S6 sabático
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SÁBADO, 17 DE ABRIL DE 2010
Resenhas A MORTE DE MATUSALÉM
Autor: Isaac Bashevis Singer
Tradução: Alexandre Hubner
Editora: Companhia das Letras
(240 págs., R$ 44)
A AGONIA DE UMA
PAISAGEM HUMANA
Coletânea de contos de Isaac B. Singer retrata o canto do
cisne de uma geração de judeus esmagada pelo século 20
peu, mas cujos fundamentos foram coloca-
LUIS S. KRAUSZ dos em xeque, de maneira radical, pelas ca-
tástrofes do século 20. São os estertores de
MortedeMatusa- uma paisagem humana desaparecida, cujos
A
lém é uma cole- fragmentos o escritor foi recolhendo ao lon-
tâneade 20 con- go de seu caminho, e que se encontram pre-
tos do escritor servados, como frutas em compota, nessas
de língua iídi- narrativas breves, marcadas pela angústia
che Isaac Ba- existencial,pelaconfusãodereferenciais,pe-
shevis Singer la resignação a um humor amargo. Marcadas
( 1 9 0 4 - 1 9 9 1 ) , pelatradição literáriade línguaiídiche,leem-
vencedor do se entre um sorriso e uma lágrima.
Prêmio Nobel de Literatura de 1978, origi- O conto que dá nome ao livro tem como
nalmente publicados em tradução inglesa singularidade o fato de não estar ambienta-
em várias revistas norte-americanas, co- do no mundo – ou melhor, nos mundos – em
mo a New Yorker e Esquire. que Singer viveu, isto é, a comunidade judai-
Assim como o livro 47 Contos de Isaac Ba- ca de Varsóvia e a comunidade de expatria-
shevis Singer, lançado em 2004, trata-se de dos em Nova York, para onde o autor emi-
uma amostra abrangente do imaginário e grou em 1935. Passa-se, em vez disso, num
das memórias deste escritor que traduz, tal- universo mítico que recria a atmosfera das
vez de maneira mais incisiva do que qual- narrativas bíblicas, emprega imagens, ex-
quer outro, as perplexidades e a desorienta- pressões e figuras de linguagem originárias
ção da sociedade judaica do Leste europeu, e da tradição, porém subverte-lhes o sentido
seus confrontos com a moralizante e embara-
dissolução dosparâme- lha seus significados.
tros éticos que a funda- **
A heresia é o tema Estabelece-se, assim,
mentavam desde a Ida- uma narrativa apócrifa
de Média; com o frenesi central das narrativas cuja chave é a heresia:
da modernidade urba- reunidas no volume, Matusalém, ao fim de
na e industrial e, sobre- que rompem com os sua longa vida, sucum-
tudo, com a emigração be aos encantos de uma
e o genocídio. Aqui des- mitos tradicionais mulherqueolevadeen-
filam personagens divi- ** contro a uma assem-
didos entre as lembran- bleiadehereges,instruí-
çaseos saboresdoVelho Mundoeas realida- dos em todo o tipo de perversidade.
des de uma sociedade materialista; entre o E a heresia é o tema que perpassa as de-
legado da tradição religiosa e os impulsos mais narrativas aqui reunidas, ambientadas
incompreensíveis do coração humano; en- dos dois lados do Atlântico, mas que invaria-
tre as idealizações do passado bíblico e o ca- velmente rompem com os mitos tradicio-
ráter brutal das realidades sociais. nais e muitas vezes açucarados do Shtetl (al-
A obra de Singer pode ser vista como o deia judaica do Leste europeu). Singer passa
canto do cisne de uma geração dividida en- longe da idealização deste universo folclóri-
tre dois mundos, que trazia intacta a memó- co para enfatizar a crueldade e a injustiça
ria da integralidade judaica do Leste euro- presentes também neste mundo. Se para os
CUERPOS DIVINOS
Autor: Guillermo Cabrera
Infante
Editora: Galaxia Gutenberg/
Círculo de Lectores (Importado)
(580 págs., € 22,60)
Cuerpos Divinos se passar por um testemu-
CABRERA nho contra a Revolução Cubana está desper-
diçandomunição:há umacontagianteprofu-
sãodeenergiapositivanaspáginasdoroman-
INFANTE ce.Umpaísmiserável,analfabeto,expropria-
do, recebe uma lufada de esperança quando
um grupo de revolucionários toma o poder
REVIVE com ideias de democratização absoluta da
dignidade humana. Alguns membros desse
grupo acabam por desvirtuar a revolução e a
NO PAPEL tornam distinta, em certos pontos, daquilo
que prometeram que seria inicialmente. No
campo da política, é um romance sobre a
luta pela hegemonia dentro do Estado.
Cuerpos Divinos coloca os leitores em con-
Livro publicado na Espanha tato com o que há de melhor e de pior de seu
traz o melhor e o pior do autor: sua exuberante sensualidade; a super-
fície do mundo que ama; a visão infantiliza-
cubano que morreu em 2005 da e limitada do fenômeno político. Não que
a Revolução Cubana seja defensável – muito
antes pelo contrário. A questão é que aquilo
que Cabrera coloca em cena, como intelec-
tual, é risível. O livro de ensaios Mea Cuba,
VINICIUS JATOBÁ sua grande obra política, se salva pelo hu-
mor, pela qualidade da prosa; do ponto de
vista de seu tema principal é constrangedora
leitor dedicado é – opera dentro de um mundo moralista, de
O U
um animal egoísta, bem contra o mal, de heróis e vilões.
até mesquinho, e Assim, Cuepos Divinos não é a obra-prima
poucos podem es- que poderia ser: tivesse seguido o caminho
conder seu efusivo do magistral La Habana para Un Infante Di-
contentamento funto – que merecia uma reedição pela Com-
com a saudável vida panhia–,esseromancepóstumoseriaperfei-
póstuma do cubano to, ainda que sem um último polimento do
Guillermo Cabrera autor. Se cada homem é sua própria geogra-
Infante (1929-2005): depois da belíssima e fia, como o narrador afirma, Cabrera Infante
sensual e erótica novela La Ninfa Incons- tem o mapa de Havana tatuado no seu corpo.
tante saiu há pouco na Espanha o romance Domesmomodo queno romantismo os per-
Cuerpos Divinos, ele mesmo um corpo divi- sonagenssofriamadoençado campo,osnar-
no de 600 páginas, ágil, caloroso, repleto radores de Cabrera sofrem de aguda urbani-
de jogos de linguagem. te: são hiper-excitados pelo concreto, ruas
O melhor de tudo é que a viúva do escri- velozes, prédio eriçados. O leitor se perde
tor, Miriam Gómez, anunciou que existem feliz na companhia dos afogados que pulu-
mais dois romances inéditos e um livro de lam nos romances de Cabrera.
contos. No Brasil, Cuerpos Divinos será edi-
tado pela Companhia das Letras. ✽ contraditoriedade a que nos acostumaram
A imprensa internacional que quer fazer VINICIUS JATOBÁ É CRÍTICO LITERÁRIO
nostálgicosouniverso doShtetlassumecon-
tornos tanto mais paradisíacos quanto mais
aHistóriadeleseafasta, Singerretratajáden-
tro desse mundo os germes de sua destrui-
ção, para depois mostrar como os dali egres-
sos são precipitados na desorientação de um
universo caótico, habitado pela crueldade
dos impulsos sangrentos e pela perda da fé.
Traições, mentiras e todo tipo de astúcia
são os instrumentos a que recorrem esses
personagens desenraizados, cujos pactos
são apenas aparências e cujas crenças per-
deram a substância.
A arbitrariedade e os caprichos do desti-
no, a incoerência entre o caráter e a sorte
das pessoas, as dúvidas quanto à justiça
divina e o caráter ilusório das crenças e das
ideologias são a matéria-prima da qual se
fazem as trajetórias e os descaminhos aqui
representados. Mas o ceticismo com que o
narrador observa seus contemporâneos
passa longe da paixão moralizante dos pro-
fetas bíblicos para acolher a tudo com sere-
nidade e empatia, de maneira que esses
contos se tornam, também, retratos com-
passivos da própria condição humana e de
seus limites. Lançam um olhar sarcástico
sobre as aporias com que se defronta o ser
MÚSICA E
POLÍTICA
NA VELHA
RÚSSIA
Pesquisa cuidadosa ajuda
a descortinar fascínio pelos
compositores soviéticos
GILBERTO MENDES
ma festa o lança-
mento de Círcu-
los de Influência,
de Marco Auré-
lio Scarpinella
Bueno,sobremú-
sica e política na
União Soviética.
O mesmo autor
jáhavia publicadoumabiografiadocomposi-
tor Alfred Schnittke. São pesquisas que ali-
mentamo fascíniopela música da SantaRús-
sia, como era conhecida a velha Rússia de
todos os tempos. Desde Mussorgski, defini-
do por Mário de Andrade como “gênio que
resumiu a profundeza trágica, o humorismo
sinistro,aalegriadescabelada, osentimenta-
lismo pueril, a barbárie incontida, a ingenui-
dade meiga, a inocência, toda a multifária
os escritores e fatos históricos da Rússia”.
O ESTADO DE S. PAULO
KATHY WILLENS/AP
humano desde sempre, e é isto que lhes Singer. Universo
confere um caráter universal. caótico, habitado
pela crueldade
✽ de impulsos
LUIS S. KRAUZ, DOUTOR E PÓS-DOUTOR EM LITE- violentos e pela
RATURA E CULTURA JUDAICA PELA USP, É AUTOR ausência de fé
DE RITUAIS CREPUSCULARES: JOSEPH ROTH E A
NOSTALGIA AUSTRO-JUDAICA E AS MUSAS: POE-
SIA E DIVINDADE NA GRÉCIA ARCAICA (EDUSP)
}
Trecho
No exílio, não se pode levar uma vida nor-
mal. A pessoa tem de se esgueirar entre os
que detêm o poder e as armas. Tão logo
adquirem o poder, os homens se tornam
maus, dizia meu pai. Os que têm facas, apu-
nhalam, os que andam com pistolas, ati-
ram, e os que empunham canetas, redigem
leis invariavelmente favoráveis aos la-
drões e assassinos. Quando cresci e come-
cei a ler livros leigos, convenci-me de que
as palavras de meu pai sobre os judeus va-
liam para toda a raça humana e até para os
animais. Os lobos devoram as ovelhas, os
leões atacam as zebras...
CÍRCULOS DE INFLUÊNCIA
Autor: Marco Aurélio Scarpi-
nella Bueno
Editora: Algol
(800 págs., R$ 75)
E a Rússia continua linda, a mesmíssima
coisa, do czar a Stalin, conforme podemos
ler neste precioso livro. Nele vamos reco-
nhecerosproblemas russos de todosos tem-
pos, aquela dialética dilacerante entre uma
extrema vanguarda e um extremo reaciona-
rismo histórico, marcados pelo autoritaris-
mo. A dramática luta de Shostakovitch con-
tra os mandamentos do Manifesto Zdanov!
Ao mesmo tempo, sua submissão, em dado
momento, quando ele compõe A Canção da
Floresta, e chora depois de sua estreia, sen-
tindo-se derrotado por ter atendido a uma
exigência do Partido Comunista.
Outromomentofortedo livroésobre o“lo-
veaffair”entreShostakovitcheGalinaUstvol-
skaia, aluna querida. É quando entramos em
contatocomumanovageraçãodecomposito-
res, que começam a emergir e ganhar notorie-
dade, entre eles a própria Ustvolskaia e Sófia
Gubaidulina. E com elas, Valientin Silvéstrov,
vanguardista dos anos 60, que foi proibido de
frequentaroscursosdeDarmstadt,naAlema-
nha, em 1961. Edison Denísov teve mais sorte
e chegou a se mudar para a Alemanha. Os dois
representambematentativadeumaneuemu-
sik à la russe. E a reação a essa tendência mais
germânica vamos encontrar finalmente em
Schnittke,comseupós-modernismomusical.
Igualmente interessante é a música dode-
cafônica russa de Nikolai Roslavets e Arthur
Lourié. Ou o trabalho do pintor e composi-
tor Jef Golyscheff, que acabou vindo para o
Brasil,depois delibertodeumcampodecon-
centração, no fim da guerra. Aqui foi desco-
berto pelo professor Zanini, da USP, traba-
lhando como químico numa indústria do
ABC, meio esquecido das coisas. Todo um
vasto panorama musical russo é descortina-
do neste apaixonante Círculos de Influência.
Basta agora tocar e ouvir essa música.
✽
GILBERTO MENDES É COMPOSITOR, CRIADOR DO
FESTIVAL MÚSICA NOVA, AUTOR, ENTRE OUTROS,
DE UMA ODISSEIA MUSICAL (EDUSP) E COLUNIS-
TA DO CADERNO 2 + MÚSICA