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A20 VIDA& SEGUNDA-FEIRA, 1 DE MARÇO DE 2010

O ESTADO DE S.PAULO

MEMÓRIA

A generosidade do ‘livreiro-mor’ PAULO PINTO/AE - 15/06/2009


dem: a coleção significava o re-
Lilia Moritz sumo de uma vida repleta da
Schwarcz* mais genuína dedicação aos li-
vros.
Umsimpáticojardimsepara-
va a sala da biblioteca propria-
mente dita, como se fosse preci-
ibliotecassemprede- so passar por uma etapa para

B ram muito o que fa-


lar. Grandes monar-
quias jamais deixa-
ram de possuir as
suas, e cuidavam delas, estrate-
gicamente.Afinal,dotesdeprin-
cesas foram negociados tendo
ganharoutra. Jána biblioteca,o
tempo voava. Diferente de ou-
tros “livreiros”, que por costu-
me,segurançaoumedonãoten-
tam facilitar o acesso aos livros,
o dr. José ajudava a tudo e a to-
dos. Não havia documento que
livros como objetos de barga- não pudesse ser pesquisado;
nha; tratados diplomáticos ver- obra que estivesse impedida de
saram sobre essas coleções. Os ser consultada.
monarcas portugueses, após o Tal generosidade estava pre-
terremoto que dizimou Lisboa,
se orgulhavam de, a despeito
dos destroços, terem erguido Mindlin recebia
uma grande biblioteca: a Real
Livraria. D. José chamava-a de seus convidados
joia maior do tesouro real; isso com um sorriso
nos tempos fartos do ouro que farto e um ritual
vinha do Brasil.
Já d. João VI, mesmo na cor-
reria da partida para o Brasil, sentenospequenoshábitos.En-
não esqueceu dos livros. Em quanto pôde (e mesmo quando,
três diferentes levas, a Real Bi- de fato, não podia mais), ele era
blioteca aportou nos trópicos, e sempre o primeiro na fila dos
foi até mesmo tema de disputa. lançamentos. E chegava logo
Nos tratados de independência com3 ou 4 exemplares: umpara
de 1825, a Livraria constou co- si,outro para a biblioteca,os ou-
mo segundo item de uma exten- tros... quem sabe.
sa conta que o Brasil assumia, O tempo é um senhor impla-
com o objetivo de conseguir a cável do destino e nos tolheu da
emancipação. Nas palavras de da.Noentanto,paraosmaispri- OÁSIS DE mo num cerimonial, Mindlin convivência com essa persona-
Pedro I, pagávamos por tradi- vilegiados, a aventura mal co- CULTURA – abria um exemplar a esmo. Po- gem que já era a cara de São
çãoe pelo prestígio que os livros meçava. Era lá que dr. Mindlin Mindlin na deria ter nas mãos um romance Paulo. Uma Pauliceia com mais
trazem consigo. Livros carre- mantinha seu mundo feito de li- biblioteca de do século 19, um incunábulo do tempo, erudição, afeto.
gam conhecimento, são símbo- vros; uma ilha perdida, um oá- sua casa, em 16, um original de Guimarães Diante do inevitável, me veio
lo de cultura, de liberdade e da sis da cultura. São Paulo; Rosa. à cabeça uma frase utilizada na
verdadeira emancipação; que Após ter acesso ao interior entre os 40 Nenhum livro era apenas um Inglaterra e na França, imedia-
é, antes de mais nada, filosófica da casa, o visitante cumpria um mil títulos, livro; era antes um objeto de es- tamente após a morte de seus
e espiritual. delicioso ritual, prontamente li- documentos tima,dereflexão,deamizadeín- reis. Em vez de ficarem com a
Escrevo estas linhas sob im- derado por esse “bibliotecário” raros, como o tima. Contava como tinha obti- tragédia, os súditos preferiam
pacto da morte de nosso “livrei- especial. Era ele quem recebia à rascunho de do o livro em questão, narrava anunciar a perenidade, e em al-
ro-mor”,oquerido dr.JoséMin- porta – sempre com seu sorriso ‘Grande de maneira viva especificida- to e bom som diziam: “Morto o
dlin – como todos o chamavam farto. Era também ele quem le- Sertões’, de des ou curiosidades, e só então rei, viva o rei.”
porintimidade,respeitoemere- vava o convidado até uma sim- Guimarães fechava o exemplar, para se- Vida longa dr. José Mindlin.
cimento. Dr. Mindlin era o mais pática sala;tomadaportapetes, Rosa guir com outro. Que os livros o acompanhem e
generosoedadivosodos“biblio- quadros, e (claro) livros. Ultrapassadaafasedocafezi- garantammuitadiversãoeexce-
tecários”. A primeira etapa do ritual nho,era chegada a grandehora: lente leitura. Agora e sempre. ●
Os transeuntes que resolves- era cumprida lá mesmo: entre adentrar o espaço sagrado da
sem passar defronte de uma pa- um café e outro, ao lado da d. biblioteca, a qual, reformada, * É professora do Departamen-
cata rua no bairro paulistano do Guita –enquanto ela estevepre- enchia os olhos de nosso “livrei- to de Antropologia da USP e au-
Brooklin, com certeza não te- sente –, dos filhos e netos orgu- ro” do mais sincero orgulho. Ela tora, entre outros, de A longa
riammotivosparasedeterdian- lhosos, ou ainda da Cristina, sua era sagrada não porque intocá- viagem da biblioteca dos reis,
te de uma discreta casa mura- fiel ajudante na biblioteca. Co- vel. O motivo era de outra or- pela Companhia das Letras.

Um homem que sabia das limitações da vida


ARQUIVO/AE – 30/08/1989
tas de lideranças empresariais Era visto com desconfiança empresário que é empresário
Celso dosanos70,80 eprimeirameta- pelos dirigentes do governo mi- não pode depender dos crédi-
Ming* de dos anos 90. litar “porque falava russo” e tos oficiais. Tem de avançar
Mas nunca foi um líder con- porque convivia com intelec- com seus próprios meios. Mais
vencional, desses que às vezes tuais, sempre tão suspeitos. do que isso, tem de investir em
aplaudem e outras, discursam Com aquela fala pausada, si mesmo, tem de preparar-se
contra o governo e sua política quase discreta, e sorriso tími- para ser o administrador de seu
ão dá para separar econômica para ficar bem con- do, avisava que o empresário negócio e depois dotá-lo com a

N oempresáriodoho-
mem de cultura,
ambos notáveis.
O nome de José
Mindlin figurou em todas as lis-
ceituado nos corredores da se-
de da Fiesp e candidatar-se de-
pois aos favores de Brasília
com os quais não contava, defi-
nitivamente.
não pode contar com favores
dos governantes. Se a política
do governo coincidir com os ob-
jetivos de sua empresa, então é
justo tirar proveito dela. Mas
melhor tecnologia disponível
no momento.
Lamentava, sim, as agruras
do custo Brasil, a excessiva car-
ga tributária, os juros altos de-
mais, a burocracia paralisante,
a Justiça tão lenta e tão displi-
cente na busca de solução para
os conflitos que cercam o setor
produtivo. Mas considerava es-
sas deficiências apenas proble-
mas adicionais com que lidar e NEGÓCIO – Transformou a pequena fábrica de pistão em multinacional
juntar energia para avançar,
apesar de tudo. po. A despeito da oposição ini- novamente, teve de enfrentar
Enquanto pôde, manteve a cialdosseus sócios,decidiupas- as limitações da vida.
empresaquedirigiu,a MetalLe- sar o controle de sua empresa. Pouco depois de ter comple-
ve, na ponta do setor de autope- Os entendimentos afunilaram tado seus 80 anos, contava
ças. Abriu seu capital no início para um dos seus concorrentes quanto inevitável foi ter de fa-
dos anos 70, modernizou-a, do- internacionais, a alemã Mahle. zer novas escolhas. “Não posso
tou-a de tecnologia avançada, E assim foi feito. ler mais do que dois ou três li-
transformou-a em ilha de exce- No século 4º antes de Cristo, vros por mês, no máximo 36 por
lência, anteviu que seu futuro os sete sábios da Grécia de en- ano. E quantos anos mais terei
pedia mais do que simplesmen- tãoforamconvocadosaosantuá- pelafrente?Uns10?Isso signifi-
te atendimento ao mercado in- rio de Delfos para sintetizar, em ca que só posso ler mais 360 li-
ternoe,porisso,investiunopro- frases curtas, o ideal do pensa- vros, talvez 400...”
jeto de internacionalização. mento grego. E eles apontaram Na condição de consagrado
duas: “conheça-te a ti mesmo” e bibliófilo, José Mindlin foi eleito
“nunca passa do teu limite”. para a Academia Brasileira de
Como empresário Mindlin já havia mostrado Letrasem2006.Paradoxalmen-
antes que sabia conter-se. Mas te, ele nos deixa agora quando o
e intelectual, foi no episódio do desembar- livro passa pela revolução tec-
sempre investiu queda Metal Leveque essaqua- nológica mais importante de-
em si mesmo lidade ficou conhecida. “Meu fi- pois da invenção da imprensa
lho, não é fácil parar. Mas quem por Gutenberg, no século 15.
não para quando tem de parar, Sabe-seláatéquepontoenge-
Um dia entendeu que tinha destrói-se a si próprio” – disse, nhocas eletrônicas, como oKin-
chegadoa seu limitee queo pro- naqueles dias. Quem tem a sa- dle da Amazon, vêm para ficar.
cesso de globalização exigia bedoria de parar quando é pre- Em todo o caso parece inevitá-
maisdoquesimplesmentearro- ciso, também tem a sabedoria vel que o livro virtual ou aquilo
jo e redução de custos. Exigia anterior, a de conhecer-se a si que virá depois dele está fadado
escala de produção ainda próprio, porque sabe dos seus a transformar o próprio livro.
maior,maiscontratosemaisco- limites. Exigirá oredesenho de bibliote-
nexões no mundo dos negócios. Quando repassou a direção cas e livrarias e, eventualmen-
E que a falta de tudo isso derru- da Metal Leve em 1996, deixou te,mudaráoconceitodo queho-
bava decisivamente a qualida- também seu ofício de adminis- je é ser bibliófilo.
de da administração. Isto pos- trador de empresas. E dedicou-
to, não ficou lamentando pelos se definitivamente à Cultura, à * É colunista do caderno
cantos,como tantosno seutem- sua biblioteca e às leituras. E aí, de Economia do Estado

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