Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Anderson S. Freixo
nome no visor, mas acha que ouvir a msica melhor que atender a ligao: no vai dar
mais pra chorar, nem pra rir. A msica para. Outra vez os primeiros acordes. Cu abre
o fundo do celular e tira a bateria. Coloca uma baby-doll rosa e vai at a cozinha. Pega
uma Smirnoff de frutas vermelhas j consumida at a metade e acomoda-se no sof,
bebendo do gargalo.
Ergue o brao que segura a garrafa e d um gole, desce o brao depois. Fitando o
nada. Ergue o brao, gole, desce o brao. Tentando pensar em qualquer coisa que valha
o esforo de pensar, mas nada lhe ocorre. Ergue o brao. Gole. Desce o brao. Queria
querer cantar. Queria conseguir chorar. Ergue. Gole. Desce.
Vai at o quarto e pega seu estilete. Deita no sof. Observa o pulso. No deveria.
Pensa ainda um pouco antes de se decidir. Faz um corte paralelo s veias do pulso, que
cruza com a linha reta de uma ferida mais antiga. Outro risco no invlucro frgil de sua
alma. Outro pequeno motivo para se odiar no espelho. Cu lambe seu sangue e goza sua
dor, que, por instantes encobre a outra dor, que no como a dor do corte: uma dor
oca, uma dor muda, da impossibilidade mesma de comunicar.
Cada corte, uma dentada do vazio. Plida, arranhada, ferida, deitada, de olhos
fechados, pensa: absurdo. E ela nem consegue
chorar.