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APRESENTAÇÃO – DEFESA DA DISSERTAÇÃO

Acredito que a forma mais interessante de apresentar a dissertação ora avaliada é tentar
mostrar sua relevância para além do mundo acadêmico, como que prestando contas ao corpo social
que, de diversas formas, tem depositado sua confiança no nosso trabalho. Devemos lembrar que, na
maioria dos casos, essas pessoas, em sua cumplicidade e apoio em relação ao que fazemos, não têm
a mínima ideia do que pesquisamos. Na verdade, mal sabem ao certo o que significa o termo
“pesquisa”. Se nos apresentamos a elas como “cientistas”, certamente nos tomarão por mentirosos,
pois nem ao menos usamos jalecos brancos ou lidamos com tubos de ensaio. Por isso, creio eu,
momentos como esse, no qual se defende publicamente o fruto desses dois anos de trabalho, devem
representar uma aproximação com a comunidade extra-acadêmica, sem a qual nosso esforço seria
impensável.
Inicio essa apresentação com uma descrição sucinta daquilo que é tratado nesta dissertação.
Nela são analisadas as práticas preservacionistas efetivadas nos órgãos públicos federais, regionais
e locais. O termo “práticas preservacionistas” designa o conjunto de ações e políticas públicas
direcionadas à salvaguarda do que se tem chamado ora de “patrimônio histórico e artístico”, ora de
“bens culturais”. O principal motivo pelo qual bens materiais e imateriais são assim preservados
talvez seja o desejo de atestar a existência de uma verdadeira nacionalidade. A partir de uma
definição consensual relativa a essa nação brasileira, seja ela imposta pela força, pela autoridade
discursiva ou pelo convencimento, ou mesmo apenas pela concordância tácita, tem-se investido
recursos públicos para provar que ela de fato existe. Definir o que é a nação implica definir o que é
o brasileiro e o que ele deve ser ou fazer. No entanto, sabemos que “os Brasis são muitos” e, por
conseguinte, também o são as ideias sobre a nação brasileira.
Percebe-se então que o assunto é importante. Especialmente neste período de Copa do
Mundo de Futebol e de eleições para ocupação dos mandatos eletivos federais e estaduais, notamos
um especial apelo ao nacionalismo. Trata-se de um assunto importante não apenas por ser atual,
mas por interessar consciente ou inconscientemente perto de 200 milhões de pessoas que, por serem
consideradas “brasileiras”, possuem uma série de direitos e deveres constitucionais, preceitos
morais e gostos cujo limite é a normalidade (posso então ser preso, admoestado, internado,
desprezado ou até torturado por não me portar como um “brasileiro”). Estudar as práticas
preservacionistas se mostra importante pois, por intermédio delas, tem-se definido, há mais de 70
anos, o que é a Nação e o que é ser brasileiro. É certo que, hoje em dia, é a mídia, sobretudo a mídia
controlada por grandes grupos capitalistas, que cumpre predominantemente esse papel. No entanto,
nem mesmo ela prescinde do embasamento e legitimidade fornecidos pelos órgãos públicos de
preservação patrimonial. Além disso, a análise das ações efetivadas nesses órgãos nos permitem
compreender o que entendemos hoje por nação, bem como os mecanismos a partir dos quais ela foi
e tem sido constantemente forjada.
Por esses e outros motivos, as práticas preservacionistas nacionais têm sido
sistematicamente analisadas pelo menos desde a década de 1990. Esses estudos procuram mostrar
quais foram as ideias de nação que estiveram por trás das práticas preservacionistas efetivadas
desde 1937, durante o Governo de Getúlio Vargas, com a criação do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. A estratégia analítica empregada com maior frequência tem sido a
observação do perfil predominante dos bens preservados e o relacionamento disso com mecanismos
de imposição e legitimação de um discurso que assim se torna hegemônico. Constatou-se então que,
até fins da década de 1970, desejou-se construir uma imagem da Nação brasileira que fosse católica
e composta por três raças, desde que ficasse claro o predomínio do elemento português e branco.
Após esse longo período, passou a ser notada uma maior valorização da pluralidade e
heterogeneidade da cultura nacional, ampliando o conceito de patrimônio e englobando uma série
de saberes e fazeres de grupos até então alijados de nossa memória nacional.
Muito embora esses estudos tenham contribuído em muito para a desnaturalização das
práticas levadas a cabo nos órgãos preservacionistas nacionais, a ênfase relativa aos discursos
dominantes acabou por obscurecer os dissensos que também constituíram essas práticas.
Pesquisando inicialmente algumas obras historiográficas ligadas às práticas
preservacionistas nacionais, especialmente as paulistas, acredito ter encontrado uma forma de lidar
com os problemas acima elencados. A fim de mostrar como o conhecimento produzido pela história
da historiografia pôde me ser útil neste trabalho, gostaria antes de me arriscar a discorrer sobre o
papel que a narrativa histórica cumpre na vida das pessoas.
Na condição de seres que têm consciência de sua própria existência enquanto sujeitos
imersos em determinadas redes sociais, diariamente agimos visando efeitos esperados, desejando
suprir tanto nossas necessidades individuais quanto coletivas. É certo que o grau de sucesso dessas
ações é algo que não depende exclusivamente de nossas vontades: ele varia em função de nosso
conhecimento pregresso do tipo de ação a ser intentada e das condições objetivas de sua efetivação.
Desse modo, quando agimos no presente o fazemos com base num conhecimento acerca do
passado visando algum efeito no futuro. Por mais automáticas que sejam nossas ações, elas se
baseiam na organização da consciência temporal subjetiva. Ligamos assim nosso conhecimento do
passado a um desejo futuro por intermédio de nossa ação no presente. Por exemplo: se quero fazer
raiva em alguém, devo recorrer às coisas que eu disse no passado e que enfureceram meu
adversário. Sem esse conhecimento à disposição, posso incorrer em erros: imaginem que, querendo
ofender o candidato José Serra eu o chame de neoliberal. Para mim isso seria uma ofensa, mas para
ele certamente não. Mas isso ainda não é história, é apenas uma organização individual da
consciência temporal para a ação.
Lidamos com a história (não necessariamente com a historiografia), quando nos vemos
diante da necessidade de explicar ou compreender essas ações. Quando cometemos um equívoco
geralmente recorremos à experiência temporal para nos justificarmos, ou melhor, para nos
explicarmos. Por isso dizemos: “mas a culpa é sua, foi você que mandou!”, “todo mundo tem feito
isso!”, ou “fiz isso por causa disso visando aquilo”. Podemos também buscar na experiência
temporal os motivos que levaram uma pessoa ou grupo a agir de determinada forma (isso
geralmente não funciona na tentativa de compreender as mulheres). As coisas só adquirem
“sentido” através de uma narrativa, e isso é comum na vida cotidiana. Recentemente o técnico
Dunga recorreu à historicidade da atividade futebolística para explicar o mal futebol apresentado
pela seleção no primeiro jogo da Copa, contrapondo uma espécie de futebol nacionalista pretérito
ao atual e inescapável futebol globalizado contemporâneo. Isso tudo porque o futebol brasileiro
estava carecendo de sentido.
Não é apenas o mundo do futebol que precisa de sentido (por mais que pareça não o
possuir). Todas as ações compartilhadas coletivamente devem ser compreendidas mutuamente,
justificando-se porque irão “dar certo” e porque determinadas pessoas e não outras devem realizá-
las. A história fornece então sentido à ação coordenada e delimita as identidades. Como exemplo
disso, poderíamos dizer que é a história que por muito tempo forneceu o sentido de se ser brasileiro,
pois seria no passado que encontraríamos os elementos de uma nacionalidade permanente,
essencial. Poderíamos também dizer que é novamente no passado que encontraríamos o
conhecimento necessário para uma ação visando um futuro ideal. Em cada época e lugar do país
esse conhecimento relativo ao passado (seja ele verdadeiro ou não) foi organizado de diferentes
formas, almejando efeitos também diversos em função de ações coordenadas a serem efetuadas no
presente.
Sendo assim, as práticas preservacionistas nacionais também geram constantemente
carências de sentido, o que torna a construção de narrativas históricas sua principal atividade. A
finalidade do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi, inicialmente, legitimar
historicamente as ações do Estado Novo. Ao longo de sua atuação, passou a ser necessário produzir
narrativas que justificassem sua própria atuação e que, além disso, pudessem orientá-la. E não
bastaram narrativas quaisquer: elas tiveram que se fundamentar metodologicamente no intuito de
conferir seriedade ao trabalho de construção de uma Nação moderna por parte daqueles
funcionários públicos.
A arquitetura, sobretudo a residencial, foi consensualmente eleita o elemento privilegiado
para demonstração da nacionalidade. Gilberto Freyre havia argumentado talentosamente a favor de
que os costumes essencialmente brasileiros teriam se conformado em torno do espaço habitacional.
Dada a autoridade conquistada pela obra desse autor, em poucos anos os arquitetos foram alçados
aos principais cargos públicos responsáveis pela definição de nossa nacionalidade. Não havendo
identidade sem história, esses profissionais logo tiveram que lidar com a constituição de narrativas,
especialmente com a história da arquitetura nacional, que se consolidou então em torno desses
órgãos públicos.
Até o presente momento, nada nos leva a pensar na diversidade discursiva cujo papel já foi
apontado anteriormente. Para compreendê-la, deve-se lançar mão de outro elemento fundamental na
atuação desse órgão, cuja importância ainda mal foi notada: a territorialidade da ação do IPHAN. O
Estado Novo caracterizou-se por tentar expandir, de forma centralizada, sua administração, e não
foi diferente com o então SPHAN. Rodrigo Melo Franco de Andrade, seu primeiro e talvez mais
conhecido diretor, teve que contar com a colaboração de intelectuais locais, obviamente possuidores
de processos formativos peculiares e imersos em redes sociais em muitos casos contrárias ao poder
central de Vargas (basta que nos lembremos da perda de autonomia que sofreram os estados
federados).
Desse modo, almejando observar os confrontos de interesses envolvidos nas práticas
preservacionistas nacionais, seria possível tomar em específico diversos estados nos quais o
SPHAN se fez presente: o Pernambuco de Gilberto Freyre, as Minas Gerais de Sylvio de
Vasconcellos, a Bahia de Diógenes Rebouças etc. Todavia, o caso paulista mostrou-se
particularmente interessante, uma vez que sua elite intelectual e política guardava um especial
ressentimento em relação ao governo de Vargas. Melo Franco de Andrade se viu obrigado a contar
com seu amigo Mário de Andrade para expandir a atuação do órgão federal no Estado de São Paulo.
Esse célebre escritor e folclorista dispensa maiores apresentações. Interessa apenas notar que, desde
muito cedo, esteve ligado a políticos como Paulo Duarte e Fábio Prado, opositores diretos de
Vargas, e que possuía uma visão bem mais ampla da nacionalidade do que aquela que predominou
entre os diretores federais do SPHAN. À frente do Departamento de Cultura da Cidade de São
Paulo, Mário de Andrade realizou diversos trabalhos de investigação cultural, valorizando a cultura
popular como fonte de nossa essência nacional que, segundo acreditava-se, estava em vias de se
perder. Este intelectual formou também uma série de folcloristas que, mais adiante, tiveram papel
destacado na vida cultural do país.
Dotado, portanto, de uma noção de nacionalidade bastante específica (porém influente),
Mário de Andrade permaneceu, todavia, por pouco tempo na direção da regional paulista do
SPHAN. Devido a perseguições políticas locais, este intelectual necessitou, contraditoriamente,
abrigar-se no Rio de Janeiro. O mesmo governo que o perseguiu em São Paulo o abrigou na Capital
do País. No entanto, Mário de Andrade delegou por indicação a direção do SPHAN paulista ao seu
braço direito, o jovem engenheiro-arquiteto Luís Saia.
São essas, portanto, as duas hipóteses que nortearam a pequisa ora apresentada, válidas ao
menos para a realidade paulista, mas certamente adaptáveis aos demais contextos regionais ligados
às práticas preservacionistas nacionais. Em primeiro lugar, por suas proporções e intenções, esses
órgãos tiveram que abrigar pontos de vista diversos, coordenados em torno de um consenso
mínimo, ou seja, a crença na existência de uma nacionalidade cuja evolução poderia ser
objetivamente constatada. Em segundo lugar, a produção historiográfica foi uma prática
fundamental para a atuação desses órgãos, tendo em vista a carência de sentido que geraram ao
tentarem definir e proteger nossa suposta nacionalidade.
Por esses motivos, elegi como objeto deste trabalho algumas noções particulares, elaboradas
historiograficamente por autores específicos, ligados aos principais órgãos preservacionistas do
país. Escolhi também o âmbito de atuação paulista, dadas as peculiares apresentadas pelo Estado de
São Paulo no conjunto das práticas preservacionistas nacionais.
As duas noções selecionadas, ou seja, a de “evolução regional paulista” e de “evolução
urbana”, representam, na verdade, perspectivas diversificadas e bem sucedidas do que seria a
evolução arquitetônica nacional. A evolução de nossa arquitetura tornou-se alvo de discussões nos
trabalhos “acadêmicos” produzidos no âmbito desses órgãos governamentais, pois ela teria muito a
dizer sobre nossa nacionalidade. A arquitetura colonial portuguesa, religiosa e residencial, moldada
pelos trópicos e pela mistura de raças e preservada ainda hoje em nossas cidades históricas,
apontaria tanto para nossas origens nacionais quanto para aquilo que nos diferenciaria dos europeus.
A definição de nossa nacionalidade necessitou, portanto, de uma história da arquitetura, amparada
em vestígios materiais reais, que mostrasse, através de sua evolução, o que seria agir
“brasileiramente” no presente.
Todavia, muito embora houvesse um consenso sobre a existência dessa evolução
arquitetônica, o mesmo não seria verdade em relação ao caráter dessa evolução. Antes de os estados
conseguirem ver representadas no patrimônio artístico e histórico nacional suas visões sobre a
nacionalidade, foi necessário prová-las historiograficamente. As práticas preservacionistas levadas a
cabo nas diretorias regionais do SPHAN, por exemplo, foram o resultado do choque entre essas
perspectivas particulares e os limites impostos pela administração federal. Para além disso, como
pretendi mostrar nessa dissertação, a atuação de alguns historiadores foi fundamental para a
efetividade dessas intenções.
A noção de “evolução regional paulista” foi cunhada por Luís Saia, já mencionado
anteriormente. Esse engenheiro-arquiteto, nascido em 1911 na cidade de São Carlos, SP, conquistou
a confiança de Mário de Andrade no Curso de Etnologia e Folclore promovido por este último no
Departamento de Cultura e ministrado por Dina Lévi-Strauss, esposa do famoso antropólogo
Claude Lévi-Strauss. Com a implantação da regional paulista do SPHAN, em 1937, Mário de
Andrade nomeia dois assistentes, que paga com seus “próprios cobres”, para auxiliá-lo no trabalho
de identificação dos bens paulistas passíveis de tombamento. Um deles foi o historiador Nuto
Sant’Anna, que já trabalhava com Mário de Andrade no Departamento de Cultura. O outro foi Luís
Saia, ainda estudante da Escola Politécnica de São Paulo (ele demoraria 14 anos para se formar, ou
seja, entre 1932 e 1946, mais por divergências com os professores e com o currículo do que por
desconhecimento arquitetônico).
Não foi somente a vertente folclorística e etnográfica que contribuiu para a formação
intelectual desse arquiteto. Luís Saia participou inicialmente da Ação Integralista Brasileira, tendo
se tornado, posteriormente, um ávido leitor das obras de Marx. Se não podemos afirmar que Saia se
tornou um “comunista de carteirinha”, é fato que o materialismo histórico lhe ofereceu importantes
ferramentas analíticas, as quais, numa mescla bastante peculiar, conformaram o instrumental teórico
a partir do qual analisaria a arquitetura nacional e, em especial, a paulista. Saia também se
aprofundou no estudo da história nacional, tomando conhecimento tanto de nossa historiografia
tradicional, produzida principalmente no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
quanto da obra de autores modernos como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, com os
quais dialogou de forma intensa e original. Por fim, cabe destacar a adesão à arquitetura moderna,
sobretudo a de Walter Gropius, Frank Lloyd Wright e Le Corbusier. Foi esse posicionamento que o
conduziu à ruptura com a arquitetura tradicionalista então ensinada na Escola Politécnica paulista, à
preocupação com o urbanismo e não apenas com os edifícios tomados isoladamente e a uma prática
de restauro que coadunava com as proposições modernas de Lucio Costa, uma vez que considerava
a arquitetura colonial e a moderna como componentes de uma mesma linha evolutiva.
Essa formação intelectual particular possibilitou que Luís Saia estruturasse uma noção de
“evolução regional”, a qual, além de orientar as práticas levadas a efeito naquela regional do
SPHAN, lograram inserir no rol dos monumentos tombados pelo governo federal uma série
significativa de objetos representativos da cultura bandeirista. Assim, a nacionalidade brasileira
adquiriu, oficialmente, uma faceta paulista. Quem nunca ouviu falar dos feitos heroicos dos
bandeirantes, homens rudes e bravos, que expandiram nossas fronteiras e descobriram nossas
riquezas escondidas nos mais recônditos sertões? Se essa história já havia sido construída
anteriormente pelos membros do IHGB paulista, ela só pôde ser materializada pela história da
arquitetura produzida por Saia e pelas casas que ela então permitiu identificar e preservar.
E no que consiste essa “evolução regional paulista”? Pela leitura dos textos reunidos em seu
livro Morada paulista, podemos notar que Saia concebia o processo histórico universal como um
conjunto de processos específicos porém interconectados. Cada processo seria conformado por uma
sucessão de períodos, representados pela síntese que resultaria de uma relação entre contrários.
Sendo assim, dentro da história nacional, seria possível encontrar uma história paulista, que não se
reduziria ao todo mas, por outro lado, o constituiria de forma fundamental. Não seria possível
compreender a história da Nação sem conhecer os sucessos desencadeados pela ação militarista e
mameluca bandeirista. Por outro lado, a interpretação dessa sociedade peculiar demandaria a
compreensão do sistema colonial como um todo, tomando portanto como pressuposto a
dependência da colônia americana em relação à economia e cultura metropolitana europeia.
Saia analisou os vestígios arquitetônicos coloniais encontrados em São Paulo à luz dessa
teoria do processo histórico regional, nacional e internacional. Desse modo, dotou de significação
histórica uma arquitetura antes considerada inferior do ponto de vista estético e construtivo.
Também convenceu o poder público federal de que tinha autoridade para estabelecer tudo isso e de
que a regional paulista do SPHAN merecia recursos e investimentos governamentais. Luís Saia se
tornou assim o “homem do Patrimônio” paulista, transformando-se numa autoridade indiscutível
sobre a arquitetura colonial paulista e orientando as práticas preservacionistas daquele estado, tanto
no IPHAN como nos demais órgãos que passaram a tomar como referência aquele “centro de
excelência”. É bem verdade que, se compararmos o número de tombamentos realizados no Estado
de São Paulo e demais estados sob sua jurisdição, perceberemos uma ação menos expressiva do que
aquela realizada em estados como Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. No entanto,
isso se deve mais à falta de recursos e pessoal, à falta de “restos arquitetônicos” e artísticos, do que
à pouca importância adquirida pela arquitetura bandeirista, cafeeira e novecentista paulista.
A noção de “evolução regional paulista” forneceu sentido às práticas preservacionistas
daquele estado até o ano da morte de Luís Saia (1975). Nesse momento, começaram a emergir
novas discussões em torno da preservação de bens culturais. Dentre elas, as que se destacam são a
necessidade de descentralização das ações preservacionistas, as formas de tombamentos de
conjuntos históricos ameaçados, a utilização desses bens como fonte de recursos financeiros e a
diversificação dos atores interessados (não mais apenas o poder público desejando legitimar sua
atuação). No caso específico do estado de São Paulo, inicia-se a discussão a respeito da arquitetura
eclética de fins do século XIX, desprezada até então por ser considerada mera imitação do que era
produzido na Europa. O próprio Saia já havia insistido em alguns desses pontos, como, por
exemplo, o dos conjuntos urbanos e da ação descentralizada. Contudo, não havia encontrado as
condições objetivas para sua implementação. Agora as coisas haviam mudado: a gestão de Renato
Soeiro abriu espaço para essas novas discussões; o governo militar passou a fomentar formas de
desenvolvimento econômico, criando possibilidades de desenvolvimento do turismo e de
reordenação do espaço urbano; novas discussões, no âmbito internacional, sobretudo por parte de
organizações como a Unesco e a OEA, passaram a orientar as políticas preservacionistas dos países
subdesenvolvidos, indicando formas de aproveitamento econômico de seus respectivos patrimônios
históricos etc. São Paulo passou a contar, a partir de 1969, com o Conselho Deliberativo do
Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo
(CONDEPHAAT), inciando assim um processo de descentralização das decisões preservacionistas.
A noção de “evolução regional paulista”, conforme o sentido que lhe foi fornecido por Luís
Saia, passou então a ser atacada após a morte desse arquiteto. Ela não pôde ser de todo abandonada,
pois a periodização que fornecia talvez fosse a única consistente o bastante no intuito de continuar
sustentando uma linha evolutiva da arquitetura paulista. Todavia, ela passou a ser atrelada a modos
ditos obsoletos de se encarar as práticas preservacionistas e o processo de constituição de uma
arquitetura nacional e regional, não obstante Saia sempre tenha se ocupado das relações entre
arquitetura e os sistemas de ocupação do solo (seja ele urbano ou rural).
Dentro do contexto acima destacado, a noção de “evolução urbana”, cunhada por Nestor
Goulart Reis Filho, encontrou as condições favoráveis para colocar a Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP (FAU-USP) em condições de disputar o espaço privilegiado antes ocupado pelo
SPHAN naquele estado.
Mineiro nascido na cidade de Cataguases, em 1932, Reis Filho ingressou na FAU em 1951,
instituição na qual atua até os dias de hoje, à frente do Laboratório de Estudos sobre Urbanização,
Arquitetura e Preservação (ou simplesmente LAP). Após ter se formado arquiteto, Reis Filho
chegou a conclusão de que, no intuito de dar aulas sobre a história da arquitetura nacional, seria
necessário realizar outro curso, motivo pelo qual ingressou no curso de Ciências Sociais da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Esse interesse pela teoria e história da arquitetura
nacional foi muito influenciado, conforme o próprio arquiteto já afirmou diversas vezes, pela
literatura produzida no SPHAN (a única então disponível) e pelo contato direto com seus
funcionários, inclusive com o próprio Saia, de quem foi estagiário e que o colocou em contato
direto com a cartografia histórica, fundamental para a construção da noção de “evolução urbana”.
No curso de ciências sociais, Reis Filho tomou contato com a segunda geração de sociólogos
da USP. Esses profissionais, sob a liderança de Florestan Fernandes, consolidaram novos padrões de
cientificidade para as ciências sociais nacionais e preocuparam-se sobretudo com o estudo dos
processos de modernização e desenvolvimento da sociedade brasileira. Tais elementos contribuíram
para que a produção historiográfica de Reis Filho adquirisse a autoridade necessária para a
orientação das práticas preservacionistas de seu tempo, repleto de novas demandas.
A noção de “evolução regional” havia possibilitado que Saia interpretasse os últimos
vestígios de arquitetura rural paulista ainda existentes, garantindo sua permanência em função da
importância que passaram a apresentar para a história da arquitetura paulista e nacional. A cidade
novecentista ainda não havia se tornado uma preocupação para os arquitetos dos anos 1930 e 1940.
A arquitetura eclética era desprezada por ser uma mímese europeia, destituída então de interesse
para a compreensão da nacionalidade.
A partir das décadas de 1950 e 1960, a expansão urbana observada chama a atenção para o
espaço das cidades. A disputa entre modernos e ecléticos já fora superada, e a arquitetura de fins do
século XIX tornara-se então “coisa do passado”, ou seja, passível de investigação histórica. A
urbanização desordenada poria em risco formas autênticas de desenvolvimento urbano. A
arquitetura novecentista brasileira, cujos principais exemplares encontrar-se-iam na capital paulista,
adquiriu importância do ponto de vista da história do urbanismo. Desse modo, os períodos de
expansão e consolidação da cultura do café e do surto industrialista do início do século (períodos já
analisados anteriormente por Luís Saia) passariam a ser interessantes também para a história da
arquitetura, desde que atrelada ao desenvolvimento urbano. As práticas preservacionistas
encontraram assim uma nova razão de ser no Estado de São Paulo, e os arquitetos da FAU buscaram
se apoderar da legitimidade, antes privilégio exclusivo do IPHAN, sobre a produção historiográfica
relativa à arquitetura paulista. Após Reis Filho tornar-se presidente do CONDEPHAAT, em 1975,
este órgão também passou a ser notoriamente mais influenciado pela FAU do que pelo IPHAN.
A noção de “evolução urbana” de Reis Filho teve um papel central nessas transformações.
Esse arquiteto considera a arquitetura um processo social ligado a outros. O desenvolvimento da
arquitetura encontra-se limitado pelo espaço urbano, que, por sua vez, depende das configurações
econômicas, políticas e culturais da sociedade. Desse modo, o desenvolvimento técnico e
tecnológico da arquitetura encontra seus limites no lote no qual se instala. A arquitetura tradicional,
considerada “primitiva”, baseada numa relação escravista de produção que impedia o avanço das
técnicas construtivas e das tecnologias disponíveis (para tudo se dispunha da mão-de-obra escrava),
só pôde se desenvolver a partir das profundas alterações econômicas e culturais ocorridas no país
com a abolição do trabalho escravo. Se a simpatia pelo neoclássico, na primeira metade do século
XIX, já apresentava um avanço técnico em relação à arquitetura tradicional, por outro lado a
manutenção de esquemas urbanos tradicionais impedia que essa arquitetura europeia se
desenvolvesse aqui da mesma forma em que na sua terra natal. Seria apenas com a libertação
completa da arquitetura em relação ao lote (o que poderia ser observado apenas na recém construída
Brasília, modelo de um urbanismo bem sucedido segundo a ótica de Reis Filho) que a arquitetura
alcançaria as condições ideais de funcionalidade requeridas pela contemporaneidade.
Em ambos os casos, visou-se construir uma história da arquitetura comprometida com o
tempo presente. Tanto Saia quanto Reis Filho buscaram teorizar sobre o espaço construído a partir
da compreensão da evolução da arquitetura nacional e regional, de forma a contribuir com a
melhoria da qualidade de vida da população. Isso é algo que fica claro a partir da leitura de seus
textos. O espaço que encontraram para efetivar e consolidar seus ideais de arquitetura e urbanismo
foram os órgãos públicos responsáveis pela preservação da arquitetura representativa de nosso
passado.
A produção historiográfica, como procurei demonstrar nessa dissertação, não apenas narra o
passado, mas o modifica e o constrói, orientando as ações do presente, delimitando identidades e
modificando o futuro. A história da historiografia não deve assim se concentrar apenas nos textos,
mas na efetividade que a produção historiográfica alcança na vida prática. A historiografia deve ser
considerada uma ação linguística específica que visa produzir efeitos na vida social. Mesmo na
atualidade, quando nossa relação com a temporalidade privilegia o tempo presente, ou seja,
acreditamos pouco na previsibilidade do futuro e na capacidade de o passado orientar nossas ações,
depositando nossas esperanças na máxima carpe diem, não é possível afirmar que a prática
historiográfica é algo que se reduz a si mesma. Ainda procuramos conquistar através dela respeito,
autoridade e legitimidade, mesmo que visando apenas bolsas de pesquisa e melhor inserção no
mundo acadêmico; ainda desejamos reparar injustiças históricas, alterando os olhares sobre o
presente, mesmo que a relevância dos temas escolhidos seja cada vez mais restrita; ainda
procuramos estabelecer verdades universais, mesmo que a cada dia tenhamos mais que reconhecer
os limites de seu alcance; ainda queremos comunicar um conhecimento socialmente válido, ainda
que um constante processo de especialização reduza consideravelmente a capacidade de diálogo.
Não desejo aqui esmiuçar os aspectos teóricos e metodológicos do trabalho que ora
apresento, eis que provavelmente isso tornaria demasiado cansativa a exposição para o público não
especializado eventualmente presente. Procurei indicar aqui as possíveis contribuições desta
dissertação bem como sua relevância para além das discussões puramente acadêmicas, uma vez que
não é somente à Universidade que devemos explicações. Embora o intuito tenha sido uma tentativa
de comunicação mais ampla o possível dos resultados deste trabalho, sei que em alguns momentos
torna-se impossível fugir do jargão profissional, motivo pelo qual peço desculpas pelas limitações
literárias. Por fim, creio que caberá à ilustre banca examinadora aqui presente julgar a real validade
deste trabalho, a favor do qual pretendi advogar sem a pretensão de haver acreditado no
esgotamento da matéria da qual ele trata. Sem dúvida é o indiscutível mérito acadêmico destes
intelectuais que lhes permitirá julgar com rigor e competência os limites e méritos do resultado
destes dois anos de pesquisa.

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