vida ficou melhor quando ele encontrou um serviço na internet que lhe permitia fazer o
download de programas antigos de televisão que, por muito foleiros que fossem, eram
infinitamente preferíveis aos anúncios. E ficou ainda melhor quando mergulhou no mundo dos
fóruns da net, trocando histórias de ciclismo com outros atletas e procurando dicas quanto a
técnicas de reabilitação mais realistas que lhe permitissem vir a entrar em algumas das corridas

Nova – ezine de FC e Fantasia 13 Novembro – 2008


de cross no próximo Outono — apesar de ele não ver hipótese de estar em forma competitiva
antes de a neve começar a cair.
O cross era a categoria de ciclismo preferida de Ryan, combinando as provas de montanha e
as de corta-mato que obrigam a desmontar e a levar a bicicleta em ombros em passo de corrida.
Mas isto de falar sobre um desporto sem o praticar só se aguenta durante algum tempo. Para
além disso, os fóruns estavam cheios de gente que só dizia porcaria, e de trolls. Tivera de
procurar o significado deste último termo, a primeira vez que o viu, mas o conceito era familiar:
indivíduos irritantes que ocupam uma linha de discussão com argumentos absurdos, apenas com
a intenção de fazer ondas.
O spam conseguia ser mais interessante que os trolls. Não o que falava de: «Temos X*n*x e V-
g-r-a», mas os mais obscuros; do tipo que faz uma pessoa pensar em como era possível haver
idiotas suficientes no mundo para manter vigaristas no activo.
Este que estava a ver parecia uma variante do velho esquema nigeriano, o que ele achou
curioso por parecer ligeiramente perigoso. Os boatos diziam que centenas de milhares de
pessoas tinham sido vigarizadas em várias versões deste esquema. Os boatos também diziam
que se se tentasse recuperar o dinheiro indo atrás dos intrujões até à Nigéria (ou onde quer que
estivessem baseados), uma pessoa desaparecia do mapa ou voltaria para casa num caixão. Ryan
não sabia se isto era verdade, mas o seu coração ficava sempre aos pulos de cada vez que o
esquema lhe aparecia na caixa de correio, pois isso significava que um criminoso qualquer, dos a
sério, estava a tentar apanhá-lo: alguém que podia já ter morto gente antes. Não seria tão
excitante quanto ir à frente no Firecraker Criterium, mas era algo para ir pensando enquanto
esperava por voltar ao cross.
Esta mensagem começava de uma forma típica. «URGENTE OPORTUNIDADE DE
NEGÓCIO, — e continuava com o tom forçado habitual. — POR FAVOR, RESERVE-NOS
COMPLETA CONFIDENCIALIDADE PARA ESTA TRANSACÇÃO QUE, EM
VIRTUDE DA SUA NATUREZA, DEVE MANTER O MÁXIMO DE DISCRETA
CIRCUNSPECÇÃO.»
Algures, uma equipa inteira de vígaros andara às voltas com a linguagem, escolhendo aquela
arcaica formatação em maiúsculas. Ryan tentou imaginar quem pensariam eles estar a imitar.
Banqueiros octogenários com chapéus de coco? Mesmo assim, a mensagem chamou-lhe a
atenção, apesar do aspecto demasiado retro da introdução.
«EM TROCA DA SUA CONFIANÇA NESTE ASSUNTO «TOP SECRET», —
continuava a mensagem, — ESTOU AUTORIZADO A ENCETAR NEGOCIAÇÕES EM
NOME DE ENTIDADES GOVERNAMENTAIS QUE NECESSITAM ASSISTÊNCIA EM
NEGÓCIO DE IMPORTAÇÃO/EXPORTAÇÃO.»
Nova – ezine de FC e Fantasia 14 Novembro – 2008
O esquema nigeriano clássico procuraria então a sua ajuda num processo de «lavagem» de
dinheiro onde (no final) seria o dinheiro dele a ser «lavado». Todavia, este revelou-se um pouco
estranho.
«TEMOS INFORMAÇÕES NOS SISTEMAS PLANETÁRIOS DE VEGA-EXTERIOR,
PARA AS QUAIS NOS CAPACITAMOS EM COMÉRCIO PARA SI EM PLANO DE
LUCROS SOBRE CONHECIMENTOS RECÍPROCOS COM PLANETA TERRA. A
FONTE DE INFORMAÇÃO VALIOSA É COMO SEGUINTE: AS PERSONALIDADES
DE VEGA-EXTERIOR SÃO TECNOLOGICAMENTE SUPERIORES EM RELAÇÃO ÀS
DA TERRA, MAS DEVIDO À DIRECTIVA DE ‘NÃO-INTERFERÊNCIA’, AS
AGÊNCIAS ALFANDEGÁRIAS DE VEGA-EXTERIOR RECUSAM-SE A
PROVIDENCIAR A REFERIDA INFORMAÇÃO ÀS POPULAÇÕES TERRENAS.
CREMOS CONCLUSIVAMENTE QUE ISTO SUCEDE POR AS AUTORIDADES
ALFANDEGÁRIAS SEREM INCALCULAVELMENTE RICAS E NÃO APRECIAR O
VALOR DE MODESTOS GANHOS POR PARTE DE INDIVÍDUOS BUSCANDO
MELHORAMENTO FINANCEIRO.
EU E OUTROS «FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS» COM ACESSO A MEIOS DE
COMUNICAÇÃO TAQUIÓNICA ACREDITAMOS QUE SÃO AVANÇADOS O
SUFICIENTE PARA TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA, DESDE QUE
PRUDÊNCIA SEJA UTILIZADA PARA CONTINUAÇÃO DA VOSSA SOCIEDADE.
ASSIM OFERECEMOS TROCA INICIAL: APESAR DE SEREM INFERIORES, VOCÊS
HISTORIZARAM DE FORMA COMPLEXA CONCEITOS RECREATIVOS NÃO
FACILMENTE EXPLICÁVEIS POR NOSSOS XENÓGRAFOS, INCLUINDO
‘CAMPEONATOS DE CICLISMO’ E ‘TELENOVELAS CLÁSSICAS’.
DE MODO A INICIAR COMÉRCIO SOLICITAMOS A SUA AJUDA PARA
TRANSFERIR-VOS INFORMAÇÃO DE VALOR, COMENSURÁVEL PARA DADOS
REFERENTES A ‘BICICLETA’ E ‘TELENOVELA CLÁSSICA’, QUE CREMOS VALER
APROXIMADAMENTE 40.000 GRANDES ESTRELAS VEGA-EXTERIOR, OU
32.690.000,00 USD (TRINTA E DOIS MILHÕES, SEISCENTOS E NOVENTA DÓLARES
AMERICANOS). VOCÊ FOI ESCOLHIDO PARA NOSSO CONTACTO PRIVILIGIADO
PORQUE INDICADO COMO CICLISTA DE COMPETIÇÃO DE ALTO GABARITO
NAS EMISSÕES NOTICIOSAS ELECTROMAGNÉTICAS DA SUA LOCALIDADE.
OUTROS REGISTOS MOSTRAM QUE VOCÊ ESTÁ NOS PRIMEIROS 0,01
PERCENTUAIS ENTRE OS CONSUMIDORES DE TELENOVELAS CLÁSSICAS DA
SUA LOCALIDADE, O QUE É INDICATIVO DE ESPECIALIDADE PROCURADA.

Nova – ezine de FC e Fantasia 15 Novembro – 2008


AGRADECEMOS QUE ACUSE CURIOSIDADE NA PROPOSTA PARA
ASSISTÊNCIA REQUERIDA RESPONDENDO PARA A SEGUINTE MORADA:
RIQUEZAS-INTERESTELARES@CIVE.VEGAEXTERIOR.UNI, DURANTE ÚLTIMAS
24 DAS VOSSAS HORAS APÓS RECIBO DESTE IMPLORAMENTO.
CUMPRIMENTOS,
GLEIMICKR
CORRECTOR DE INFORMAÇÃO
CONSÓRCIO DE INFORMAÇÃO VEGA-EXTERIOR (CIVE)»
*
Ryan leu a mensagem cinco vezes: as duas primeiras para analisar a gramática; as três
seguintes por genuína apreciação pelo vigarista que a tinha redigido. De facto parecia mesmo
que alguém com pouco domínio do inglês se agarrara ao esquema nigeriano como um modelo
de fazer negócios pela internet.
Ia carregar na tecla DELETE, mas hesitou. Isto era a coisa mais interessante a passar-lhe no
PC nos últimos dias. Sorriu. Aqui estava a chance de compensar ter sido demasiado simpático
para com a vendedora da fisga. Partindo do princípio que isto não era uma brincadeira, Ryan
decidiu fazer de troll em relação a este spammer. De mais a mais, ficara intrigado com a ligação ao
ciclismo. Ou fora puro acaso ou alguém perdera tempo a fazer dele um alvo. A sua espectacular
queda não fora exactamente de «alto gabarito», mas tinha aparecido em todos os telejornais. O
facto de o vigarista parecer saber que andava a ver demasiadas telenovelas era um pouco mais
assustador, mas havia muitas formas de um hacker ter acesso a esse tipo de informações.
*
O seu primeiro impulso foi escrever de volta dizendo algo como: «Boa, boa, diga-me o que
fazer.» Mas essa provavelmente não seria a forma como uma vítima a sério responderia.
Qualquer pessoa, à excepção dos mais crédulos (e talvez alguns malucos por discos voadores),
mostraria cautela. De facto, ele lera algures que a maior parte das pessoas que tinham caído no
Esquema Nigeriano tinham começado por fazer perguntas, e só então sido apanhadas pela
secreta esperança de que talvez as somas oferecidas fossem verdadeiras. Ryan era mais esperto
que isso. Não estava a conseguir ver como é que aquela personagem de nome Gleimickr queria
intrujá-lo, mas a forma de o descobrir era usar cautela própria sem revelar o facto de que ele
sabia não haver lucro nenhum. Nem, por falar nisso, um Vega-Exterior.
Eventualmente, acabou por decidir que a simplicidade era o melhor: «Caro Gleimickr, —
escreveu. — Se você é de Vega, como comunica por e-mail?»
*
A resposta veio uma hora depois.

Nova – ezine de FC e Fantasia 16 Novembro – 2008


*
«CARO SR. MANN,
OBRIGADO PELA SUA OPORTUNA PERGUNTA. RESPONDO NA CONFIANÇA
DE QUE NÃO «DARÁ À LINGUA» AOS MEUS SUPERIORES. OS NOSSOS
APARELHOS TAQUIÓNICOS EXISTEM PARA TRANSMITIR INFORMAÇÃO NÃO-
CORPÓREA ENTRE RECEPTORES CONFIGURADOS. PROCESSADORES DE
DADOS DE ALTA VELOCIDADE CHAMADOS ‘SUPERCOMPUTADORES DE
SUPERCONDUÇÃO’ REVELAM A SUA EXISTÊNCIA POR MEIO DE EMISSÕES
TAQUIÓNICAS NÃO DETECTÁVEIS PELA VOSSA CIÊNCIA. AO OBSERVAR AS
RECENTES EMISSÕES DOS VOSSOS POVOS, SINTONIZÁMOS OS NOSSOS
APARELHOS TAQUIÓNICOS PARA COMUNICAÇÃO BIDIRECCIONAL ATRAVÉS
DOS NOSSOS CITADOS SUPERCOMPUTADORES DE SUPERCONDUÇÃO. ESTA
MENSAGEM CIRCULA VIA LOCALIZAÇÃO DESIGNADA COMO ‘C.I.A.’
SINCEROS CUMPRIMENTOS,
GLEIMICKR
CIVE»
*
«Então você quer dizer que está a hackear a CIA?» — escreveu Ryan de volta.
*
Desta vez a resposta demorou algumas horas.
*
«CARO RYAN,
OBRIGADO PELA SUA CURIOSA COMPREENSÃO. AS MINHAS DESCULPAS
PELO ATRASO ENQUANTO PROCUREI PELO SIGNIFICADO DO TERMO
‘HACKEAR.’ SIM, ESTAMOS A ENTRAR SEM AUTORIZAÇÃO EM COMPUTADOR
SERVIDOR, NÃO POR NEFASTA MALEVOLÊNCIA MAS POR SER UMA MÁQUINA
EFICIENTE EM TERMOS DE COMUNICAÇÃO. ‘HACKEAR A CIA’ É ALGO DE
MAU? NÃO É A UNICA LOCALIZAÇÃO INFORMÁTICA QUE PODE SER
EFICIENTEMENTE USADA.
À ESPERA DA SUA RESPOSTA,
GLEIMICKR»
*
Isto era mais divertido que os canais de anúncios.
«Sim, — escreveu Ryan, — é algo de seriamente mau.»
*

Nova – ezine de FC e Fantasia 17 Novembro – 2008


«OBRIGADO PELO PRESTIMOSO CONSELHO — respondeu Gleimickr na manhã
seguinte. — ESTAMOS AGORA A OPERAR ATRAVÉS DE ORGANIZAÇÃO
CHAMADA UNIVERSIDADE DE MICHIGAN. MELHOR ASSIM?»
*
«Sim. Apesar de eu ter a certeza de que continua a ser ilegal. — Não que Ryan acreditasse em
algo disto estar realmente a acontecer. Era altura de tomar a iniciativa outra vez. — Mas como
pode você viver no sistema estelar que nós chamamos Vega? Eu tive uma cadeira de astronomia
na faculdade e Vega é uma estrela gigante azul, o que significa que emite radiações perigosas.
Também, como é possível que exista mais de um sistema planetário numa única estrela?»
Bateu nas teclas com uma alegria viciosa. Estas eram perguntas sobre as quais ele apostava
que o seu interlocutor nunca tinha pensado.
Mas a resposta veio sem demora.
*
«A SUA CERTEZA É ADMIRÁVEL. É POR ESSA RAZÃO QUE SOMOS OS POVOS
DE VEGA-EXTERIOR. VEGA-INTERIOR NÃO É HABITÁVEL. QUANTO AO MEU
USO DA EXPRESSÃO ‘SISTEMAS PLANETÁRIOS,’ FOI UM ERRO DA VOSSA
LÍNGUA, QUE É MUITO CONFUSA. SOMOS UM CONSÓRCIO DE POVOS DE MAIS
DE UM SISTEMA PLANETÁRIO. EM TEMPOS VIAJÁMOS ENTRE OS NOSSOS
PLANETAS DE ORIGEM ATRAVÉS DE ‘NAVE ESPACIAL,’ MAS AS VIAGENS ERAM
MUITO LONGAS. AGORA FALAMOS ATRAVÉS DE APARELHO TAQUIÓNICO E
PROCURAMOS RADIAÇÕES INDICATIVAS DE CULTURAS DISTANTES PARA
POSSÍVEL TROCA DE INFORMAÇÕES. DESCOBRIMO-LAS INFREQUENTEMENTE
POR AS EMISSÕES TAQUIÓNICAS NÃO FOCADAS DISPERSAM-SE POR REGRA
DE INVERSA RAIZ QUADRADA TORNANDO-SE DE DIFÍCIL DETECÇÃO À
DISTÂNCIA DO VOSSO PLANETA.
ESTÁ AGORA PREPARADO PARA NEGOCIAR?
GLEIMICKR»
*
«Mais uma pergunta. Porque precisam vocês de mim? Se os vossos aparelhos de taquiões
conseguem entrar na CIA e ler a internet, não conseguirão encontrar aí tudo o que pretendem?»
*
«EIS OUTRA OPORTUNA PERGUNTA. A VOSSA INTERNET ESTÁ DE FACTO
INUNDADA DE INFORMAÇÃO. INFELIZMENTE CADA DADO É CONTRADITO
POR MUITOS OUTROS. ISTO É PARA NÓS MISTERIOSO. UM EXEMPLO: HÁ
PÁGINAS DA INTERNET AFIRMANDO QUE NENHUMAS PESSOAS ALGUMA VEZ

Nova – ezine de FC e Fantasia 18 Novembro – 2008


ATERRARAM NA VOSSA LUA, ENQUANTO OUTRAS MOSTRAM CRIATURAS
APOLLO NESSA LOCALIZAÇÃO. OUTRAS PÁGINAS DESCREVEM RAPTOS FEITAS
POR ENTIDADES DAS QUAIS NÃO TEMOS QUALQUER CONHECIMENTO,
ARGUMENTAM SOBRE A IDADE DO UNIVERSO, OU PÕEM EM CAUSA
INFORMAÇÃO QUE FAZ COM QUE OS NOSSOS XENÓGRAFOS ESTEJAM
INCERTOS QUANDO A CERTOS ASSUNTOS BÁSICOS CONCERNENTES À VOSSA
CIÊNCIA. HÁ MESMO SITES DESCREVENDO O VOSSO MUNDO COMO
MONTANDO UMA CRIATURA CHAMADA ‘TARTARUGA’, EMBORA ISTO NOS
PAREÇA POUCO PROVÁVEL. NO FIM DE CONTAS, VOCÊS SÃO OS POVOS MAIS
DISCORDANTES ENTRE OS QUE TEMOS ENCONTRADO.
PODEMOS EVENTUALMENTE DESFAZER AS INCONGRUÊNCIAS E FAZER
NEGÓCIO SEM ASSISTÊNCIA, MAS OS TEMPOS DE VIDA NÃO SÃO INFINITOS.
TROCAR INFORMAÇÕES NADA CUSTA A NÍVEL DE OFERTA, E É MAIS
EFICIENTE. CONTUDO, COMO OS NOSSOS SUPERIORES NÃO APROVARAM
TRANSACÇÕES COM OS VOSSOS POVOS, TEMOS DE NOS RESTRINGIR A
INFORMAÇÃO QUE COM TEMPO E SORTE POSSAMOS RECLAMAR COMO
TENDO SIDO CAPTADA NA VOSSA INTERNET, SEM ASSISTÊNCIA.
CONSEQUENTEMENTE ESTAMOS À PROCURA DA SUA SENSORIEDADE
COMUM QUANTO À COMPREENSÃO DA INFORMAÇÃO JÁ DISPONÍVEL, PELA
QUAL OFERECEMOS TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA DE EQUIVALENTE
VALOR.»
*
Ryan riu-se. «Penso que lhe chamam senso comum, — escreveu ele. — Como sei que posso
confiar em vocês?»
*
«NÃO SÃO TODAS AS RELAÇÕES COMERCIAIS ESTABELECIDAS COM BASE
NA CONFIANÇA? PORÉM, COMO PROVA DE BOA FÉ, OFERECEMOS, GRÁTIS,
INFORMAÇÃO QUE PODE ESTAR RELACIONADA COM O NOSSO INTERESSE
COMUM: ‘A BICICLETA’.
ANALISANDO AS TRANSMISSÕES DE ‘TV’ RELATIVAS À SUA FAMA DE
CICLISTA DE CORRIDAS, ACHAMOS QUE A BICICLETA É UMA ENGENHOSA
APLICAÇÃO DE PRINCÍPIOS FÍSICOS BEM CONHECIDOS PELOS NOSSOS
CIENTISTAS EMBORA NUNCA APLICADOS À LOCOMOÇÃO. APESAR DISSO, NÃO
TEMOS CERTEZAS QUANTO A UM CERTO Nº DE FACTORES. POR EXEMPLO:
SERÁ O IMPACTO COM O CHÃO UMA PARTE INTENCIONAL DA ‘CORRIDA’?»

Nova – ezine de FC e Fantasia 19 Novembro – 2008


*
Ryan riu-se outra vez. – «Não.»
*
«ISSO É TAL COMO PENSÁVAMOS. ALGUMAS DAS ANATOMIAS DE NOSSOS
POVOS SÃO SUFICIENTEMENTE PARECIDAS COM AS VOSSAS E QUE
ACREDITAMOS PODER ENTUSIASMAR AS CORRIDAS DE BICICLETAS COMO UM
DESPORTO NOS NOSSOS ESPALHADOS MUNDOS. ESPECIALMENTE SE VOCÊ
NOS GUIAR NO ENTENDIMENTO DE ‘ESTRATÉGIA’ E DE ‘TÁCTICAS’ E NOS
DIGA QUAL DOS 1283 FABRICANTES QUE SE DIZEM ‘OS MELHORES’
REALMENTE O É. EXPLIQUE-NOS TAMBÉM, POR FAVOR, OS PRINCÍPIOS
BÁSICOS DE EVITAR CONTACTOS INDESEJADOS COM O SOLO.
EM TROCA OFERECEMOS UM MECANISMO QUE CONSEGUE CONVERTER O
INDESEJADO CONTACTO COM O SOLO EM ‘QUASE’ CONTACTO COM O SOLO.
É DESIGNADO POR ‘INVERSOR GRAVÍTICO’ E PODE SER MONTADO COM
PARTES A OBTER NUMA ‘LOJA DE FERRAGENS’ POR MENOS DE 95 DOS VOSSOS
DÓLARES. ANEXAMOS ESPECIFICAÇÕES COMO GESTO DE FIDELÍSSIMAS
INTENÇÕES.»
*
Ryan passou cuidadosamente um antivírus no ficheiro anexo e fez o download. Era de facto
um esquema detalhado para um aparelho electrónico, apesar das especificações dos
componentes não estarem em unidades de medida que ele percebesse. Em vez disso, estava
tudo adaptado à voltagem da unidade de alimentação, permitindo-lhe escolher a unidade de
alimentação que ele quisesse. Quereria isso dizer que Gleimickr pretendia que ele acreditasse que
o mecanismo funcionaria tão bem com um par de pilhas AA como com um transformador de
110v? Não sabia muito do assunto, mas as aulas de trabalhos oficinais tinham sido das suas
preferidas no liceu, embora já se tivesse passado muito tempo desde que ele brincara com
soldas, mecanismos, ou circuitos. Alguns daqueles componentes tinham nomes exóticos, mas
percebeu que certamente conseguiria montar aquilo, partindo do princípio que a loja do bairro
tinha mesmo aquelas peças à venda. Junto com o esquema havia um segundo ficheiro contendo
um programa de computador que era suposto ele descarregar para um processador que era o
componente mais caro do mecanismo.
Ryan pôs-se outra vez a imaginar o que é que uma vítima hipotética faria nesta situação. Foi
quando percebeu que se estava a adiantar no jogo. Uma vítima nunca iria simplesmente montar
aquela coisa; ainda perguntaria que raio era suposto aquilo fazer.
*

Nova – ezine de FC e Fantasia 20 Novembro – 2008


«UTILIZA UM PRINCÍPIO FUNDAMENTAL AINDA NÃO DESCOBERTO PELA
VOSSA CIÊNCIA, – respondeu Gleimickr por escrito. – COM O CONTROLO DE
INTENSIDADE DEVIDAMENTE AJUSTADO, ELE CONSEGUE INVERTER A
ENERGIA GRAVÍTICA DE MODO A CRIAR UM CAMPO REFLEXOR QUE IRÁ
PARAR UM OBJECTO EM QUEDA LIGEIRAMENTE ACIMA DO SOLO, SEM CRIAR
FRACTURANTES ESFORÇOS DE DESACELERAÇÃO. ESTA EDIÇÃO DO
MECANISMO RECONHECERÁ CONTORNOS DE SUPERFÍCIES DE MODO QUE,
USADO NUM CINTO, PROTEGERÁ O SEU CORPO INTEIRO MAS NÃO SE
ACTIVARÁ DESDE QUE VOCÊ E A SUA BICICLETA SE MANTENHAM EM
CONTACTO COM UMA SUPERFÍCIE REGULAR EM BAIXO.»
*
Ryan esqueceu-se por uns momentos do seu papel de vítima fingida. «Fixe», – escreveu,
carregando em SEND antes de se perguntar se isso não soaria a falso.
Acabou por decidir que não, mas agora teria de construir o mecanismo se quisesse continuar
a brincar com o spammer. E porque não? Mesmo que fosse tudo uma marosca para vender
produtos electrónicos (o que ele duvidava), podia-se bem dar ao luxo de gastar os 95 dólares: já
teria gasto bem mais que isso em equipamento de ciclismo se não estivesse neste estado.
Também, construir aquilo não significava ter de fazer grandes esforços físicos; de facto, até
podia ser visto como outra forma de terapia; física e mental. Pelo seguro, decidiu fazer uma
versão de baixa voltagem, para o caso de aquilo ser alguma espécie de armadilha desenhada para
explodir-lhe na cara assim que a pusesse a funcionar.
*
Dois dias depois, Ryan já tinha montado um aparelhómetro incrivelmente intrincado, que
cabia num compartimento plástico do tamanho de uma caixa de sapatos. Possuía dois controlos:
um botão para ligar/desligar e um potenciómetro. As especificações enviadas por Gleimickr
tinham exigido que o recipiente fosse medido em termos logarítmicos com unidades chamadas
choltus, que iam de zero a um milhão. «O CHOLTU É UM FACTOR DE
ESCALONAMENTO A CORPO INTEIRO, — explicara Gleimickr perante a pergunta de
Ryan. — PARA PROTECÇÃO CONTRA O IMPACTO DEVE PROCURAR A
CALIBRAGEM QUE PONHA O SEU CORPO A CERCA DE UM DÉCIMO DO SEU
COMPRIMENTO ACIMA DO SOLO. A ESCALA É DIFÍCIL DE DETERMINAR PELAS
VOSSAS IMAGENS TELEVISIVAS E PÁGINAS DE INTERNET, PARTICULARMENTE
DEVIDO A MUITOS DOS VOSSOS JOGOS E DESENHOS ANIMADOS TEREM
ASPECTO DEMASIADO INCONSISTENTE, POR ISSO DETERMINEI UM ÂMBITO
DE OPÇÕES ELEVADO, MAIS DO QUE COBRINDO O ESPECTRO DE TODAS AS

Nova – ezine de FC e Fantasia 21 Novembro – 2008


ESPÉCIES INTELIGENTES QUE TEMOS ENCONTRADO. É ACONSELHÁVEL
FAZER TESTES INICIAIS COM CALIBRAGENS INFERIORES DE MODO A EVITAR
FICAR EXCESSIVAMENTE ELEVADO. DE NOTAR QUE O TEMPO DE VIDA DA
BATERIA DIMINUI COM O CHOLTUS, POIS A CRIAÇÃO DE GRANDES CAMPOS
DE INVERSÃO CONSOME MUITA ENERGIA. PARA SATISFAÇÃO DA MINHA
CURIOSIDADE, FICAREI FASCINADO POR APRENDER QUAL A CALIBRAGEM
QUE PROVIDENCIARÁ OS DESEJADOS RESULTADOS PARA A VOSSA ESPÉCIE.»
Quando chegou o momento de ligar o mecanismo, Ryan pôs-se o mais longe possível,
carregando no interruptor com a ponta de uma régua. Nada aconteceu, mas isso não constituía
grande surpresa visto que ele pusera o mostrador no zero.
Ao fazer a caixa, ele decidira ignorar as estranhas unidades especificadas por Gleimickr.
Tinham demasiados zeros. O potenciómetro que comprara tinha uma escala de 10 cliques,
muito mais fácil de usar. Assim poderia mais tarde converter em choltus, caso viesse a ser
preciso. Portanto rodou o botão para 1.
Ryan não estava realmente à espera que algo acontecesse, excepção feita talvez a um pouco
de fumo e um cheiro desagradável, por isso ficou surpreendido com o seu desapontamento
quando a caixa ficou ali sem fazer nada. Rodou o botão para 2, depois para 3, e já ia para o 6
quando se lembrou da conversa de Gleimickr sobre um sensor de superfície. Em cima da mesa
era suposto que o aparelho nada fizesse.
Havia uma solução fácil para isso. Ryan pegou nele, pô-lo à altura do peito, e deixou-o cair.
Os resultados foram impressionantes. A caixa começou a cair, um solenóide começou a
zumbir, um relé interno fez um sonoro clique, e saiu disparada para cima. Enquanto Ryan dava
um grito saltando para trás, o aparelho bateu no tecto com um som cavo. Aí, pareceu verificar
que o tecto estava em contacto com paredes fundeadas no chão pois ouviu-se outro clique e
começou a cair. Isso fez disparar o inversor de novo, e a caixa ricocheteou para cima até bater
no tecto, para se desligar e cair de novo.
Obviamente, o 6 era a calibragem errada.
*
Nada acaba melhor com as dúvidas do que um aparelho de antigravidade a bater no tecto.
Ou Gleimickr era mesmo quem dizia ser, ou era uma espécie de génio excêntrico, o que na
perspectiva de Ryan, era uma diferença irrelevante.
Infelizmente, os ferimentos ainda não permitiam que tentasse apanhar o aparelho em fuga —
apesar de talvez ser melhor assim, pois podia ficar com os dedos esmagados se se pendurasse
nele à procura do botão para desligar. Assim sendo, ia ter de esperar que a bateria fosse até ao
fim, ou que um dos relés internos falhasse, de modo a que aquela coisa ao menos acabasse com

Nova – ezine de FC e Fantasia 22 Novembro – 2008


aquelas pancadas infernais. Ou talvez viesse mesmo a furar o tecto, acabando por morrer no
sótão.
Entretanto comprou um novo conjunto de componentes e pôs-se a fazer o Inversor
Gravítico modelo 2.
O modelo 2 tinha alguns refinamentos da sua própria lavra. Para começar, era
suficientemente pequeno para caber num bolso traseiro. Ryan também comprou uma série de
potenciómetros, de modo a poder escolher um que permitisse indicar uma «elevação excessiva».
Levitar acima das árvores poderia ter as suas vantagens, mas não no ciclismo, e ele nem queria
pensar no que poderia acontecer caso pusesse o indicador acidentalmente no 10.
Quando o primeiro modelo ficou finalmente sem energia, Ryan já ia no modelo 4, que lhe
parecia suficientemente seguro para que arriscasse testá-lo em si mesmo.
Tentara o modelo 3 num gato vadio obtendo resultados extremamente satisfatórios, não
contando com umas viciosas arranhadelas e a descoberta de que não era preciso uma brisa ser
muito forte para que um gato a flutuar fosse levado para longe a uma velocidade difícil de
igualar a pé. Agora, engolindo em seco, apercebeu-se de que estava prestes a tentar nele próprio
aquilo que experimentara no gato.
Substituíra o painel digital por um botão rotativo graduado e mudara para medições mais
precisas, em percentagens (apesar de o modelo 4 só ir até um nível de 45%). A melhor
calibragem parecia ser 30, mas jogando pelo seguro, ele marcou o aparelho para 35, pôs-se de pé
em cima do quadro da bicicleta, e saltou. Se não resultasse, o mais certo era partir um tornozelo
e pelo menos uma das clavículas ainda em convalescença.
Mas aquilo funcionou. A desaceleração activou-se bem acima do solo, provocando uma
sensação agradável e elástica; ricocheteou uma vez e acabou posicionado com a parte mais baixa
da anatomia um par de metros acima da relva. Das suas experiências com o gato (assim que ele
ficara suficientemente traumatizado de modo a desistir de aterrar sobre as patas), sabia que
estaria em segurança caso caísse de cabeça ou desse uma cambalhota, embora não se sentisse
com coragem para experimentar.
Cuidadosamente, rodou o botão para o zero até que, suave como uma pena, poisou no chão.
Gleimickr cumprira exactamente o que prometera.
*
Nas semanas seguintes, Ryan não tinha a certeza do que mais queria: se voltar a correr de
bicicleta, se ficar rico. Com sorte, conseguiria ambas as coisas.
Quanto testou o modelo 5 sentira-se suficientemente forte para se inclinar sobre o guiador,
mas teria de esperar um mês antes de correr o risco de uma nova queda. Agora já não teria de se
preocupar. Mesmo assim ainda não conseguia levantar a bicicleta por cima dos obstáculos em

Nova – ezine de FC e Fantasia 23 Novembro – 2008


provas de cross; por isso, em troca de uma explicação quanto às diferenças entre quadros de
titânio, fibra de carbono e alumínio, convenceu Gleimickr a mostrar-lhe como se convertia o
protector de quedas num neutralizador de peso, um que desse para colocar debaixo do selim.
Um discreto toque num interruptor cancelaria 95% do peso da bicicleta, de modo que sempre
que precisasse de a levantar bastaria erguê-la, leve como uma pluma: apesar de ter de continuar a
ser cauteloso devido ao efeito total da inércia – algo que ele descobrira da pior maneira ao bater
fortemente com a cabeça num dos pedais.
Apesar de estar ainda em recuperação o neutralizador de gravidade permitiu-lhe treinar em
campos de obstáculos, o que era bem mais giro que andar na estrada. Também lhe
proporcionava a hipótese de regressar às competições. Não seria propriamente honesto, mas
Ryan não pensava que alguém tivesse escrito uma regra que proibisse mecanismos destes. E,
pensou ele, as inovações sempre tinham feito parte do desporto. Demais a mais, ele tinha era
sorte de conseguir correr ainda este ano. Vencer estava fora de questão, por isso quem é que
podia ser prejudicado?
Entretanto, precisava de um advogado especializado em patentes para o ajudar a capitalizar
esta bênção vinda de Gleimickr.
O Ciclismo era obviamente um mercado especializado. Mas não era preciso ser um génio
para perceber que se se mexesse nas escalas, o neutralizador transformava-se num trenó
antigravitacional. Por isso Ryan fez uma oferta a Gleimickr. Do seu lado, escreveria um tratado
de 40 páginas comparando o I Love Lucy, o Dick van Dyke Show e o Seinfeld, com reality-shows de
comédia contemporâneos como Guerra de Insultos e o Mestre da Ordinarice. Em troca, Gleimickr
indicaria como converter o inversor num trenó e, para equilibrar as coisas, num elevador de
carga.
Gleimickr concordou, com uma condição: «VOCÊ NUNCA ME DISSE QUE MEDIDA
ESTÁ A USAR. ESTOU MUITO CURIOSO.»
Oops! — pensou Ryan, e enviou-lhe imediatamente uma foto dele próprio a flutuar por cima
da cama (entretanto descobrira que o neutralizador era maravilhoso para ajudar a adormecer),
onde se podia ver claramente o LED com a medida. «Desculpe lá.»
Também aprendeu depressa que enviar a mesma fotografia por e-mail a advogados de
patentes era uma forma perfeita de não ser recebido nos escritórios deles. Depois de se
recusarem quatro vezes a recebê-lo, simplesmente pegou no nome que vinha a seguir na lista e
foi até lá, armado com o modelo 6 (na realidade era apenas o modelo 5 com um indicador de
carga acoplado, de modo a não ter de descobrir da pior maneira quando as baterias se fossem
abaixo).

Nova – ezine de FC e Fantasia 24 Novembro – 2008


— Olá, — disse ele. — Tenho uma nova invenção. — Ligou o aparelho, deu um salto, e
ficou ali a pairar, ajustando o botão de modo a ficar a balançar em frente ao boquiaberto
advogado. — Será que me pode ajudar a comercializar isto?
— Mmhrn, — disse o advogado.
Claro que não seria assim tão simples. Especialmente quando Ryan lhe falou do elevador de
carga.
— Mmm, nesse caso há um problema. — disse o advogado.
Encorajado, Ryan acenou que sim. Precisava de ajuda precisamente para resolver problemas.
Sozinho não teria outra hipótese senão pôr o aparelho nas mãos de uma grande empresa e
esperar pelo melhor.
— Sim?
— Suponha que você usa o seu elevador de carga para elevar uma cisterna de água,
despejando-a num tubo que alimente um gerador eléctrico. Pelo que me diz, você poderia
produzir mais energia do que a inicial.
Ryan não pensara nisso.
— Uau. Adeus, falhas de energia.
— Talvez. O problema reside no facto de ser uma espécie de motor de movimento perpétuo;
o Instituto Nacional de Patentes não os vê com bons olhos.
— Ai não? Então mostre-lhes isto. — Ryan rodou o botão até ficar de novo a flutuar. —
Posso ficar assim durante uma semana só com um par de pilhas normais.
O advogado passou a mão pela testa.
— Ajudaria imenso se você pudesse explicar porque é que não está a violar a lei da
conservação de energia.
*
Ao fim da tarde, Ryan pôs a questão a Gleimickr.
«AH! ENERGIA HIDRÁULICA, — dizia a resposta. — PRIMITIVA, MAS EFICIENTE.
SE TIVESSE SIDO MAIS ESPERTO TÊ-LA-IA SUGERIDO EU MESMO. QUANTO À
SUA PERGUNTA, NÃO, O APARELHO NÃO VIOLA NENHUMA LEI
FUNDAMENTAL DA FÍSICA. ELE NÃO CRIA GRAVIDADE; APENAS A REFLECTE.
SE REALMENTE O QUER SABER, A ENERGIA PROVÉM DE GRAVITÕES
SUBDUZIDOS NA MATRIZ INTERSTICIAL, MAS A INABILIDADE DA VOSSA
CULTURA EM PERCEBER ISTO É UMA DAS RAZÕES PELAS QUAIS ESTA
CONVERSA TEM DE SER FEITA CLANDESTINAMENTE.»
A falta de entendimento da sua cultura também estava a provar-se como a principal razão da
demora em tornar Ryan num homem rico. Porém, o facto de que o aparelho funcionava, acabou

Nova – ezine de FC e Fantasia 25 Novembro – 2008


por dar-lhe alento, se bem que precisaria de umas três temporadas de ciclocross até que alguém,
sem ser os ciclistas (famosos pelo gosto de experimentar tudo e mais alguma coisa,
especialmente se fosse um gadget caro), lhe viesse a dar algum dinheiro a sério.
Entretanto, continuou a trocar informações com Gleimickr. Por altura em que o aparelho
antigravitacional começou a dar lucro, Ryan já estava pronto para lançar a sua nova ideia para
fazer dinheiro: um motor de combustão interna movido a água capaz de fazer 138 Kms com um
litro de gasolina e que emitia zero poluentes. Este foi parar ao mercado em menos de um ano.
Em parte isto deveu-se ao seu sucesso com a antigravidade. Mas ajudou que sempre tivessem
existido rumores de que a industria petrolífera há muito que conhecia tais tecnologias que
abafavam impiedosamente.
A seguir foram os carros voadores, que usavam um campo inversor angular para se colar à
gravidade da Terra a velocidades de centenas de quilómetros por hora. A estes seguiram-se
dúzias de outros gadgets — alguns revolucionários, outros apenas divertidos. Ninguém sabia ao
certo como funcionavam, o que não interessava visto que funcionavam sempre. Quase tão bom,
era o facto de normalmente ser possível adicionar umas quantas coisas para os segmentos de
luxo.
Por esta altura, Ryan foi aceite como o maior inventor da humanidade desde Edison (e talvez
até mesmo anterior). Por isso, quando Gleimickr lhe ofereceu a pièce de résistence — cabines de
teletransporte que possibilitavam a uma pessoa ser enviada para qualquer ponto do planeta,
demorou apenas um par de anos até as estradas ficarem obsoletas.
*
Por esta altura Ryan tinha uma mansão no topo de uma colina e uma pista privada de cross.
Com a mansão viera um criado, um cozinheiro, um jardineiro e uma cabina privada de
transporte, de modo a que os amigos (em especial os de sexo mais discreto) se lhe pudessem
juntar sem se tornarem alimento para os paparazzi.
Mas graças a todas essas amenidades Ryan tinha dificuldade em arranjar incentivos para
treinar a sério. Demais a mais, apesar de ele ainda estar do lado certo dos 40, não o estaria por
muito tempo, e apesar dos pedidos cada vez mais urgentes, Gleimickr estava mais interessado
em vender-lhe aparelhos de transporte que em providenciar remédios para reflexos lentos ou
para a barriga cada vez mais saliente.
Ainda assim, a vida era boa. Falava-se mesmo de um grande contrato com a NASA para ver
se era possível usar o teletransporte para criar uma base permanente em Marte (o próximo robot
enviado poderia levar uma minicabina para os primeiros ensaios). Ryan esperava um dia vir a ser
o primeiro ciclista de montanha a descer a encosta mais louca do Sistema Solar: o Monte

Nova – ezine de FC e Fantasia 26 Novembro – 2008


Olimpo. No entanto havia uma série de detalhes a cuidar primeiro, não de somenos o de ser
necessário um fato com sistema vital suficientemente forte e flexível para o efeito.
*
Em parte devido a uma certa nostalgia, e em parte por esperar aprender algo que servisse
para forçar Gleimickr a dar-lhe o segredo do fato marciano, Ryan continuou a ver pelo menos
30 telenovelas por semana.
Um dia o media center interrompeu uma comédia particularmente lamecha com uma «Notícia
de Última Hora». Seguiu-se o logótipo de uma estrela azul brilhante, rodeada de planetas a
orbitar rapidamente como um bando de mosquitos.
Ao mesmo tempo, na sua cabina de transporte soou a campainha, anunciando uma visita
inesperada.
— Quem é? — perguntou Ryan automaticamente. Ter uma cabina de teletransporte
desprotegida em casa era obviamente uma má ideia, por isso programara a sua para completar
somente a transmissão mediante expressa autorização.
Porém a sua atenção foi para o ecrã, que agora exibia uma mensagem com letras familiares.
«POVOS DA TERRA, — lia-se — SERVE A PRESENTE PARA COMUNICAR QUE
FORAM OFICIALMENTE ANEXADOS AO SISTEMA PLANETÁRIO DE VEGA-
EXTERIOR. RESISTIR APENAS LEVARÁ À VOSSA LAMENTÁVEL DESTRUIÇÃO.
AO LEREM ESTAS PALAVRAS, TROPAS DE ASSALTO DE VEGA-EXTERIOR
ESTARÃO A ENTRAR VIA APARELHO TAQUIÓNICO EM TODA E QUALQUER
CABINA DE TRANSPORTE DO VOSSO PLANETA. NÃO SE DEIXEM ENGANAR
PELA AUSÊNCIA DE MAIS QUE UM SOLDADO POR CABINA: NO TOTAL, HÁ
TANTOS SOLDADOS QUANTO CABINAS, CADA UM COM ARMAS E ARMADURAS
SUPERIORES AOS DOS VOSSOS MILITARES. SE DESEJAM VIVER, POR FAVOR
SIGAM AS INSTRUÇÕES QUE ELES DITAREM COM IMEDIATA ALACRIDADE.»
Lendo a mensagem, nem passou pela cabeça de Ryan duvidar da sua veracidade. Ao invés,
teve um terrível sentido de inevitabilidade.
A vigarice no velho Esquema Nigeriano era a de oferecer riqueza a troco de nada. Pela
mensagem original de Gleimickr, Ryan tivera a certeza de que conseguiria detectar a tramóia
antes de ela se efectivar, mas em vez disso caíra vítima do seu sentido de superioridade. Depois
viera o lisonjeante apelo à sua «sensoriedade comum» e o facto de os aparelhos de Gleimickr o
terem tornado, de facto, um homem rico.
Tudo isso o cegara para o facto de que o que o apanhara nada tivera a ver com dinheiro. Em
vez disso, construíra alegremente os portais alienígenas necessários à invasão, mesmo enquanto

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sonhava com a viagem a Marte. Culpa poderia não descrever perfeitamente o que sentia, mas
estúpido acertava na mouche. O que era normal, supunha, em qualquer vigarice.
Entretanto, a campainha da sua cabina de transporte continuava a apitar.
— ACTIVE A LIGAÇÃO DE TRANSPORTE IMEDIATAMENTE OU SOFRA AS
CONSEQUÊNCIAS. — tonitruou uma voz em basso profundo através dos altifalantes.
Ryan empatou.
— E se eu não o fizer?
— ENTÃO O SOLDADO MAIS PRÓXIMO IRÁ DE CINTO AÉREO AÍ ERRADICÁ-
LO. ACONSELHO-O A LIDAR DIRECTAMENTE COMIGO.
— E você é...
— EXACTAMENTE QUEM VOCÊ SUSPEITA. O VICE-ALMIRANTE GLEIMICKR
DO CONSÓRCIO INVASOR DE VEGA-EXTERIOR. VOCÊS NÃO NOS PODEM
DERROTAR, MAS PARTINDO DO PRINCÍPIO QUE OS HUMANOS DECIDAM
SOBREVIVER, APRECIAREMOS AJUDA NO CONTROLE DO PLANETA. AGORA
ACTIVE A LIGAÇÃO OU MORRA.
Anos de corridas de ciclismo tinham tornado Ryan num tipo pragmático. Quando se está
derrotado, não se pode gastar tempo com considerações. Em vez disso, o melhor era salvar o
que fosse possível, mesmo que fosse um segundo ou décimo lugar. Ele não tinha a certeza do
que seria possível agora, se é que algo era, mas torcer o nariz a um alienígena super poderoso
não lhe ia trazer vantagem alguma.
— Ok, — disse-lhe, e empurrou o simples — e por consequência, impossível de ser
informaticamente adulterado — interruptor que completaria a transferência.
Normalmente, uma transferência era silenciosa: apenas um pequeno puff gerado pela
deslocação das moléculas de ar na cabina de recepção. Desta vez houve um clarão actínico e o
cheiro de circuitos electrónicos queimados. Aparentemente, a tecnologia terrestre não permitira
a construção de uma cabina apropriada a transportes interestelares, embora fosse de presumir
que a força invasora soubesse como rectificar isso assim que tomassem o controlo. Ou talvez o
transporte taquiónico destruísse sempre o receptor. Ryan não tinha propriamente muita
experiência com o processo.
Mas quando o fumo espaireceu, não havia nada lá dentro. Pensando que Gleimickr poderia
ter sido tão rápido que estivesse agora atrás dele, Ryan virou-se de repente, mas viu que estava
sozinho. Aproximou-se cautelosamente da cabina, apesar de não haver sítio onde Gleimickr
pudesse estar escondido. Será que isto fora tudo uma brincadeira de mau gosto? Se era não tinha
piada pois pelos vistos causara sérios danos à sua cabina.
Foi então que Ryan ouviu uma vozinha vinda algures das profundezas da cabine:

Nova – ezine de FC e Fantasia 28 Novembro – 2008


— OH SNERDA, — disse a vozinha, ou algo parecido com isso. — QUE RAIO DE GAITA É VOCÊ?
Ryan olhou para baixo. Ali, no chão, estava uma figura com menos de dois centímetros de
altura, coberta com uma carapaça vermelho vivo feita de algo brilhante. Um capacete e uma
viseira obscureciam o que era provavelmente a cabeça e haviam pequenos objectos parecidos
com armas na ponta dos seus quatro braços.
Ryan deu mais um passo em frente para ver melhor.
— Gleimickr?
— SNERDA, SNERDA, SNERDA! — disse a figura. — VOCÊS SÃO BEM MAIS ALTOS QUE TRINTA

CHOLTUS!

Ryan demorou um bocado a processar aquilo, mas quase desatou a rir. Então era por isso
que Gleimickr estivera tão interessado no feedback quanto aos esquemas de escala que ele
arranjara. Aparentemente a transferência permitia-lhe alterar as suas dimensões à vontade.
Ryan ficou subitamente muito feliz com as partes eléctricas queimadas da cabina. De outro
modo, Gleimickr poderia ter sido capaz de teleportar-se de volta aonde viera e reaparecer com
um tamanho mais adequado. Mesmo assim, ele ainda podia ser perigoso. Sem dúvida que os de
Vega-Exterior tinham boas armas.
Gleimickr pareceu chegar à mesma conclusão, porque agora todas as quatro armas
disparavam ao mesmo tempo, apesar de a pontaria estar um bocado aleatória. Era evidente que
o pânico — tal como a vigarice — era uma característica inter-espécies.
Ryan era um alvo suficientemente grande para que os tiros não falhassem.
— Ai, – disse ele quando o disparo do explosor lhe tocou na pele. — Isso dói.
A qualquer momento Gleimickr começaria a disparar-lhe para os olhos, e isso poderia fazer
mais do que magoá-lo.
— Pára com isso. — disse Ryan.
Mas Gleimickr não o ouvia, ou não prestara atenção às explicações de Ryan sobre o que
fazem os ciclistas quando a vitória já não é possível, pois não parecia estar a pensar nisso.
Irritado, frustrado, mas sentindo-se subitamente bem superior, Ryan chegou-se à frente...
e pisou com força.
Viria a saber mais tarde que, por todo o planeta, as tropas de assalto tinham sofrido o mesmo
destino. Os pés provaram ser a mais letal das armas, embora os gatos ficassem perto, em
segundo lugar. Aparentemente havia algo nas tropas alienígenas de que estes não gostavam.
Mata-moscas e jornais enrolados, assim como os pássaros, também se vieram a provar
mortíferos para aqueles que tentaram escapar com aparelhos antigravidade.
Numa semana acabaram-se os relatos de estranhos insectos vermelhos, ou sobre o que quer
que fosse fora do normal. Os jornais continuaram a falar de uma invasão alienígena, mas isso
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levou toda a gente a atribuir os estragos nas cabinas de transporte a picos de corrente ou a
pensar que o que dera na televisão fora uma brincadeira de mau gosto.
Entretanto Ryan pegou num par de pinças e começou a coleccionar equipamento alienígena.
A Terra tinha sobrevivido à invasão devido à sorte e a um problema de comunicação. Se os de
Vega-Exterior encontrassem uma forma de tentar outra vez, o maior inventor do mundo desde
Edison (talvez até desde antes) tinha a intenção de estar mais bem preparado.
E quem sabe, talvez viesse a encontrar uma maleta médica com a cura para o
envelhecimento. 

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O Povo do Livro
João Ventura

Esta é a segunda passagem de Ventura pelo NOVA, depois do número inaugural onde nos
ofereceu Noosfera.
Desta feita com O Povo do Livro, Ventura oferece-nos um conto de dimensões mitológicas, uma
metáfora para os tempos actuais, de forte inspiração bradburiana com o seu toque pessoal.
Visite o blogue: Das palavras o Espaço < http://fromwords.blogspot.com/>

A
o pôr-do-sol começaram a sair das casas. Famílias inteiras, dos anciãos aos bebés
transportados ao colo das mães, dirigiam-se pelas ruas empedradas para o teatro
localizado na periferia da cidade. O ambiente era de alegria, porque as leituras do
Livro eram sempre um acontecimento festivo.
Entrando no teatro, o povo espalhou-se pelas bancadas de pedra, mantendo-se cada família
junta, para partilhar a refeição que tinha trazido de casa. Coisas simples: pão de centeio, queijo
de cabra, bolos de nozes e mel, fruta diversa, vinho de maçã e cerveja. A ceia durava sempre até
nascer a lua, altura em que tinha início a leitura do Livro.

Quando a lua cheia começou a aparecer, recortando o perfil da Montanha Maior, o Contador
saiu da Casa do Livro, ladeado pelos dois ajudantes, que transportavam archotes, e
acompanhado também por um tocador de adufe. Segurava o livro com as duas mãos, e o grupo
seguiu pelo caminho lajeado em direcção ao teatro, o ritmo da marcha marcado pelo som rouco
das pancadas no couro esticado.

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As bancadas do teatro acompanhavam o declive da colina em cuja encosta tinha sido
construído. Finda a ceia, os adultos conversavam, enquanto os mais jovens se divertiam
perseguindo-se pelo meio das pessoas sentadas, provocando alguns protestos, em geral bem-
humorados. Um deles, que tinha trepado até à bancada mais alta, olhou na direcção da Casa do
Livro e viu o pequeno grupo que avançava. Imediatamente passou palavra para baixo e à medida
que a informação se ia difundindo pelo teatro, o ruído de fundo das conversas ia caindo. As
famílias iam-se reagrupando e quando o Contador e seus acompanhantes entraram no teatro,
podia ouvir-se o roçar das sandálias no chão de pedra, acompanhado apenas pelo som do adufe.
O Contador dirigiu-se para o púlpito, pousou o livro e abriu-o numa página marcada. Os
dois ajudantes enfiaram os archotes em argolas metálicas cravadas na pedra, de um e outro lado
do púlpito, deitaram nas chamas um pó que as tornou mais luminosas, e retiraram-se, juntando-
se à assistência. Perto do púlpito ficou apenas o tocador de adufe, pois algumas passagens da
narrativa eram sublinhadas pelo instrumento.
A esta noite, a terceira lua desde o equinócio, pertencia uma das histórias mais apreciadas,
sempre aguardada com muita expectativa. Contava a forma como o fundador da cidade tinha
conduzido o povo desde a região onde então viviam, mais a Norte, ameaçada pelo avanço dos
gelos, até ao local onde agora estavam, e dos perigos que os tinham ameaçado durante o
percurso, e da forma como, umas vezes usando a coragem física e a força das armas, outras por
meio da sabedoria e inteligência, tinha conseguido levar a bom termo a viagem iniciada.
O Contador de Histórias dirigiu-se ao povo com a saudação nocturna tradicional:
— Possa a Lua afastar o escuro dos vossos sonhos.
A resposta ritual foi sussurrada por todo o teatro:
— Possa Ela também iluminar os teus.
Começou então a leitura:
— Onde se fala de Rokar, de como conduziu o povo durante a Viagem, e dos feitos que
praticou até à fundação da cidade.
Uma pequena pausa, preenchida por um curto fraseado no adufe, e prosseguiu:
— Lá longe, no Norte, onde há muitas luas o povo vivia, o tempo começou a ser mais frio
de Inverno para Inverno, e os anciãos diziam sempre que não se lembravam de tempo tão frio.
E o topo das montanhas começou a ficar branco durante mais tempo em cada ano, e em maior
extensão, e um ano veio em que a neve não desapareceu nunca. E viajantes começaram a trazer
notícias de que do Norte avançavam gelos, que faziam fugir pessoas e animais.
— E o povo juntou-se para decidir o que fazer. Como sempre, havia várias opiniões: os que
pensavam que o tempo frio era passageiro, e voltaria novamente o tempo normal, e os que
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defendiam que a mudança era permanente e que seria necessário abandonar a cidade e seguir na
direcção do Sul. Mas sendo uma decisão de tamanha importância, resolveram antes enviar um
pequeno grupo numa expedição ao Norte, uma lua para ir, outra para regressar, como se fossem
os olhos e os ouvidos do povo, para saber ao certo o que se passava. E foi este grupo chefiado
por Rokar.
— Quando nascera, já as neves eternas adornavam os cumes das montanhas. Durante a
adolescência começara a acompanhar os adultos nas caçadas, quando a necessidade de peles
para o fabrico de vestuário se tornou mais premente. Também a recolha de lenha passou a ser
feita cada vez mais longe, à medida que as zonas mais próximas da cidade iam ficando
despojadas de árvores. A partir dos 14 anos, os jovens começavam a participar nestas
actividades.
— À medida que a expedição prosseguia para Norte, foi encontrando animais que se
deslocavam em sentido contrário, como se fugissem de alguma ameaça. Sempre que podiam,
caçavam, esfolavam os animais, amanhavam as carcaças e escondiam carne e peles em locais que
marcavam, para apanhar na volta.
— No dia que tinham planeado ser o último da viagem de ida, chegaram a um vale abrigado
quando já escurecia. Fizeram uma fogueira, montaram a tenda, cearam e pouco depois todos os
homens dormiam, excepto Rokar. Nasceu a Lua, e quando olhou para Norte, viu uma linha
branca, que reflectia o luar. Pressentiu que aquela linha era o inimigo, e que a batalha estava
perdida desde o início. Sentou-se junto à fogueira, pois era seu o primeiro quarto de vigia.
— Logo que amanheceu, comeram rapidamente e puseram-se a caminho. Perto do meio-dia
chegaram a poucos tiros de flecha da muralha de gelo que avançava lentamente, com um ruído
surdo resultante da forma como arrasava qualquer obstáculo à sua frente. Árvores ou elevações
de terreno, tudo era submerso pelo avanço daquela massa descomunal que reflectia a luz do sol
com um brilho que cegava.
— Rokar observou a enorme parede branca durante algum tempo; depois, a uma ordem sua,
o grupo fez meia volta e iniciou o caminho de regresso. A sua missão de recolha de informação
estava cumprida.
— Quando chegaram à cidade, Rokar convocou o povo para uma reunião na praça e relatou-
lhes o que tinham visto. A decisão de abandonar a cidade e viajar para o Sul foi unânime.
(...)
E desta forma o nosso povo, guiado por Rokar, chegou ao local onde agora vivemos. E esta
história foi contada para que nos sirva de inspiração para os trabalhos e dificuldades que
enfrentamos na nossa existência.

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O Contador fechou o Livro, saudou a assistência, que lhe respondeu, e iniciou o caminho de
regresso à Casa do Livro. O teatro começou lentamente a esvaziar-se.

Enquanto decorria a leitura, dois homens, no topo da colina oposta ao teatro, observavam
atentamente tudo o que se passava. Tinham chegado ali caminhando furtivamente, naquela
incerteza entre luz e sombra quando o sol já morreu e a lua ainda não nasceu. Movendo-se sem
ruído, tinham deslizado entre a erva alta até ficarem numa posição que lhes permitia ver sem
serem vistos o que se iria passar mais abaixo.
Tinham feito uma longa jornada, pelo que o descanso foi bem-vindo. Beberam água de uma
botija que um deles trazia e comeram o que tiraram de um bornal: pão escuro, fatias de carne
fumada e frutos silvestres.
Eram jovens, vestiam roupas de couro, usavam calçado do mesmo material, e estavam
armados, um deles com uma lança e o outro com um arco e flechas. Assistiram ao encher do
teatro, imóveis e em silêncio, com a paciência do caçador que sabe esperar o tempo que for
necessário. O único movimento que faziam, de vez em quando e de forma quase automática, era
acariciar o amuleto que cada um deles trazia pendurado ao pescoço.
Do ponto onde estavam via-se também a Casa do Livro. A postura deles passou a mostrar
uma maior tensão quando o Contador e a sua companhia iniciaram o percurso em direcção ao
teatro.
Olhavam o Livro com curiosidade temerosa. As palavras do feiticeiro ainda ressoavam aos
seus ouvidos:
— A magia deles é grande, e está no que eles chamam o Livro, e que tem sinais que
representam palavras, e essas palavras fazem acontecer as coisas. Mas a magia que vos dou aqui
– e colocou-lhes ao pescoço os amuletos – é mais poderosa, e vocês serão capazes de queimar a
magia deles, com o líquido do fogo que levarão convosco.
Alternadamente, um deles vigiava enquanto o outro dormitava; períodos curtos de sono, dos
quais acordavam imediatamente despertos, olhando à volta, cheirando o ar, avaliando o
ambiente em redor em termos de vantagens ou ameaças.
Terminada a leitura, esperaram que o povo esvaziasse o teatro e que o Contador e a sua
companhia fizessem o caminho de volta até à Casa do Livro, onde este foi deixado com o ritual
do costume, afastando-se depois o pequeno grupo em direcção à cidade.
Quando a noite sossegou, os dois homens puseram-se em movimento. Pegaram nas armas,
puseram os bornais a tiracolo e um deles pôs às costas um odre que tinham trazido.
Caminhando pelo meio da vegetação de forma quase inaudível, dirigiram-se para a Casa do

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Livro, aproximando-se dela com redobrado cuidado, desnecessário porque a Casa não dispunha
de qualquer protecção.
Deram a volta à Casa, fazendo o reconhecimento do terreno. O pequeno edifício todo em
madeira, com a excepção do portal da entrada, em pedra trabalhada, com baixos-relevos
alusivos à história do Povo, estava no topo de uma colina baixa. Em seu redor, uma zona tinha
sido limpa de vegetação, que apenas se desenvolvia de meia-encosta para baixo, principalmente
erva alta e alguns arbustos.
Os dois homens começaram a cortar mato, que amarravam em feixes; transportaram depois
esses feixes para junto da Casa, dispondo-os a toda a volta, encostados à base das paredes.
Terminada essa tarefa, derramaram o líquido que traziam no odre sobre a vegetação acumulada.
Um deles sentou-se no chão, tirou do bornal um pedaço de madeira que prendeu entre os pés,
uma vareta mais fina que apoiou no primeiro, juntou um pouco de musgo seco e começou a
rodar rapidamente a vareta entre as palmas das mãos.
O outro tinha entretanto preparado um archote que acendeu assim que o primeiro conseguiu
fazer fogo. Andando à volta da Casa, foi pegando fogo à vegetação, que impregnada de
combustível líquido, começou facilmente a arder.
Os dois homens recuaram, para melhor apreciar o resultado do seu trabalho. As paredes da
Casa já tinham começado a arder e o topo das chamas começava a chegar à altura do telhado.
Satisfeitos com o que viram, recolheram todos os seus pertences e afastaram-se rapidamente, na
direcção oposta à da cidade.
Depois de algumas centenas de passos, chegando à entrada de um bosque cujas árvores
tornavam a sua presença mais difícil de detectar, pararam para observar o incêndio. Embora já
longe, a vista treinada na caça permitia que vissem que as chamas tinham agora pelo menos o
dobro da altura da casa. Começaram a ouvir, vindo da cidade, um som grave, contínuo, um sinal
de alerta porque, pouco tempo depois, viram-se silhuetas recortadas contra o clarão das chamas.
De súbito, um aumento da intensidade do incêndio fez aparecer uma forte coluna de
convecção que espalhou material incandescente pela negrura da noite. Os dois homens trocaram
um olhar cujo significado era «Missão cumprida!» e começaram a caminhar sem tornar a olhar
para trás.
*
Quando o alerta começou a soar no cimo da torre de vigia o povo saiu à rua, alarmado.
— Há fogo, há fogo na Casa do Livro! — Gritava o segundo vigia, enquanto o primeiro
continuava a soprar no búzio, para que toda a cidade ouvisse o sinal.
Os primeiros que chegaram junto da Casa ainda tentaram organizar o combate ao incêndio:
formar uma fila que de mão em mão passasse baldes de água desde um pequeno ribeiro que

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corria no fundo do vale. Mas cedo verificaram a inutilidade dos seus esforços: as chamas eram
cada vez mais altas, o calor intenso impedia a aproximação, até que com um ruído surdo o
telhado abateu, afundando-se no interior da Casa, provocando a projecção de um chuveiro de
faúlhas que se dispersaram na noite. A partir desse ponto foi apenas deixar que o fogo morresse
por si, controlando alguns pequenos focos de incêndio na erva ou no mato, originados por
material projectado.
A madrugada veio encontrar em volta das ruínas ainda fumegantes — apenas o portal da
entrada, em pedra, se mantinha de pé — um grupo desolado. Mirno, o Contador, estava nesse
grupo. Logo que a luz foi suficiente, entrou no que tinha sido o interior da Casa, tentando
encontrar algum fragmento do Livro que tivesse escapado ao inferno. Descobriu as ferragens da
capa, e alguns jovens que entretanto tinham pesquisado o campo em redor voltaram com meia
dúzia de fragmentos queimados, praticamente ilegíveis. Olhando aquela desolação, Mirno sentiu
como se alguma coisa dentro de si tivesse morrido. Virou costas às cinzas e dirigiu-se para a
cidade, atravessando pelo meio das pessoas que entretanto iam chegando, e que se afastavam
respeitosamente para o deixar passar.
O Contador entrou em casa e foi sentar-se num banco tosco junto à janela, donde podia
observar os telhados das casas da cidade. Pensava com desalento no que sentiriam os seus
concidadãos, sabendo que o Livro já não existia. Imaginava debaixo de cada telhado, em cada
uma das habitações, uma família preocupada. Onde iria a cidade buscar o seu ânimo, a sua alma,
sem as leituras do Livro?
As horas foram passando, e Mirno sempre no mesmo local, olhando sem ver a mudança de
cor dos telhados enquanto o sol roda lentamente pelo céu, relembra a sua vida passada ao
serviço da Cidade, desde quando tinha sido escolhido por Sartor, o anterior Contador de
Histórias, para ser iniciado na leitura do Livro.
Recorda-se com nitidez de como ele entrou na escola, da deferência do professor para com o
visitante, de ambos terem falado longamente em voz baixa, olhando de vez em quando os
alunos. Depois o Contador teve conversas a sós com alguns dos alunos, despediu-se do
professor e foi-se embora.
Claro que nos dias seguintes não se falava de outra coisa, mas aos poucos a novidade foi-se
gastando. E quando o assunto tinha praticamente caído no esquecimento, eis que uma noite
Sartor bate à porta da sua casa.
Recebido com o ritual apropriado — a oferta de pão e sal ao visitante — seguiu-se durante
algum tempo uma conversa neutra, pois não era apropriado um visitante entrar directamente no
assunto pelo qual vinha.

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Decorrido o intervalo de tempo conveniente, Sartor disse então o que o trazia: pretendia,
caso os pais de Mirno não se opusessem, tomá-lo como aprendiz, e ensinar-lhe a ler o Livro,
para que mais tarde ele viesse a ser o novo Contador de Histórias.
Um convite destes seria uma honra para qualquer família. Mas o seu pai tinha-o chamado e
perguntado se gostaria de ir aprender com o Contador. Lembra-se que demorara alguns
segundos a responder, enquanto tomava consciência das implicações da pergunta, e quando
disse que sim, os pais e o Contador sorriram, e o pai foi buscar uma garrafa de vinho e todos
brindaram.
Seguiram-se anos de estudo, porque o Livro estava escrito num alfabeto muito mais
complexo do que aquele que a generalidade do povo aprendia na escola e utilizava na sua vida
quotidiana, no comércio e assuntos correntes. Mas pouco a pouco foi dominando aquela
maneira de escrever, até pensar que era de facto o veículo apropriado para registar a história do
seu povo.
Tinham sido tempos felizes esses, os da aprendizagem sob a orientação de Sartor, a quem
ficou a considerar como um segundo pai. E quando Sartor considerou que Mirno estava
preparado, leu o Livro pela última vez. Naquela noite era a estória de Thedur, o artesão
imaginoso, cujas invenções engenhosas e espírito de iniciativa arrancavam sempre aplausos à
assembleia. Sartor iniciou a leitura e a meio do texto, chamou Mirno e disse-lhe para continuar.
E desta forma foi passado o testemunho.
Na manhã seguinte, Sartor saiu da Cidade, e foi viver numa cabana dentro do bosque que
cobria a maior parte da face sul da Montanha do Meio.
O espírito de Mirno voltou ao presente, à questão que o preocupava. E pensou de súbito que
precisava de conversar com Sartor, de ouvir a opinião do seu velho mestre, e esta decisão
acalmou-o. Meteu num bornal algumas provisões para a viagem, e pendurou-o da parede junto à
porta, onde ficou junto do chapéu e do cajado. Deitou-se, entrando rapidamente num sono sem
sonhos.

Ainda madrugada, o Contador levantou-se, comeu uma refeição frugal de pão escuro e leite e
saiu rapidamente de casa. Quando os primeiros raios de sol o atingiram, já ele atravessava o
prado, pelo caminho que seguia na direcção da Montanha do Meio. De algumas quintas
dispersas vinham sinais do começo da actividade diária: fumo a sair pelas chaminés, vozes
amortecidas pela distância, o ruído longínquo do chiar das rodas de uma carroça... Mirno
caminhava num passo cadenciado, com a intenção de chegar à base da montanha, mais
arborizada, antes que o sol ficasse muito forte.

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No início do bosque havia ainda uma estrada estreita, de terra batida, com marcas dos
rodados das carroças dos lenhadores. Mas à medida que se entranhava no arvoredo, a estrada ia
ficando mais indefinida, e a certa altura era uma simples vereda que serpenteava por entre as
árvores. Esse caminho desembocava numa clareira, e Mirno parou para descansar um pouco,
sentado numa pedra, deixando a sua mente ser invadida pela paz daquele local. A agitação das
folhas provocada pela brisa matinal, o zumbido dos insectos, o cheiro da terra ainda molhada do
orvalho nocturno, o contraste entre a clareira iluminada pelo sol e o escuro da sombra das
árvores davam àquele local uma enorme tranquilidade.
Mirno descansou durante algum tempo, até que o problema que o tinha feito iniciar a
jornada lhe ocupou novamente o espírito. Levantou-se, pegou no cajado e no bornal e começou
a caminhar internando-se na floresta.
A tarde ia a meio quando chegou à cabana de Sartor. O seu antigo mestre estava sentado à
porta, com uma goiva esculpindo um pássaro num pedaço de madeira. Levantou-se para saudar
Mirno e convidou-o a entrar.
O interior da cabana era de uma simplicidade extrema. Consistia num único compartimento,
tendo num canto uma enxerga, coberta com uma manta; uma mesa pequena, dois bancos, na
base da chaminé a lareira com duas ou três brasas quase extintas, uma estante com alguns livros,
um armário baixo ao lado da lareira com alguns frascos e garrafas em cima, e espalhadas pelo
interior várias pequenas esculturas em madeira. Mirno olhou em volta, e Sartor explicou com
um sorriso: “Comecei a esculpir, ajuda a concentrar a mente...”
O ancião foi buscar duas tigelas de barro ao armário, trouxe um dos frascos que tinha dentro
uma infusão de bagas, tirou desse frasco algum líquido para cada uma das tigelas e acabou de as
encher com água de um jarro.
— Está fresca, vem de um regato que passa atrás da casa. Bebe.
Beberam em silêncio, sentindo o líquido fresco descer pela garganta.
Ao fim de algum tempo, Sartor falou.
— Então a que devo a tua visita?
— Mestre, aconteceu uma desgraça: o Livro já não existe!
A voz de Sartor não se alterou quando disse.
— Conta-me tudo.
E Mirno descreveu pormenorizadamente os acontecimentos de duas noites atrás, o incêndio
da Casa do Livro, e a angústia que sentia existir na cidade, devida à perda do Livro.
O antigo Contador manteve-se calado durante algum tempo.
— Diz-me, Mirno, o que animava as pessoas: era o Livro, ou as histórias que contavas?
— As histórias, creio, — respondeu Mirno, depois de pensar um pouco.
Nova – ezine de FC e Fantasia 38 Novembro – 2008
— E as histórias desapareceram?
— Bem, o Livro desapareceu...
— Mas as histórias continuam aqui, — e apontou para a sua cabeça, — e aí, — e apontou
para a cabeça de Mirno, — e nas cabeças de muitos do nosso povo.
O Contador ficou em silêncio enquanto analisava as implicações do que o seu mestre tinha
dito.
— Queres dizer que posso convocar o povo para o teatro, e contar-lhes uma história... sem o
Livro? — perguntou com um tom incrédulo.
— O Livro não era mágico. Podes escrever outro. Importantes são as histórias, e essas estão
vivas.
Quando esta afirmação atingiu o fundo da sua consciência, pareceu a Mirno tão evidente que
era como se sempre o tivesse sabido e acreditado.
Passou a noite na cabana e no dia seguinte regressou à cidade. Sartor acompanhou-o até à
clareira na floresta, onde se despediram. Aí tornou a dizer-lhe.
— O Livro era apenas o registo das histórias. São as histórias que contam.
Mirno fez o resto do caminho de espírito mais leve, numa disposição bem diferente da que
levava na ida.
Quando chegou, foi direito à Casa da Cidade, onde habitualmente se reunia a Assembleia. Aí
falou com os tribunos, que o informaram sobre o que se tinha passado durante a sua ausência:
tinham investigado o incêndio e concluído que se tratara de fogo posto, muito provavelmente
com origem na tribo nómada cujo território de caça ficava para Sueste da cidade. O local onde
dois homens tinham estado escondidos a observar a leitura tinha sido descoberto, e na sua
retirada esses homens tinham deixado pistas que os caçadores da cidade tinham identificado. A
cidade já tinha reforçado a sua defesa, decretando a mobilização geral de todos os cidadãos
acima dos 16 anos e estabelecendo um conjunto de postos de vigia diurnos e nocturnos.
O Contador ficou satisfeito, o povo parecia recuperar do ataque de que tinha sido vítima, a
vida na cidade tinha voltado ao habitual, as pessoas ocupadas com os seus afazeres quotidianos.
E os dias foram passando, e aproximou-se a lua cheia seguinte.

Naquela noite, a atmosfera no teatro era bem diferente do habitual. Mesmo as crianças
pareciam ter intuído que algo se passava, e em vez das correrias do costume, mantinham-se
junto da família. As conversas eram em voz mais baixa.
Quando a lua nasceu, um silêncio total encheu o anfiteatro, enquanto o Contador se
encaminhava para o púlpito.
Dirigiu ao povo a saudação tradicional, ouviu a resposta e começou a falar:
Nova – ezine de FC e Fantasia 39 Novembro – 2008
— Meus amigos, na lua passada aconteceu algo que nunca pensámos que pudesse ser
possível. O nosso Livro foi consumido pelas chamas.
— Mas o que nos junta aqui é mais do que um livro, por muito importante que ele fosse para
a História do nosso povo. O que nos junta aqui são as histórias, e essas não desapareceram, não
foram queimadas, continuam vivas na nossa memória. E nós não vamos deixá-las morrer.
Um murmúrio de aprovação surgiu da assistência.
— Hoje vou falar-vos de Attik, que dirigiu os trabalhos de construção da cidade, e dos
problemas que teve de enfrentar, e da forma inteligente como os resolveu.
E o Contador iniciou a narrativa como se tivesse o Livro aberto na sua frente, e foi contando
a história, e sentindo a reacção da assistência como quando lia, a forma engenhosa como Attik
desenvolveu o sistema de transporte dos troncos desde a floresta até ao local onde se iniciou a
construção da cidade, o modo como projectou e dirigiu a abertura do canal que do rio mais
próximo ainda hoje traz a água necessária para abastecer a cidade, o eficiente sistema de
comunicações que implantou para ligar os postos de vigia à Casa da Cidade, com espelhos e
lanternas ao ar livre e cabos de corda fina dentro dos edifícios.
Enquanto contava a história, sentia-se quase como se fosse ao mesmo tempo duas pessoas,
uma a contar e outra a observar, e esta segunda surpreendia-se com a forma como a primeira
reproduzia fielmente o que estava escrito no livro desaparecido. E ao mesmo tempo, em
paralelo com a história que contava, ia sentindo crescer dentro de si um sentimento de
confiança, como se a cada nova casa construída na cidade cujo nascer ele descrevia
correspondesse naquela assembleia mais alguns cidadãos que reforçavam o seu acreditar no
futuro da Cidade.
Quando terminou a história, a Lua ia alta no céu. E o Contador usou a fórmula ritual.
— Que o vosso sono seja pacífico.
E veio a resposta murmurada.
— E o teu como o nosso.
O povo começou a sair do teatro, as pessoas comentando entre si a narrativa que tinham
ouvido, e Mirno respirou aliviado, pensando que o espírito da Cidade continuava bem vivo. E
que, enquanto o passado continuasse a iluminar o presente, haveria esperança no futuro. 

Nova – ezine de FC e Fantasia 40 Novembro – 2008


Anjo do Scream
Douglas Smith
Tradução de Nuno Fonseca

Smith é um autor canadiano com obras publicadas internacionalmente. Esta é a sua primeira
publicação em português e o conto escolhido foi vencedor do prémio Aurora de 2004 na
categoria de melhor conto curto.
A obra de Douglas Smith está publicada em 26 países, num total de 21 idiomas e mais de 70
publicações, incluindo The Third Alternative, The Mammoth Book of Best New Horror, Cicada, Weird
Tales, InterZone, Baen's Universe, Amazing Stories, On Spec, Oceans of the Mind.
Foi finalista para o prémio John W. Campbell, na categoria de melhor revelação e venceu por
duas vezes o prémio Aurora, na categoria melhor ficção curta especulativa.
Em O Anjo do Scream temos uma história de violência, fuga, amor e redenção tendo como pano
de fundo a avidez colonialista e o lado negro do coração do Homem.
Visite o site: Douglas Smith Writer of Fantasy & Science Fiction <
http://www.smithwriter.com/>

P
araram de bater em Trelayne quando viram que ele estava a gostar. Os rufias que
passavam por polícias na cidade de Lá-Longe afastaram-se do local onde ele estava
enrolado no chão sujo, como se fosse algo morto e perigoso. Ficou novamente a
vê-los fechar a porta da sua cela pequena e fria. Nojo e algo como medo a transparecerem nos
olhos. O travo do desprezo deles misturou-se com a brusquidão do sangue na boca. E o Scream
nesse sangue bateu novamente, com uma intensa onda de prazer.
A reacção deles não era inesperada. A Entidade Conjunta Corporativa guardava bem os seus
segredos, e o Scream era um dos mais preciosos. Lá-Longe ficava distante de qualquer mundo-

Nova – ezine de FC e Fantasia 41 Novembro – 2008


projecto da Entidade, e bem fora da rota de salto entre a Terra e a fronteira. Ninguém neste
planeta dos fundos conhecia a droga, quanto mais já ter encontrado um Screamer ou um Anjo.
Fora por isso que o escolhera.
Os passos afastaram-se e a porta exterior do armazém de plastiaço que fazia de prisão da
aldeia fechou-se com um ruído metálico. Sozinho, rolou sobre um dos lados, gozando a agonia
que o movimento lhe trazia. Tentou recordar-se de como viera ali parar, mas o Scream tornava
cada tentativa num espectáculo de emoções. Por fim lembrou-se de algo a arder, algo…
…a cair.
Fora um dos melhores espectáculos deles.
Recordava-se agora. Lembrou a noite passada, o estar de pé na arena da improvisada cúpula
de circo, anunciando os artistas a um público que pouco se importava com isso, berrando os
nomes dos malditos, dos conquistados. Cada membro do seu bando de refugiados emergira por
detrás das rasgadas cortinas vermelhas, movendo-se à maneira própria da sua espécie, para
dentro ou por cima da arena, dependendo da encenação.
Sabia que os números pouco significavam. O público não vinha para ver feitos acrobáticos
ou de força, mas para se embasbacar perante a estranheza alienígena, para ver os alienígenas a
vergarem-se submissos perante o poderoso Homem. O circo de Trelayne consistia no conjunto
dos restos das espécies subjugadas de uma série de mundos, vítimas da extracção de recursos ou
projectos de terraformação da Entidade: os Cachorros-de-Pedra, bestas de sílica saltitante com
arcaboiços de lados lisos; Guppert, o Forte, um atarracado refugiado com membros bulbosos,
vindo de uma alta gravidade e das igualmente esmagadoras minas de Mendlos II; Feran, a
criança-raposa, de um povo caçado como animais em Fandor IV.
E os Anjos. Sempre os Anjos.
Mas enrolado no imundo chão da cela, recordando-se da noite anterior, Trelayne não quis
mais pensar nos Anjos. Ou nela.
Sim, fora um belo espectáculo. Até Ta’lona morrer, numa explosão de sangue e luz, bem alto
sobre a arena, depois de se aproximar demasiado de uma das tochas. Trelayne comprara a
liberdade daquela criatura de gás em bolsa a um negociante de escravos Indis, sabendo que a
espécie tinha sido praticamente extinta.
Enquanto os pedaços da gorda alienígena caíam em chamas por cima da multidão, a noção
que Trelayne tivera da realidade tinha-se quebrado como um espelho de circo atingido por um
martelo. Agora só conseguia ter imagens desconexas do que acontecera a seguir, na noite de
ontem: pessoas a arderem— gritaria— pânico— a fuga desordenada em direcção às saídas — a
prisão.

Nova – ezine de FC e Fantasia 42 Novembro – 2008


Também não se lembrava de ter tomado o Scream. Normalmente, mantinha-se limpo para os
espectáculos. Mas sabia bem o que estava a sentir agora, deitado no chão da cela: o prazer de ter
sido espancado, o êxtase da humilhação. Devia ter tomado uma dose quando a confusão
começou e o cheiro da carne queimada se fez sentir. Para escapar ao horror.
Ou para apreciá-lo. Pois com o Scream, o horror era uma porta para o paraíso.
Alguém pigarreou dentro da cela. Trelayne deu um salto e o corpo tremeu-lhe todo com a
emoção da surpresa. A gemer, rolou no chão sobre as costas e abriu os olhos, lutando para
orientar-se de novo.
Um homem estava agora na cela, sentado na cama portátil. Um homem com um rosto
aquilino, uma expressão e uns olhos que lembravam Trelayne de si próprio. Vestia uma longa
capa cinzenta com a insígnia de major e outra mais pequena onde, por sobre um planeta verde
dividido por um raio, se viam as letras RIP a vermelho.
Um uniforme das forças RIP. Um uniforme que Trelayne usara uma vida atrás. O cinzento
significava que era das Forças Especiais: este homem era um RIP mas não usava o Scream. A
RIP mantinha limpos os seus oficiais superiores e as Forças Especiais.
O homem olhou o PerComm que tinha na mão enluvada a negro, espreitou de cima para
Trelayne e sorriu.
— Olá, capitão Trelayne, — disse suavemente, como se falasse com uma criança.
Trelayne engoliu em seco. Tremia incontrolavelmente e percebeu que estava assim desde que
reconhecera o uniforme.
— O meu nome não é Trelayne.
— Chamo-me Weitz, — disse o homem. O PerComm desapareceu dentro da capa. — E a
mostra de sangue que lhe tirei confirma que você é Jason Lewiston Trelayne, ex-capitão e Chefe
de Ala das Forças de Recolocação de Povos Indígenas da Entidade. Condenado à revelia por
traição há três anos, a 5 de Dezembro de 2056. Dado como morto no raid da MCE à base
rebelde em Darcon III, a 26 de Agosto de 2057.
Trelayne lambeu os beiços saboreando o próprio medo.
— Você está a monte, Trelayne. — A voz de Weitz era suave. — Ou estaria, se a Entidade
soubesse que você está vivo.
O Scream em Trelayne transformou a ameaça das palavras num entusiasmante arrepio de
espinha. Trelayne soltou um risinho.
Weitz suspirou.
— Nunca vi um Screamer vivo após três anos depois de sair da RIP. Normalmente morrem de
suicídio. Por outro lado, a maioria também não tem a sua fonte privativa, não é assim?

Nova – ezine de FC e Fantasia 43 Novembro – 2008


O que as palavras implicavam penetrou através das paredes mentais do Scream em Trelayne.
Weitz era realmente perigoso — para ele e para os que no circo dependiam dele. Para ela.
Trelayne esforçou-se para ouvir as palavras do homem.
— … boa escolha, — dizia Weitz. — Não é um sítio que interesse à Entidade agora. Os
Rippers nunca aparecem por aqui…— sorriu Weitz, — … a não ser que tenham problemas na
nave. Eu estava na cidade a seguir a esta, à espera que as reparações acabassem quando ouvi
falar de um tumulto num circo de Indis.
Indis — Povos Indígenas. Calão dos Rippers para os alienígenas.
Weitz levantou-se.
— Capitão, você tem um par de Anjos de criação, e eu preciso deles. — Empurrou a porta
da cela e saiu, deixando-a aberta. — Tratei da sua libertação, capitão. Considere-se livre. Não é
que possa ir longe. Voltaremos a falar. — E olhando para trás, onde Trelayne tremia deitado,
Weitz abanou a cabeça. — Deus meu, Trelayne; você era para mim um herói.
Trelayne deixou-se cair no chão, sorrindo enquanto o cheiro a terra e a urina seca lhe invadia
a garganta.
— Já fui muitas coisas, — disse, tanto para ele como para Weitz.
Weitz abanou a cabeça de novo.
— Falaremos em breve, capitão. — Virou-se e saiu da cabana.
*
Pense na resposta emocional humana como a função de uma onda sinusoidal. Picos e depressões. Os picos
representam prazer, as depressões, dor. Quanto maior a alegria, mais alto o pico; quanto maior a dor, mais
baixa a depressão.
Imagine uma droga que agarra nas depressões e as vira ao contrário, as torna em picos. Você passa a reagir a
um acontecimento não por causa do prazer ou dor que lhe são inerentes, mas apenas mediante a intensidade da
emoção criada. A dor torna-se prazer, a tristeza dá-lhe alegria, o horror proporciona-lhe êxtase.
Agora dê essa droga a alguém que tem de desempenhar uma tarefa desagradável. Não. Pior que isso. Um
acto imoral. Pior ainda. Um acto hediondo, brutal e terrivelmente arrepiante. Dê-a a um soldado. Diga-lhe para
matar. Não no contexto historicamente aceitável de matar que é uma guerra, mas integrando-o numa estratégia
sistematicamente comercial — planeamento, calendarização, orçamentação — de puro xenocídio.
Eles irão matar. E gostarão imenso disso.
Bem-vindos ao mundo do Scream.
– Extraído de uma infobomba de propaganda lançada sobre o ComCon Fandor IV por forças rebeldes, a 5
de Outubro de 2056 DC. Atribuído ao capitão Jason L. Trelayne durante o seu julgamento à revelia pelo crime
de traição.
*

Nova – ezine de FC e Fantasia 44 Novembro – 2008


Feran pensava que o espectáculo desta noite fora o melhor desde que a Maravilhosa Ta’lona
morrera, cinco dias antes. Por detrás das cortinas vermelhas que ocultavam a entrada dos
artistas, o raposinho observou os dois Anjos, Philomela e Procne, a mergulhar do cimo da
cúpula e rasando a multidão de homens-pessoas. Recordando o maravilhoso fogacho que o
alienígena fizera ao arder, Feran lembrou-se do capitão a explicar-lhe o porquê daquela noite ter
sido má. O capitão fora forçado a dar demasiada coisa-poderosa pelos homens-pessoas
queimados, bem como outras coisas que Feran não era capaz de compreender.
Os Anjos terminaram um complexo mergulho em espiral, unindo as trajectórias. Juntando os
braços sobre a arena principal, terminaram o número com um rodopio tão estonteante como o
barrete que o capitão lhe fizera. Os Anjos fizeram uma vénia aos aplausos da multidão, abrindo
e fechando as diáfanas asas, de modo a que os holofotes lhes fizessem brilhar as cores.
Feran bateu palmas com as mãos peludas, da forma que Mojo lhe ensinara, ao mesmo tempo
que fechou as abas das orelhas para tapar o doloroso ruído que os homens-pessoas faziam.
Assim que os artistas se perfilaram para o desfile de saída, no centro do ringue, Feran correu
para o seu lugar atrás dos Cachorros-de-Pedra. Guppert, o Forte, levantou-o gentilmente,
colocando-o nas costas lisas e cinzentas da besta de sílica mais próxima.
— Bom espectáculo, pequenino! — troou Guppert. A sua forma atarracada abalançou-se ao
lado de Feran. Guppert gostava de Lá-Longe porque o chão não o agarrava tanto como o do
seu planeta, Mendlos. — Claro que agora, Guppert nunca voltará a casa, — dissera uma vez a
Feran, as suas cores a escurecerem indicando tristeza. — Eu estar fora do planeta há demasiado
tempo. Mendlos esmagaria Guppert, como Cachorro-de-Pedra a pisar Feran. Mas com soldados
da Terra por lá, com os seus fatos-máquina, agora Mendlos já não ser casa de qualquer forma.
Acenando à multidão, os artistas desapareceram um por um por detrás das cortinas
vermelhas. Feran saltou do Cachorro-de-Pedra, gritou um adeus a Guppert, e saiu a correr à
procura de Philomela. Fora da cúpula dos espectáculos, farejou o ar fresco da noite buscando-
lhe o rasto; encontrou-o, virou-se a correr e embateu no Cortador.
— Eh lá, ó vermelhito! Qual é a pressa? — O homem alto e magro franziu o sobrolho para
Feran como um louva-a-deus zangado. Era o Cortador, o curandeiro do circo. — Ajudar-nos a
morrer mais facilmente, é o que é, — dissera ele ao apresentar-se quando Feran lá chegara.
— Procuro a Rainha-Pássaro, Cortador, — respondeu Feran.
Com um suspiro, o Cortador apontou com o polegar para o grupo de pequenos módulos
onde os artistas viviam. Feran via a zona como um esconderijo.
— Não o deixes consumir muito, ouviste?
Feran acenou com a cabeça e saiu a correr de novo, até que uma voz como vento a passar
por árvores de cristal o fez parar.
Nova – ezine de FC e Fantasia 45 Novembro – 2008
— Estiveste bem esta noite, orelhudo.
Feran voltou-se. Philomela sorria para ele, cabelo branco e pele clara, alta e magra como uma
mulher da Terra num espelho de feira, esticada até parecer alienígena. Mesmo a andar, ela fazia
Feran pensar num bando de pássaros em fuga. Philomela era linda. O capitão dissera-lho muitas
vezes. Com toda a probabilidade, di-lo-ia outra vez esta noite, depois de Feran lhe dar o pó dela
para cheirar.
— Obrigado, Rainha-Pássaro, — respondeu Feran fazendo uma vénia com um trejeito de
mão da maneira que o capitão lhe ensinara. Philomela riu-se, e Feran arreganhou os dentes de
prazer. Fizera a linda senhora pássaro rir! O capitão ficaria contente.
Procne saiu e pôs-se ao lado de Philomela, dedos aracnídeos passando-lhe em volta da fina
cintura.
— Feran, onde vais agora? O Mojo ainda tem recados para fazeres? — Parecia-se muito com
ela; mais alto e pesado mas, mesmo assim, com as feições delicadas, quase femininas. A bolsa
estomacal de pele fazia ondas, principalmente onde a prole se mexia.
— Ele vai ao módulo do capitão, — disse Philomela. — Costumam falar dos tempos em que
o capitão andava nas naves. Não é, Feran?
Feran acenou com a cabeça. As pálpebras de Procne deslizaram dos lados, deixando apenas
uma fenda vertical
— Dos tempos em que essas naves voavam sobre os nossos lares, queres tu dizer; e do teu
também, Feran. — Procne deu uma volta e saiu bruscamente, de asas bem encostadas às costas.
Feran ficou a vê-lo ir. Virou-se para Philomela.
— Fiz mal, Rainha-Pássaro?
Philomela abriu e fechou as asas.
— Não pequenino, não fizeste. O meu parceiro lembra-se de demasiadas coisas, e também se
esquece de muitas outras. — Fez uma pausa. — Assim como o capitão. — Acariciou o pêlo de
Feran onde este era vermelho e fofo, entre as largas orelhas, e deu-lhe uma pequena bolsa. —
Feran, não deixes o capitão cheirar muito do meu pó esta noite. Fá-lo ir para a cama cedo. Ele
parece… cansado.
Acenando, Feran pegou na bolsa. E resolveu não contar ao capitão a cara que ela fez
enquanto se afastava.
*
»»»»»»»»»»»»»Entidade Combinada Corporativa, SA.«««««««««««««««

Requisição para Projecto de Pesquisa


Data da pesquisa: 2 de Julho de 2059

Nova – ezine de FC e Fantasia 46 Novembro – 2008


Requisitante: David R. Weitz, Major das Forças Especiais RIP
Critérios da Pesquisa:
Planeta-Projecto: Todos Divisão: PharmaCorps
Produto: Scream Contexto: Operação Externa / Pós-Imp
Nível de Autorização Necessário: AAA Sua Autorização: AAA

»»»»»»»»»Requisição Deferida. Resultados da pesquisa.««««««««««

O Scream mimetiza as capacidades de várias classes de substâncias psicotrópicas, incluindo


estimulantes psicomotores, antidepressivos e analgésicos de tipo narcótico. A sua acção recai
sobre ambos os neurotransmissores de estimulação e inibição, mas evita efeitos alucinogéneos
através da manutenção de um equilíbrio entre neurotransmissores. O Scream aumenta a
capacidade sensorial e a velocidade das reacções musculares, assim como diminui a resposta
neurológica à dor. Interage com todos os três receptores de opiáceos, induzindo um estado de
euforia intensa sem tonturas ou sonolência.
O estado de adição a nível fisiológico é alcançado após a ingestão de quatro a seis doses, nas
quantidades especificadas na Circular Externa 2.21.7.1. Os sujeitos sob os efeitos exibem uma
baixa capacidade para resistir em situações violentas. Efeitos secundários benignos para
operações externas incluem diminuição de fadiga, atraso nos ritmos circadianos de sono, e
melhoramento de capacidades mentais.
Entre os efeitos secundários negativos contam-se um descontrolo das tendências sádicas ou
masoquistas, tais como a automutilação ou ataques violentos sobre soldados da mesma unidade.
Consequentemente, o Scream não é administrado até que a disciplina militar e a obediência
programada sejam completamente implementadas durante o tempo de recruta. Paranóia
psicótica e depressão com exibição de tendências suicidas, são condições normais que surgem
com o consumo prolongado da substância. O desmame caracteriza-se por alucinações, estado
de delírio e contracções, terminando em embolias cerebrais ou ataques cardíacos.
Continuam as tentativas para sintetizar artificialmente a substância, mas por enquanto a única
forma de a obtermos é por extracção directa das fêmeas dos humanóides dominantes de Lania
II, Xeno sapiens lania, var. angelus (vernáculo: Anjos do Scream). O líquido produzido cristaliza-se
formando um pó. Visto que a substância está intimamente ligada ao ciclo reprodutivo (ver
Xenobiologia: Lania: Sujeitos: 1275), para ser mantida, a produção requer a inventariação de
casais férteis com ninhadas temporalmente espaçadas de forma regular, num —

***Recepção de pedido para Transferência de Ficheiro***


Ficheiro de Xenobiologia: Lania: Sujeitos: 1275
Nova – ezine de FC e Fantasia 47 Novembro – 2008
Uma fêmea adulta produz de forma contínua a substância nas
glândulas mamárias, embora a quantidade aumente durante o ciclo
reprodutivo. A copulação sexuada ocorre no princípio e no fim
do ciclo. A primeira cópula emprenha a fêmea. A ninhada
desenvolve-se dentro dela até atingir, no momento do nascimento
trinta semanas depois, a forma que o estudo original de
Teplosky designa por «estado larval», altura em que é
transferida para a bolsa marsupial do macho através de
orifícios na parede abdominal. Durante as 19 semanas seguintes,
a ninhada alimenta-se do macho, que ingere grandes quantidades
de Scream produzido pela fêmea. A proximidade da saída da prole
faz com que o macho inicie a última cópula —
*
Trelayne está deitado no seu módulo-de-dormir no circo, aguardando Feran e a dose de
Scream que o raposinho lhe trazia todas as noites. O encontro com Weitz rebentara com a
barragem que mantinha longe o seu passado, inundando-o de memórias. Fechou os olhos, o
rosto molhado por deliciosas lágrimas. Apesar de todos os seus sonhos serem pesadelos, ele não
os temia. O horror era agora apenas mais uma forma de ter prazer. Ao menos o acto de dormir
libertava-o da tirania da decisão.
Vinte anos de novo. A minha primeira missão. Recordo-me… recordo? Era capaz de vender a alma para
esquecer, se é que a alma continua minha para a negociar.
Corpos a cair de encontro a um céu cinzento-neutro…
Os meios de transporte da RIP em Fandor IV eram umas enormes esferas, achatadas e mais
largas no meio que nas pontas. Trelayne e quase cem outros Rippers ocupavam os assentos da
fuselagem, dispostos em linha pelo perímetro do corpo central e virados para dentro, com os
oficiais mais perto do cockpit. Em frente deles, cerca de 100 nativos de Fandor estavam
agachados junto ao chão de metal, de olhos cabisbaixos mas a correrem nervosos por todo o
compartimento e por cima dos seus captores. Os adultos tinham cerca de metro e meio de
altura e eram humanóides, mas a lisa pelagem avermelhada dos rostos, os focinhos e orelhas
pontiagudas, davam-lhes um aspecto feroz. As crianças em particular lembravam Trelayne de
um peluche que ele tivera em miúdo.
Recém-saído da recruta RIP, esta era para ser a sua primeira missão. Estes Fandorianos
provinham de uma aldeia localizada sobre ricos depósitos de minério, em breve a serem
reclamados pela Divisão de Minas da Entidade. Estavam ali para serem «realojados» numa ilha
junto à costa ocidental. Trelayne juntou as aspas em reacção às suspeitas que nutria, alimentadas

Nova – ezine de FC e Fantasia 48 Novembro – 2008


pelas piadas que vinha ouvindo dos Rippers veteranos. Também se lembrava de quando chegara
a Fandor, olhar para o oceano durante a aproximação à base RIP na costa oeste.
Não havia qualquer ilha junto à costa.
Os outros Rippers mexiam-se nervosamente nos assentos, à espera da primeira dose do dia. O
sistema de apoio de vida dos seus fatos injectava directamente o Scream na circulação sanguínea,
assim que o computador embutido recebia o comando, transmitido pelo líder da unidade RIP.
Quem quisesse o Scream, punha o fato e obedecia às ordens. E deus sabe o quanto eles queriam
o Scream.
Aquela unidade estava encharcada em Scream desde o fim da recruta. Trelayne sabia que
estava viciado. Apenas não sabia porquê. Também reparara no facto de ninguém na sua unidade
ter família. Ninguém lhes sentiria a falta. O que era outra razão para obedeceram às ordens.
A vinte minutos da costa, o major desapertou o arnês de ejecção e fez um sinal de cabeça
para o capitão à sua direita. Todos os Rippers observaram o capitão a carregar num botão do
teclado de pulso.
O Scream veio como a memória de uma picada de ferida velha, como um amigo que não se
via há anos, que aparecia de novo e que nos fazia perguntarmo-nos porque tínhamos sentido
falta dele.
A voz do capitão ladrou-lhes nos capacetes, ordenando que desapertassem os arneses.
Trelayne levantou-se ao mesmo tempo que os outros Rippers, a vareta StAB carregada e pronta,
o Scream dentro dele a tornar o seu crescente horror em antecipação de êxtase. Os Fandorianos
juntaram-se mais perto uns dos outros no centro do aparelho.
O capitão premiu outro botão. Trelayne sentiu o chão a tremer debaixo das botas, enquanto
a escotilha central da zona de embarque se abria. Os Fandorianos levantaram-se logo, agarrando
nas crias e afastando-se do buraco a abrir, apenas para dar de caras com uma parede de Rippers
empunhando varetas StAB.
Alguns dos Fandorianos optaram por fugir. Alguns foram empurrados pelos seus no pânico.
Outros caíram sobre as varetas ou morreram protegendo as crias.
Trelayne puxou um raposinho, com não mais de um ano, de debaixo de uma fêmea morta.
Ficou ali, com a criança nos braços e à espera da sua vez, enquanto os Rippers em frente dele
erguiam e empurravam os corpos que restavam pela escotilha. Chegando à beira, Trelayne
afastou o raposinho do peito e segurou-o sobre o vazio. A cria não se mexeu nem chorou,
apenas o fitando acusadoramente. Trelayne largou-a e ajoelhou-se para ver melhor.
Sentiu um vento salgado, ríspido e frio, a enfiar-se dentro do capacete. Ficou a ver a queda
do bicho, até este mergulhar no mar cinzento e agitado, 30 metros mais abaixo. A maior parte
dos corpos já fora engolido pelas ondas. O raposinho desapareceu com eles.

Nova – ezine de FC e Fantasia 49 Novembro – 2008


Uma náusea que nem o Scream foi capaz de evitar tomou conta de Trelayne. Afastando-se da
beira, levantou violentamente a viseira para conseguir respirar. Ao lado, um Ripper voltou-se
para ele e, por um breve instante, Trelayne viu o seu próprio reflexo no visor espelhado do
homem. A imagem ficou-lhe gravada na memória enquanto lutava para reconciliar o terror que
o acometia com a máscara sorridente do seu próprio rosto…
Sonhando ainda… caindo ainda… apaixonando-se…
Trelayne alcançou o posto de capitão num ano, o mais alto a que podiam chegar os viciados
em Scream no seio das RIP. Não sentira orgulho algum nisso. Quando o Scream começava a
perder o efeito, a culpa vinha, negra e sem fundo. Mas agora estava completamente viciado. Um
Screamer sabia que o desmame significava semanas de agonia, e sem o filtro que era o Scream,
seguir-se-ia a morte. A Entidade era a única fonte. Trelayne fazia o que lhe ordenavam.
Os Rippers depressa ficavam queimados nos mundos-projecto, por isso a Entidade tirava-os
das missões de realojamento a cada seis meses, para campanhas de quatro semanas em mundos
já «processados». O primeiro «trabalho» de Trelayne após a promoção foi em Lania, o planeta-
natal dos Anjos, e consistira em arranjar o transporte de pares de criação entre Lania e mundos-
projecto com unidades RIP. A Entidade descobrira que num planeta com Anjos as
preocupações com o fornecimento de Scream nesse planeta podiam ser dispensadas.
Os veteranos RIP diziam que sexo com um Anjo era a «melhor das mocas». Mas ao chegar a
Lania, Trelayne achara-os demasiado estranhos, demasiado magros, quase espectrais. Chegou à
conclusão de que a reputação deles devia-se mais às doses puras de Scream ingeridas durante o
sexo do que à beleza etérea.
Depois viu ela.
Ela era uma entre a centena de Anjos que estavam a ser enfiados no vaivém de carga que iria
até à nave interestelar em órbita. Atabalhoadamente, os Anjos iam passando à frente de
Trelayne, de olhos postos no chão. Começara a virar-se para outro lado quando a viu: andava
com a cabeça bem erguida, fitando intensamente os guardas. Ao passar por ele virou-se. Os seus
olhos encontraram-se.
Trelayne ordenou que a retirassem daquele carregamento. Foi assim que se conheceram.
Como captor. Depois como libertador. E depois como amante.
O nome terrestre que ela adoptara fora Philomela. O nome angélico não conseguia ser
pronunciado por uma boca humana. Ela dera-lhe a alegria e a dor. Ele nunca teve a certeza do
que ele lhe dava. Ela entregara-se voluntariamente, e o prazer que sentia ao fazerem amor
parecia tão sincero que, por vezes, ele deixava-se iludir — iludia-se pensando que ela nesses
momentos se agarrava a ele e não a uma desesperada esperança de liberdade. Que ela não o
odiava pelo que as RIP tinham feito ao seu povo.
Nova – ezine de FC e Fantasia 50 Novembro – 2008
Que ela o amava.
Todavia, o Scream dava cabo desses momentos. Apesar de já não estar sob o efeito
continuado das doses de combate, ainda precisava de algumas por causa da dependência física.
Em doses pequenas, a depressão cobria a sua vida como uma névoa cinzenta. Seria possível que
ela o amasse quando ele próprio duvidava do amor por ela? Porque é que se sentia atraído? Pelo
sexo? Por ser a sua fonte privada de Scream? Para se redimir ao salvar uma das suas vítimas? E
entre eles sempre existia um outro abismo inultrapassável: eram ambos de espécies diferentes e
o cruzamento seria sempre impossível.
Soube das notícias numa dessas raras tardes em que estavam ambos deitados no seu
alojamento. Atrás deles, a unidade PerComm pendurada na parede começou a vibrar como um
insecto chateado. Agarrou nela e leu a mensagem do Cortador, o médico da sua unidade.
Ela observou-o enquanto ele lia.
— Alguma coisa errada, Jase?
Ele habituara-se a esperar a sua simpatia. Se ela era capaz de ler as suas humanas expressões
ou sentir o seu estado de espírito, não o sabia. Deitou a unidade para o lado como se fosse uma
coisa má e levou uma das mãos ao rosto.
— Um dos meus homens, um amigo. Mojo. Caiu.
— Ele está–
— Está vivo. Sem ferimentos de maior. — Como se isso importasse.
— Achas que tentou suicidar-se?
— Não, — respondeu, apesar da droga dentro dele gritar que sim.
— Muitos fazem…
— Não! O Mojo não. — Mas sabia que ela tinha razão. O suicídio era comum entre os
Screamers e «juntar-se aos Caídos» era um dos métodos favoritos — um mergulho sem retorno.
A Entidade punia brutalmente quaisquer sobreviventes. Os Screamers eram facilmente
substituídos, mas um jacto LASh a menos podia cortar a margem de lucro de um mundo-
projecto numa quantia considerável.
— E agora virá o Julgamento que o vosso povo costuma fazer? — perguntou ela.
— Julgamento militar. Em duas semanas. — Se decidissem pela culpa de Mojo, expulsá-lo-
iam da RIP. Sem fornecimento de Scream. Seria melhor ter morrido no acidente, pensou.
Levantou-se da cama e começou a vestir-se. — Tenho de sair de Lania, regressar à base. Tentar
ajudá-lo.
— Vão decidir contra ele. Não consegues alterar isso.
— Eu sei. Mas tenho de tentar. Ele não tem mais ninguém.
Ela afastou-se.
Nova – ezine de FC e Fantasia 51 Novembro – 2008
— Temos tão pouco tempo juntos.
Tremia, e Trelayne apercebeu-se de que estava a chorar. Não compreendeu.
— Voltarei em breve. Será melhor então.
Ela abanou a cabeça e virou os olhos para cima, para o rosto dele.
— Queria dizer que nos resta pouco tempo para estar juntos. Está na minha altura.
Ficou parado a olhar para ela.
— Que queres dizer com isso?
— Tenho de produzir uma ninhada. — Disse ela afastando-se de novo.
— Queres-me dizer que vais ter um companheiro. Um da tua espécie.
— O nome dele é Procne, — disse, ainda evitando-lhe o olhar.
Sem saber o que fazer ou dizer, Trelayne continuou a vestir-se.
Ela virou-se para ele e disse calmamente, — Amo-te.
Parou de se vestir. Ela esperou. Ele nada disse. Chorando, ela deitou-se. Ele engoliu em seco
e começou a dar forma às palavras na sua cabeça, a abrir a boca para lhe dizer que também a
amava, quando ela falou de novo.
— Que vai ser de mim? — Perguntou.
Todas as dúvidas que tivera sobre ela afogaram-lhe as palavras ainda na boca. Para ela, ele era
apenas um meio para fugir. Não o amava. Ela ia dar-se a um dos dela. Era alienígena. Os Anjos
odiavam as RIP pelo que estas tinham feito. Ela odiava isso.
Acabou de vestir o casaco e preparou-se para ir embora…
O julgamento. Eu tentei, Mojo — mas nada nos pode salvar quando caímos, e nós começámos a cair logo
que no-lo puseram no sangue…
No dia a seguir ao julgamento de Mojo, Trelayne entrou no módulo da RIP. O Cortador e
outros dois Rippers sentaram-se nas tarimbas conversíveis observando Mojo a guardar os poucos
pertences no cilindro-mochila. Mojo tinha vestidas as velhas calças de civil, agora um número
abaixo do que deviam. Ainda tinha um Medistim colocado no braço e coxeava.
Os outros puseram-se imediatamente em sentido quando viram o visitante. O Cortador
limitou-se a dar-lhe um aceno de cabeça. Trelayne retribuiu a continência e indicou-lhes a porta
de saída. Após umas quantas palavras de apoio e palmadinhas nas costas, saíram todos em fila,
deixando Trelayne e Mojo sozinhos.
Mojo sentou-se na camarata.
— Obrigado capitão. Foi o raio de uma bela tentativa.
Trelayne sentou-se forçando um sorriso.
— Esqueceste que perdemos?
Mojo encolheu os ombros.
Nova – ezine de FC e Fantasia 52 Novembro – 2008
— Não tínhamos qualquer hipótese. Você sabe disso. Nenhum de nós a tem. É apenas uma
questão de tempo. Se não é o Scream a apanhar-nos, são eles. Não há saída para gente como nós.
Trelayne observou o rosto largo de Mojo. Tenho de tentar, pensou. Não teremos outra
hipótese.
— Talvez haja uma.
Semicerrando os olhos, Mojo virou-se para a porta e regressou o olhar. Fez um ar soturno.
— Estou consigo, capitão. Onde quer que seja e para o que for.
Trelayne abanou a cabeça.
— Vão matar-nos se formos apanhados.
— Eu já sou um homem morto. Somos todos.
Trelayne suspirou e começou a falar…
E então os Caídos sonharam em erguer-se de novo, não é Mojo? Que loucos fomos. Mas demos-lhes água
pelas barbas, foi ou não foi?
Trelayne regressou a Lania. Na sua ausência, Philomela ficou com Procne como parceiro.
Recusou-se a ver Trelayne. Este meteu-a e a Procne no seguinte carregamento de Anjos para os
mundos-projecto e a ele próprio como capitão da nave.
Não a viu até ao primeiro salto da nave. Philomela foi chamada à cabina de comando para
ser informada do planeta que lhe fora designado, a ela e ao seu companheiro.
Assim que entrou e o viu, empertigou-se.
— Tu.
Ele assentiu e aguardou.
— Fazer-nos escravos para nos criarem e ordenharem como animais não era suficiente?
Tinhas de estar aqui para ver, não é Jason? — Ela olhou em volta. — Onde está o capitão?
— Eu sou o capitão nesta viagem.
Pareceu confusa.
— Mas tu nunca foste numa destas…
Ele suspirou.
— Senta-te, por favor. Tenho muito para contar…
Porque arrisquei eu tudo para a salvar? Amor? Culpa? Como penitência? Pelo Scream dela? Por uma
inútil esperança de que ela um dia voltasse para mim? Ou foi porque, enquanto caía, eu estava disposto a
agarrar-me ao que quer que fosse, mesmo que levasse comigo os que eu amava?
Do convés de observação da nave, Trelayne e Philomela viram um vaivém a partir, levando
um «carregamento» de vinte pares de Anjos para o mundo-projecto lá em baixo.
— Sabes porque escolhi o meu nome terráqueo? — perguntou ela.

Nova – ezine de FC e Fantasia 53 Novembro – 2008


A voz era lisa, morta, mas ele ouviu a dor que cada um destes mundos lhe trazia, à medida
que cada vez mais gente do seu povo era levada enquanto ela permanecia segura, protegida.
— Não. Conta-me, — disse ele.
— Numa lenda do teu planeta, Philomela foi uma rapariga a quem os deuses transformaram
num rouxinol. Gostei da imagem, do ser escolhida pelos deuses, elevada aos céus. Só mais tarde
vim a descobrir que o rouxinol é também um símbolo para a morte.
Trelayne baixou a cabeça.
— Phi, não há nada que—
— Não, mas deixa-me ao menos um pouco de amargura. E de culpa.
Culpada por ter sido poupada. Por ele. Ela e Procne, poupados só porque um viciado,
xenocida, e em breve traidor, precisava da sua fonte de droga perto. Ele parara de tentar
examinar os seus motivos para além disso. O Scream seria cruel para com a vozinha interior a
falar de um último vestígio de honra ou nobres intenções.
— A minha irmã está naquele vaivém. — Disse Philomela calmamente.
Trelayne nada disse, pois nada havia a dizer. Ficaram a ver o vaivém caindo para o planeta lá
em baixo…
Em cada planeta, durante aquela viagem, juntámos a nós os párias, os indesejados, os resquícios de uma
dúzia de espécies, mais os Caídos. E então, repentinamente, já não era possível voltar atrás…
O primeiro-oficial de Trelayne, uma jovem tenente chamada Glandis, confrontou-o na ponte
de comando. Desta vez não ia desistir.
— Capitão, tenho de novamente dar a conhecer as minhas preocupações acerca das
contínuas irregularidades em relação ao seu comando desta missão.
Trelayne deu uma vista de olhos ao ecrã junto do seu assento. Mojo e onze outros ex-Rippers,
estavam a desembarcar no hangar da nave. Em dois minutos estariam na ponte. Digitou um
comando, desactivando todos os alarmes e comunicações internas. Voltou-se para Glandis.
— Irregularidades?
— Os carregamentos de Indis que adquirimos em cada uma das nossas paragens.
— Essas pessoas estão aqui para serem transportadas para um dos centros de investigação e
desenvolvimento da Entidade no planeta Terra, — respondeu Trelayne.
Glandis resfolegou, céptica.
— Que tipo de pesquisa é que a Entidade poderia querer fazer com—, deu uma vista de
olhos ao PerComm, —uma cobaia de Mendlos?
— Adaptação fisiológica a alta gravidade, — respondeu Trelayne.
— E uma cria Fandorae? E um ovo viperino de Fanarucci?

Nova – ezine de FC e Fantasia 54 Novembro – 2008


— Design biotecnológico de receptores aurais, e desenvolvimento de neurovenenos
mutagénicos. — Só mais um minuto, pensou ele.
Glandis hesitou, alguma da confiança a esvair-se do rosto.
— O meu capitão também protegeu um par específico de Anjos de criação, por motivos que
ainda não me foram tornados claros.
— Também eles estão escalonados para investigação pela Entidade. — Trelayne levantou-se.
Trinta segundos. — Sintetização de Scream.
— E esta última paragem? Não constava do plano de voo.
— Últimas ordens do comando das Forças RIP. — Quinze segundos.
— Eu não fui informada.
— Acaba de o ser.
Glandis corou.
— E que propósito irão servir, a dúzia de desgraçados ex-membros das Forças RIP?
Agora, pensou Trelayne. A porta de entrada para a ponte de comando deslizou, abrindo-se.
Mojo e outros quatro ex-Rippers entraram de supetão, espingardas Tanzer carregadas e
apontadas a Glandis e ao resto da tripulação na ponte. Glandis virou-se para Trelayne de boca
aberta e estacou.
Trelayne tinha a sua própria arma apontada para ela.
— Receio bem que o propósito deles seja o de substituir a tripulação desta nave.
E foi assim que os Caídos se ergueram de novo, para escalar um precipício do qual não podiam voltar
atrás… e cada novo topo a que assomávamos a queda final tornava-se ainda mais alta.
*
Após deixar a Rainha-Pássaro, Feran correu para lá dos tubos encerrados dos que ladravam,
dos jogos de azar, e dos módulos dos artistas. O raposito movia-se facilmente entre as cordas,
os dejectos e o equipamento, o seu trilho claro diante dos olhos, apesar da luz difusa emanada
das tochas trémulas e do ocasional globo-fluorescente flutuante.
O espectáculo agora usava menos globos–fluorescentes do que quando Feran se lhes juntara.
O capitão dizia que os globos eram demasiado caros agora. Feran não se importava. Precisava
de pouca luz para ver e gostava do cheiro das tochas, dos estalidos que faziam.
Virando a esquina, Feran estacou. O Homem-Fuinha estava à entrada do módulo do capitão.
O capitão dissera que o nome do homem era Weitz, mas a Feran ele fazia lembrar os animais
que costumava caçar no bosque à volta do circo. A porta abriu-se. O Homem-Fuinha entrou.
Feran rastejou até à janela aberta, no lado do módulo. Conseguia ouvir vozes. O seu focinho
estremeceu. As orelhas empertigaram-se, abrindo-se todas, ajustando-se até o som ficar
suficientemente nítido.

Nova – ezine de FC e Fantasia 55 Novembro – 2008


*
Trelayne estava deitado na cama do módulo a tremer de desmame. Feran atrasara-se a trazer-
lhe a dose da noite. Displicentemente sentado numa cadeira, Weitz observava-o. Haviam
passado cinco dias desde a conversa na prisão.
— Onde tens estado, Weitz? — Disse Trelayne ofegante.
— Tive de preparar umas coisas. Precisas de uma dose, não é?
— Está a chegar. — Murmurou Trelayne. — Que queres?
Weitz encolheu os ombros.
— Já o disse antes. Os Anjos.
— Mas não para os devolver à Entidade, ou já o terias feito por esta altura. — Disse
Trelayne. Porém, se Weitz queria os Anjos, porque é que simplesmente não os tomava à força?
Tinha homens e uma nave.
Weitz sorriu.
— Sabias que há rebeldes em Fandor IV?
— Rebeldes? Do que estás a falar? — Onde estaria Feran?
— Rebeldes ex-RIP como vocês, ou antes, como tu costumavas ser.
— Como eu? Deus! Então tenho pena dos rebeldes em Fandor IV.
Weitz debruçou-se na cadeira.
— Eu sou um deles.
Trelayne riu-se.
— Tu és um RIP das Forças Especiais.
— Dou apoio por dentro. Forneço-lhes o Scream.
Trelayne ficou a olhar para Weitz. Este homem era bem mais perigoso do que parecera de
início.
— Conseguiu surpreender-me, major. Porque arriscaria você a vida por um bando de
rebeldes?
Weitz encolheu os ombros.
— Já disse que foste o meu herói. O homem que desafiou um Império. Eu também quero
fazer a minha parte.
Trelayne riu-se.
— Porque és um bom coração, sem dúvida.
Weitz corou.
— Não gosto de perder dinheiro. Apenas isso.
Aposto que sim, pensou Trelayne.
— Onde arranjas o Scream?

Nova – ezine de FC e Fantasia 56 Novembro – 2008


— Eu… consegui um pequeno contentor num armazém RIP, ao fazer uma auditoria para as
FE.
— Roubaste-o. Um contentor? Desde quando se pode acondicionar o Scream?
Weitz sorriu.
— Resultado de aturada investigação impulsionada pela tua fuga com os Anjos. Fizeste a
Entidade perceber o risco de se transportar pares de criação. Agora os Anjos são mantidos em
instalações seguras, tanto em Lania como em dois outros mundos, produzindo Scream que
depois é enviado com as forças RIP para os mundos-projecto. Os Anjos vivem e morrem sem
nunca sair das instalações onde nascem.
Trelayne teve um arrepio. O culpado era ele. Mas o Scream que tinha no sistema estava
demasiado em baixo para retirar prazer algum que fosse deste novo horror.
Ficaram em silêncio. Por fim, Weitz falou:
— Que aconteceu, Trelayne? Ao Grande Líder Rebelde? Ao único homem que fez frente à
Entidade? Como é que foi tudo para o inferno?
— Todos os screamers vivem no inferno. Estávamos a tentar sair dele.
— E saíram, num cruzador roubado à própria Entidade. E depois disso?
A tremer, Trelayne fez um esforço para se sentar. Onde estaria Feran?
— Demos um salto para um sistema que a Entidade rejeitara. Só com um planeta habitável.
Sem recursos que compensassem o custo da extracção.
— E montaram uma base de apoio para fazer guerrilha à Entidade.
— Não. Uma colónia. Uma casa para as espécies despojadas.
— Vocês atacaram mundos-projecto da Entidade, — disse Weitz.
— Mandámos mensagens. Nunca houve um assalto com meios físicos.
— As vossas infobombas inundaram os sistemas de comunicação de planetas inteiros.
— Tentámos que as pessoas soubessem o que Entidade estava a fazer. Quase conseguimos.
— Trelayne lutou contra os efeitos do desmame, tentando focar-se em Weitz. O homem parecia
ter medo de alguma coisa. Mas do quê?
— Pois sim. Custou-lhes triliões, encobrir tudo e expurgar os sistemas informáticos. Mas e
depois? Os relatórios terminam abruptamente.
— A Entidade ainda tem ficheiros sobre nós? — Isso agradou-lhe.
— Sobre ti, — corrigiu Weitz. — Tens direito a toda uma sequência de ficheiros. É preciso
uma autorização especial para os aceder. E então?
Trelayne ficou calado, lembrando-se do dia, lembrando-se da sua culpa.
— Fui descuidado. De alguma forma, eles conseguiram seguir-nos através de um dos saltos,
encontraram a colónia e em órbita irradiaram-na com Raios-T.
Nova – ezine de FC e Fantasia 57 Novembro – 2008
— Um planeta inteiro? Meu deus! — murmurou Weitz.
— Alguns de nós escaparam. — Mas não os filhos de Phi, a sua primeira ninhada, pensou
ele. Mais sentimento de culpa, apesar de ela nunca o ter recriminado.
— Num cruzador fortemente armado, com uma tripulação de ex-Rippers.
Trelayne olhou para Weitz. Então era isso. Mesmo através do desmame que tornava tudo
enevoado, soube estar ali a resposta: Weitz pensava que Trelayne ainda tinha um punhado de
ex-Rippers à mão, assassinos treinados com reflexos sobre-humanos e experiência de combate,
bem como uma fonte privada de Scream. Algo semelhante a esperança tentou abrir caminho por
entre o desespero negro do desmame. Weitz ia tentar negociar primeiro.
— E isto? — Weitz fez um gesto com a mão, abarcando o circo.
— Após perdermos a base, tivemos de continuar em movimento. Arranjei a história de um
circo de alienígenas para não termos problemas com os serviços de emigração nos mundos por
onde passávamos. Depois disso ficámos sem dinheiro e fizemo-lo a sério.
— E se alguém vos reconhecesse? Ou soubesse dos Anjos?
Trelayne teve dificuldade em falar:
— Evitámos os sítios que tivessem uma presença da Entidade, andámos fora das rotas de
salto principais. — Começou a tremer. — Para que queres Anjos se tens um contentor de
Scream?
— Não irá durar para sempre, e não posso contar em conseguir roubar mais.
Trelayne olhou para Weitz.
— Que propões, então?
Weitz sorriu.
— O que te faz pensar que não vou simplesmente levá-los?
— E passar por cima de uma equipa de ex-Rippers entupidos de Scream?
O sorriso desvaneceu-se. Weitz estudou Trelayne.
— Ok. Vamos lá rever a tua posição. Um: dei os códigos de sinalização da tua nave à defesa
espacial de Lá-Longe. Se fugirem serão apanhados.
Trelayne nada disse.
— Dois: se fores apanhado, os teus amigos Indis serão enviados de volta para os seus
respectivos mundos. E tu sabes o que isso significa.
Trelayne continuou calado, mas a pele gelou.
— Três: tu, Mojo e o médico serão executados por traição.
— Como já disse, que propões?
De novo, Weitz estudou Trelayne; por fim falou:

Nova – ezine de FC e Fantasia 58 Novembro – 2008


— Ambos os Anjos em troca do meu contentor de Scream – uma quantidade que durará uma
vida, para ti e para os teus homens. Eu retiro a ordem contra a vossa nave e volto-me para o
outro lado enquanto tu e o teu bando dão o salto. A tua vida prossegue, com Scream mas sem
Anjos.
A vida prosseguirá… se se pode chamar a isto vida. Aquela quantidade de Scream valia uma
fortuna. Mas não chegava nem aos pés do valor de um par de criação.
Então era isto. Trair o seu amor ou morrer. Que escolha tinha ele? Se recusasse, Weitz
entregá-los-ia à Entidade e todos morreriam. Se fugissem, seriam mortos ou capturados pela
esquadra planetária. Se desistisse dela e de Procne, ao menos os outros ficariam livres. Para além
disso, ela rejeitara-o, escolhendo um dos da sua espécie. Usara-o apenas para fugir, sempre o
usara. Era uma alienígena e odiava-o pelo que ele tinha feito à sua espécie.
Nunca o amara verdadeiramente.
Tudo o que se opunha eram os resquícios do seu amor por ela, e o fantasma da memória do
homem que em tempos fora.
*
Lá fora, Feran aguardou pela resposta do capitão ao Homem-Fuinha. Não sabia o que o
capitão iria fazer, mas tinha a certeza de que seria nobre e corajoso. Feran esperou pelo som do
capitão a dar um salto e a atacar o Homem-Fuinha, mandando-o ao chão. Porém quando o som
veio foi somente o da voz do capitão, pequena e rouca.
— Tudo bem, — foi a única coisa que ele disse.
— Estamos de acordo? — Era o Homem-Fuinha. Feran não ouviu a resposta. — Amanhã
de manhã então. — O Homem-Fuinha novamente. A porta abriu-se e Feran deu uma fugida
para baixo do módulo. O Homem-Fuinha saiu a sorrir. Feran já vira bebés de areia a sorrir
daquela maneira em Fandor, mesmo antes de cuspirem veneno para os olhos.
Enquanto via o homem indo embora, desaparecendo na escuridão, algo no interior de Feran
foi-se também desvanecendo. Ficou parado a olhar para as sombras por um longo tempo, até
que deu meia volta e entrou no módulo. O capitão estava deitado no seu lugar de dormir.
Pareceu não reparar em Feran. O raposito colocou a bolsa da Rainha-Pássaro sobre a mesa e
saiu sem dizer uma palavra. O capitão não chamou por ele.
Por quanto tempo Feran vagueou pelo campo, não o saberia dizer. Passado algum tempo,
acabou por encontrar o Cortador e Mojo, sentados à frente do fogo a arder num velho painel de
protecção tirado da nave.
— Viste o capitão, Feran? — Perguntou Mojo. Feran apenas acenou que sim.
— Deste-lhe a sua garrafinha? Está pronto para dormir? — Perguntou o Cortador. Feran
assentiu de novo enquanto Mojo franzia o sobrolho ao Cortador.

Nova – ezine de FC e Fantasia 59 Novembro – 2008


Ficaram em silêncio por um bocado.
— Dói quando se perde alguém que se ama? — Perguntou Feran, envergonhado com o
medo que transparecia na sua voz, um medo que ele sentia por Philomela.
O Cortador respondeu.
— Dói mais quando as perdemos devagar. Quando as vemos desaparecer pouco a pouco, até
nada mais haver que nos lembre delas.
Feran sabia que o Cortador estava a falar do capitão.
— Cala-te Cortador, — rosnou Mojo. — Não sabes de nada. Só um Screamer sabe aquilo
com que tem de viver. — Fez uma festa na cabeça Feran. — Não penses mais nisso, miúdo.
O Cortador abanou a cabeça mas não disse mais nada. Feran levantou-se e saiu devagar,
pondo-se a vaguear novamente pelo acampamento do circo. Todavia, uma resolução formou-se
no seu jovem espírito, pelo que quando deu por si no exterior do módulo dos Anjos,
interpretou tal como sendo um sinal de que o seu plano era puro.
A Rainha-Pássaro estava sozinha. Pouco falou enquanto Feran lhe contava a sua história,
apenas uma pergunta aqui e ali, quando as palavras que ele escolhia não eram suficientes. Ela
agradeceu-lhe e sentou-se em silêncio, os seus estranhos olhos olhando para lá da pequena
janela redonda do módulo.
Feran deixou o Anjo, sem saber se tinha feito bem ou mal, apercebendo-se porém que o seu
mundo era um lugar bem diferente do que tinha sido uma hora atrás.
*
***Resultados de Pesquisa (Continuação)***
Ficheiro de Xenobiologia: Lania: 1275
O libertar eminente de uma ninhada de crias amadurecidas leva o
Anjo macho a iniciar a cópula final. Este acto faz disparar a
produção por parte da fêmea de Scream em alta concentração. O
Scream é o único alimento que as crias podem ingerir quando
nascem e também serve para aliviar a agonia do macho depois da
ninhada rebentar dele. A fêmea tem de receber as crias nas
horas seguintes à cópula final, ou morrerá devido à elevada
dose de Scream no seu sangue, que as crias limpam do seu
sistema.
A vantagem evolucionária desta forma de reprodução parece vir
do aumento nas hipóteses de sobrevivência da ninhada, quando
carregada por um macho forte, e a presença assegurada de ambos
os progenitores no acto do nascimento. Apesar de Teplosky ter

Nova – ezine de FC e Fantasia 60 Novembro – 2008


encontrado analogias com os Thendotae de Thendos IV, pensamos
que…
*
Não tendo conseguido dormir, Feran levantou-se cedo no dia seguinte. Uma névoa gélida
pendurava-se no céu cinzento. Durante uma hora deambulou pelos arredores da grande cúpula,
sem saber como dizer ao capitão o que fizera e porquê. Parou. O capitão vinha na sua direcção,
com Mojo ao lado. Ambos traziam as suas velhas e longas capas negras, atiradas para trás de
modo a mostrarem as armas presas em cada perna. O metal das pistolas luzia azul e frio, como
os olhos do capitão.
Feran sentiu todos os medos da noite anterior a desaparecerem como nadadores de relva por
selva adentro. O capitão ia lutar. Venceria o Homem-Fuinha e tudo ficaria bem.
O Cortador saiu da cúpula quando o capitão e Mojo chegaram junto a Feran. O capitão
inclinou-se para fazer uma festa na cabeça de Feran e olhou vagamente para a cúpula.
— Preparado?
O Cortador acenou.
— Vê se o consegues pôr lá dentro.
Um grito chamou-lhes a atenção. Procne corria para eles, tropeçando com o peso da ninhada
dentro dele.
— Ela desapareceu! Ela desapareceu! — gritava. Caiu sem fôlego nos braços do Cortador.
Feran sentiu um frio por dentro.
A máquina falante no cinto do capitão soltou um apito. Ele levou-a ao rosto.
— É da Phi. Mas foi enviada ontem à noite. — Esperaram enquanto ele lia a mensagem.
Quando falou, a voz saiu-lhe arranhada, como quando tomava demasiado pó. — Entregou-se
ao Weitz. Sabe que não vou desistir dela e de Procne, que lutarei por ambos. Não quer que
nenhum de nós morra. — O capitão deixou o aparelho cair no chão. — Parece que ela conhece-
me melhor que eu, — murmurou…
— A nossa ninhada— começou a dizer Procne.
— Ela diz que prefere ver as crianças morrer que a viverem como escravas, mantidas apenas
para alimentar monstros que matam espécies inteiras.
— Não! A última cópula foi ontem à noite. A ninhada vem aí! — Procne colocou uma mão
fina sobre a bolsa. — A essência que os deve alimentar está a aumentar no sangue dela. Se ela
não estiver aqui quando eles saírem, morrerão. E se eles morrerem sem a limpar…
— Ela morrerá também, — terminou o capitão por ele. — Ela sabia disso.
Mojo franziu o rosto.

Nova – ezine de FC e Fantasia 61 Novembro – 2008


— Como sabia ela do Weitz? Só contaste a mim e ao Cortador, e apenas esta manhã. — O
capitão abanou a cabeça. O Cortador encolheu os ombros.
Feran sentiu como se estivesse fora do seu próprio corpo, a ver tudo mas sem tomar parte,
sem conseguir fazer alguma coisa. Bem, ele fizera algo, e isto era o resultado disso. Ouviu a sua
voz a dizer:
— Fui eu que lhe contei. — A voz parecia vir de outro lado e só quando todos se viraram
para ele é que percebeu que tinha sido ele a falar.
Fez-se silêncio. O capitão ajoelhou-se à sua frente, e todas as palavras que ele antes tentara
encontrar saíram para fora numa enxurrada. No fim, virou a cabeça de lado, expondo o
pescoço, oferecendo a sua vida ao capitão. Em vez disso, braços quentes rodearam-no e
apertaram-no fortemente. Feran sabia que isto era um «abraço» e achou-o estranhamente
reconfortante. O capitão sussurrou:
— Oh, Feran, — e Feran desatou a chorar.
— Bom, agora fazemos o quê? — grunhiu o Cortador enquanto o capitão se erguia.
Ficaram à espera. Por fim o capitão falou, a voz calma como quando contava uma história a
Feran.
— O mesmo plano, só com uma diferença. Precisamos de Procne connosco. — Virou-se
para o Anjo, e Feran sentiu instalar-se uma calmaria, como quando dois machos alfa combatiam.
— Tu e eu nunca nos demos lá muito bem. Sabíamos que, de alguma forma, ela precisava dos
dois. Nunca tiveste confiança em mim, nem me perdoaste. Não posso dizer que te levo a mal.
Bem, vou ter de te pedir que confies em mim agora. Nem que seja por saberes que eu nunca a
magoaria.
Procne ficou a olhar para o capitão durante várias batidas do coração de Feran, mas acabou
por dizer que sim. O capitão virou-se para o Cortador.
— Leva o Procne para dentro. Faz com que pareça estar de mãos atadas. — Depois dirigiu-
se a todos. — Ninguém faz nada até eu dar a ordem, e eu só a darei quando souber onde têm a
Phi. E lembrem-se: precisamos do Weitz vivo.
Murmurando algo inaudível, o Cortador puxou Feran para dentro da cúpula. Feran ainda
olhou para trás. O capitão e Mojo caminhavam para a entrada principal do acampamento,
envoltos nas suas longas capas, escondendo as armas e mantendo-se a seco da chuva que
começava a cair, forte e fria.
*
Dentro da cúpula, Feran viu Guppert junto a dois Cachorros-de-Pedra. Correu para eles,
contente por deixar o mal-humorado Cortador, mas parou de repente. Havia armas presas a um

Nova – ezine de FC e Fantasia 62 Novembro – 2008


dos lados das grandes bestas de sílica, do lado escondido da porta. Os Cachorros mantinham-se
deitados no chão, e o ombro de Guppert chegava ao cimo das costas deles.
Guppert sorriu e bateu com o punho gordo no lado liso da besta mais próxima.
— Guppert acha que os Cachorros dão uma boa cobertura. — Apontou para o chão. —
Aqui é para onde vens pequenino, quando Guppert chamar. — Depois balançou-se para o
outro lado dos Cachorros, onde estavam os baldes de água e as escovas. — Agora, vamos
atarefar-nos a não parecer perigosos. — Ele e Feran começaram a esfregar os Cachorros. O
Cortador ficou com Procne, entre eles e a entrada, as mãos do Anjo presas atrás.
Feran foi o primeiro a ouvi-los.
— Chegaram, — disse baixinho.
O Cortador aquiesceu em silêncio. Segundos depois, dois homens com uniformes das Forças
Especiais RIP entraram de armas em punho. Olharam em redor e um deles gritou para fora.
— Tudo normal. — O Homem-Fuinha entrou, seguido do capitão, Mojo e mais homens em
uniformes das FE. Feran contou-os, a esperança a esvanecer-se a cada um que entrava. Dez,
mais os dois primeiros e o Homem-Fuinha. Quatro carregavam uma mala metálica, com as
armas a tiracolo.
— Treze. Gaita, odeio o número treze. — Disse o Cortador entredentes ao deixar Procne
para ir até junto de um dos Cachorros. Ainda a esfregar, Guppert mudou-se para o lado oculto
da besta. Feran seguiu-o.
O Homem-Fuinha olhou em volta.
— Onde está o resto da tua tripulação?
O capitão encolheu os ombros.
— Desertaram, ou estão mortos.
O Homem-Fuinha ergueu uma sobrancelha e deu uma olhadela aos seus homens. O capitão
apontou para a mala.
— É a nossa mercadoria? — Perguntou, puxando para trás a cobertura, expondo um pacote
de Medistim. Pressionou o botão que estava do lado de cima. Feran soube que ele acabara de
tomar uma «dose». Mojo fez o mesmo.
O Homem-Fuinha franziu o cenho.
— Era para vir a ser.
O capitão sorriu.
— Mas reconsideraste.
— Já temos a fêmea,— disse o Homem-Fuinha.
— O nome dela é Philomela. — disse o capitão.
— E vocês estão em inferioridade—
Nova – ezine de FC e Fantasia 63 Novembro – 2008
O capitão acenou com a cabeça.
— Apenas um bando de velhos caquéticos.
—por isso acho que vamos apenas levar este também.
— E o nome dele é Procne. — O capitão pressionou o botão do Medistim de novo. Mojo
também. Feran nunca vira o capitão a tomar duas doses. — Portanto vais deixar-me e ao Mojo a
morrer, agonizando lentamente?
O Homem-Fuinha ficou inquieto. Feran cheirou-lhe o medo. O homem apontou para o
contentor.
— Isto vale uma fortuna—
— E tu não gostas de perder dinheiro, correcto? Onde é que ela está? — perguntou o
capitão, tomando uma terceira dose.
— Na minha nave, por cima de nós e à espera que a chame. — O Homem-Fuinha tocou no
seu aparelho de falar. — Agora é melhor—
Sendo um predador Feran foi o primeiro para além do capitão a perceber que o momento
chegara. O momento de matar. E nesse instante, pela primeira vez, Feran percebeu uma coisa.
O capitão também era um predador.
O Homem-Fuinha continuava a falar.
—acabar isto com—
Mojo e o capitão, movendo-se mais rápido do que Feran pensara ser possível aos homens,
atiraram para trás as capas e sacaram das armas. O capitão disparou duas vezes sobre o
Homem-Fuinha, uma no braço que empunhava a arma e outra numa das pernas. O ar fervia
enquanto Mojo disparava matando três deles, antes que pudessem sequer apontar as armas. O
capitão matou outros três e o Homem-Fuinha caiu no chão aos gritos. Feran fechou as abas das
orelhas para não os ouvir, o focinho ardendo com o cheiro a ar queimado. O Cortador e
Guppert, mataram um Ripper cada, a coberto dos Cachorros. Os últimos quatro, os que tinham
as armas só a tiracolo, morreram a tentar empunhá-las.
Enquanto olhava, Feran só sentiu medo. Não da matança, pois ele sabia como era matar, mas
medo da expressão no rosto do capitão.
Era o olhar de um predador.
O capitão passou por cima dos corpos até chegar ao Homem-Fuinha, encurralado como um
animal, e apontou-lhe a arma à cabeça.
— Chama a nave. Diz-lhes que aterrem ao lado da cúpula para apanharem o outro Anjo.
O Homem-Fuinha cuspiu sangue.
— Vai-te lixar.

Nova – ezine de FC e Fantasia 64 Novembro – 2008


O capitão pôs a arma contra a testa do Homem-Fuinha. O homem engoliu em seco, mas
abanou a cabeça.
— Não vais matar um homem desarmado a sangue-frio, Trelayne. Não és capaz disso.
Tirando o ligeiro tremer de um olho, o capitão parecia talhado em pedra. Depois riu-se. E
riu-se, e riu mais até que Feran sentiu medo de novo — medo de não conhecer absolutamente
nada sobre este homem. De repente, o capitão baixou-se e, com uma mão, levantou o Homem-
Fuinha pelo pescoço, mantendo-lhe os pés longe do chão. Feran não tinha palavras para o que
viu nos olhos do capitão quando ele fez a voz ribombar pela cúpula inteira.
— EU ARRANQUEI BEBÉS DOS BRAÇOS DAS MÃES. MATEI ESPÉCIES
INTEIRAS. SOU CAPAZ DE COISAS QUE NEM IMAGINAS, HOMENZINHO. — O
capitão largou-o, olhou para ele no chão e Feran ouviu a tristeza na voz quando quase
murmurou, — Eu sou capaz de tudo.
O Homem-Fuinha arfava na poeira. Depois olhou para cima, e Feran percebeu que o capitão
vencera. O Homem-Fuinha expunha a barriga e o pescoço, mostrando a sua submissão. Pegou
no aparelho de falar com mãos trementes e ligou-o. Feran não conseguiu ouvir as palavras, mas
o capitão acenou aprovadoramente para os outros.
Feran sentiu-se a relaxar. Guppert e o Cortador davam palmadas nas costas um do outro.
Mojo estava sentado no chão, a cabeça entre as pernas e a chorar mas aparentemente não tinha
feridas.
Um grito cortou o ar. Feran voltou-se, com os dentes arreganhados. Lá em cima, Procne
pairava, as asas a bater, cabeça atirada para trás, o rosto contorcido em agonia. A sua bolsa
inchou e abriu-se enquanto uma nuvem de pequenas e sangrentas coisas aladas explodia do
interior, caindo aos guinchos sobre eles.
A ninhada chegara.
*
Há dois anos que Trelayne não tomava doses de combate. A matança e a alegria que ela
proporcionara tinham-no abalado. Agora, enquanto a ninhada chovia em caos sangrento sobre
as suas cabeças, o seu sentido da realidade esfumava-se. Sabendo que a ninhada tinha de viver
ou Phi morreria, tentou perceber os movimentos do que faziam, mas o Scream só o interessava
em olhar os cadáveres ensanguentados. Então percebeu que também a ninhada estava a ser
atraída para eles.
Parecendo sapos com asas e rostos humanóides, cinzentos e luzidios, os elementos da
ninhada enxameavam os corpos, pondo os longos tentáculos que lhes saíam do abdómen em
qualquer ferida aberta que vissem. Porém, ficavam apenas um segundo em cada uma e a cada

Nova – ezine de FC e Fantasia 65 Novembro – 2008


nova tentativa o frenesim aumentava. O Scream, — pensou ele, — precisam de sangue com
Scream.
— Trelayne! — O grito fê-lo virar-se. Ajoelhado, Weitz segurava tremulamente uma Tanzer.
O sangue empapava-lhe um braço e uma perna, e escorria pela testa abaixo. Weitz ergueu a
arma para Trelayne.
A ninhada chegou a Weitz antes de este conseguir disparar, engolindo-o, mergulhando os
tentáculos em cada uma das feridas, dentro dos olhos para onde o sangue escorrera, sondando,
procurando. Aos gritos, Weitz tentou enxotá-los com as mãos até que, ficando subitamente
rígido, caiu de bruços no chão.
As crias saltaram do seu corpo, formando uma revolteante e guinchadora massa sobre a
arena. Estavam a ficar cansadas. Estão a morrer, pensou Trelayne. Sangue com Scream. Sangue
com Scream.
Trelayne rasgou a camisa. Sacando de uma faca no cinto, cortou-se no peito e no cimo dos
braços. Deixou cair a faca e ficou ali, com os braços abertos, sangue a escorrer pelo corpo
abaixo, à espera que o cheiro do Scream chegasse à ninhada.
As crias mergulharam lá de cima, envolvendo-o como abelhas em busca de mel, enfiando-lhe
os tentáculos na carne, onde sangrava. A dor foi mais violenta do que a que Scream era capaz de
o fazer aguentar. Um abismo negro abriu-se debaixo dele e sentiu-se a cair.
*
Trelayne acordou deitado de costas, uma luz verde pálida a iluminar a antepara por cima dele.
O peso que o pressionava contra a cama e o pulsar dos motores sugeriam-lhe que estava numa
nave em aceleração.
Algo estava errado. Não. Estava certo. Finalmente sentia-se bem. Sentia-se humano. Sentia...
Dor. Dor verdadeira. Dor que doía. Tentou levantar-se.
— O capitão está de volta. — Era a voz de Feran.
— De mais formas do que tu julgas, raposito, de mais formas do que tu julgas.
O rosto do Cortador surgiu por cima dele.
— Fica deitado, por amor de Deus. Ainda abres as feridas outra vez.
Trelayne deitou-se recuperando o fôlego.
— Que aconteceu?
— Vencemos. Tomámos a nave do Weitz.
— E o Mojo? O Procne? Phi—onde está a Phi? — Perguntou, respirando com dificuldade.
A voz dela chegou-lhe do fundo do quarto.
— Toda a tua família está em segurança. Guppert e os Cachorros. Estão todos aqui
connosco.

Nova – ezine de FC e Fantasia 66 Novembro – 2008


Trelayne virou a cabeça. Ela estava deitada no outro beliche, com Procne a dormir ao lado.
— Não sabia que tinha uma família. — Disse com voz fraca.
— Nós sabíamos, Jason Trelayne. Fomos sempre a tua família.
O Cortador afastou-se para o lado e Trelayne pôde ver a ninhada agarrada a ela. Phi sorria.
— Sim, salvaste as minhas crianças.
— Há muito tempo que eu não via esse sorriso, Phi.
— Durante muito tempo não tive razões para o ter.
— Sinto... Sinto...
— Sentes dor verdadeira. E perguntas-te porquê. — O olhar dela desceu para algo que tinha
ao lado. Só então Trelayne se apercebeu que um dos da ninhada estava junto a si e que a
pequena criatura ainda tinha um tentáculo dentro dele. Trelayne tentou afastar-se.
— Fica quieto, porra. — Disse logo o Cortador. — Este aspirador feioso ainda não acabou
de te limpar.
— Que queres dizer com isso?
O Cortador verificou o monitor na parede junto ao beliche.
— Ao alimentar-se, a ninhada reduziu-te os níveis de Scream no sangue para quase zero. O
grande bónus é não haver sintomas de desmame. Lembras-te quando tentaste livrar-te do vício,
nos primeiros tempos da colónia?
Trelayne disse que sim, tremendo só de se recordar.
O Cortador esfregou o queixo.
— Estes pequenos chupistas devem largar alguma coisa no sangue, algo que possibilita ao
corpo aguentar níveis baixos de Scream. Os Anjos precisam da mesma coisa quando a ninhada se
alimenta deles. — Olhou para Trelayne. — Acabas de comprar uma nova vida para todos os
Screamers que a Entidade já viciou.
Conforme aquilo ia começando a fazer sentido, o rosto de Mojo assomou à porta. Também
tinha um da ninhada pendurado nele.
— Aproximamo-nos das coordenadas de salto. Para onde vamos, capitão?
Fez-se silêncio e Trelayne sentiu-os à espera da resposta. Recordou-se de algo que Weitz
dissera, e sorriu apesar das dores.
— Ouvi dizer que ainda há rebeldes em Fandor IV.
Mojo esboçou um sorriso rasgado e desapareceu com o Cortador em direcção à ponte.
Trelayne voltou-se para Feran. O raposito afastou-se. Ao perceber, o sorriso de Trelayne
esmoreceu. Olhou-o por um momento e depois falou calmamente.
— Feran, o capitão Trelayne que viste hoje na cúpula... ele morreu com todos aqueles outros
homens. Compreendes?
Nova – ezine de FC e Fantasia 67 Novembro – 2008
Passou uma eternidade. Feran acabou por correr para ele, abraçando-o com demasiada força,
tanta que doía. As suas feridas doíam. A cria ao seu lado doía. Deus, doía-lhe tudo e era
maravilhoso poder-se sentir assim magoado e a querer que parasse de doer.
Mais tarde, a nave desacelerou para dar o salto e a inércia apoderou-se dele. Mas a sensação,
desta vez, não era a de cair. Ao invés, ele sentiu-se a subir, a elevar-se acima de algo que deixava
finalmente para trás. 

Nova – ezine de FC e Fantasia 68 Novembro – 2008


Brinca Comigo!
João Barreiros
Brinca Comigo! é uma fábula, um conto de crianças, um perfeito exemplo da mestria de
Barreiros em pegar nos ícones da cultura popular e subvertê-los, submetendo-os às mais
duras provas e aos mais inomináveis e trágicos fins. Neste conto, onde se sentem ecos de
Aldiss e muito em concreto do afamado Super-Toys Last All Summer Long, uma autêntica
Parada de Bonecos viaja em cenários de desolação e entropia rumo ao indistinto Alvo das
suas programações.
Um dos mais importantes e conhecidos autores nacionais de FC, Barreiros, depois duma
pausa prolongada, regressou às lides com a publicação de vários e importantes textos:
Disney no Céu entre os Dumbos (Livros de Areia, 2006) é uma edição limitada em formato de
livro duma antiga noveleta até à data apenas disponível online no site E-nigma; Por Detrás
da Luz é um espantoso tour de force para a antologia de contos de inspiração lovecraftiana,
A Sombra sobre Lisboa (Saída de Emergência, 2006); A Night on the Edge of the Empire,
publicado no SFWA European Hall of Fame: Sixteen Contemporary Science
Fiction Classics from the Continent (Tor, 2007) é a retroversão para inglês do
conhecido conto Uma Noite na Periferia do Império, também incluído na antologia Ficções
Científicas & Fantásticas (Chimpanzé Intelectual, 2006); Se Acordar Antes de Morrer,
noveleta original publicada na antologia Contos de Terror do Homem-Peixe
(Chimpanzé Intelectual, 2007); e por último, embora não por menos, a fechar o ano de
2007 a primeira parte duma proposta trilogia a três autores, O Projecto Candy-Man
(Chimpanzé Intelectual, 2007), extensa novela original integrante da trilogia A Bondade
dos Estranhos.
Brinca Comigo! foi publicado originalmente no catálogo sobre brinquedos tradicionais pelo
Instituto de Emprego e Formação Profissional.
Visite o blogue: Caneta de Aparo de Titânio < http://aparotitanio.blogspot.com/>

Nova – ezine de FC e Fantasia 69 Novembro – 2008


1

R
upert23, o Urso, está deitado de costas, sobre a gravilha de um parque de
estacionamento à beira da estrada, de ventre rasgado, com as fichas de diagnóstico
à mostra no interior de uma barriga que pretendia ser fofa, mas que neste
momento não é mais do que uma portinhola aberta sobre um emaranhado de microcabos,
placas de sintaderme necróticas coladas a tubagens por onde escorre um fluido bilioso. A
bomba vascular que faz as vezes do coração já não consegue ter energia suficiente para impelir
os fluidos carregados de toxinas e CO2 na direcção dos filtros pulmonares. Os olhos negros do
biobrinquedo piscam quase por reflexo, a pata esquerda e descascada na palma por anos e anos
de atrito contra solos agrestes, estremece ainda, o braço direito gira num movimento rotativo
que faz elevar a carcaça de cinco em cinco segundos, mas a verdade é que Rupert23 entrou no
ciclo terminal, com todos os sistemas de diagnóstico a enviar uploads para uma central hospitalar
que já não existe.
Noddy50, porque dispõe de dedos, vasculha no interior deste ventre aberto em busca das
microbaterias recarregáveis, mas quando finalmente as encontra, disfarçadas na base occipital da
cabeça orelhuda, descobre desagradado aquilo que já esperava. As microbaterias não são
universalmente compatíveis. Ou seja, respondem a preceitos específicos da Fábrica que as criou,
podem ser trocadas apenas entre Fluffy-ToysTM, nunca poderão servir a si, aos Ken, aos Action
Men. E como se isso não bastasse, como se não fosse humilhação suficiente estar ali de joelhos,
naquele fim de tarde húmido, ainda vai ter de recuar, de ceder o direito de posse ao Rupert19,
que aguarda de pé, a dançar, apenas a alguns metros do círculo de exclusão que se formou em
torno do biobrinquedo moribundo. Noddy50, acena com a cabeça, com as pálpebras a subir e a
descer sobre os olhos esbugalhados que uma certa corrente da psicologia afirmou ser atractiva
para os humanos. Rupert23 já quase não se move. «Erro terminal», diz numa voz roufenha, a
brotar algures de um laringofone descalibrado. «Erro terminal. Para que não se percam
informações, fotos de família e momentos de relação interpares, por favor, diga SAVE e chame
os paizinhos...». E por fim, cala-se a meio da despedida porque Noddy50 resolveu arrancar-lhe
as baterias e acabar de uma vez por todas com esta agonia interminável. Que se lixem as
memórias perdidas. O mais certo é os ficheiros estarem todos degradados pelo download de
programas virais. Quem as viveu, decerto está morto há muito tempo e não precisa delas para
nada.

Nova – ezine de FC e Fantasia 70 Novembro – 2008


E neste pequeno intervalo de silêncio, enquanto Noddy50 se põe de pé decidido a trocar as
baterias recém-recolhidas por outros favores que só os FluffyToysTM sabem dispensar, a Horda
dá-se conta da perda irreparável de um dos seus elementos. Os automóveis falantes fazem soar
as buzinas (pelo menos aquelas que ainda funcionam). As mamãs locomotivas avançam e
recuam, com as rodas trilhadas a lançar faíscas sobre a gravilha do parque. Barbies e Kens
choram lágrimas de crocodilo. Cavalinhos e avionetas empinam-se e escoiceiam. Os
biobrinquedos dotados de capacidade de canto, trinam melosas melopeias onde todos são
amigos, onde se canta de mãos dadas, meninos e meninas de todas as cores e de todas as
partidas do mundo, como se isso fosse possível, como se ainda houvesse mãos que não fossem
feitas de ossadas.
O parque automóvel está deserto, aparte uns quantos camiões cisterna abandonados frente à
lojinha das conveniências. Lá dentro, do outro lado das janelas feitas em estilhaços, junto aos
balcões de zinco e das mesas de café manchadas de pinguinhos cor de ferrugem, vinte múmias
humanas jazem lado a lado com os cartazes derrubados dos HappyBurgers e dos expositores
vazios onde antes havia fieiras de Crispynuggets, garrafas de sumos multivitaminados e barras
melosas de chocolate. Nuvens de tempestade circulam lá no alto anunciando um novo furacão.
Outras nuvens mais baixas, feitas de varejeiras e moscardos, zumbem irritadas por esta invasão
sonora. Já tentaram descer em enxame sobre a Horda de biobrinquedos, mas a verdade é que
nada ali existe de comestível, nenhum lugar onde possam crescer as novas gerações de larvas.
Aproxima-se a noite, um novo vendaval, chuvas de monção, que não são nada úteis a
criaturas que dependem parcialmente de circuitos eléctricos e que fogem da humidade como o
diabo da cruz.
Mas durante o decorrer de todos estes anos de desolação a Horda aprendeu a sobreviver. A
Horda tem um objectivo. A Horda sabe como se deve sacrificar pelo bem comum, trocar e
canibalizar peças uns dos outros. A Horda é obrigada a respeitar imperativos mais cruéis e
implacáveis do que o próprio instinto animal.
Procurar abrigo. Esconder-se da tempestade. E depois rumar na direcção do Sul.
Apenas isso e nada mais.

Antes da queda na noite, enquanto o sopro do vento permanecia dentro dos parâmetros
toleráveis, ou seja, ainda incapaz de arrastar consigo um boneco com apenas um palmo de
altura, Ken21 e Action-M7 escalaram até ao telhado da lojinha de conveniências. Serviram-se
dos kits correspondentes, o Ken-Montanhista e o Action-M-Infiltrador. A mola da espingarda

Nova – ezine de FC e Fantasia 71 Novembro – 2008


lança-espigões de Action-M7 teve de ser substituída pela pertencente ao modelo 6, cedência que
só aconteceu após uma longa meia hora de protocolos de humilhação e demonstrações de
quem-é-mais-forte-em-combate-singular. Mas a verdade é que os miocircuitos do braço
esquerdo do Action-M6 há muito que tinham entregue a alma à entidade criadora. Obrigaram-
no a concluir que os manetas não escalam falésias agrestes. Soldados com um braço
desarticulado não têm outra saída senão candidatarem-se a uma súbita e imerecida reforma nas
prateleiras dos donos, ou à reciclagem pura e simples. Pior ainda, na loja não havia kits de
combate à venda, talvez porque a autoridade humana que em tempos controlava o comércio à
beira da estrada tivesse decidido que não era pedagógico vender brinquedos tão pouco sociáveis
como um Action-Man-Contra-o-Eixo-do-Mal. Mas cada um se arranja como pode.
Sob a atenção expectante da Horda, Ken21 e Action-M7 foram disparando as respectivas
espingardas lança-espigões, uma, duas, trinta vezes, com uma paciência que só se poderia
chamar de mecânica, até que um deles, enfim, lá se enrodilhou nos grampos de ferro do telhado
que sustentavam um velho néon a anunciar descontos nas «Maxi-Pizzas Mestre Guillioni». E
fixas as cordas de ascensão, pouco mais tiveram de fazer do que iniciar a heróica escalada, com
os rodízios a puxar os dois pequeninos corpos sacudidos pelo vendaval que ainda não deixou de
crescer. Se olhassem para trás, (mas um biobrinquedo não pensa assim), veriam a imensa
mancha cromática da Horda a encher a totalidade do parque de estacionamento. Veriam olhos
esbugalhados, cabeças redondas e rutilantes, orelhudas ou já calvas. A expressão fria e calculista
do Action-M6 derrotado. E o olhar apaixonado de vinte Barbies furta-cores.
O telhado da loja de conveniência forma uma vasta lagoa esverdeada de águas apodrecidas,
cabos arrancados, estilhaços de vidro e plástico e uns quantos esqueletos de aves que os ventos
não conseguiram arrastar. O nível das águas é suficientemente fundo para que os dois
biobrinquedos se afundem até aos tornozelos. Mas os Kens desportivos e os Action-M de
assalto foram feitos para serem mergulhados em aquários, banheiras e piscinas. São à prova de
água pelo menos enquanto durarem as garantias. E estes dois tiveram pouco uso. A Praga
matou-lhes os donos apenas algumas semanas depois dos respectivos aniversários.
Os programas de base ensinaram-lhes a carregar as baterias, mesmo que as autoridades
parentais se esquecessem de o fazer. Sabem como montar um acumulador eólico. Ligar as pás
ao rotor, o rotor aos cabos de conexão, os cabos ao acumulador. Aprenderam a colaborar e a
trocar programas de compatibilidade. O que não quer dizer que as informações sejam trocadas
sem erros ou reboots. A montagem dos minicataventos no telhado demora duas horas. Horas
gastas a gritar lá do alto, «modelo A-33, eu pedi o modelo A-33». Enquanto no parque de
estacionamento, a azáfama é tão frenética como aparentemente destituída de nexo. Os
biobrinquedos correm de um lado para o outro à procura do Sr. Camião e da Menina
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Locomotiva mais os respectivos atrelados onde a Horda transporta os acumuladores eléctricos.
O problema é que nenhum destes brinquedos se encontra onde devia estar, e basta
apresentarem-se ligeiramente de perfil, ou de frente, ou de costas, para que os protocolos de
reconhecimento e de identificação dos restantes brinquedos sofram um inevitável bloqueio
cognitivo. Mas as rotinas acabam por triunfar. Finalmente as memórias visuais (numa súbita
epifania) identificam os componentes necessários. E feito isso basta aproximá-los da parede do
restaurante, enfiá-los num balde, amarrar o balde às cordas de ascensão e depois fazer subir toda
aquela traquitana até ao telhado sem deixar cair nada ao chão, pois peça que tombe e que não
tenha um sensor bluetooth ficará para sempre perdida.
Às oito da noite, enquanto o céu começa a incendiar-se com os relâmpagos da tempestade
próxima, as pás dos acumuladores eólicos bem presos ao cimento rodam já, num sibilar
frenético. E assim ficarão até que nasça o dia ou as chuvadas terminem.
O vento sopra num urro contínuo, abafando as buzinas de aviso dos carrinhos de bombeiros
e locomotivas. Pedaços de lama e desperdícios de papel orbitam à volta do restaurante
abandonado. Os enxames de insectos famintos desapareceram entretanto, talvez porque tenham
resolvido tentar a sorte noutras paragens onde haja carne morta e compassiva. Bátegas de uma
chuva carregada de fuligem, fustigam as paredes do restaurante, encharcam o chão junto às
janelas quebradas, mas Ken21 e Action-M7 estão já abrigados no relativo conforto das salas
interiores, unidos ao constante biofeedback da Horda.
São quatrocentos e noventa e nove brinquedos selvagens dispersos pelos mosaicos
ensebados do restaurante. Os mais activos circulam a esmo, numa espécie de delírio, batendo
uns nos outros, recuando, voltando atrás, contornando obstáculos, dizendo «Olá! Olá!». As
locomotivas apitam num código que faz lembrar Morse mas que não passa de um ruído branco.
Os robôs pedagógicos questionam-se uns aos outros com perguntas de resposta múltipla. E no
centro deste fluxo e refluxo, os poucos biobrinquedos gnósticos aglomeram-se costas contra
costas, ligam o sistema GPS, esforçam-se por localizar os poucos GeoSats ainda operacionais,
procurando saber se o Alvo continua activo e localizável.
Próximo, próximo, vem a resposta da Unidade Médica. Sistemas vitais em declínio. Esperança de vida
limitada a meses e a decrescer. Mas o lugar permanece o mesmo. Cinquenta quilómetros mais para
Sul. Em plena hecatombe industrial.
O objectivo mantém-se. Enquanto o Alvo estiver vivo, a Horda continua com uma razão
para existir. Noddy50 sorri. Aliás não pode fazer outra coisa, pois não possui outra expressão
facial além desta.
A de um contentamento eterno e idiota.

Nova – ezine de FC e Fantasia 73 Novembro – 2008


3

Pela manhã, sob um sol escaldante, Noddy50 escala até ao telhado para desmontar os
colectores eólicos. Dois dos moinhos de vento foram derrubados pelo vendaval nocturno, as
ventosas arrancadas à placa de cimento apodrecido, as pás torcidas e semi-afundadas na água
chilra e esverdeada que cobre a quase totalidade do telhado. Nuvenzinhas de vapor libertam-se
deste lago artificial, como se todo o restaurante estivesse em vias de ebulição. LEDs piscam
sinais de falhas sistémicas junto à base onde repousam as baterias. Só dois dos quatro
acumuladores tiveram tempo de carregar por completo. O que é pouco para uma Horda faminta
de energia.
E porque as pás torcidas deixaram de fazer parte da estrutura perceptiva do biobrinquedo,
Noddy50 vê-se obrigado a tactear às cegas, com as mãozinhas esforçadas a desatarraxar
parafusos user-friendly que em princípio só deveriam ser manipulados por operadores humanos.
Infelizmente humanos é aquilo que mais falta por ali, as múmias que assombram as mesas do
restaurante insistem em permanecer tal e qual como foram encontradas, e por isso Noddy50 lá
se vai esforçando como pode, a enrolar cabos, a guardar as pás intactas no kit de transporte e
em seguida a arrastar tudo até à borda do telhado, meter os acumuladores na cestinha e depois
descê-la com todo o cuidado, não vá aquilo entornar-se e destruir de vez uma das poucas fontes
de energia de que dispõe a Horda.
Action-M7 e Rupert21, ambos em sentido, a fazer continência, numa patética imitação dos
arautos do Rei, assinalam que na loja do restaurante há duas caixas de Furões Reparadores, uma
mão cheia de canetas com programas de análise sistémica, limpas de qualquer tipo de viroses,
baterias extra multicompatíveis, e uns quantos kits de acessórios. A Horda estremece indecisa,
enquanto a informação vai passando entre aqueles que têm o bluetooth activado. Após a
terminação anunciada de Rupert23, são agora 499 membros e falta um para que se atinja a
mágica quantia de 500.
Não se pode dizer que Noddy50 seja dotado de circuitos ético-gnósticos. Embora o seu
objectivo primário seja despejar toda uma panaceia de frases politicamente correctas nos
ouvidos desatentos de criancinhas humanas, vai uma diferença abissal entre declamar bitaites
comportamentais e entender o que se disse. Ao biobrinquedo não lhe interessa que a activação
de um novo membro da Horda (se bem que útil à comunidade) implique o sofrimento do
despontar de uma nova consciência. A verdade é que necessitam de um Furão-R. Agora! Já!
É assim que, acompanhado por duas Barbies e um Ken, Noddy50 cruza o átrio do
restaurante, atravessa a sala das refeições, contorna o corpo de uma velha carcomida e meio
liquefeita pelo calor, bactérias e humidade residual, dirige-se à lojinha de conveniências, onde os
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dois pacotes coloridos que contêm diferentes modelos de Furões-R, repousam contra o balcão,
prestes a serem examinados pelos membros mais gnósticos da Horda.
No interior das embalagens, com meio metro de altura e 50 cm de diâmetro, repousam duas
criaturas sorridentes, de Charuto-pen ao canto da boca, pelagem negra e branca, olhinhos
marotos de momento ainda baços. Um deles é especializado em reparar disfunções biológicas, o
outro dedica-se exclusivamente à vistoria de circuitos mecânicos. São gémeos complementares
que deveriam ser comprados em conjunto, para desgraça dos pais e alegria dos meninos que
gostam de amputar membros a bonecos. Noddy50, que não quer saber de parcerias, opta pelo
Furão mecânico, indica ao Action-M7 que rasgue o selo plástico com a ajuda de um canivete
multiusos e que depois corte os múltiplos suportes de segurança que colam o brinquedo ao
fundo da caixa. A vozinha avisadora (preparada para se activar logo que os selos de segurança
sejam cortados) lembra os presentes e respectivos encarregados de educação que há instruções
que devem ser lidas antes da cunhagem final, que o Furão-R, não é propriamente um brinquedo
a ser utilizado por menores de seis anos, que o jovem dono deve colocar-se frente a ele, olhos
nos olhos no momento da primeira activação. Noddy50 puxa para o lado o velcro peludo do
estômago do biobrinquedo, põe a nu dois botões digito-eléctricos, pressiona o verde e deixa-se
ficar a ouvir os zumbidos internos de circuitos em vias de despertar. O Furão-R estremece, os
olhos acendem-se num fulgor vermelho, a boca rasga-se num sorriso, uma das mãos retira a pen
da boca, os pés fincam-se no chão como se a criatura finalmente percebesse para que servem os
giroscópios e depois pergunta, enfim: Olá meu! Brinca comigo! Chamo-me Zé dos Sete Instrumentos! E
tu?
Noddy50 deixa-se ficar imóvel, perante este primeiro acto de cunhagem. Os olhos do Zé-
Furão piscam, indecisos, pois o biobrinquedo que tem pela frente em nada se equipara aos
parâmetros instalados pela Fábrica de origem. Noddy50 não tem o aspecto nem o tamanho de
uma criança. Em nada se parece com a autoridade de um operador adulto. Noddy50 tem um
tamanho igual ao seu e algo deve estar errado, algo que se desviou catastroficamente das normas
acordadas no contrato, mas o quê? O sistema bluetooth indica-lhe centenas de disfunções
mecânicas, algumas quase terminais, a maior parte urgentes, entre os brinquedos mais próximos.
A ligação por modem às enciclopédias orbitais não funciona. Quanto à presença de indicadores
humanos o Zé-Furão só consegue encontrar um, mas este está a quilómetros dali, com os sinais
vitais a piscar devagarinho, rumo a uma oclusão inevitável.
Peço informações suplementares. Onde estou? Onde está o meu Dono? Porque é que ninguém quer brincar
comigo?
E Noddy50 transmite aquilo que sabe. Rupert12 acrescenta fotogramas retirados durante a
Longa Marcha: Prédios cariados. Fossas comuns repletas de ossadas. Um jumbo-jet a tombar
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como uma pedra da arcada nebulosa do céu. Uma base militar marítima, com destroyers
naufragados a sangrar combustível em chamas sobre as águas negras e oleosas. Uma ala de
hospital com centenas de crianças em agonia, debaixo de tendas de oxigénio que há muito
deixaram de funcionar. Ciber-hovertanques engalfinhados num combate cego e inútil. Nuvens
de moscardos, tantas e tão densas, que fazem do dia, noite. E por todo o lado o silêncio. E por
todo o lado um silêncio tão opaco, tão desprovido de sentido, que custa a acreditar que já
ninguém queira brincar com ninguém.
Zé-Furão, dado que é ligeiramente mais consciente do que os outros membros da Horda,
estala com a língua nos dentes, volta a enfiar a caneta na boca e murmura: Estamos feitos!
De modo algum, replica Noddy50. Agora fazes parte da Horda. Agora temos quem nos repare. Agora
participas na Longa Marcha. Rumo ao Sul! Rumo ao Sul! Ao Alvo final! Bem-vindo, Zé-R! Brinca connosco!
Zé-Furão olha em volta, para as estantes derrubadas da loja, para o lixo empilhado nos
cantos, para os pacotes melosos de doces, para o soalho lamacento coberto até à saturação de
pequenos corpos ansiosos de boas-novas, faz um check-up global, por bluetooth, aos brinquedos
que têm contratos com a empresa de reparação Multi-Sys, anota todas as quebras sistémicas,
todas as pequenas disfunções, calcula quanto tempo ainda as unidades consultadas podem
funcionar sem erros fatais, e conclui desalentado: Só posso reparar os componentes mecânicos caso haja
módulos de substituição disponíveis. Impossível reparar os elementos orgânicos. Necessito que activem o meu
irmão. Funcionamos em tandem.
Mas este pedido, que os pais e familiares só costumavam escutar depois da compra do
primeiro Furão, desperta um grito uníssono na audiência de bio-brinquedos. Não, não, não,
clamam Barbies, Kens e Action-Ms. Carrinhos de desporto apitam buzinas. Locomotivas
sorridentes arremelgam os faróis que fazem as vezes de olhos. Ruperts rodam as cabeças e
batem com as patas circulares nos troncos peludos. Não, não, não...
Noddy50 cola-se ao Furão, toca-lhe com o dedo no peito, e envia-lhe fotos de giraplanos de
ataque a mergulharem sobre as vítimas incautas, enxames de vespões armados de neurotoxinas,
microtanques a disparar canhões IEM. Mostra-lhe todo um holocausto de brinquedos mortos,
aos milhões de milhões. É o que acontece às Hordas quando começam a pensar em conjunto. E
diz-lhe: Massa crítica acima de 500 unidades. Biofeedback entre um número exponencial de componentes
semi-gnósticos inicia Singularidade. As Fábricas anulam Singularidades. As Fábricas não admitem outras
consciências além delas. Estamos perigosamente perto do limiar conceptual. Corremos risco. Impossível activar
outro membro. A Horda não pode ser mais do que uma Horda, se quiser sobreviver. Aliás temos um objectivo.
Temos um Alvo diagnosticado. Temos ainda 50 quilómetros a percorrer. Não, entendido? Negativo, negativo!
Zé-Furão encolhe os ombros. Quer lá saber. A responsabilidade não é sua. Coça a barriga,
envia uma nova sequência de relatórios de erros para uma Central que nunca os receberá, vai às
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prateleiras procurar algumas (poucas) das miniferramentas ainda disponíveis e por fim, num
gesto fingido de quem arregaça as mangas, dirige-se aos biobrinquedos mais próximos. Vamos lá
às reparações. Abram-me os painéis do ventre, mostrem-me as fichas dorsais, indiquem-me onde estão os
eolocolectores avariados. Fiquem sabendo que não estou autorizado, por motivos de copyright, a reparar
qualquer sistema cuja patente foi Made-in-China.
E os biobrinquedos obedecem, em filas ordenadas segundo uma hierarquia que já ninguém
entende, de barrigas à mostra, LEDs a piscar. Locomotivas, carrinhos de bombeiros, jeeps todo-
o-terreno, aviões-que-nunca-voam, põem-se de lado, respeitosamente, à espera que chegue a vez
deles. Zé-Furão passa a manhã inteira a trabalhar, a substituir algumas peças disponíveis nos
stocks transportados nas carrinhas e atrelados, a cobrir de colagénio membros mutilados, a
limpar amortecedores bloqueados por fragmentos de lama empedernida, a tornar de novo
visíveis as pás torcidas dos colectores eólicos. E enquanto trabalha, a Horda fala. Kens de várias
origens, trocam entre si experiências de um cruzeiro submarino nas Caraíbas ou a valorosa
escalada do Monte Branco, tudo isto repleto de indicações de natureza geográfico-pedagógica.
As Barbies, um pouco mais aparte, discutem um novo guarda-roupa a adquirir, de paixões
perdidas e amores lacrimosos, economia doméstica e regras de higiene pessoal. Robôs fazem
uns aos outros perguntas de resposta múltipla e trocam agradáveis musiquinhas gratificadoras,
sempre que um deles acerta aleatoriamente nas questões propostas pelo companheiro.
Locomotivas mães e filhas, com as caldeiras cheias com a água que recolheram nos lavabos do
restaurante, apitam em surdina, rodeadas por pequenas fumarolas de vapor. Alguns veículos
menos gnósticos (que apenas servem como propulsores aos atrelados) deslizam em círculos,
batem nas paredes, voltam atrás, piscam os faróis, saltam alegremente sobre os obstáculos
mumificados dos utentes e por fim, depois de terem aprendido de cor toda a topologia do
restaurante, regressam ao local de início, ansiosos por receber novas ordens.
E lá fora, sob a luz implacável do sol, turbilham enxames de moscas famintas e coisas que
apenas se parecem com moscas, mas que de facto são nanocaças programados para destruir
toda e qualquer manifestação gnóstica seja ela produzida por um sistema de wetware ou hardware.
Muito, muito mais acima, em órbita geosincrónica, os poucos satélites orbitais que ainda
funcionam esforçam-se por trocar entre si mensagens saturadas de vírus informáticos, por cegar
as lentes inimigas com feixes de laser, a única arma ainda disponível agora que o arsenal de
micromísseis se esgotou por completo.

Quando todas as reparações possíveis terminam, fazem-se à estrada.

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A estrada é um lugar perigoso, claro. Ainda existem hovertanques de assalto, escondidos por
detrás de cartazes publicitários, à espreita de um incauto passeante. Os hovertanques, como os
pulgões das vacas, podem aguardar, imersos num sono lento, que se aproxime deles uma vítima
incauta, para só então se activarem e anularem o intruso com o máximo de prejuízo. E provas
disso são as carcaças calcinadas dos automóveis atirados para as bermas, autocarros cortados ao
meio e os esqueletos sorridentes dos derradeiros humanos a espreitar pelas janelas. Sem contar
com os olhos das nanomáquinas voadoras, sempre vigilantes. Mas essas, sabe-o Noddy50, estão
demasiado ocupadas em trocar protocolos de territorialidade com os enxames das Fábricas
rivais. Por vezes um enxame é absorvido por outro ainda maior. Às vezes, mudam de fidelidade
e passam a trabalhar para uma outra Companhia. E se por acaso atingirem o nível de
Singularidade gnóstica (situação que se vem tornando cada vez mais rara), ao procurarem fugir
aos programas que as geraram, agora que já não se podem recarregar nas devidas fontes, acabam
sempre por ser dispersas por uma tempestade mais intensa ou por uma falha catastrófica de
energia. Noddy50 sabe, e informa disso o Zé-Furão, que esta súbita e efémera epifania não dura
mais do que minutos ou horas, para logo terminar quando o número de elementos que
compõem a massa crítica começar a decrescer. É por isso que a Horda ao avançar pelo centro
da auto-estrada, às vezes ouve pequenos estalidos de vidrinhos por baixo das solas, patas, pés,
rodas ou lagartas. São os milhares de milhões de cadáveres de pequenas moscas cibernéticas
que, vá-se lá saber há quanto tempo, viveram em êxtase durante alguns minutos e agora jazem
dispersas num tapete feito de silício e nanofibras ópticas.
A Horda caminha devagar (ou seja, à velocidade dos mais frágeis e toscos), sobre o piso que
as chuvadas torrenciais tão maltrataram, entre apitos, cornetadas, gemidos de juntas mal
articuladas, zumbidos de miocircuitos prestes a entregar a alma ao criador. Alguns dos
brinquedos gemem baixinho, disfunção, disfunção. Outros clamam por um upgrade que afinal nunca
virá. A Horda caminha ao som de realejo dos brinquedos mais musicais, troca entre si
informações climáticas, topográficas, informa os membros mais atrasados dos buracos que vão
encontrar pela frente, das rachas do pavimento, dos obstáculos de postes derrubados, enfim de
tudo o que os brinquedos não dotados de sensores oculares ou feixes infravermelhos são
incapazes de detectar. A Horda, para quem a veja de cima, deveria mostrar uma mancha
policromática de cores vivas, tons vermelhos, verdes, laranjas, polvilhada aqui e ali pelo brilho
prateado das placas cromadas dos robôs pedagógicos, ou o falso cobre das caldeiras das mamãs
locomotivas. Mas passaram-se anos e os pigmentos, mesmo aqueles mais resistentes,
desprovidos de toda e qualquer toxicidade, pigmentos destinados a serem lambidos milhares de
vezes por bocas infantis e sequiosas, não conseguiram resistir à moinha do pó, ao raspar de um
solo agreste, ao impacto de fotões de um sol cruel. As cores vivas da Hoste tornaram-se
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desmaiadas, reduziram-se a um cinza politicamente correcto onde todos os diferentes são agora
iguais, sem apelo nem agravo, como uma fotografia desmaiada da Benetton.
E à medida que a Horda avança na direcção do Sul, a paisagem em volta altera-se
drasticamente. Para trás ficaram os campos alagados de arroz transgénico, as herdades de
criação de porcos, perus, galinhas e moas (repletas de esqueletos como um imenso Dachau à
escala animal). Agora, de cada lado da estrada, para lá dos cartazes do referendo à eutanásia
compulsiva, erguem-se as muralhas dos primeiros complexos fabris. Algumas têm mais de vinte
metros de altura, emaranha-arame no topo e bocas desconfiadas de metralhadoras laser a
olharem para o outro lado da estrada, talvez para as muralhas de uma Fábrica rival.
Encavalitado numa Mamã Locomotiva, Noddy50 viaja ao lado do Zé-Furão, a cavalo num
Carrinho de Bombeiros. Ambos estão a receber mensagens de inquérito e a enviar respostas de
apaziguamento. Os brinquedos são dotados de pequenos programas de identificação que lhes
permitem pedir o direito de passagem. Programas que explicam a quem os queira ouvir, que eles
não são perigosos, espiões, ou sedutores virais. Não passam de brinquedos migratórios. Só isso
e nada mais. Porém o ar está cheio de enxames de vespões de ataque. Planadiscos deslizam
sobre os telhados dos complexos fabris. Hologramas iconográficos rodam sobre os portões de
acesso aos armazéns e complexos habitacionais de técnicos e funcionários humanos. Altifalantes
pregam memes ideológicos integrados nas características das imagens de marca: móveis, produtos
de higiene, iPhones, sistemas de navegação GPS, blocos multimédia. Os sons confundem-se
numa sequência de berros e de ruídos brancos, destinados a corromper as mensagens
publicitárias da empresa rival. A estrada está cheia de carcaças de automóveis e de corpos
humanos bissectados que tentaram escapar-se no momento da efémera Singularidade Global.
Vinte quilómetros. Apenas 20 quilómetros até à ponte, ao rio, à zona portuária, sem esquecer
o caos do labirinto urbano onde se esconde o Alvo.
Mas por enquanto cercam-nos as Fábricas. As muralhas demolidas, cravejadas de buracos de
projécteis. O estridular dos altifalantes. O zumbido das nuvens das nanomoscas sempre
vigilantes, e o sopro do ar provocado pela passagem dos planadiscos que ainda conseguiram
sobreviver ao desgaste de anos de uso e nenhuma manutenção.
E de súbito, até ali escondido por detrás de uma casamata, um hovertanque abandona o
coito, avança para o centro da auto-estrada, e aponta à Horda um canhão IEM.
O hovertanque é imenso, maior do que um autocarro para passageiros humanos, na
curvatura do lombo consegue-se ainda ler a marca da Fábrica a que pertence, LARFELIZTM. Os
motores berram, desalinhados, a parte traseira raspa no solo, ar escapa-se dos rasgões nas
mangas inferiores. Alguém, num passado remoto, deve ter disparado contra ele, pois tem
cravado no flanco esquerdo um fragmento de cauda e ailerons de um míssil como se esta fosse
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uma excrescência exótica. Os sensores do hovertanque apontam fibras ópticas na direcção da
Horda como antenas de uma lagosta a adejar. Opérculos onde se escondem metralhadoras mais
convencionais (provavelmente já sem munições) abrem-se e fecham-se como um tique nervoso.
A Horda trava, perante esta súbita ameaça. Mas não trava em conjunto ou em sintonia pois
nunca chegou a formar uma mónada gnóstica. Cada um dos brinquedos imobiliza-se em tempos
diferentes, uns chocam contra os outros, entornam-se carrinhos de transporte, viram-se
locomotivas de rodízios para o ar, Barbies e Kens abraçam-se assustados, uns apitam, outros
clamam, outros não dizem nada.
Quanto ao Noddy50 e ao Zé-Furão, esses desmontam com calma e dignidade, como manda
o figurino. A ideia de morte é-lhes estranha. Para eles morrer é como desligar todos os sistemas
ao início da noite e nunca mais voltar a ligá-los quando chegar a manhã e a hora de novas
brincadeiras. Mas o imperativo inicial continua a ser mais importante do que qualquer outra
coisa. Aqui há valores que cantam mais alto. Só o Alvo importa. E o hovertanque, capaz de
esmagar a Horda inteira em apenas poucos minutos, não passa de um simples obstáculo.
Noddy50 volta a enviar por wi-fi os protocolos de amizade e complacência. Zé-Furão
pergunta, hipócrita, se o hovertanque deseja ser reparado, se o buraco no flanco o perturba, se
quer brincar com a Horda.
O hovertanque hesita, incapaz de situar a Horda entre os parâmetros das coisas a abater.
Esteve à espera 40 anos escondido por detrás da casamata, a sonhar com a morte e destruição
de todos os inimigos da sua Fábrica, inclusive dos ingratos humanos sempre a exigirem maiores
honorários por menos horas de trabalho. No processo de limpeza gnóstica abateu quem pôde.
Por fim, ferido, adormeceu ali à espera de novos combates. Os programas gnósticos Pós-
Singularidade do hovertanque estão feitos para não suportar ruídos. Só quem está vivo faz
barulho e a Horda, infelizmente, não se cala. Devagarinho, numa indiferença quase psicótica aos
protocolos de passagem enviados por Noddy50, começa a carregar as baterias do canhão IEM
com a pouca energia que lhe resta.
E enquanto isso, Noddy50 sorri, de braços abertos e mãos nuas à mostra, como deveria
sorrir perante uma criancinha teimosa e hiperactiva, sem que haja por ali um grama de Ritina
para lhe dar. Em boa verdade, o biobrinquedo não sabe o que fazer. Esgotou todas as opções. A
Horda é tão pedagógica quanto pacífica. E enquanto Noddy50 insiste e insiste, Zé-Furão
examina à socapa os circuitos gnósticos do hovertanque, todos eles blindados a qualquer
intrusão viral. Só o cérebro do míssil não explodido que este tem cravado no flanco parece
responder à chamada. Mas é um míssil simpático e cioso, carente de qualquer tipo de ajuda e
que não deseja mais nada senão explodir. Um dos programas degradou-se pouco antes do
impacto contra a blindagem do hovertanque. Zé-Furão oferece-lhe ajuda, uma «correcção».
Nova – ezine de FC e Fantasia 80 Novembro – 2008
Agradecido, o míssil aceita. Brinca comigo, brinca comigo, pede o biobrinquedo. E o míssil, após 40
anos de espera, explode, enfim.
A poucos pico-segundos do disparo do canhão IEM, o flanco direito do hovertanque
incendeia-se num clarão de fósforo. Uma labareda de ar tórrido varre os membros mais
próximos da Horda. Noddy50, Zé-Furão, a Mamã Locomotiva são projectados, a rebolar, até à
berma da estrada. A vaga e confusa consciência do hovertanque esvai-se como quem desliga um
circuito eléctrico. As turbinas centrais deixam de zunir. Pedaços em brasa da carapaça vão bater
nas carcaças dispersas dos automóveis. Lá no alto dispersa-se uma nuvem de nanomoscas que
entretanto se aproximou para ver o que se passava. O hovertanque inicia um processo de
corrupio circular, ascende, desce, poisa, sobe, arrasta-se até se ir finar contra a parede da
casamata que o protegeu durante todos estes anos. Quase por milagre não chegou a esmagar
nenhum dos biobrinquedos na sua passagem.
Seria um lugar-comum dizer que depois da conflagração só restou o silêncio. Porque afinal
nada disto tem sentido. Mesmo chocada, a Horda não se calou. Está continuamente a trocar
entre si mensagens de protesto, perplexidade e localização. Não se calaram os altifalantes e a
propaganda publicitária das Fábricas distantes. As nanomoscas insistem em zunir. O mundo não
se alterou um iota. Apenas um míssil morreu feliz e um hovertanque partiu para longe, quiçá ao
encontro do seu Criador.

A Horda caminha. Durante dois dias, a Horda caminha, prudente, através do Parque
Industrial. Algumas Fábricas brilham ainda nos sensores térmicos dos biobrinquedos, num
fulgor tórrido de quem insiste em produzir em série artefactos que nenhum humano consumirá.
Fábricas há que insistem em vomitar aquilo que criaram através dos canais subterrâneos, rumo
aos entrepostos de distribuição. Outras, porque o Controlo de Qualidade assinala um crescente
nível de deficiências, voltam a consumir e reciclar tudo aquilo que ainda há pouco produziram,
num ciclo constante de autofagia. Noite alta, imóvel no meio da auto-estrada, a Horda aninha-se
contra as carcaças dos automóveis abandonados, enquanto por muitos e muitos quilómetros em
redor chaminés expelem gazes de combustão, óxidos de carbono, dióxidos de enxofre e azoto,
altos-fornos gemem perto do ponto de fractura, enquanto o solo estremece, devagarinho, numa
constante agonia telúrica. Mas a maior parte dos Complexos Industriais morreram já, não
passam de simples crateras vitrificadas, resultantes do impacte directo de um míssil rival,

Nova – ezine de FC e Fantasia 81 Novembro – 2008


enquanto outros, aparentemente intactos, afinal são simples conchas, esvaziadas por enxames de
mecha-formigas famintas de matérias-primas e compostos orgânicos.
E passadas as Fábricas, sob uma chuvada ácida que lhes consome aos poucos as moléculas
de tinta dos corpos, lhes arranca pequenos tufos das pelagens dotadas de biocrescimento, chuva
que penetra pelas fendas das articulações postas a nu e curto-circuita os componentes eléctricos
dos braços, pernas e rodas, a Horda cruza os entrepostos comerciais onde as encomendas
deviam ser recolhidas, e enviadas para os diferentes pontos do país.
Em cada lado da auto-estrada vêem-se pirâmides de contentores com cinquenta metros de
altura, pilhas derrubadas de caixotes e embalagens onde já ninguém consegue perceber qual foi a
marca de origem. Os toldos e pára-ventos que as cobriam há muito que foram arrancados pelos
ciclones da monção. As Fábricas despejaram aqui tudo aquilo que entretanto foram produzindo,
(pelo menos aquilo que elas consideravam ter o carimbo de qualidade e segurança aprovado
pelas rígidas regras da UE) primeiro com uma ordem minuciosa segundo o tipo de fragilidade e
data limite de consumo, e por fim, à medida que uma embalagem se ia acumulando sobre a
outra, à medida que os túneis de acesso se iam obturando com todo o tipo de detritos, com uma
fúria raivosa pela busca de um espaço disponível, comboio subterrâneo contra comboio
subterrâneo, plataforma móvel contra plataforma rival, num constante e absurdo encavalitar,
que ao longo dos anos se derramou para a própria auto-estrada e que agora dificulta a passagem
a todos os biobrinquedos não dotados de programas de contorno de obstáculos.
E enquanto passam pelo labirinto irracional dos entrepostos abandonados, Noddy50, Zé-
Furão, Action-M7, olham, como quem não quer a coisa, para as Torres de Vigia que ainda
conseguem espreitar sobre as pilhas heteróclitas de contentores. As torres têm a forma de
cogumelos, o topo coberto de placas fotocolectoras e o pé de aglomerados de casulos de
nanomoscas, a maior parte vazios como os favos de papel de um cortiço de vespas assassinadas.
Contudo ainda existem enxames activos, pequenas nuvens zumbidoras sempre a pairarem sobre
a Horda, a interrogarem os protocolos de acesso, ao que a Horda replica, somos brinquedos, simples
brinquedos, estamos a passar, estamos a passar...
Nestes últimos trinta quilómetros a Horda perdeu cinco elementos devido à necrose
irreversível dos componentes orgânicos. Eu bem vos avisei que devíamos ter activado o meu irmão,
explica Zé-Furão a um Noddy50 indiferente. Estamos a perder gestalt gnóstica. Estamos a ficar
estúpidos. Há um limite meu caro. Se perdermos mais vinte elementos a Horda deixará de ser uma Horda. E
ponto final na Missão!
A meio da auto-estrada, entalada numa fractura do pavimento, repousa uma
minidebulhadora, deitada de lado, com os faróis apagados, coberta de nanomoscas ciosas de
informação. Noddy50 não quer permanecer ali durante muito mais tempo. Em breve virão as
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mecha-formigas em busca de baterias e componentes reutilizáveis. A minidebulhadora era um
veículo lento e estúpido, apenas útil para criancinhas que desejassem brincar às quintas.
Noddy50 não lhe sente a falta, como se fosse possível um biobrinquedo sentir a perda de algo
tão estranho e inoperante.
Mas o furão não errou. A perda de cinco elementos diminuiu percentualmente as
capacidades cognitivas da Horda. Aumentou as probabilidades de erros na análise de problemas
emergentes. A auto-aferição tornou-se ainda mais lenta. Os mapas enviados pelo sistema de
GPS tardam a entrar e a serem correctamente interpretados. Noddy50 sente-se confuso, como
se lhe faltasse qualquer coisa, como se os objectivos da Missão que tantos anos duraram a ser
completados, começassem aos poucos a deixar de ter sentido. E uma vez mais, num ciclo quase
obsessivo, inicia um processo de diagnóstico, mas quase só recebe mensagens de erro, os
biobrinquedos dotados de componentes orgânicos insistem que os blocos de gelatina neuronal
têm de ser reciclados, filtrados, reprogramados, substituídos, or else! Quase sem se dar conta
disso, a Horda está a finar-se num processo lento, onde a falta de energia e a fadiga dos
materiais são apenas dois indicadores do inevitável processo entrópico. Noddy50 insiste e insiste
que devem continuar, que faltam poucos quilómetros até encontrarem o Alvo, Zé-Furão uma
vez mais esforça-se por reparar o irreparável. Assustados, os biobrinquedos colam-se uns aos
outros, como se a proximidade física lhes servisse de algum consolo, corpos plásticos ou
metalizados contra corpos felpudos ou escamados, e a tinir, a ranger, a estalar, a faiscar, a
chilrear, a Horda põe-se de novo em marcha, sob uma chuvada cruel que transformou as fendas
da estrada em armadilhas pegajosas e mortais. Colados uns aos outros, os biobrinquedos não se
apercebem deste tipo de perigos. E como não podia deixar de ser numa dessas fendas acabam
por afundar-se duas Barbies mais azougadas, demasiado entretidas em trocar informações sobre
sites de roupas interiores infanto-juvenis para verem onde põem os pés. E esta perda é sentida
pela Horda, não como uma tragédia pessoal, mas apenas como se a gestalt que une todos os
biobrinquedos num objectivo único, tivesse sofrido mais um pequeno AVC.
Para trás ficaram as Fábricas e os entrepostos comerciais. Chegou a vez dos bairros
periféricos, das torres de rendas económicas, dos viadutos elevados (quase todos demolidos),
dos túneis (quase todos alagados) que anunciam a proximidade da Ponte e a neutralidade baça
de uma Urbe devastada.

Noddy50 não quer saber da Inversão Magnética dos Pólos que alterou por completo os
sistemas de orientação por GPS, tornou os mapas mais difíceis de serem lidos, fez disparar

Nova – ezine de FC e Fantasia 83 Novembro – 2008


mísseis carregados de neurotoxinas contra inimigos que afinal nunca existiram. Tudo isto
aconteceu muito antes de se juntar à Horda, antes de despertar numa moradia deserta ao colo
do cadáver do primeiro dono. Por isso mesmo nunca chegou a reter em memória as razões da
catástrofe que levou à Guerra das Singularidades. Para ele (e para os restantes biobrinquedos) o
mundo transformou-se numa linha única (se bem que convoluta) que os levará a todos ao
encontro do derradeiro Alvo. Alvo que está a prestes a desactivar-se, segundo a análise do Zé-
Furão. Os relatórios médicos indicam arritmia cardíaca. Outros dizem que a tonalidade muscular
dos membros locomotores está atrofiada em 60%. Um diagnóstico feito por uma IA orbital
despeja-lhes nos discos rígidos uma quantidade incompreensível de relatórios médicos. Cirrose
hepática. Alzheimer. Parkinsonismo. Demência senil. Psicose. Pneumonia broncotoráxica.
Diabetes. Falha renal.
A migração rumo ao Alvo durou dez anos. Dez anos sempre a caminharem de um Norte que
passou a ser Sul, apoiados numa bússola que deixou de condizer com as indicações programadas
nas unidades mnésicas. Dez anos de marcha lenta, de quebras cognitivas, de hiatos de vários
meses no percurso, da perda de velhos elementos devido a acidentes vários, tudo isto à beira do
perigo de criarem uma mini-Singularidade gnóstica (se forem mais de 500), ou de caírem
definitivamente na anomia cognitiva (se forem menos de 450).
E após tantos anos de marcha, eis que a Horda se encontra enfim perante a Urbe, esmagada,
fumarenta e silenciosa, a estender-se do outro lado da Ponte que atravessa um rio que há muito
alagou as margens e as transformou num lodaçal saturado de jacintos-de-água, pontões
derrubados, cargueiros cortados ao meio pela força da corrente.
Aqui no alto sopra um vendaval implacável. Parte do tabuleiro da Ponte foi levada pelos
ciclones para local incerto. Rasgões no pavimento apontam para um abismo feito de negrume e
ar raivoso. As placas ainda aderentes ondulam num constante ranger, como se fossem vagas de
metal elástico. Os cabos de sustentação silvam como cordas de um violino gigante. A Ponte
berra num canto estridente que se estende por uma eternidade de espera.
A Horda imobiliza-se antes de dar o passo definitivo, junto às cabines de portagem. Zé-
Furão e os Action-M calculam se este movimento ondulatório dos tabuleiros será capaz de
projectar nos ares quem sobre eles se atreva a passar. Mas os cálculos falham sempre por defeito
e mesmo assim, Noddy50 recebe dos companheiros visões especulativas da Hoste fragmentada,
dos cães-da-quinta, das vaquinhas, dos cavalinhos a voar em todas as direcções como se de
súbito tivessem adquirido asas.
A Horda avança uns centímetros para logo recuar, prisioneira num dilema comportamental
de atracção-repulsão. As soluções custam a chegar, agora que perdeu parte das capacidades
cognitivas. São horas e horas de análises falhadas e da leitura de milhares de relatórios de
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prognóstico reservado. Por fim, eliminadas todas as opções graças a um sistema virtual de
tentativa-e-erro, Noddy50 e Zé-Furão enviam à frente as caterpilars dotadas de ventosas, unidas
umas às outras por um sistema de fios eléctricos tomados de empréstimo aos carregadores
eólicos. A seguir avançam as Mamãs Locomotivas, autocarros, ambulâncias e carrinhos de
bombeiros, os tractores da quinta mais os respectivos atrelados cheios a transbordar com uma
massa fremente de mini-animais domésticos, cobertos de plástico aderente não vá o vento levá-
los num só sopro. E por último, de braço dado, os mais pequenos colados aos mais potentes,
seguem os biobrinquedos que têm pés e mãos. Avançam de joelhos ou de rastos, devagarinho,
para que o corpo faça o máximo de atrito contra as placas ferrugentas do pavimento. E
enquanto avançam o vento ruge, os cabos gemem, as juntas metálicas da ponte estalam, os
pilares cospem rebites como quem expele sementes de abóbora, uma poeira sebosa feita de
restos calcinados sabe-se lá de quê cola-se-lhes aos uniformes, fatos de noite ou pelagens, e mais
uma Barbie, un Ken e uma Smart-Dolly, arrancados por um súbito golpe de ar, separam-se da
Horda, elevam-se nas alturas e perdem-se de uma vez por todas na escuridão ruinosa da cidade.
Noddy50 sente-se um pouco mais estúpido. Já quase não entende os avisos constantes do
Zé-Furão. Mas mesmo assim a Horda avança, metro após metro sobre o que resta do tabuleiro,
cega, insistente, teimosa, como um formigueiro em migração. E cinco horas depois, quase sem
se dar conta, chegou ao outro lado.

Há trinta anos que a cidade deixou de corresponder aos mapas. As últimas fotografias do
Google Earth apenas apresentam turbilhões de fumo a rodar em torno das manchas térmicas de
múltiplas explosões. Agora Lisboa é na sua maior parte ruínas, torres cariadas, ruas atravancadas
de entulho. A Horda tem dificuldades em fazer corresponder a localização do Alvo àquilo que
encontra pela frente. Surgiram obstáculos onde dantes nada havia. Desapareceram parques, vias
de acesso, prédios inteiros. Como é então possível virar à esquerda, numa esquina que já não
existe? Como contornar muralhas feitas de cimento, lama e ferragens? Como cruzar crateras
onde ainda crepitam gases de combustão? A Horda engana-se. Avança e recua. É obrigada a
desviar-se dois quilómetros para apenas avançar 100 metros na direcção correcta. E isto sem
esquecer o assédio furioso de milhares de ratos que sobreviveram às neurotoxinas de espectro
múltiplo. Ratos que não querem saber se as carnes dos biobrinquedos são intragáveis. Ratos
esqueléticos e famintos, a intrometerem-se no meio do percurso da Horda, a morderem pés e
rodas, a arrancarem tufos de pêlo a quem os tem, desesperados por um só grama de proteína.
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As locomotivas pisam-nos. Os Action-M espetam-lhes no flanco faquinhas de plástico. Os
carrinhos de bombeiros fazem estridular as sirenes que levaram tantos encarregados de
educação à beira de um ataque de nervos. E contra tudo e todos a Horda avança com Noddy50
e Zé-Furão a fazerem de cunha, confusos e cada vez mais desorientados, cada vez mais
incapazes de resolver simples problemas de contorno. Num só dia, mais dez biobrinquedos
ficam para trás, esquecidos dos demais, levados numa enxurrada que transformou uma rua
inteira num rio caudaloso. A travessia da cidade demora dois meses. Dois meses de vagaroso
progresso, até à base da Torre Sheraton.
Lá no alto acoita-se o Alvo. Um Alvo que nunca mais abandonou a penthouse onde entretanto
se escondeu há 20 anos. Um Alvo cujos circuitos do Centro Médico indicam estar prestes a
perder o tino. A toda a volta da Torre, por milagre intacta, existe um campo de batalha. Por
todo o lado vêem-se esqueletos humanos, vestidos com as respectivas armaduras, engalfinhados
contra um inimigo multipédico, aracnóide, feito de escamas blindadas e juntas de titânio. Dois
hovertanques tentaram entrar no átrio do Hotel e foram logo ali esventrados pelo disparo de
uma bazuca e pelo impulso de uma arma mata-IAs. Zé-Furão pensa vagamente (pois pensar
torna-se cada vez mais difícil) que uma brigada SWAT travou aqui o derradeiro combate. E que
houve um sobrevivente. E que esse sobrevivente, pela força lógica das circunstâncias, decerto
não poderá ser uma...
Subir, diz Noddy50 pelo sistema wi-fi a toda Horda de biobrinquedos. Temos de subir. Está
quase, está quase, está quase...
Meu caro companheiro e restantes parceiros sociais, tenta explicar Zé-Furão. Atentem no que vos digo!
Julgo haver um erro cronológico relativamente aos objectivos últimos desta nossa curiosa Missão. Se fizerem um
pequeno cálculo...
Noddy50 ignora-o por completo. Passa-lhe à frente, cruza os dois hovertanques assassinados,
avança pelo átrio do Hotel onde se encontram mais uns quantos cadáveres encostados às
paredes baleadas, espatinha na alcatifa bolorenta envolto numa nuvem de esporos, e por fim
aponta na direcção das escadas de serviço cujas portas de segurança estão felizmente abertas de
par em par. E a Horda acompanha-o, em fila indiana, como uma torrente de falsa vida, começa
a escalar os primeiros degraus a palrar, a apitar, a latir, a miar, a contar histórias de meninos que
se portaram bem e fizeram todos os trabalhos de casa. Zé-Furão trinca a extremidade da pen que
tanto se parece com um charuto, encolhe os ombros esguios, emite alguns estalidos de
desaprovação, coça a barrigota e junta-se ao grupo.
Que mais pode ele fazer?
*

Nova – ezine de FC e Fantasia 86 Novembro – 2008


A Horda escala 40 andares como quem sobe ao topo do Evereste. Os mais fortes puxam
pelos mais fracos. Os membros dotados de rodas utilizam pequenas rampas encostadas aos
degraus e chegados a um vão de escadas arrastam os outros pelo mesmo caminho, servindo-se
de elásticos e fios eléctricos. Barbies e Kens aplaudem a elasticidade motriz dos Action-M. Os
animais da quinta grasnam, zurram, piam, relincham, balem, receosos que um dos atrelados se
volte e derrame todo um conjunto de minúsculos animais domésticos pelas escadas abaixo.
A Horda não descansa porque o descanso deixou de ter sentido. Os biobrinquedos demoram
um dia inteiro até chegarem ao topo. Mas lá chegados, já não precisam da ligação por satélite
para detectar a presença do Alvo. Afinal todos eles possuem circuitos neurotrópicos. Todos
sabem que se devem aproximar de uma presença viva para requisitarem apoio ou debitarem
interessantes informações de utilidade pública.
A penthouse onde vive o Alvo é qualquer coisa que escapa a qualquer parâmetro de análise.
Alguém a transformou numa floresta tropical dotada de uma cisterna feita para recolher as águas
das chuvas, de uma horta cheia de couves, espargos e batatas. No exterior das janelas estaladas,
rodam as pás de vários acumuladores eólicos que afinal já não acumulam grande coisa. Presas
por grampos na zona descoberta do terraço, as chapas negras dos fotocolectores agitam-se no
vento que atravessa a penthouse de um lado ao outro. Também houve ali espelhos para orientar a
luz do sol e iluminar uma sala que em tempos foi um bar panorâmico. Agora estão todos
derrubados e quebrados, a reflectir o tecto, como se tivessem sido vítimas de um qualquer
incompreensível acesso de raiva. Algumas mobílias sobrevivem ainda num dos cantos, numa
simulação de dormitório e sala de estar. Na extremidade oposta, numa pilha crescente de lixo
que ninguém se deu ao trabalho de remover, vêem-se latas de conserva, garrafas de vinho e
frasquinhos de complexos multivitamínicos.
Pilhas de revistas com corpos nus (alguns mesmo de crianças), enchem as cadeiras vazias. Se
a Horda pudesse cheirar, detectaria um relento de fezes e urina, papel molhado, comida
estragada e vários tipos de odores corporais.
Mas a Horda só tem olhos para a figura sentada numa cadeira que faz as vezes de trono.
Uma figura humana, mirrada, pequenina, a nadar no interior de uma armadura de combate que
já viu melhores dias. O Alvo tem os olhos piscos, as mãos ancilosadas, não possui um único
cabelo no topo do crânio, e o corpo inteiro treme, treme, como se tivesse frio ou não houvesse
mais nada a fazer do que ficar ali a estremecer perante a presença absurda da Horda.
— Gahh... — diz ele. — Kéké ito? Bichos feios? Xêta, xêta.
Noddy50 abre os braços, perdido num êxtase sublime. Rupert19 dança de alegria à volta da
sala, num tosco sapateado de vitória. Uma chusma de Kens e Barbies correm a abraçar aqueles
pés descalços, encardidos e humanos. As Mamãs Locomotivas apitam em sinal de festa. Robôs
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pedagógicos aproximam-se, titubeantes, ansiosos por debitarem questões de resposta múltipla.
E todos eles clamam em uníssono, de viva voz ou por rádio: BRINCA COMIGO! BRINCA
COMIGO! BRINCA COMIGO!
Perplexo, Zé-Furão analisa os circuitos neuronais do Alvo, liga-se aos sistemas de Apoio
Médico que este tem implantados no tórax, e percebe enfim o que se passa. A criatura sentada
na cadeira não é uma criança. Apenas porque é velha e senil, aparenta sê-lo. Está ali escondida,
há anos e anos, um dos poucos humanos que sobreviveu imune ao ataque das neurotoxinas de
espectro múltiplo. Foi com certeza um soldado. E como soldado que é, deve possuir acoplados
aos lobos pré-frontais sistemas de apoio ainda activos, conexões com IAs estratégico-militares.
Até ao presente momento escapou-se a ser abatido, precisamente porque a parte orgânica do
cérebro estava a funcionar mal. Mas agora encontra-se perante uma Horda entusiástica. Uma
Horda que, de um segundo para o outro, por acumulação de funções neuronais interactivas,
atingiu a massa crítica.
Companheiros, diz o Zé-Furão a quem o queira escutar. Perigo. Perigo. Não brinquem com ele! Olhem
que...
Mas ninguém quer saber. Todos os membros semignósticos da Horda ignoram este pedido
tão pouco razoável. Noddy50, de novo inteligente, mais, muito mais do que alguma vez poderia
supor, já não se interessa com mais nada. Chegou onde queria. É o que acontece a todos nós na
presença do Sublime, mesmo quando esse Sublime não dura mais do que alguns minutos.
Após dez anos de busca, a Horda alcançou a Epifania.

E lá no alto, em órbita geosincrónica, o último dos satélites assassinos detecta aquilo para
que foi programado impedir, há meio século atrás. Uma Singularidade espontânea acabou de
nascer entre as ruínas de Lisboa.
Ainda dispõe de três ogivas nucleares de 20 megatoneladas. Durante pico-segundos pergunta
a si mesmo se deve utilizar todas elas, ou guardar uma última para outra ocasião. Por fim
encolhe virtualmente os ombros, resolve dar-se ao luxo de ser gastador ao menos uma vez na
vida, e dispara os três mísseis sobre a cidade, cronometrando ao milímetro o ponto de impacte.
Dez minutos depois os últimos brinquedos da Terra, unidos ao novo dono, transformam-se
em luz, calor e carbono, o que de certo modo é um final feliz para uma história como esta. 

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NOVA – ezine de Ficção Científica e Fantástico, número 3, Novembro de 2008
Editor, revisor e paginador: Ricardo Loureiro
Co-editor: Nuno Fonseca
Crédito da imagem da capa: HubbleSite
Email: thanabur@gmail.com
Site: http://nova-ezine.farvista.net

This is the end


Beautiful friend
This is the end
My only friend, the end
-- James Douglas Morrison

Nova – ezine de FC e Fantasia 89 Novembro – 2008

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