O diplomata que levou Geisel aos comunistas Ovídio Melo fez a ditadura reconhecer a independência e o novo governo de Angola
Roberto Simon Com o país em convulsão, o re-
ENVIADO ESPECIAL presentante do governo Geisel RIO viu, no dia da independência, a bandeira portuguesa no Palácio Aos 84 anos, Ovídio de Andrade Nacional de Luanda dar lugar à Melo vive a rotina típica de um rubro-negra, com foice e marte- aposentado do Leblon. Acorda lo estilizados, do MPLA. cedo para ler jornal, caminha Em nome do pragmatismo, o após a sesta, cuida da diabete. Itamaraty ignorou a coloração Mas a morosidade da velhice es- ideológica do novo governo e re- conde um passado tumultuado. conheceuoMPLAdomédicoAn- Melo encarnou o que foi talvez o tónio Agostinho Neto às 20h01 episódiomaispolêmico dahistó- de Brasília (com o fuso horário, ria do Itamaraty, quando, em no primeiro minuto do dia 11 em 1975, o Brasil do general Ernesto Angola). O Brasil era o primeiro Geisel reconheceu a indepen- país a ter relações com Luanda. dência de Angola e seu novo go- Meloerauma daspoucas auto- verno socialista, que recebia ar- ridades não africanas na plateia mas da URSS e tropas de Cuba. da cerimônia de posse, sentado Fluminense de Barra do Piraí, aolado deumrussoeumiugosla- Recordação. Melo mostra quadro que pintou do Porto de Luanda: diplomata foi ‘punido’ e enviado à Tailândia e Jamaica Melo recebeu do chanceler Aze- vo. O avião com as delegações redo da Silveira, no início de estrangeiras não conseguiu pou- havia sido metralhada. Em seis do Brasil, ouviu o telégrafo api- A fama de esquerdista não era 1975,ocargoderepresentantees- sar na capital a tempo – o aero- ● Passado meses de Luanda, Melo, que já tar. Saiu um texto curto: “Onde nova. Com o golpe de 1964, Melo pecial do Brasil em Angola. Ele porto estava sendo usado para era franzino, perdera dez quilos. estão os cubanos?” recebera um questionário com a deveria coordenar a posição bra- desembarcar tropas cubanas. CELSO AMORIM Até a motoneta que ele comprou As tropas de Cuba começaram pergunta: “Dizem que o senhor é sileira diante da iminente inde- “Não tinha comida no país, CHANCELER BRASILEIRO para a embaixada, único veículo a chegar no dia da independên- esquerdista. A quem o senhor pendência angolana e a forma- mas fizeram um bolo com o ma- “Aprendi com capaz de transitar por Luanda, cia, garante Melo. “Poderia ha- atribuiessaacusação?”“OItama- ção do novo governo. padeAngolapara Agostinhocor- o embaixador foi roubada. ver instrutores e espiões antes. raty era aristocrático, metido a Em busca de uma nova era nas tar. Ele disse ‘não quero partir o Ovídio, meu “Contra a opinião do ministro Mas não na capital, onde eu e sebo. Nós (Melo e Zappa) éra- relaçõescomaÁfrica,Geiselque- país’. E o representante iugosla- primeiro chefe Ovídio Melo, sou levado, por tu- meus funcionários estávamos.” mos democráticos. É claro que ria provar que o Brasil rompera a vogritou‘queroficarcomopeda- no exterior, do que vi e ouvi (em Luanda), a O assunto, justifica, era “secre- estávamos à esquerda daquela solidariedade com o colonialis- ço de Cabinda’! (enclave rico em lições de solicitar a Vossência a retirada tíssimo” para Agostinho e ele gente”, diz ele hoje. mo português. Angola seria o petróleo)”, relembra, aos risos. patriotismo” imediata dos funcionários”, di- não tinha acesso a esse tipo de Antes de Angola, Melo já havia grande exemplo. zia a mensagem, escrita a três informação. passado por postos de prestígio. Quando Melo desembarcou ‘Pró-MPLA’. Contraditório na meses da independência. Silvei- O historiador Dávila descon- Foi representante na ONU para em Luanda, Portugal havia aca- aparência, o reconhecimento de ra recusou o pedido de Zappa. fia da versão do brasileiro. Para assuntos de descolonização, o bado de se comprometer em sair Angola pela ditadura anticomu- “Só soube desse telegrama pe- ele,MeloeZappasabiam dosins- quelhe rendeu ascredenciaispa- de Angola até o dia 11 de novem- nista brasileira enfureceu a “li- quando Agostinho tomou o con- lo professor Dávila”, diz Melo. trutores cubanos. “Mas isso era rair aLuanda,eserviu comocôn- bro daquele ano. Antes da retira- nha-dura” dos militares, setores trole de Luanda, o grupo “já era o “Zappaestavacom medoedesis- tido como algo necessário para a sul-geral em Londres – onde foi da, haveria uma eleição – que lo- conservadores do País e a diplo- governo”.“Élógico queteríamos tiu. Queria fechar a representa- sobrevivência do MPLA.” o primeiro chefe de um jovem e go descambou para guerra – en- maciaamericana.Melofoiacusa- relações privilegiadas com eles.” ção e deixar dois portugueses lá, “habilidoso” diplomata recém- tre três facções: o Movimento do de ter ludibriado o governo Recentemente, Jerry Dávila, sendo um salazarista. Mas eu Volta. Um mês após a indepen- saído do Instituto Rio Branco, Popular de Libertação de Angola para reconhecer a facção aliada a historiador da Universidade da não. E Geisel foi muito firme.” dênciaangolana,Melofoirecebi- um tal de Celso Amorim. (MPLA), ligado a Moscou e Moscou. Carolina do Norte, descobriu na A pressão sobre o brasileiro do no Brasil com um gelo do Mas, poucos meses após Gei- Cuba; a Frente Nacional de Li- “O Ovídio era totalmente pró- Fundação Getúlio Vargas (FGV) cresceu dias após a independên- chancelerSilveiraeumapromes- sel cumprir sua promessa de ini- bertação de Angola (FNLA), MPLA. Foi ele o responsável pe- do Rio um documento sobre a cia, quandoo entãosecretáriode sa de promoção a embaixador ciar uma nova era nas relações apoiada por EUA, China e Zaire; lo reconhecimento”, diz o jorna- saga do Brasil em Angola. Trata- Estado dos EUA, Henry Kissin- quesó seriacumprida11anosde- com a África, Melo foi isolado e a União Nacional para a Inde- lista Fernando Câmara Cascudo se de um telegrama no qual Ítalo ger, anunciou ao mundo que Fi- pois, com a redemocratização. com um posto na Tailândia. “Eu pendênciaTotalde Angola (Uni- (filho do folclorista). Ele traba- Zappa, chefe de Melo e arquiteto del Castro estava enviando suas “Silveira preferiu promover um era problema e o Itamaraty me ta), aliada à África do Sul. lhou para o maior jornal do país, da estratégia para reconhecer as tropas de elite a Luanda. Era o diplomata ligado ao SNI (Servi- querialonge.”Em seguida, servi- “Deveríamos manter uma po- da FNLA. Ao diário, incorporou ex-colôniasportuguesas,exorta- início de Operação Carlota, que ço Nacional de Informações).” ria na Jamaica, até se refugiar, sição neutra e, no dia 11, ‘dar as slogans da ditadura brasileira: va o chanceler a desistir da em- buscava conter o avanço dos sol- Melo ainda recebeu alguns in- aposentado, no Leblon. batatas’ ao vencedor”, lembra “Angola, ame-a ou deixe-a.” preitada angolana. dados sul-africanos em Angola. desejáveis avisos de colegas. “A Hoje, questionado se retor- Melo. Mas o cronograma ruiu, os (Mais informações nesta página.) Zappa temia a piora da violên- Melo não havia informado o Marinha quer te matar”, disse nou a Angola depois de 1975, Me- três grupos entraram em guerra Melo veste a carapuça de “pró- cia – a missão brasileira, a única Itamaraty sobre os soldados de um. “Você vai ser preso”, alertou lo dá com os braços. “Não teria e a África do Sul invadiu Angola. MPLA”. Ele diz que, em agosto, ocidental em funcionamento, já Fidel e, após meses sem notícias outro. mais nada a fazer por lá.” ARQUIVO/AE
PARA ENTENDER
Geisel e o e fontes de energia capazes de
atenuar o impacto do primeiro pelo comandante da Frelimo, Samora Machel, mas a oferta ‘pragmatismo’ choque do petróleo (1973-1974) foi recusada por causa do his- na economia brasileira. “Havia tórico de apoio brasileiro a A diplomacia do presidente uma forte noção de que Angola Portugal. Ernesto Geisel afastou-se do era a porta de entrada para a Além de Angola, o governo forte alinhamento com os África e o Brasil havia perdido Geisel entrou em choque com EUA que havia sido adotado muito tempo apoiando o colo- os EUA em outros temas. O na primeira fase da ditadura nialismo português”, afirma ambicioso acordo nuclear militar, após o golpe de 1964. Jerry Dávila, historiador da Uni- com a Alemanha Ocidental O Itamaraty deveria passar a versidade da Carolina do Norte, para construção de reatores se pautar pelo princípio do que está escrevendo um livro foi criticado em Washington. “pragmatismo responsável”, sobre a história da diplomacia E o Brasil, cortejando o bloco termo cunhado pelo chanceler brasileira na África. Antes de árabe, decidiu votar em favor Azeredo da Silveira. Angola, o Brasil já havia tentado de uma resolução da ONU que Geisel olhava para a África se aproximar da recém-indepen- considerava o “sionismo uma em busca de novos mercados dente Moçambique, governada forma de racismo”. Anticomunista. Comício da Unita, de Savimbi, na região central de Angola: apoio sul-africano
rios ao lado das forças da FNLA e Jerry Dávila, historiador da
Brasileiro teria trabalhado para a CIA no país da Unita. “Eram soldados de eli- te, com treinamento anfíbio e de Universidade da Carolina do Norte, afirma que essa região paraquedista,quevinhamdoter- africana nos anos 70 era “desti- REPRODUÇÃO ritório moçambicano. Gente no preferencial” de mercenários Ovídio de Andrade Melo e seus Angolaem1975.Nafolhadepaga- zade” com o líder da FNLA per- muito qualificada.” saídos de forças especiais. Os dois subordinados do Itamaraty mento,obrasileirorecebeocodi- mitiuqueelefosseoúnicorepór- Osmercenários brasileirosga- brasileiros não deviam passar de não eram os únicos brasileiros nome“Falstaff”. “Eletinhaorgu- ter em Angola a ter acesso à fren- nhariam entre US$ 3 mil e US$ “um punhado”, diz Dávila. “E “emmissõesespeciais”emAngo- lho de falar que trabalhava para a te de batalha. “Holden me levava 10 mil, pagos em contas da FN- não há sinal de que eles tenham la à época da independência. O CIA”, diz hoje Melo. comeleeassistiamuitoscomba- LA em Bruxelas. sido enviados pelo Exército.” jornalistaFernandoCâmaraCas- “Nunca trabalhei para os ame- tes.” Cascudo relata que havia “pe- Alémdereconhecer o governo cudoprestouserviços aocoman- ricanos e jamais trabalharia para Cascudo afirma que quem ga- lomenoscem”instrutoreschine- pró-Moscou estabelecido em dante da FNLA, Holden Rober- uma nação que não é a minha”, nhou a guerra angolana “foram sesno Zaire(atualRepública De- 1975, o presidente Ernesto Gei- to,de quem afirma ter sido “ami- rebateu Cascudo ao Estado. Ele os cubanos”. Mas, em seguida, mocrática do Congo). Como a sel chegou a vender e doar equi- go pessoal”. publicou um livro sobre sua ex- ameniza a fala: “Trabalhei para o URSS dava forte apoio ao MPLA pamento militar ao MPLA. A Mas o episódio mais obscuro periência, Angola, a guerra dos FNLA, mas reconheço que o de António Agostinho Neto, a transação era feita via Líbia e o da passagem deCascudopor An- traídos. “Trabalhava, como jor- MPLA tinha melhores quadros.” China decidiu aliar-se ao FNLA Brasil não a reconhecia oficial- gola é seu suposto envolvimento nalista, para o Holden e fui para deRoberto.“Os paísesdavam di- mente. Ao todo, quase 1.400 ca- com a CIA. O nome do jornalista lárefazeroprojetográficododiá- Mercenários. Em sua passa- nheiro para Mobutu (Sese Seko, minhões de 25 toneladas, além é citado nas memórias do espião rioProvínciadeAngola,quetrans- gem por Angola, Cascudo diz ter ditador do Zaire), que roubava a de 42 blindados e fuzis foram John Stockwell, chefe das opera- formamos no Jornal de Angola.” encontrado “uns dois” brasilei- Falstaff. Jornalista Cascudo maior parte e dava um pouqui- vendidos.Fardas ecoturnosaca- ções clandestinas da agência em Segundoojornalista,sua“ami- rosque atuavam como mercená- ao lado de Holden Roberto nho ao FNLA.” baram sendo doados. / R. S.