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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

WALTER FRANCISCO FIGUEIREDO LOWANDE

OS SENTIDOS DA PRESERVAÇÃO:
história da arquitetura e práticas preservacionistas em São Paulo (1937-1986)

MARIANA
2010
WALTER FRANCISCO FIGUEIREDO LOWANDE

OS SENTIDOS DA PRESERVAÇÃO
História da arquitetura e práticas preservacionistas em São Paulo (1937-1986)

Dissertação apresentada como requisito parcial


para a obtenção do título de Mestre pelo
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Ouro Preto.

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata

Este exemplar corresponde à redação final da


Dissertação defendida e aprovada pela
comissão julgadora em 08/07/2010.

MARIANA
2010
WALTER FRANCISCO FIGUEIREDO LOWANDE

OS SENTIDOS DA PRESERVAÇÃO
História da arquitetura e práticas preservacionistas em São Paulo (1937-1986)

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto.

BANCA EXAMINADORA

Presidente: _________________________________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata (Orientador/UFOP)

1º Examinador: ______________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Knauss de Mendonça (Membro/UFF)

2º Examinador: ______________________________________________________________
Prof. Dr. Valdei Lopes de Araújo (Membro/UFOP)

Mariana, 08 de julho de 2010.


Dedico este trabalho à Therezinha e à Nayhara.
AGRADECIMENTOS

Ao longo destes dois anos de trabalho (que não foram exclusivamente dedicados a esta
dissertação), pude contar com a colaboração, consciente ou inconsciente, de inúmeras pessoas
(poderia citar até um cachorro), além de algumas instituições. Por isso, por mais que eu deseje
o contrário, essas páginas serão também palco de algumas injustiças, que deverão ser
imputadas a uma atividade mnemônica arbitrária, incapaz de, num esforço sintético como
esse, abarcar todos aqueles que deveriam ser mencionados.
Iniciarei estes agradecimentos pelas instituições cujo apoio foi fundamental para a
conclusão deste trabalho. Em seguida, dirigirei a atenção aos indivíduos de quem não poderia
deixar de lembrar nestas páginas.
Em primeiro lugar, é forçoso mencionar a Universidade Federal de Ouro Preto de uma
maneira mais ampla. Desde que ingressei nessa instituição, pude contar com ampla assistência
estudantil, diversas formas de subsídio financeiro e excelência no ensino, o que não se perdeu
(pelo contrário, foi ampliado) no período em que cursei esta pós-graduação, não obstante os
aspectos paliativos que também se encontram presentes nas recentes políticas de expansão do
ensino superior brasileiro.
De forma mais específica, devo agradecer ao Instituto de Ciências Humanas e Sociais
da UFOP, situado na cidade de Mariana, de longe a unidade acadêmica mais charmosa dentre
as que compõem a referida Universidade. Além dos incontáveis laços que este espaço sócio-
cultural possibilitou-me concretizar, devo mencionar as condições infra-estruturais favoráveis
oferecidas, conseguidas por meio de muita luta de discentes, docentes e corpo administrativo,
a exemplo sua expressiva biblioteca (que, na maioria dos casos, não me deixou na mão em
momentos importantes), laboratórios e equipamentos de informática, salas de aula, auditório
etc. Não poderia esquecer do quadro docente e de servidores do ICHS, cujos componentes,
longe de criarem empecilhos à atividade acadêmica de seus alunos, sempre se mostraram, até
onde me cabe relatar, extremamente solícitos em sanar nossas dificuldades e empenhados em
cumprir com seus respectivos deveres.
Com relação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por mais que se trate de uma
relação de “venda” de força de trabalho cujo direito foi arduamente conquistado, e, além
disso, por mais que tal instituição não se empenhe em oferecer incentivos básicos à
qualificação profissional, devo agradecê-lo por algumas contribuições, sobretudo no que diz
respeito aos magistrados e, em especial, aos serventuários da Comarca de Ouro Preto, esses
sim, merecedores dos meus mais sinceros agradecimentos. Isso por terem me proporcionado
todo o apoio possível, dentro dos limites institucionais impostos, para que pudesse levar a
cabo este trabalho. Poderia citar as diversas folgas, legais, diga-se de passagem, permitidas,
não obstante a enorme carga de trabalho, para que pudesse participar de eventos acadêmicos e
apresentar os resultados de minhas pesquisas diante da comunidade acadêmica; o apoio dos
colegas de trabalho nestes momentos em que minhas obrigações momentaneamente foram
transferidas às suas já pesadas atribuições; ao incentivo moral prestado por meus
companheiros de jornada e, por fim, à inestimável amizade que os mesmos permitiram-me
usufruir.
Dentre as instituições que merecem meus agradecimentos, devo ainda mencionar o
Programa de Pós-Graduação do Departamento de História e a Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais, pelo incentivo financeiro para a participação em
importantes eventos de divulgação científica.
Gostaria ainda de mencionar uma instituição, cuja abertura foi fundamental para a
consecução dos objetivos desta pesquisa. Refiro-me à 9ª Superintendência Regional do
IPHAN em São Paulo, SP. Lá fui atenciosamente recebido pela bibliotecária Tatiana Salciotto,
responsável pela Biblioteca Luís Saia, que, ao lado do seu estagiário, Carlos Eduardo,
permitiu-me tomar contato com uma série de testemunhos da vida intelectual desse arquiteto,
expressos nas anotações saídas de seu próprio punho e imortalizadas naqueles livros agora tão
bem protegidos. Antes mesmo que eu lá aportasse, esses funcionários muito já haviam
contribuído para minha pesquisa por meio do penoso trabalho de proteção, catalogação e
fichamento previamente realizado.
Nesta mesma instituição conheci o historiador Jaelson Bitran Trindade, que se tornou
um importante interlocutor desta pesquisa, sobretudo nos aspectos relativos à atuação
profissional, intelectual e pessoal de Luís Saia. Mostrando-se interessado por este trabalho
desde as primeiras palavras que trocamos na sede do IPHAN paulista, situada na Rua
Baronesa de Itu, em Higienópolis, devo agradecer a inestimável contribuição que continuou
prestando ao longo desta pesquisa, seja nas agradáveis conversas ocorridas em Fortaleza, CE,
quando da realização do Simpósio Nacional História da Anpuh – cuja mesa redonda de que
participei mostrou o quão avançadas andam as pesquisas em torno das práticas
preservacionistas nacionais –, seja nos diversos e-mails que, posteriormente, continuou me
enviando com valiosos materiais e dados, todos extremamente úteis e esclarecedores.
Ainda em São Paulo, fui também bem recebido pelos funcionários da FAU-USP,
especialmente em sua biblioteca e no LAP, onde o Prof. Nestor Goulart Reis Filho cedeu-me
entrevista pessoal. A este arquiteto/cientista social/historiador agradeço pela particular
atenção, paciência, bom humor e boa vontade e pelo valioso material com o qual me brindou
em seu relato.
Tendo já iniciado os agradecimentos individuais, continuo com mais alguns nomes.
Primeiramente, os professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFOP, em
especial aqueles cujas disciplinas cursei: Prof. Dr. Valdei Lopes Araújo, Prof. Dr. Renato
Pinto Venâncio, Prof. Dr. Fábio Faversani e Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata, que me
orientou neste trabalho. Mesmo sem talvez o saber, a qualidade das discussões teóricas e
metodológicas travadas nessas disciplinas, tanto em brilhantes exposições quanto em
produtivos debates travados com meus competentes colegas de mestrado, foi fundamental
para a feição final tomada por esta dissertação.
Tendo em vista que citei meu orientador, aproveito para desde já agradecê-lo de forma
especial. O rigor, objetividade, clareza e respeito de suas observações sobre meus escritos, por
muitas vezes indigestos e confusos, foram essenciais para que este trabalho não se perdesse e
se tornasse o mais próximo possível de uma metódica investigação acadêmica. Cabe ainda
fazer uma alusão acerca do sempre rápido e interessado retorno de suas considerações, o que
constantemente me deixou mais confiante com relação aos resultados deste trabalho, via de
regra rodeado de dificuldades acessórias (a falta de tempo sendo uma de suas principais
representantes). Almejando expor algumas de minhas ideias, acabei conhecendo muitas outras
com ele.
Agradeço também à solicitude da Rejane, que de pronto aceitou conferir e corrigir a
tradução do resumo apresentado nesta dissertação.
Não poderia deixar de mencionar meus amigos marianenses e ouropretanos, muitos
deles também mestrandos, pois nos momentos de incertezas eles sempre se mostraram um
refrigério para a alma com sua inestimável companhia, regada invariavelmente a cerveja,
samba, bossa e rock n’ roll.
Agradeço sempre e especialmente a duas mulheres que têm prestado incomensurável
apoio à minha existência. A primeira é minha noiva, Nayhara, com quem há quase sete anos
tenho divido minhas alegrias e angústias. Além de ter se mostrado ótima revisora gramatical,
ela tem indicado de maneira segura os rumos que tenho tomado em minha vida, dos quais essa
dissertação compõe um dos capítulos (dos mais dramáticos, diga-se de passagem). Agradeço a
paciência e amor (que constantemente desejo retribuir) com que tem suportado esses dois
anos de pesquisas.
A outra mulher é minha mãe, Therezinha, que desde sempre tem investido com
inenarrável amor em minha formação, tomada em sua acepção mais ampla. Professora
primária aposentada dos quadros do funcionalismo mineiro (infelizmente cada vez mais
subvalorizado em função de odiosas políticas neoliberais), muitas vezes se sacrificou para que
seus dois filhos (no meu caso, sem poder contar com a ajuda de meu pai, falecido
precocemente) adquirissem um montante de capital cultural suficiente a fim de superar as
difíceis condições de existência pelas quais passou. Espero, portanto, que esta dissertação de
mestrado seja mais um fruto do esforço e dedicação dessa heroica mulher, que em sua
humildade e amor investiu em sua prole (daí o sentido da palavra proletário) as merecidas
conquistas que as duras condições objetivas de existência lhe negaram.
A essas duas mulheres dedico esta dissertação.
LOWANDE, Walter Francisco Figueiredo. Os sentidos da preservação: história da arquitetura
e práticas preservacionistas em São Paulo (1937-1983). 2010. 201 f. Dissertação (Mestrado
em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto,
Mariana, 2010.

RESUMO

Este trabalho trata das práticas preservacionistas nacionais a partir de uma abordagem
historiográfica. Seu objetivo é investigar como duas estratégias narrativas distintas, que
visaram conferir sentido à noção de “evolução da arquitetura brasileira”, lograram instituir
inovações no seio das práticas preservacionistas nacionais, em dois diferentes períodos de sua
trajetória. O primeiro deles se refere à atuação do arquiteto paulista Luís Saia, entre os anos
de 1937 e 1975, quando, por intermédio da noção de “evolução regional paulista”, conseguiu
inserir no rol dos monumentos tombados pelo IPHAN uma série de edifícios que diriam
respeito à contribuição paulista para a construção da nacionalidade. O segundo período diz
respeito à atuação de outro arquiteto paulista, Nestor Goulart Reis Filho, cuja noção de
“evolução urbana” mostrou-se eficaz num contexto em que as práticas preservacionistas se
deparavam com novas demandas sociais, econômicas e culturais. Desse modo, um dos
objetivos deste trabalho é sugerir, primeiramente, por meio de um recorte temporal e espacial
específico, que os órgãos responsáveis pelas práticas preservacionistas nacionais
caracterizaram-se muito mais pelo acordo entre dissensos que pela imposição de consensos,
de modo que, ao contrário do que se tem afirmado, o que deve ser analisado é como
indivíduos subordinados à órgãos como o IPHAN puderam agir, consoante suas aspirações
pessoais e diante das limitações impostas por um consenso mínimo (ou seja, frente ao acordo
em torno da existência de uma linha evolutiva nacional a indicar os rumos da modernização).
Em segundo lugar, a análise de dois conjuntos de ações individuais mostrará o papel
destacado da produção historiográfica no âmbito das práticas preservacionistas nacionais.
Sendo uma prática que carece de um sentido legitimador, a salvaguarda de bens históricos,
artísticos e culturais encontrou na produção historiográfica uma ferramenta eficaz de
orientação de condutas por meio da constituição narrativa de sentido. Assim, mais que uma
“história intelectual paralela”, a produção historiográfica teve um papel central nos órgãos
responsáveis pela proteção do patrimônio cultural nacional. São analisadas, no intuito de
comprovar essas duas hipóteses centrais, as principais obras de história da arquitetura
produzida por Saia e Reis Filho, respectivamente Morada paulista e Quadro da arquitetura
no Brasil, com especial atenção ao modo como a noção de evolução da arquitetura é
interpretada por cada um deles. Tenciona-se mostrar quais elementos formativos e intelectuais
particulares motivaram ações dotadas de interesses específicos nos órgãos preservacionistas
por parte desses autores, como foi construído narrativamente sentido para as noções de
“evolução regional paulista” e “evolução urbana” e, por fim, como esse tipo de ação provocou
alterações nas práticas dos principais órgãos preservacionistas regionais e locais, a exemplo
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do Conselho
Deliberativo do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São
Paulo (CONDEPHAAT).

Palavras-chave: produção historiográfica. práticas preservacionistas. evolução da arquitetura


brasileira.
ABSTRACT

This work deals with the national preservationist practices from a historiographical approach.
Its objective is to investigate how two different narrative strategies, which aimed give a
meaning to the notion of “evolution of Brazilian architecture”, managed to introduce
innovations into the national preservationist practices in two different periods of its career.
The first one refers to the acting of architect Luis Saia, between the years 1937 and 1975
when, through the concept of “regional development in São Paulo State”, he got to put into
the rank of monuments registered by IPHAN a series of buildings that would relate the
contribution of São Paulo for the construction of nationality. The second period refers to the
acting of another architect, Nestor Goulart Reis Filho, whose notion of “urban development”
was effective in a setting where preservationist practices were confronted with new social,
economic and cultural demands. Thus, one objective of this paper is, firstly, suggest, through
a profile of time and space specific, that the departments responsible for national
preservationist practices were characterized by much more agreement between dissents than
by imposing of consensus, so that, in opposition to what has been stated, what should be
analyzed is how people who was subordinate to departments as IPHAN could act, according
to their personal aspirations and the limitations imposed by a minimal consensus (i.e.,
opposite to the agreement about the existence of a national evolutionary line for indicate the
direction of modernization). Second, the analysis of two sets of personal actions will show the
highlighted role of historiographical production into the national preservationist practices.
Being one practice that requires a legitimating sense, the safeguard of historical, artistic and
cultural properties has found in the historiographical production an effective tool of
orientation for its actions through the establishment of a narrative of sense. Thus, more than a
“parallel intellectual history”, historiographical production played a central role in
departments responsible for the protection of national cultural heritage. In order to prove these
two central assumptions, the main works of architecture history produced by Saia and Reis
Filho, respectively Morada paulista and Quadro da arquitetura no Brasil, will be analyzed,
with a special attention to how the notion of architecture evolution is being interpreted for
each author. It is intended to show which formative and private intellectual elements have
motivated actions endowed with specifics interests in preservationist departments by these
authors, how was constructed into the narrative the sense for the notions of “regional
development in São Paulo” and “urban development” and, finally, how this kind of action has
rose changes in practices of main regional and local preservationist departments, such as the
Nacional Institute of Historical and Artistic Heritage (IPHAN) and of the Historical, Artistic,
Archaeological and Touristic Heritage of the State of São Paulo (CONDEPHAAT).

Keywords: historiographical production. preservationists practices. Brazilian architectural


evolution
LISTA DE SIGLAS

BNH Banco Nacional de Habitação


CNDU Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano
CNPU Comissão Nacional de Política Urbana
CNRC Centro Nacional de Referência Cultural
CONDEPHAAT Conselho Deliberativo do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e
Turístico do Estado de São Paulo
CPC-USP Comissão de Patrimônio Cultural da Universidade de São Paulo
DC Departamento de Cultura do Município de São Paulo
DPHAN Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1946-1970)
ELSP Escola Livre de Sociologia Paulista
EMURB Empresa Municipal de Urbanização
FAU-USP Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
FFCL-USP Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo
IBPC Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (1990-1994)
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1970-1979; 1994-?)
LAP Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação
MAC Museu de Arte Contemporânea
MAM Museu de Arte Moderna
MASP Museu de Arte de São Paulo
OEA Organização dos Estados Americanos
PCH Programa Cidades Históricas
PND Plano Nacional de Desenvolvimento
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937-1946)
SPHAN Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1979-1990)
TBC Teatro Brasileiro de Comédia
Unesco Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...............................................................................................................14

2 AS PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS NACIONAIS: ABORDAGENS


ESTABELECIDAS E NOVAS PERSPECTIVAS............................................................26
2.1 NOTAS SOBRE A LITERATURA ACADÊMICA RECENTE ACERCA DAS
PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS NACIONAIS: A HISTÓRIA DE UMA FORMAÇÃO
DISCURSIVA HEGEMÔNICA...........................................................................................26
2.1.1 Normatividade e apresentação de identidade.........................................................27
2.1.2 Campo e formação discursiva hegemônica.............................................................32
2.1.3 As práticas do SPHAN..............................................................................................38
2.1.4 A tímida hipótese de uma diversidade discursiva...................................................47
2.2 AÇÃO INDIVIDUAL, LINGUAGENS E PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.........50
2.2.1 Ação individual..........................................................................................................51
2.2.2 A linguagem................................................................................................................54
2.2.3 Produção historiográfica...........................................................................................62

3 LUÍS SAIA E A EVOLUÇÃO REGIONAL PAULISTA: A HISTÓRIA DA


ARQUITETURA VISTA POR UM ÂNGULO PARTICULAR (1938-1975)................68
3.1 INSERÇÃO ACADÊMICA E PROFISSIONAL...........................................................68
3.2 CONTEXTO INTELECTUAL DE FORMAÇÃO........................................................75
3.2.1 A Escola Politécnica de São Paulo............................................................................77
3.2.2 O Integralismo...........................................................................................................78
3.2.3 O marxismo: comunismo sem “carteirinha de partido”.......................................80
3.2.4 A arquitetura moderna..............................................................................................83
3.2.5 Historiografia brasileira...........................................................................................85
3.2.6 O Departamento de Cultura e a Sociedade de Etnologia e Folclore.....................90
3.3 MORADA PAULISTA: EVOLUÇÃO REGIONAL E ARQUITETURA.....................92
3.3.1 A estrutura de Morada paulista................................................................................94
3.3.2 As fontes......................................................................................................................102
3.3.3 A relação com os valores...........................................................................................106
3.3.3.1 O patrimônio.............................................................................................................107
3.3.3.2 O planejamento urbano............................................................................................110
3.3.3.3 A docência................................................................................................................110
3.3.4 O sentido.....................................................................................................................112
3.4 AS PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS......................................................................117
3.4.1 A “proto-história” do SPHAN em São Paulo..........................................................118
3.4.2 O SPHAN em São Paulo...........................................................................................120
3.4.3 O CONDEPHAAT.....................................................................................................127
3.5 CONCLUSÃO................................................................................................................129

4 NESTOR GOULART REIS FILHO E A “EVOLUÇÃO URBANA”: AS NOVAS


DEMANDAS DO PATRIMÔNIO PAULISTA (1964-1986)...........................................131
4.1 INSERÇÃO ACADÊMICA E PROFISSIONAL...........................................................132
4.2 CONTEXTO INTELECTUAL DE FORMAÇÃO........................................................139
4.2.1 Os anos 1950 em São Paulo......................................................................................140
4.2.2 A FAU e o SPHAN.....................................................................................................141
4.2.3 O curso de Ciências Sociais da USP.........................................................................143
4.2.4 A historiografia..........................................................................................................146
4.3 QUADRO DA ARQUITETURA NO BRASIL.............................................................149
4.3.1 Evolução Urbana do Brasil: 1500/1720....................................................................150
4.3.2 A estrutura de Quadro da arquitetura no Brasil......................................................152
4.3.2.1 A arquitetura e o lote................................................................................................154
4.3.2.2 A arquitetura novecentista........................................................................................157
4.3.2.3 O “patrimônio de cultura”........................................................................................160
4.3.3 As fontes......................................................................................................................161
4.3.4 A relação com os valores...........................................................................................165
4.3.5 O sentido.....................................................................................................................168
4.4 AS PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS......................................................................172
4.4.1 O contexto..................................................................................................................173
4.4.2 A criação de um órgão estadual e o CONDEPHAAT.............................................176
4.4.2.1 Os primeiros anos no CONDEPHAAT (1969-1975)...............................................176
4.4.2.2 O Curso de Conservação e Restauro (1974)............................................................178
4.4.2.3 A presidência do CONDEPHAAT (1975-1980).......................................................181
4.4.2.4 Instituições alternativas............................................................................................185
4.5 CONCLUSÃO................................................................................................................187

5 CONCLUSÃO.................................................................................................................189

BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................196
14

1 INTRODUÇÃO

A fim de orientar preliminarmente o leitor disposto a conhecer os resultados obtidos


nesta dissertação, adotarei a estratégia de expor, desde já, os limites de sua abordagem. Deste
modo minora-se o risco de que a presente pesquisa seja julgada, a princípio, a partir de uma
expectativa que transcenda suas proposições.
Começo pela temática na qual se insere. Trata-se de um campo de estudos hoje já
bastante em voga, cada vez mais explorado por historiadores stricto sensu.1 Refiro-me aos
trabalhos sobre o que chamarei aqui de “práticas preservacionistas nacionais”. Acredito que
oferecer uma definição suficientemente esclarecedora para este campo seja mais útil que a
menção aos inúmeros nomes que o mesmo tem recebido por seus autores: ele abarca as
pesquisas que se relacionam, de maneira genérica, às diversas práticas ligadas às políticas
públicas de proteção de “bens culturais”. Assim, tem-se tentado compreender quais os
motivos que levaram à criação de instituições responsáveis pelo tombamento, restauração e
conservação de determinados bens, apropriados pelo poder público e investidos de valores
“nacionais”, bem como as amplas consequências destas políticas públicas. Acredito que o
interesse despertado por este âmbito específico de atuação se deve à relação que guarda com
as tentativas de construção de uma memória e identidade nacionais, ponto de encontro das
preocupações de inúmeros historiadores da cultura e da sociedade brasileira.
O presente trabalho guarda as mesmas preocupações. Todavia, o olhar que dirige
procura enxergar aspectos até então despercebidos dentro deste campo de estudos. Em
primeiro lugar, é a produção historiográfica que se afigura como principal alvo de
investigações. Isso se dá de tal modo que seria possível indagar-se se não se trata de um
trabalho inserido nesse outro campo temático, quanto mais quando se considera que a história
da historiografia tem alcançado, claramente, estatuto de disciplina autônoma. No entanto, as
questões que pretendo responder neste trabalho emergem das práticas preservacionistas em si,
sendo que a história da historiografia cumpre aqui o papel de fornecedora dos métodos
propícios para o alcance das respostas almejadas.
E quais seriam, afinal, os problemas que nortearam esta pesquisa? Em primeiro lugar,

1
A partir de uma rápida investigação, é possível citar o nome de alguns historiadores que, no âmbito
universitário, têm trabalhado atualmente com este recorte temático, para além dos autores cujas obras
analisaremos mais detidamente: Paulo Knauss de Mendonça (UFF), Regina Helena Alves da Silva (UFMG),
Fábio José Martins de Lima (UFJF), Marcos Tognon (Unicamp), Cristina Meneguello (Unicamp), Célia Reis
Camargo (Unesp). É necessário ainda afirmar que esta lista nem de longe esgota os historiadores
preocupados com as práticas preservacionistas nacionais.
15

indaga-se sobre o papel da historiografia na orientação das ações preservacionistas operadas


no âmbito do poder público brasileiro, que é tomado em seus níveis federal, regional e local.
Dada a importância central da constituição de narrativas para a orientação de condutas
dotadas de significado e para a construção de identidades, investigar a produção
historiográfica relacionada a órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN2 – e o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,
Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo – o CONDEPHAAT – (apenas para citar os
que serão privilegiados neste trabalho) mostra-se tarefa tão importante quanto (ou mesmo
mais importante que) a análise dos próprios processos de tombamento e de restauração, muito
embora estes não possam ser olvidados numa análise como a que se pretende intentar nas
páginas seguintes.
Em segundo lugar, a produção historiográfica possui um caráter de ação individual
dentro de um contexto social. Desse modo, um determinado tema ou objeto que careça de
sentido certamente será trabalhado por autores cujos pontos de vista podem ser discordantes
em alguns aspectos. Muito embora os historiadores cujas obras serão aqui analisadas
assumam papéis institucionais em certa medida previamente prescritos, não é possível ignorar
que as narrativas que produzem são frutos de formações e origens específicas. Dessa forma,
os instrumentos que esses autores fornecem para a orientação das práticas preservacionistas
(ou seja, obras historiográficas) oferecem significados e sentidos diversos. Tem-se assim um
segundo problema: em que medida essas ações individuais contribuíram para a orientação das
ações efetivadas dentro dos órgãos preservacionistas para além de seus consensos mínimos?
Tais órgãos caracterizaram-se pela imposição de consensos ou pela acomodação de dissensos?
Acredito, portanto, que não é possível contemplar o tema das práticas
preservacionistas nacionais sem considerar suas diversas possibilidades de inserção e atuação.
Para além das práticas institucionalizadas “de cima para baixo”, há uma série de ações em
alguns momentos inovadoras que contribuíram, “de baixo para cima”, para a conformação do
“patrimônio” que hoje conhecemos.
Essas disputas, ocorridas por intermédio de apresentações historiográficas em
determinados pontos discordantes, podem ser melhor observadas pela seleção de um objeto
específico. No caso desta pesquisa, a visada foi dirigida para a noção de “evolução da
arquitetura nacional”. A partir da década de 1930 (sobretudo depois de Casa-grande &
2
Utilizarei essa sigla quando não for me referir a um momento específico dos mais de 72 anos desta
instituição, que já foi Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (o SPHAN, que vigorou entre
1937 e 1946), Diretoria (DPHAN, entre 1946 e 1970), Instituto (IPHAN, entre 1970 e 1979), Secretaria
(SPHAN, entre 1979 e 1990), Instituto novamente, só que Brasileiro do Patrimônio Cultural (o IBPC, de
1990 a 1994), e por fim e outra vez, Instituto (IPHAN de 1994 até o momento da escrita desta nota).
16

senzala e Sobrados e mucambos, ambos de Gilberto Freyre) a arquitetura residencial, ou


simplesmente “casa”, tornou-se objeto privilegiado para a compreensão de uma suposta
“essência nacional”. No entanto, essa essência só poderia ser demonstrada por sua
permanência no tempo, nem que para isso fosse necessário perceber a “evolução” sofrida pela
“nacionalidade” no período que medeia os primeiros contatos dos portugueses com os
trópicos e a contemporaneidade. Essa foi exatamente a tarefa a que os historiadores em
questão tiveram que se lançar, ou seja, dotar a arquitetura preservada de uma “importância
cultural” necessariamente ligada a uma nacionalidade cujo sentido devia ser demonstrado de
forma mais racional possível.
Tem-se dado assim muito destaque a esta instância temporal da nacionalidade. O tema
privilegiado pelos estudos ligados às práticas preservacionistas é a forma pela qual a
intelectualidade modernista teria construído uma ideia de nação centrada na linha evolutiva
que ligaria a tradição à modernidade. Com o intuito de romper com um passado imediato,
dominado por uma elite agrária inimiga dos novos ideais industriais, urbanos e
modernizadores, os intelectuais que emergiram da recente burguesia industrial passaram a
desautorizar seus opositores mediante uma construção temporal relativa à formação nacional.
Apenas seriam legítimas as ideias autenticamente nacionais, ou seja, identificadas como
herdeiras de uma tradição de raízes coloniais. A “missão” dos intelectuais modernos seria,
portanto, romper com qualquer tipo de imitação europeia (situação reinante em quase todo o
século XIX, segundo eles), mediante o resgate de uma tradição em vias de se perder. Toda
manifestação cultural nacional deveria ser uma reinvenção da tradição (que seria, portanto,
reutilizada de forma original), único caminho para uma modernização bem sucedida. Até a
década de 1960, esse foi, de fato, o consenso mínimo que permeou a ação institucional do
IPHAN.
No entanto, a instância espacial ou “territorial” das práticas preservacionistas ainda
não tem recebido a mesma atenção.3 É deste aspecto que emergem as principais disputas em
torno da definição da nacionalidade. Nordestinos, cariocas, paulistas, mineiros, gaúchos etc.
têm se confrontado por todo esse período no intuito de garantir para suas respectivas regiões o
maior quinhão de um legado nacional ainda em construção. As disputas não foram mais
ferrenhas apenas porque os contentores tiveram que dividir o mesmo espaço e as mesmas
ferramentas, ou seja, os órgãos públicos e o consenso a respeito da existência de uma “linha
evolutiva” da nacionalidade. Independentemente de haverem sido os senhores de engenho, os

3
Talvez a única exceção seja TRINDADE, Jaelson Bitran. A investigação histórica no IPHAN em São Paulo:
uma abordagem territorial. Revista do IPHAN. N. 34 [Brasília, 2010], no prelo.
17

bandeirantes ou os mineradores (para ficarmos apenas com os três mitos mais conhecidos de
nossa nacionalidade) os “verdadeiros” criadores de um “novo mundo nos trópicos” com o
qual passaríamos a nos identificar, todos tiveram que se unir a fim de combater um inimigo
comum, ou seja, a elite intelectual tradicional, cujos parâmetros de progresso ainda eram
buscados no Velho Continente por meio da simples cópia de suas manifestações culturais.
Foi em função dessa pluralidade regional que optei por limitar espacialmente a
abordagem deste trabalho, analisando textos de história da arquitetura residencial brasileira
produzidos no estado de São Paulo. O primeiro motivo de tal recorte é o próprio caráter desta
pesquisa. Seria impensável tratar de toda a diversidade regional interessada na construção de
uma identidade (ainda que pelo restrito viés das práticas preservacionistas) numa dissertação
acadêmica. Mas essa limitação não impede que seja possível alcançar um resultado
importante. A análise da ação individual de sujeitos ligados às práticas preservacionistas
paulistas, por meio da investigação de suas respectivas produções historiográficas, abre
caminho para que as reais condições de atuação nos órgãos preservacionistas nacionais,
regionais e locais sejam melhor conhecidas. Em outras palavras, instituições como o IPHAN
poderão ser vistas como espaço de constantes disputas por políticas públicas favoráveis a
interesses específicos e, cada vez menos, como aparelho impositor de uma visão de
nacionalidade unívoca.
Além disso, mesmo tomando a obra de apenas dois autores paulistas (analisando-as à
luz da efetividade que alcançaram em seus respectivos espaços de atuação), será possível
perceber que nem ao menos a “região” poderá ser tomada como palco de uma espécie de
“unidade discursiva”. As inovações nas práticas preservacionistas podem ser, como será
demonstrado, diretamente ligadas às ações individuais dos autores que serão estudados. A
produção historiográfica será privilegiada na análise dessas ações (tomada ela mesma como
um tipo específico de ação) em face do papel central que ocupa na orientação das condutas
ligadas às políticas públicas de preservação cultural, e a noção de “evolução arquitetônica”,
como principal objeto de disputas, norteará essa análise das diversidades discursivas e práticas
no âmbito do “Patrimônio”.4
Desta forma, optei por analisar as obras historiográficas (e suas respectivas efetivações
práticas) de Luís Saia e Nestor Goulart Reis Filho, especialmente Morada paulista,5 do

4
Em alguns momentos propícios “patrimônio” será aqui grafado com inicial maiúscula, tendo em vista ter se
tornado um nome próprio para os autores paulistas, sobretudo os que serão aqui estudados. “Patrimônio”
tornou-se uma espécie de vulgo para a regional paulista do IPHAN, muito provavelmente no intuito de se
reforçar a personalidade individual do órgão ante o restante do conjunto institucional.
5
SAIA, Luís. Morada Paulista. 1ª reimpr. da 3ª ed. – São Paulo: Perspectiva, 2005.
18

primeiro, e Quadro da arquitetura no Brasil,6 do último. A ação de Saia foi de suma


importância para que a regional paulista do IPHAN adquirisse personalidade própria (marcada
pela individualidade deste arquiteto e pelos anseios de toda uma intelectualidade paulista)
ante o nível federal da instituição, alcançando relativo sucesso na preservação de objetos
representativos de uma “face paulista” da nacionalidade. Reis Filho, por sua vez, teve papel
fundamental para que os órgãos preservacionistas paulistas mantivessem sua destacada
posição no cenário nacional diante de determinadas mudanças que forçosamente se
observavam no país e no mundo.
Demarcado o espaço, faz-se necessário recortar também o tempo. Em se tratando das
práticas preservacionistas nacionais, trabalharei com um lapso temporal relativamente longo,
ou seja, entre os anos de 1937 e 1986. É certo que a amplitude do período impossibilita uma
análise estrutural mais densa, a partir da qual se pudesse almejar esgotar (ou chegar o mais
próximo possível disso) o contexto cultural no qual os atores enfocados estariam imersos.
Todavia, essa escolha permite que possamos perceber as mudanças e, por conseguinte, a
diversidade de perspectivas. Isso só se torna possível a partir de uma abordagem processual.
Dentro deste período, a trajetória dos dois autores enfocados se cruzaram e as políticas
preservacionistas conheceram diversas alterações. Luís Saia viveu até 1975 e, durante 38 anos
de atuação junto ao IPHAN, sua figura orientou firmemente as práticas preservacionistas
paulistas (mesmo no período inicial que se estende entre os anos de 1937 e 1945, quando foi
uma espécie de “braço direito” de Mário de Andrade nesse órgão). Após sua morte, fatores
diversos possibilitaram a ocorrência de algumas mudanças nas práticas preservacionistas, o
que não se deu anteriormente devido ao fato de que muitas delas não haviam encontrado as
condições objetivas de implementação, não obstante terem sido vislumbradas por Saia.
Se, entre o final da década de 1960 e o ano da morte de Saia, temas como proteção de
conjuntos urbanos, descentralização das práticas de preservação cultural e revisão das
concepções processuais relativas à formação nacional e regional encontravam cada vez mais
espaço no campo dos debates intelectuais, foi a partir de 1975 que eles se depararam com as
condições objetivas necessárias para que fossem implementados. Reis Filho ocupou posição
destacada nesse processo por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, foi responsável
pela construção de uma história da arquitetura que se coadunava perfeitamente com os
padrões de racionalidade pregados principalmente pela “Escola Sociológica Paulista”, na
vertente predominante da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São

6
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. 5ª ed. – São Paulo: Perspectiva, 1983.
19

Paulo – a FFCL-USP. Em segundo lugar, este arquiteto/sociólogo7 tomou a frente de diversos


órgãos (paulistas e federais), que, para além do IPHAN, passaram a se ocupar dos bens
culturais. Em 1986 coordenou órgãos como o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Urbano (CNDU) e a Comissão de Patrimônio Cultural da USP (CPC), mostrando-se um
expressivo representante de um momento em que se percebia claramente a pulverização dos
espaços responsáveis pelas práticas preservacionistas nacionais.
Mas as ações preservacionistas paulistas não possuem uma historicidade autônoma.
Elas foram apenas relativamente independentes das decisões tomadas inicialmente no Rio de
Janeiro e, posteriormente, em Brasília. Assim, é necessário que a análise das ações
preservacionistas em São Paulo considere o contexto mais amplo no qual se inseriram.
Para a consideração deste contexto ampliado, dispõe-se atualmente de uma literatura
acadêmica bastante extensa, cuja produção, no entanto, oferece uma concepção processual das
práticas preservacionistas em alguns pontos problemática. No intuito de dar conta das “ideias”
que nortearam as práticas preservacionistas nacionais, especialistas estabeleceram dois
grandes “blocos históricos”, que funcionariam sobre a base intelectual proporcionada por dois
dos mais expressivos diretores da história do IPHAN: Rodrigo Melo Franco de Andrade
(junto com seu amigo e subordinado Lucio Costa) e Aloísio Magalhães. Embora esse ponto de
vista tenha contribuído significativamente para a compreensão e desnaturalização das
políticas de salvaguarda dos bens culturais nacionais, ele tem sido responsável também por
encobrir uma realidade muito mais diversificada e complexa.
Um exemplo disso é o quase esquecimento a que tem sido relegada a gestão de Renato
Soeiro (1967-1979) junto ao IPHAN (então DPHAN). Considerado menos carismático e
expressivo que Melo Franco e Magalhães, Soeiro tem sido retratado na história das práticas
preservacionistas nacionais como o diretor responsável por um período de “transição” entre
uma “fase heroica” do IPHAN e outra, quase que “revolucionária”. No entanto, a abertura que
foi então proporcionada e as alterações introduzidas no órgão durante a gestão de Soeiro
foram fundamentais para a rediscussão de uma série de aspectos relativos a práticas
preservacionistas solidamente institucionalizadas. Isso foi possível em função de um maior
intercâmbio com órgãos internacionais como a Unesco e a OEA, da descentralização das
ações do IPHAN (com a criação, por exemplo, de órgãos estaduais como o CONDEPHAAT,
em São Paulo), da discussão de novas formas de financiamento e da contribuição do
patrimônio preservado como forma de geração de recursos às populações locais etc. Deste
7
Reis Filho graduou-se em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e em ciências
sociais pela FFCL-USP, embora tenha se destacado na verdade como historiador da arquitetura e do
urbanismo do Brasil.
20

modo, trata-se de uma configuração histórica específica, dotada de profundo significado para
a compreensão das práticas preservacionistas seja num nível regional ou nacional.
Feitas tais considerações, será possível agora demarcar melhor como a historicidade
das práticas preservacionistas nacionais estará presente neste trabalho. Com esta demarcação,
poderei também apresentar desde já os capítulos que comporão essa dissertação.
No primeiro capítulo tratarei, em maiores detalhes, da literatura acadêmica a que há
pouco fiz menção para, em seguida, situar em relação a ela o instrumental teórico-
metodológico deste trabalho. A historicidade das práticas preservacionistas não ficará clara
nesse capítulo, até mesmo porque ele será dedicado à discussão de pressupostos analíticos.
Além disso, a forma como tem sido tratada a “trajetória” do IPHAN, ou seja, privilegiando-se
uma análise estrutural da história deste órgão, contribui ainda mais para uma certa confusão a
este respeito. Procura-se constituir uma narrativa que explique os insucessos do IPHAN no
presente, contudo, o que se apresenta em geral são duas “formações discursivas” separadas
por uma espécie de hiato. O que deveria ser um processo se torna uma sucessão de duas
estruturas, analisadas “funcionalisticamente”. Destitui-se o processo histórico de seus
elementos dialéticos, privilegiando a imposição de um consenso como explicação da
permanência ao invés de mostrar o embate e convivência de dissensos. Perde-se a sensação da
historicidade ao optar-se por construções que se afastam daquilo que se poderia chamar
“realidade histórica”.
O segundo capítulo será uma tentativa de entender melhor as práticas
preservacionistas paulistas ocorridas entre os anos de 1937 e 1975. Ele o fará por intermédio
da análise da história da arquitetura produzida por Luís Saia e sua efetivação, tanto no âmbito
da institucionalização de formas de conduta específicas do órgão paulista quanto dos próprios
tombamentos e restaurações. O objeto escolhido para esta análise foi a noção de “evolução
regional paulista” conforme empregada para conferir sentido à arquitetura e à formação
regional do estado de São Paulo. Deste modo, trata-se de um período relativamente longo, no
qual os esforços por parte de Saia e da regional paulista, de forma geral, no sentido de
assegurar o lugar da “cultura paulista” dentro do conjunto dos bens culturais representativos
da identidade e da memória da Nação, foram concomitantes ao processo de estabilização e
institucionalização, no nível federal, dos procedimentos relativos aos tombamentos,
restauração e proteção do patrimônio cultural brasileiro. Não apenas concomitantes, pois não
se trata de um processo paralelo, mas em constante e obrigatório diálogo com o nível federal.
Essa “relação dialética” em alguns momentos foi realmente de oposição, mas, em muitos
outros, foi de concordância, aceitação ou mesmo contribuição.
21

O terceiro e último capítulo procederá de forma semelhante, tratando, no entanto, da


produção historiográfica de Reis Filho e sua respectiva efetivação nas práticas
preservacionistas paulistas e nacionais. Será enfocado o período entre 1969 e 1986, no qual
ainda faz-se sentir a influência da ação de Saia. Todavia, soma-se a isso uma série de novas
demandas que, caso não houvessem sido resolvidas a contento, ameaçariam a posição
confortável conquistada pelos arquitetos no importante campo de atuação representado pelas
políticas públicas de proteção de bens culturais. Será investigado então como a noção de
“evolução urbana” passou a orientar, através da produção historiográfica deste autor, as
práticas preservacionistas num contexto em que novos grupos e atores passaram a se
interessar vigorosamente por este campo de ação.
Com relação às fontes empregadas nesta pesquisa, é forçoso dizer que foi necessário ir
além da literatura disponível. Como o alvo também foi a efetivação do sentido narrado nas
práticas preservacionistas, foi necessário buscar dados que pudessem tornar mais claras,
portanto, a efetividade das ações analisadas. Na 9ª Superintendência Regional do IPHAN
tomei contato principalmente com a Biblioteca Luís Saia e, na FAU-USP, pude entrevistar
pessoalmente Nestor Goulart Reis Filho. Além disso, procurei em relatórios sobre o conjunto
dos tombamentos paulistas e em correspondências trocadas no âmbito do trabalho
informações mais detalhadas sobre as práticas profissionais desses autores. Não busquei
informações diretamente em atas de conselhos, pareceres e demais documentos institucionais
por julgar que já existe uma literatura suficientemente consistente a este respeito, inclusive
para a atuação específica dos órgãos paulistas. Todavia, em um futuro trabalho de maior
fôlego, esse tipo de documentação poderá ser empregada para o esclarecimento de aspectos
pontuais.
Para a realização de uma espécie de “reconstituição” dos contextos culturais dos
autores, o que abarcaria tanto os conhecimentos e significados disponíveis quanto as
possibilidades linguísticas, foi necessário o estabelecimento de um critério mais cauteloso.
Decidi trabalhar apenas com as obras e autores cujo contato pudesse ser comprovado
diretamente, por meio de referências constantes na produção historiográfica abordada, ou
indiretamente, por intermédio de documentos e relatos paralelos. Essa escolha se relaciona
com o fato de que creio ser um objetivo inalcançável realizar a reconstituição total de
contextos como estes. De nada adiantaria supor que o ator enfocado pudesse ter lido algo sem
que isso pudesse ser comprovado pelas fontes disponíveis. Amparados nessas evidências de
leitura e conhecimento, podemos abandonar o que seriam simplesmente conjecturas para
demonstrarmos algo que pode ser validado pela experiência concreta.
22

Esclarecidos todos os pontos tratados acima, resta ainda uma última explicação,
relativa ao emprego do conceito de “patrimônio”. Como qualquer conceito ou noção inseridos
num campo de acirradas disputas por poder ou autoridade, este conceito comporta atualmente
uma significativa polissemia. Não dispomos ainda de um trabalho historiográfico que
contemple a contento este tema. Ainda está por ser produzida no Brasil uma história do
conceito de patrimônio, dotada da amplitude necessária e que não se prenda exclusivamente
às políticas públicas encarregadas deste domínio.8
Infelizmente, será impossível tratar aqui o conceito de patrimônio de tal forma que
fornecesse uma ferramenta analítica inequívoca para esta investigação, ou seja, em toda a
amplitude que alcançou neste país e em suas relações com as proposições estrangeiras. Isto
seria, sem dúvida, trabalho para uma outra dissertação. Por outro lado, não basta apenas
escolher arbitrariamente um significado e aplicá-lo como mais uma ferramenta para a
compreensão dos objetos enfocados. Lida-se aqui com um recorte temporal relativamente
amplo, que comporta pelo menos dois significados distintos para o conceito. Neste ponto, os
trabalhos que têm se debruçado sobre as políticas públicas de proteção de bens culturais são
de grande valia, pois contribuem de forma significativa para a distinção das duas acepções
predominantes ao longo destes anos.
A imagem de um processo dialético é bastante útil para que compreendamos
suficientemente a história do conceito no período restrito aqui enfocado. Ao longo deste
espaço de tempo podem ser destacados dois significados coexistentes. Seria possível,
esquematicamente, denominá-los “significado restrito” e “significado amplo” de patrimônio.
Podemos notar nesse processo dois momentos de maior estabilidade intermediados por um
período de disputa entre os dois significados.
O primeiro período, que se passou mais ou menos entre o início da atuação de Luís
Saia e o final da década de 1960, tenderia a se iniciar com o significado amplo de patrimônio,
tendo em vista o esforço teórico de Mário de Andrade no sentido de defini-lo como conjunto
das manifestações artísticas eruditas e populares nacionais. Não obstante tratar-se de um
patrimônio “artístico”, e não “cultural” (conceito, este sim, bastante abrangente), a definição
mariodeandradeana possuía um viés folclorístico e etnográfico mesclado à concepção erudita
e acadêmica de arte, abarcando, deste modo, a quase totalidade dos artefatos e saberes ditos
populares somada à arte denominada erudita. No entanto, em virtude de contingências de
natureza diversa, acabou por prevalecer uma acepção restrita de patrimônio, “histórico e

8
Para a realidade europeia, há o trabalho de CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 3ª ed. – São Paulo:
Estação Liberdade: UNESP, 2006.
23

artístico”. Embora, em tese, este patrimônio fosse também ambiental e arqueológico, a


presença maciça de arquitetos no SPHAN e os instrumentos centralizadores do Estado Novo
acabaram por garantir uma ênfase no patrimônio arquitetônico, que ficou conhecido
posteriormente, numa denominação irônica, como “patrimônio pedra e cal”. Não cabe
mencionar todos os fatores que contribuíram para a vitória momentânea dessa definição
bastante restrita, mas não é demais mencionar a autoridade conquistada pelos arquitetos
modernos junto ao governo (sobretudo Lucio Costa), o importante papel da “casa” como
objeto privilegiado para o estudo dos costumes e cultura dos brasileiros e, por conseguinte,
para a compreensão da “essência” de nossa nacionalidade (desnecessário mencionar
novamente o peso de obra de Gilberto Freyre no que diz respeito a este aspecto) e a
centralização dos aparatos administrativos do SPHAN nas mãos dos indivíduos que assim
pensavam o patrimônio. Imperou por um bom tempo, portanto (até pelo menos meados da
década de 1970) uma concepção de patrimônio relativa aos bens materiais
(predominantemente arquitetônicos) que pudessem indicar por onde a evolução nacional
andou no passado. Era como se se recolhesse as migalhas de um pão já não mais comestível
que, no entanto, fossem úteis para indicar o caminho da modernidade.
Não obstante o predomínio dessa acepção estrita, continuou a existir, ainda que de
forma subjacente, a definição lata de patrimônio. Em São Paulo ela foi mitigada pelas
diretrizes e orçamentos governamentais. Entretanto, se era para se trabalhar apenas com
arquitetura, deixando num segundo plano registros fonográficos e fílmicos, artefatos
produzidos pelas populações nativas, mulatas e mamelucas etc., que essa arquitetura
abarcasse uma formação cultural, social e econômica de uma região dotada de claro
significado para a compreensão de um processo mais amplo, ou seja, o nacional, conforme
imaginava o arquiteto Luís Saia. Neste ponto, o conceito de patrimônio perde sua eficácia
explicativa no que tange às práticas preservacionistas. É por isso que faz-se necessário lançar
mão de outro, ou seja, da noção de “evolução arquitetônica” nas variadas formas que assumiu.
O conceito lato de patrimônio somente passou a ser empregado com mais eficácia
quando, em finais da década de 1970, diversos grupos, e não mais apenas os arquitetos,
passaram a perceber o potencial da “guarda” da definição de patrimônio para o fortalecimento
de identidades grupais. Arquitetos, historiadores, antropólogos, sociólogos, brancos, negros,
mulatos, mamelucos, descendentes de imigrantes de forma geral, trabalhadores de diversas
áreas, enfim, uma infinidade de grupos passou a desejar uma representatividade no baú de
nossa nacionalidade. Estes atores tiveram condições de perceber que, sem uma representação
no conjunto dos bens tombados, não seria possível provar que eles também eram brasileiros e,
24

por conseguinte, teriam direito de participar politicamente de seus próprios rumos. Todavia,
esses grupos não possuíam edifícios íntegros que mostrassem que eles também eram
brasileiros. O legado cultural de seus antepassados baseava-se em saberes e fazeres
repassados de pais para filhos, produtos tradicionais que ainda hoje sustentam famílias,
manifestações culturais que ainda definiam seus grupos locais e que, por sua incomensurável
diversidade, poderiam dotar a nação de mais um valor: o da pluralidade.
O grupo liderado por Aloísio Magalhães acabou encontrando soluções que em tese
dariam conta de um conceito de patrimônio bastante ampliado. Este conceito abrangia todas
as manifestações culturais nacionais, principalmente aquelas ditas “vivas”, cuja manutenção
seria essencial para que grupos sociais específicos continuassem existindo e se desenvolvendo
social e economicamente, sem que com isso se perdesse o novo valor nacional da diversidade.
No entanto, o conceito restrito de patrimônio histórico e artístico continuaria exercendo uma
grande influência, uma vez que, por meio dele, institucionalizaram-se práticas, como a do
tombamento, que dificilmente seriam abandonadas.
Contudo, antes que essa definição ampliada do conceito de patrimônio se tornasse a
“politicamente correta”, houve um período de discussões e inovações que possibilitou a
existência desse “novo ciclo”. As “missões” da Unesco que por aqui aportaram, os encontros
de governadores em que ficou definida a necessidade de divisão das responsabilidades
preservacionistas com os estados e municípios, do diálogo entre órgãos públicos e
universidades, de novas fontes de financiamento, da discussão sobre as relações do turismo e
do desenvolvimento com o patrimônio, as discussões envolvendo a preservação de conjuntos
urbanos etc., todos estes fatores foram fundamentais para que as práticas preservacionistas
nacionais fossem rediscutidas. Ainda que durante esse período o patrimônio tenha continuado
aquele de “pedra e cal”, não é possível sustentar que não houveram mudanças nas atuação dos
órgãos responsáveis pela preservação de bens culturais.
Mais uma vez é uma outra noção que permitirá, portanto, compreender as alterações
havidas nas práticas preservacionistas. Enquanto ainda se iniciava a rediscussão do conceito
de patrimônio em função de uma série de novas demandas, a noção de “evolução urbana” já
solucionava uma série de problemas, dentre eles o dos tombamentos de conjuntos
arquitetônicos e urbanísticos. Mais uma vez é a história da arquitetura que fornece sentido a
uma noção consistente o bastante para continuar orientando as condutas no âmbito
preservacionista. Isto se deu a partir de fins da década de 1960 e 1970, estendendo-se ainda
adiante, quando o uso do novo conceito de “bem cultural” ainda se via constrangido pelo
“velho” conceito de patrimônio histórico e artístico, solidamente estabelecido durante anos de
25

atuação do IPHAN.
Esta explanação foi necessária pelo fato de que em vários momentos o termo
patrimônio aparecerá neste texto. No entanto, este conceito não ocupa posição central neste
trabalho. Pretendo demonstrar que a noção de evolução arquitetônica, nas variadas formas que
assume ao longo da história das práticas preservacionistas nacionais (sendo que aqui abordo
apenas duas delas), é tão ou mais importante que o conceito de patrimônio para a
compreensão das práticas preservacionistas nacionais. Deste modo, escava-se um veio ainda
inexplorado no campo, na esperança de que as indagações colocadas no início desta
introdução possam ser respondidas. A disciplina que permite alcançar esses objetos (as noções
de evolução arquitetônica em suas diversas feições onomasiológicas e semasiológicas) é, sem
dúvida, a história da historiografia, desde que essa forma específica de linguagem seja
encarada como uma forma de ação individual efetuada num contexto social específico.
26

2 AS PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS NACIONAIS: ABORDAGENS


ESTABELECIDAS E NOVAS PERSPECTIVAS

Neste capítulo pretendo situar minha perspectiva analítica em relação a uma série de
textos que versam sobre a história das práticas preservacionistas nacionais. Com esse intuito o
dividi em duas seções. Na primeira apresentarei, de forma um tanto instrumental, um conjunto
de obras que têm tratado desta temática a partir da década de 1990. Na outra tratarei dos
pressupostos teórico-metodológicos que me auxiliarão na tentativa de propor uma nova
abordagem para o assunto.

2.1 NOTAS SOBRE A LITERATURA ACADÊMICA RECENTE ACERCA DAS


PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS NACIONAIS: A HISTÓRIA DE UMA
FORMAÇÃO DISCURSIVA HEGEMÔNICA

Deixo inicialmente claro que não tenho a pretensão de esgotar neste capítulo tudo o
que foi escrito sobre a história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – o
IPHAN. Desse modo, muitas ausências importantes serão certamente notadas. Tampouco
desejo diminuir a contribuição que os trabalhos a serem analisados prestaram para uma
compreensão mais precisa acerca das práticas preservacionistas nacionais. Na verdade,
destacarei alguns pontos de um conjunto significativo de textos sobre a história das práticas
preservacionistas nacionais (enfocada sobretudo a partir da história do IPHAN), a fim de me
situar em relação a eles. Assim, poderei também, por meio desses trabalhos, caracterizar
sucintamente aquilo que se constituiu como o principal órgão dentre os que se preocuparam
com a definição de uma arquitetura nacional.
Farei antes algumas considerações sobre esse conjunto de textos, destacando nele dois
aspectos importantes para a sua compreensão. Em seguida, mostrarei, de forma mais
detalhada, quais os principais pressupostos analíticos presentes em algumas de suas obras
mais significativas.
27

2.1.1 Normatividade e apresentação de identidade

Um primeiro aspecto dessa produção se relaciona ao seu “caráter normativo”. A


maioria de seus autores se liga, atualmente, de uma forma ou de outra, às instituições
responsáveis pelas práticas preservacionistas nacionais. A “normatividade” desses textos diz
respeito à organização de um material empírico específico, relativo às práticas
preservacionistas pretéritas, cujo intuito é orientar ou legitimar essas práticas, de acordo com
novos interesses, no presente. De um lado, dá-se ênfase ao rigor ético e científico que
invariavelmente teria embasado as práticas do IPHAN, seja no período de Rodrigo Melo
Franco de Andrade ou no de Aloísio Magalhães – o que justificaria o empenho em perpetuar
tais práticas em face da seriedade com a qual o órgão sempre encarou a memória nacional. De
outro lado, denuncia-se uma série de mecanismos elitistas de imposição de um discurso,
consolidados num período identificado com a atuação de atores específicos, e contrapõe-se
este discurso a um outro, mais “democrático” e que somente não teria sido implementado em
função das amarras institucionais criadas pelo primeiro grupo.
Em outras palavras, a literatura acadêmica que tem narrado a história das práticas
preservacionistas nacionais identifica pontos positivos e negativos de uma “trajetória” de
caráter unilinear. Destaca-se uma série de atributos existentes nas práticas preservacionistas
da assim chamada “fase heroica”, que deveriam ser evitados ou superados no presente, e, por
outro lado, toma-se como modelo um conjunto de características propostas pelo grupo que
representa os anseios preservacionistas dos atores que, atualmente, narram a história do
IPHAN (a exemplo das propostas do Centro Nacional de Referencia Cultural – o CNRC). As
perspectivas regionais pouco ou nada são mencionadas em suas especificidades ou no que diz
respeito às suas contribuições.
O segundo aspecto a ser destacado é o fato de que essa literatura acadêmica está
interessada na “apresentação de uma identidade”. Esta expressão refere-se a um aspecto
essencial no que diz respeito à narração das histórias individuais e coletivas. Indagando-se por
qual motivo escrevemos nossa história e a dos outros “sempre de novo”, Hermann Lübbe
responde o seguinte: “porque la presentación de la identidad propia e ajena es uma función
de nuestra historia a través de la cual, al modificarla, obtenemos nuestra propria identidad”.9
E identidade, para o grupo de autores cujas obras são agora analisadas, significa uma forma
de conduta legitimada historicamente.
9
LÜBBE, Hermann. Filosofía práctica y teoría de la historia. Barcelona: Editorial Alfa, 1983, p. 129.
28

Esses autores, de uma forma ou de outra, pretendem definir, como vimos, um perfil de
atuação para o órgão no presente. Este “perfil institucional” pressupõe a definição de práticas
preservacionistas que são consideradas mais adequadas à “gestão” da memória e identidade
nacionais. Os autores que escrevem a história do IPHAN, ao ocuparem os papéis
institucionais herdados por este órgão, devem se identificar com algum conjunto de práticas.
Ora, não há identidade sem história, conforme propõe Lübbe.10 Por outro lado, também não há
identidade sem a existência de um “outro”. A produção historiográfica permite aqui, portanto,
que estes autores assumam determinados papéis institucionais que se legitimam em
detrimento de outros. Tais papéis somente podem ser apresentados historicamente, e a
historiografia se mostra, portanto, um instrumento necessário para se efetivar este conjunto de
práticas preservacionistas.
Deste modo, delimita-se, por exemplo, um período ao qual é dado o nome de “fase
heroica”. Nele teria sido realizado um trabalho hercúleo de identificação de nosso patrimônio
e de preservação do mesmo. Por outro lado, por uma série de princípios e critérios
considerados “equivocados”, ele seria palco também da construção de uma imagem branca,
elitista e católica do passado nacional. Há, portanto, uma necessária identificação com uma
série de características que indicam um papel institucional específico (o pertencimento ao
IPHAN – órgão possuidor de uma identidade, e, por conseguinte, de uma história própria –
demonstrado e legitimado pelo “rigor ético” e “científico” no trato do passado nacional), ao
mesmo tempo em que há a identificação de um grupo com um conjunto de práticas em
oposição a outro, já desgastado pelo tempo, dentro da própria instituição (o que acaba criando
uma dicotomia do tipo “discurso do grupo de Melo Franco de Andrade” versus o do “grupo de
Magalhães).
No entanto, não creio que seja pertinente classificar apressadamente esta literatura
acadêmica como sendo uma “produção historiográfica”. Em primeiro lugar, trata-se de um
conjunto limitado de textos, que, todavia, representam bem, ao meu ver, o tipo de análises que
têm sido realizadas sobre as práticas preservacionistas nacionais, além de se ter demonstrado
muito influente no campo.11 Em segundo lugar, normatividade e constituição de identidade
não são suficientes para que se possa falar em historiografia, muito embora sejam

10
Ibid., p. 109 et. seq.
11
Além do grande número de publicações destes autores dentro do âmbito do próprio IPHAN, pode ser notada
tal influência em textos que tratam das práticas preservacionistas num nível local, a exemplo de
GONÇALVES, Cristiane Souza. Restauração arquitetônica: a experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-
1975. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, e RODRIGUES, Marly. Imagens do passado: a instituição do
patrimônio em São Paulo: 1969-1987. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado:
CONDEPHAAT: FAPESP, 2000.
29

fundamentais para esta prática.12


De qualquer forma, ao almejar definir identidades e orientar determinadas condutas
presentes, os autores em questão acabaram construindo e supervalorizando determinadas
unidades discursivas, fazendo com que elas fossem tomadas como as únicas possíveis dentro
dos períodos estanques atribuídos ao IPHAN. A fim de proporcionar uma aproximação com
aquilo que os trabalhos ora analisados propõem, “formação discursiva” deverá ser aqui
compreendida como um conjunto de normas ou conhecimentos suficientemente cristalizados
a ponto de orientar univocamente determinadas condutas individuais, prescritas aos atores que
vieram a aceitar os papéis que lhes foram disponibilizados dentro da “instituição” a que se
submeteram.
A primeira destas formações discursivas, que teria sido conformada principalmente
por autores canonizados pela história institucional produzida pelo próprio IPHAN (a exemplo
de Melo Franco de Andrade e Lucio Costa, entre outros, menos significativos), refere-se a
uma “fase heroica” do órgão, que teria tido seu momento áureo nos primeiros anos após sua
criação, tombando e protegendo um grande número de monumentos arquitetônicos ameaçados
de destruição e institucionalizando uma série de saberes sobre, por exemplo, o “processo
civilizatório nacional”, a “verdadeira arquitetura nacional” etc. Esta formação discursiva teria
assim produzido uma visão elitista, portuguesa e católica da nação e, como se não bastasse,
privilegiado um patrimônio de “pedra e cal” (forma pejorativa de se aludir à arquitetura
colonial preservada – sobretudo mineira, urbana e “barroca” – em detrimento das outras
manifestações culturais).
Com o fim da “era Melo Franco de Andrade” tais práticas tradicionais sofreriam um
certo arrefecimento, até que então surgisse o Centro Nacional de Referência Cultural
(CNRC), liderado por Magalhães. Este grupo teria proposto uma forma renovada de se
encarar o patrimônio cultural nacional, amparada em noções mais abrangentes como, por
exemplo, a de “bem cultural”.13 Sua preocupação seria diversa daquela que teria norteado o
trabalho do grupo de Melo Franco de Andrade, para o qual a preservação de artefatos culturais
12
Seguindo o raciocínio de Rüsen, deveríamos ainda levar em conta três aspectos que definem a pretensão de
veracidade ou de credibilidade da história: sua pertinência empírica, normativa e narrativa (RÜSEN, Jörn.
História Viva. Brasília: Unb, 2007).
13
Segundo Joaquim Falcão, “sua noção de bens culturais se opôs à noção de patrimônio histórico e, ao mesmo
tempo, a incorporou. Opôs-se na medida em que a noção de patrimônio foi, historicamente, apropriada e
reduzida à noção de preservação do patrimônio de pedra e cal. De preservação arquitetônica dos monumentos
da etnia branca e sua elite civil, militar ou eclesiástica. Incorporou-o na medida em que patrimônio histórico
passou a ser a espécie, e bens culturais, o gênero. Trata-se, portanto, de conceito mais abrangente, que
incorpora o bem ecológico, a tecnologia, a arte, o fazer e o saber. Das elites e do povo também. Da etnia
branca e também da negra e da indígena. Pois, como gostava de dizer: ‘a cultura brasileira não é eliminatória,
é somatória” (MAGALHÃES, Aloísio. E triunfo?: a questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira; Fundação Roberto Marinho, 1997, p. 22-23).
30

deveria estagná-los no tempo, almejando assim apontar um momento do “processo


civilizatório” nacional, cuja linha evolutiva deveria ser resgatada no presente a fim de se
construir uma modernidade nacional autêntica. O CNRC, pelo contrário, buscaria um passado
“vivo”, no qual se pudesse visualizar e compreender uma “trajetória”, ou seja, um
desenvolvimento natural, de determinadas práticas culturais autenticamente nacionais.
Portanto, ao invés de “congelar” tais manifestações culturais, as novas formas de intervenção
proporiam dotá-las de condições para que se desenvolvessem em sua trajetória natural,
valorizando sua heterogeneidade como forma autêntica de lidar com problemas locais.
Creio ser necessário deixar claro, de antemão, que essa construção histórica, dentro da
qual a história do IPHAN é narrada como a sucessão unilinear de dois grandes “períodos”,
não pode ser considerada satisfatória. É preciso considerar um período intermediário,
representado principalmente pela gestão de Renato Soeiro junto ao órgão, no qual problemas
como os relativos aos conjuntos urbanos, ao desenvolvimento turístico e econômico e à
descentralização da proteção dos bens culturais trouxeram profundas alterações nas condutas
preservacionistas nacionais. Além disso, é preciso considerar a diversidade de atores
envolvidos, sobretudo no que tange às realidades regionais, e suas respectivas contribuições
para a atuação do órgão federal. Este trabalho pretende, ainda que com base em um recorte
específico, contribuir com a iluminação desses aspectos, até então ainda pouco privilegiados.
Antes de analisar mais detidamente a literatura acadêmica em questão, cabe ainda uma
consideração a seu respeito. Acima mencionei que estes autores se ligam, de uma forma ou de
outra, aos órgãos preservacionistas nacionais. Todos os textos que serão apresentados foram
escritos a partir da década de 1990, ainda que as discussões das quais surgiram lhe sejam
anteriores.
Nesse período, as práticas preservacionistas nacionais passaram por algumas
dificuldades. Em 1990, as atividades da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN) foram paralisadas pelo governo Collor e seu Conselho Consultivo
dissolvido, sendo que as atividades só seriam retomadas em 1992. Além do mais, havia a
percepção de que, não obstante a reformulação de critérios pela qual havia passado o órgão
sob a orientação de Aloísio Magalhães, pouco ou nada havia mudado nas práticas em si, dadas
as limitações do instrumento do tombamento.14 Impunha-se, portanto, uma análise detida dos
problemas do órgão, o que demandou um olhar retrospectivo sobre as práticas do IPHAN, no
qual ressaltou-se determinadas qualidades e identificou-se certos vícios. Todos os autores a

14
Cf. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação no Brasil. Rio de Janeiro; UFRJ: IPHAN: 1997, especialmente o capítulo 5.
31

serem analisados produziram textos deste tipo pelo IPHAN, que organizou inclusive um
número inteiro de sua famosa Revista, agora re-estilizada, com este intuito.15
Este conjunto de intelectuais é formado por cientistas sociais dos mais variados
campos, sendo que a maioria deles tem ou teve ligação com órgãos tais como o próprio
IPHAN e CNRC, além da Universidade de Brasília, que teve um importante papel na
discussão deste novo paradigma acerca da cultura nacional.16 Pode-se dizer, grosso modo, que
todos eles se preocupam, cada um a seu modo, em caracterizar a “formação discursiva
hegemônica”, nos dizeres de Mariza Velozo Motta Santos,17 que teria fundamentado as
práticas preservacionistas, principalmente, no período em que o SPHAN foi comandado por
Melo Franco de Andrade.
De forma geral, estes trabalhos procuram identificar nos discursos sobre o patrimônio
cultural nacional de certos autores, como os dos já mencionados Melo Franco de Andrade e
Lucio Costa, os problemas de suas práticas preservacionistas. Encontra-se, assim, com base
num conjunto limitado de textos e de fontes (sobretudo nos tombamentos), uma formação
discursiva hegemônica que teria ditado os rumos da preservação patrimonial no Brasil. A ideia
de uma “trajetória”18 composta por duas grandes formações discursivas, conforme proposta
por Aloísio Magalhães na sua formulação da trajetória institucional do IPHAN, é assim
preservada.
Veremos que, embora tal identificação seja valiosa e de fato nos ajude a compreender a
forma pela qual se deu a prática de proteção do que foram considerados os bens culturais da
nação, ela omite, salvo algumas exceções, o que talvez seja a própria condição de existência
do IPHAN ao longo desses seus mais de setenta anos: a capacidade de comportar diversos
discursos ao mesmo tempo, ou seja, de acomodar o dissenso em torno de um consenso
mínimo.

15
Vejamos alguns exemplos da forma pela qual vêm sendo organizados os números atuais da Revista. Embora
trate do tema “cidadania”, a Revista de número 24 (1996), da qual extraí alguns dos textos a serem aqui
analisados, apresenta uma série de artigos relacionados com esta “preocupação diagnóstica”. Na Revista nº
26 (1997), por sua vez, foram publicados uma série de textos exemplares de seu passado, na ocasião dos 60
anos do órgão. Por fim, o seu número 30 (2002), dedicado a Mário de Andrade, propõe em seus textos um
modelo de preservação inspirado nas ideias do polígrafo paulista, resgate pretendido desde a gestão de
Aloísio Magalhães.
16
O CNRC contou inicialmente com o apoio do Ministério da Indústria e Comércio e da Fundação Unb, que
cedeu um espaço no campus para instalação deste grupo de trabalho.
17
SANTOS, Mariza Veloso Motta. Nasce a academia SPHAN. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. [Brasília], n. 24, p. 77-95, 1996.
18
A presença da noção de “trajetória” nos discursos de Aloísio Magalhães é enfatizada em MAGALHÃES, op.
cit., publicação na qual pode ser encontrada a definição desta noção segundo o próprio designer
pernambucano.
32

2.1.2 Campo e formação discursiva hegemônica

Deter-me-ei agora na análise dos principais aspectos ligados a essa literatura


acadêmica que, ao longo da década de 1990, consolidou-se na investigação das práticas
sedimentadas de preservação patrimonial.
Como já foi apontado, o principal ponto em comum entre esses autores se refere à
identificação de uma unidade discursiva dentro do SPHAN. Para tanto, são utilizados
conceitos como “formação discursiva” e “campo”, que, no caso destes trabalhos, apontam
mais para uma imposição de um consenso do que para a acomodação de dissensos. Veremos
que tais conceitos são ora utilizados mediante definições explícitas, com referências aos
autores por elas responsáveis, ora tomados como senso comum, naturalizando-os de forma a
inclusive prejudicar sua eficácia explicativa.
Para a antropóloga Mariza Veloso Motta Santos, conforme sustenta em seu artigo
“Nasce a Academia SPHAN”,19 trata-se da “institucionalização de um lugar de fala, que
permite a emergência de uma formação discursiva específica”.20 Esta noção de “formação
discursiva”, segundo a autora, foi tomada emprestada de Michel Foucault, e, embora não seja
explicitamente utilizada pelos demais autores, representa bem os pressupostos analíticos
envolvidos nestas explicações. Tratar-se-ia de uma formação discursiva constituída através do
tempo, que, aos poucos, teria se institucionalizado, diferenciado e complexificado. Santos
ainda utiliza o quadro teórico proposto por Bourdieu ao afirmar, por exemplo, que “é a
singularidade do grupo que integra a Academia SPHAN, ao construir uma formação
discursiva – que na sua dinâmica simbólica é arbitrária e coercitiva no que diz respeito aos
valores em performance –, e que, sobretudo, impõe e faz valer um ‘princípio de divisão
legítima do mundo social”.21 Assim, vencida a luta dos arquitetos modernos (cujo líder e
principal expoente foi, sem dúvida, Lucio Costa) contra os neocoloniais (representados
principalmente por José Mariano Filho e Ricardo Severo), “a Academia SPHAN nasce
ancorada numa ideia básica que é o registro da nação, cuja face era preciso tornar visível,
como no romantismo, mas através da identificação de uma tradição cultural que tivesse uma
duração no tempo, cujo passado era preciso alcançar, e que tivesse uma visibilidade no
espaço, cuja configuração e moldura era preciso estabelecer”.22

19
SANTOS, op. cit.
20
Ibid, p. 77, grifo meu.
21
Ibid., p. 78.
22
Ibid., p. 78.
33

Em artigo intitulado “O cidadão moderno”,23 o arquiteto Lauro Cavalcanti identifica


este discurso hegemônico (nas suas palavras: “vencedor”), com o do grupo de arquitetos
modernos, que, como vimos, teve sua principal figura na pessoa de Lucio Costa. Inspirados
principalmente no pensamento de Le Corbusier, estes profissionais teriam se apegado à
“crença quase ilimitada nos poderes da ciência e, no caso da arquitetura, na capacidade de esta
mudar a condição e comportamento dos indivíduos através do espaço”.24 Além disso, a
arquitetura moderna, de acordo com Le Corbusier e também Walter Gropius, traduziria um
momento de ruptura com o passado – mas com um passado imediato, representado pelos
arquitetos “academicistas”, a exemplo dos chamados neocoloniais. Segundo Cavalcanti, “no
campo da arquitetura a ‘vitória’ dos modernos se dá mediante uma vinculação histórica e uma
vinculação ética; ao assumirem os polos do passado e do futuro, logram se colocar, em uma
perspectiva evolucionista, como a natural depuração e herdeiros de toda uma tradição
construtiva brasileira”.25 Desta forma, em função de uma série de afinidades discursivas entre
governo e intelectuais, sobretudo arquitetos, estes teriam percebido no serviço público a
melhor forma de intervenção na sociedade. Comprovariam estas afirmações o “predomínio
massivo de arquitetos” no SPHAN e o privilégio dado ao “patrimônio pedra e cal” nos
primeiros números da revista editada por este órgão.
Muito semelhante à opinião de Cavalcanti é a da crítica literária Maria Cecília Londres
Fonseca, conforme expressa em seu livro O patrimônio em processo:

durante o Estado Novo, os modernistas gozavam de franca hegemonia no meio


intelectual e conseguiram resolver razoavelmente bem, naquele momento, a
dicotomia entre o que consideravam seu papel de homens de cultura a serviço do
‘interesse público’ e sua inserção na administração de um governo autoritário,
mantendo junto ao MEC e ao governo federal um invejável grau de autonomia.26

A temática do patrimônio surge “assentada nas bases do modernismo” e, para estes


modernistas, Minas seria o polo irradiador da civilização nacional.27 De Minas também
surgiriam os principais articuladores da rede intelectual na qual consistiria o SPHAN.
Segundo Fonseca,

havia entre os mineiros um sentido de constituírem uma elite intelectual e com a


vocação do espírito público. Predominavam neles valores como o rigor, a
23
CAVALCANTI, Lauro. O cidadão moderno. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. [Brasília],
n. 24, p. 106-115, 1996.
24
Ibid., p. 106.
25
Ibid., p. 113.
26
FONSECA. Op. cit., 1997, p. 15.
27
Sobre o papel de Minas enquanto berço da civilização nacional para os modernistas, cf. FONSECA, op. cit.,
1997, p. 99.
34

sobriedade, a honestidade intelectual e moral, e sobretudo o senso de dever. Tudo


isso matizado pelo humour, em Carlos Drummond de Andrade, e pela habilidade
política, em Capanema. Nesse sentido, Rodrigo Melo Franco de Andrade talvez
fosse o mais ‘mineiro’ entre os mineiros, e era considerado por todos o líder natural
do grupo.28

Portanto, teria sido fundamental a privilegiada posição política de Gustavo Capanema e sua
adesão ao ideário modernista, o que teria possibilitado a inserção dos arquitetos modernos no
tecido do SPHAN. O discurso a justificar ou legitimar os tombamentos do SPHAN seria o que
emanaria do parco conjunto de seus dirigentes. Assim, foram privilegiados os remanescentes
da arte e arquitetura colonial brasileira, o que se justificou ou pela iminência da perda ou por
critérios puramente estéticos, numa clara hierarquia em que sobressaía-se o barroco e, em
menor grau, o neoclássico, e que alijava o eclético e o neocolonial. Embora o rigor dos
estudos e das pesquisas visasse auferir legitimidade a este discurso, sua distância em relação à
opinião pública teria elevado ao primeiro plano desta função a autoridade intelectual e moral
de seus agentes, pela qual Rodrigo Melo Franco de Andrade teria sempre zelado. Enfim, tal
unidade discursiva seria possível em função da coesão da equipe reunida “em torno de um
projeto”.29
Num texto posterior Fonseca parece radicalizar esta posição. Segundo a autora,

ao ser criado o SPHAN, em 1937, já estavam dadas as condições políticas e


simbólicas para a hegemonia dos modernistas no ministério Capanema em tudo que
se referia ao trato dos monumentos: foi através de seus projetos que o ministro
‘descobriu’ a arquitetura e pôde exercer um papel de mecenas do que havia de mais
avançado nas artes; e foi graças à eficácia de suas ideias que não foi difícil afastar e
se contrapor a outros grupos com pretensão a ocupar o campo”.30

Fonseca se apropria explicitamente do conceito de “campo”, conforme proposto por


Bourdieu, e, desta forma, podemos assim interpretar, os modernistas se tornariam o grupo
que, dentro do campo cultural, deteria o poder simbólico de “produção do senso comum”, ou
o “monopólio da nomeação legítima como imposição oficial”.31 Lucio Costa surge para a
autora como o “teórico” deste grupo. Ele teria universalizado os princípios de sua “boa” ou
“verdadeira” arquitetura, inserindo-a no melhor da tradição ocidental. A identificação de tais
princípios no período no qual se teria fundado a arquitetura genuinamente brasileira – séculos
XVII e XVIII –, além do prestígio das duas principais figuras do SPHAN – Melo Franco de
28
Ibid., p. 100.
29
Ibid., p. 139.
30
Idem. A invenção do patrimônio e a memória nacional. In BOMENY, Helena (org.). Constelação Capanema:
intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas; Bragança Paulista, SP: Ed.
Universidade de São Francisco, 2001, p. 94.
31
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989, p. 146.
35

Andrade e Lucio Costa – teria naturalizado uma prática de tombamentos “imposta sem
maiores contestações”.32
Seguindo um raciocínio semelhante, a historiadora Márcia Regina Romeiro Chuva
vincula o discurso dominante do SPHAN também aos modernistas, mas considera que chamar
este grupo simplesmente de “modernista” não é suficiente,

pois os debates em torno da ‘criação da nação’, que estiveram presentes no


modernismo dos anos 20, e foram incorporados às malhas do Estado após 1930,
acabaram por evidenciar diferenças cruciais entre as várias correntes que se
formaram, constituindo grupos por vezes antagônicos em relação às suas visões de
mundo e ao projeto de nação em disputa.33

O grupo de intelectuais modernistas que compôs o SPHAN teria sido formado pelo
que Rodrigo Melo Franco de Andrade denominou “quarta corrente”, representante da
“vertente universalista e cosmopolita do modernismo mineiro”,34 e que teria se formado
inicialmente em torno da Revista do Brasil. Surgem então como principais construtores desse
discurso o próprio Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Lucio Costa.
Melo Franco de Andrade articularia os critérios que afirmariam o pertencimento da arte
nacional, e, por conseguinte, do próprio país, ao mundo das nações modernas. Drummond,
por sua vez, partilharia desta posição, pois, para ele, “a inserção no mundo civilizado se daria,
principalmente, pela identificação de uma arte brasileira que pudesse se enquadrar na
classificação tradicional da história da arte no mundo ocidental”.35 Por fim, Lucio Costa, com
as suas “Razões da nova arquitetura”,36 teria criado a possibilidade concreta de inserção da
produção artística nacional na história da arte universal (ocidental). Um primeiro passo seria a
institucionalização da arquitetura da “escola carioca”, “com a formulação de um discurso
perfeitamente enquadrado nas questões mais presentes daquele momento, até mesmo no que
diz respeito à recuperação da tradição, sempre de acordo com sua visão de mundo
moderna”.37
Dessa forma, a posição desse arquiteto se mostra, para a autora, fundamental para as
práticas preservacionistas nacionais. Costa se tornaria “o principal mentor” do modernismo
em arquitetura no Brasil, ao formular uma fala apropriada à categoria e ao criar, através do
32
FONSECA, op. cit., 2001, p. 97.
33
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e
civilizado. Topoi, v. 4, n. 7, jul.-dez. p. 313-333, 2003, p. 314.
34
Ibid., p. 315.
35
Ibid., p. 317.
36
COSTA, Lucio. Razões da nova arquitetura (1936). In: XAVIER, Alberto (org.). Lucio Costa: sobre
arquitetura. Porto Alegre, Centro dos Estudantes Universitários de Arquitetura, 1962.
37
CHUVA, op. cit., p. 319.
36

SPHAN, um mercado de trabalho privilegiado, dentro do Estado, para os arquitetos


“modernos”. Por outro lado, esta notável autoridade garantiria o prestígio internacional às
práticas preservacionistas nacionais, algo almejado por Melo Franco de Andrade. Além disso,
segundo a autora, “a genialidade de Lucio Costa construía, assim, a genealogia da ‘boa
arquitetura’, universal, em que a produção brasileira se enquadrava, na origem e na
atualidade”.38 Portanto, de acordo com Chuva, o discurso hegemônico do SPHAN teria sido
formulado a partir da “invenção” de um patrimônio cultural, notadamente arquitetônico e
barroco, que inseriria o Brasil na história da civilização ocidental.
Em trabalho mais recente, intitulado A retórica da perda, o antropólogo José
Reginaldo dos Santos Gonçalves analisa o percurso institucional do IPHAN como sendo
composto por dois discursos hegemônicos:

ao longo dos últimos cinquenta anos, é possível identificar duas grandes narrativas
por meio das quais as políticas oficiais de patrimônio cultural do Estado brasileiro
são culturalmente inventadas. A primeira, associada ao nome de Rodrigo Melo
Franco de Andrade e ao antigo SPHAN [...] foi hegemônica desde 1937, ano da
criação do SPHAN, até, aproximadamente, a segunda metade da década de 70. A
segunda está associada ao nome de Aloísio de Magalhães e ao processo de
renovação ideológica e institucional da política oficial de patrimônio cultural que,
sob sua liderança, se desenvolveu desde os anos 70.39

Seguindo uma tradição intelectual contemporânea, que encara os discursos como atos de fala
visando determinados efeitos, Gonçalves afirma que “a autoridade cultural desses intelectuais
é adquirida na medida em que persuadem sua audiência, seu público, de que eles são capazes
de ‘representar’, por intermédio de seu discurso e de sua prática à frente da política oficial de
patrimônio, de maneira mais ‘autêntica’, a identidade cultural da nação”.40
Desta forma, o autor também procura interpretar as políticas preservacionistas
nacionais a partir do discurso de apenas dois de seus atores. Todavia, a meu ver, Gonçalves o
faz com base numa ancoragem teórica que lhe permite apontar, a partir da obra de Rodrigo
Melo Franco de Andrade e da de Aloísio Magalhães, determinadas constantes dentro destas
políticas preservacionistas. Depreende-se, desta forma, da leitura de seu texto, que a nação é
algo “imaginado” (uma “comunidade”, de acordo com Benedict Anderson) e “objetificado”41
nos discursos sobre o patrimônio. O patrimônio seria então um conjunto de bens “autênticos”,
representantes “verdadeiros” de uma “trajetória” ou “evolução” cultural (ou “civilizatória”) da

38
Ibid., p. 328.
39
GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Iphan, 2002, p. 38.
40
Ibid., p. 38.
41
Para maiores detalhes a respeito da noção de “objetificação cultural” na obra do autor, cf. Ibid., p. 14-16.
37

nação. O que auferiria legitimidade a este discurso seria a iminência da perda destes bens
(para Melo Franco de Andrade, o desaparecimento ou ruína do patrimônio móvel e imóvel;
para Magalhães, a homogeneização cultural).
Por fim, podemos identificar no artigo “Por uma sócio-história do Estado no Brasil”,
produzido pela historiadora Sônia Regina de Mendonça, uma formulação teórica que nos
permite compreender os pressupostos adotados por boa parte da historiografia supracitada. A
autora emprega conceitos gramscianos como o de “hegemonia”, “desde que desnaturalizados
mediante a introdução de um certo viés subjetivista, específico a uma dada vertente da
sociologia do conhecimento, a qual, longe de considerar o indivíduo como mero suporte das
estruturas sociais, privilegia-o enquanto sujeito, passível de uma apreensão construtivista”.42
No entanto, a autora dá um destaque privilegiado à noção de habitus em sua formulação,
conforme elaborada por Bourdieu:

por outro lado, uma análise sócio-histórica de extração construtivista implica em


reconhecer a existência tanto de uma gênese social dos esquemas de percepção,
pensamento e ação – que alguns autores denominam habitus – via de regra
adquiridos junto aos sistemas de ensino [...], quanto de uma gênese social das
próprias estruturas sociais, sejam elas grupos ou classes”.43

Desta forma, com base no modelo de constituição do Estado brasileiro conhecido a partir da
década de 1930 (no qual é identificada uma hipertrofia e uma imposição de exacerbada
centralidade do Estado), Mendonça constata que “é, pois, sobretudo no âmbito das agências
consagradas à produção, preservação e reprodução cultural que todas essas premissas
adquirem maior visibilidade e qualificação: quem fala o quê, de que lugar e para quem?”.44
Haveria, portanto, dentro destas “agências”, responsáveis pela gestão dos bens culturais da
nação (dentre as quais o SPHAN figuraria como principal representante), uma constante luta
pelo poder de “nomear” e “classificar” a realidade, com destaque para a posição dos
indivíduos dentro destas agências, detentores de habitus e capitais específicos. Com a
supressão da luta partidária, uma parcela da elite intelectual brasileira teria se alojado no
tecido do Estado e, munida do aparelho simbólico institucionalizado estatal, passaria a deter
este “poder simbólico de nomeação da realidade”.
A autora, por fim, acaba menosprezando as diversas possibilidades de ação dos atores
individuais dentro dos aparelhos estatais, pois, quando estes se ligam ao poder público,
42
MENDONÇA, Sônia Regina de. Por uma sócio-história do Estado no Brasil. In: CHUVA, Márcia (org.). A
Invenção do patrimônio: continuidade e ruptura na constituição de uma política oficial de preservação no
Brasil. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995, p. 73-74.
43
Ibid., p. 74.
44
Ibid., p. 71.
38

tornam-se “funcionários”:

operando estratégias como essa que, permanentemente, constroem e reconstroem a


realidade social mediante a conservação ou rejeição de esquemas classificatórios,
tornados ‘velhos’ ou ‘modernos’, segundo suas posições e/ou interesses, os agentes
encastelados nos órgãos públicos em geral, adquirem, quer se queira ou não – o que
é sempre objeto de polêmica quando referido aos elementos ligados à gestão cultural
– o estatuto de funcionários. E, nessa condição, eles se veem dotados de uma outra
solidariedade, diversa daquela conferida pela força dos habitus, proveniente de sua
própria vinculação ao aparelho. Trata-se de uma solidariedade que é
proporcionalmente maior, quanto menor for o capital social ou cultural previamente
detido pelo agente, que passa, assim, a ter no aparelho o seu leit-motiv. Nessa
posição eles convertem-se em autores do chamado ‘argumento das autoridades’ que,
expresso no discurso oficial, deixa de pertencer-lhes enquanto sujeitos intelectuais, a
despeito de terem nele imprimido suas marcas.45

2. 1. 3 As práticas do SPHAN

Além das tentativas, por parte da literatura apresentada, de definição do discurso que
teria embasado a ação do SPHAN em sua fase “heroica”46 (ainda que em alguns momentos
tenha sido mencionado o período relativo à gestão de Aloísio Magalhães, que também é
identificado a um outro discurso unívoco), vimos, ainda que somente de passagem, alguns
elementos relacionados a esse discurso e ao próprio SPHAN. Como exemplos desses
elementos, tem-se a pretensão de rigor “científico”, ao lado do “ético”, com o qual se
procurava dotar a prática preservacionista do SPHAN; a autonomia gozada por este órgão
junto ao Estado; e, além disso, o recurso à identificação do período “moderno” a uma tradição
autêntica, ligação temporal sempre possibilitada por uma noção de “processo civilizatório”,
“evolução” ou “trajetória”. Veremos então que estas tentativas de identificação de uma
formação discursiva hegemônica acabaram por clarificar um conjunto de práticas de fato
existentes na atuação do SPHAN, além de demonstrar os motivos de sua eficácia.
O SPHAN, algumas vezes tratado como uma “academia”47, estruturou-se em torno de
45
Ibid., p. 78-79.
46
Embora estes autores se referiam a um embate com outros grupos, como na querela entre modernos e
neocoloniais, disputa esta que começa a se delinear quando Lucio Costa assume a diretoria da Escola
Nacional de Belas Artes, não podemos dizer que tais disputas, segundo os autores até agora apresentados, se
davam dentro do SPHAN. Trata-se, segundo eles, de uma luta pela ocupação dos principais postos públicos
ligados à gestão dos bens culturais. Vencida a disputa inicial, ter-se-ia uma luta entre discurso hegemônico do
SPHAN versus discursos vencidos e alijados aos postos menos relevantes, e não disputas dentro do próprio
órgão.
47
Cf. SANTOS, op. cit., CAVALCANTI, op. cit., e RUBINO, Silvana. As fachadas da história: as origens, a
criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1936-1967. Dissertação
(Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, SP, 1991. Sobre a expressão “Academia SPHAN”, cunhada por Mariza Santos, cf.
39

um conjunto de intelectuais que se responsabilizaram pela rigorosa identificação do


patrimônio histórico e artístico da nação. O rigor científico pretendido nos estudos e pesquisas
destes intelectuais conferiu autoridade à prática preservacionista do SPHAN e consolidou uma
produção intelectual que até hoje é referência na área de história da arte e arquitetura
brasileiras. Os processos de tombamento sempre se faziam acompanhar de criteriosos
relatórios.48 Passou-se a exigir um levantamento de fontes variadas que pudessem atestar a
autenticidade do bem a ser tombado.49
Para José Reginaldo Gonçalves, o rigor científico, ou “objetividade”, do discurso dos
funcionários do SPHAN (o autor refere-se especificamente a Rodrigo Melo Franco de
Andrade) é uma estratégia adotada para narrar “uma obra de civilização”. Segundo
Gonçalves, Melo Franco

é um personagem da história que é narrada, descrevendo seu papel como o de um


herdeiro de uma ‘tradição’ que deve ser resgatada, defendida e preservada contra os
riscos de esquecimento e perda definitiva. Essa ‘tradição’ é vista como um objeto de
conhecimento científico, histórico, e, ao mesmo tempo, como uma fonte de
autenticidade pessoal e coletiva. Ela tem de ser descrita e explicada em termos
científicos, racionais, ao mesmo tempo em que deve ser resgatada e defendida como
a fonte da identidade cultural brasileira.50

O caráter científico do discurso dos funcionários do SPHAN seria uma forma de demonstrar,
portanto, seriedade com relação ao resgate da tradição nacional. O passado deixa de ser
encarado de forma simplista, romântica, para se tornar um sério projeto de futuro.
Neste ponto, as publicações do SPHAN adquiriram especial importância. Os artigos
publicados na Revista, por exemplo, “informaram nitidamente” alguns casos de
tombamento.51 Na introdução escrita por Rodrigo Melo Franco de Andrade para o nº 1 das
Publicações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de autoria de Gilberto
Freyre e intitulado Mucambos do Nordeste, o diretor do Serviço escreve o seguinte:

o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional se empenhará no sentido de


impedir que a literatura empática ou sentimental, peculiar a certo gênero de
amadores, se insinue nestas publicações. Por este meio, não interessa divulgar
páginas literárias, ainda que brilhantes. O que interessa é divulgar pesquisas seguras,
estudos sérios e trabalhos honestos e bem documentados acerca do patrimônio

FONSECA, op. cit., 1997, p. 124. Silvana Rubino refere-se mais especificamente, por sua vez, a um “clima
universitário” (RUBINO, op. cit., 172).
48
FONSECA, op. cit., 1997, p. 122.
49
SANTOS, op. cit., p. 90.
50
GONÇALVES, op. cit., 2002, p. 43.
51
Cf. RUBINO, op. cit., p. 119. A autora refere-se especificamente aos primeiros tombamentos, dentre os quais
foram alvo de análises pela pesquisa a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, PE, a de São Francisco Xavier e
a dos Jesuítas, RJ, o Seminário de Belém em Cachoeira, BA, e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, MG.
40

histórico e artístico do Brasil.52

Esta postura acompanhou de fato os trabalhos publicados pelo SPHAN, marcados pelo rigor
metodológico de seus artigos. A apropriação de conceitos advindos das ciências sociais, como,
por exemplo, em relação ao próprio Gilberto Freyre,53 também contribuiriam para incrementar
o caráter científico destes trabalhos. Mais especificamente a respeito da Revista, Silvana
Rubino afirma o seguinte: “na RSPHAN [Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional] o debate sobre a nacionalidade, a tradição e a modernidade brasileira
ganharam a dimensão escrita sobre o que se tomba ou deve tombar. Pois a publicação ao
mesmo tempo informou o que se deveria preservar e explicou o que se estava preservando”.54
A autora ainda escreve que estes artigos “passam a ser sobreinvestimentos simbólicos sobre os
bens (antes) quaisquer”.55
Ao lado da pretensão de rigor científico, havia, segundo estes autores, a preocupação
de caráter ético. De acordo com Fonseca, um dos pontos positivos da “fase heroica” do
SPHAN foi a criação de um “padrão ético” de atuação no serviço público brasileiro. Segundo
a autora, “a noção de cidadania implícita nos projetos dos intelectuais que compunham a
pequena equipe do SPHAN era de que atuavam a serviço do interesse maior da nação, acima
de interesses particulares ou do governo”.56 O grande exemplo deste “padrão ético” seria a
própria figura de Melo Franco de Andrade:

a autoridade de Rodrigo para falar e agir em nome do ‘patrimônio histórico e


artístico’ brasileiro é modelada através de sua atitude de renúncia em relação a sua
vida privada e em relação a outros caminhos que poderia ter seguido em sua vida
pública. Assim, sua vida pessoal é narrada por companheiros de trabalho e por
amigos como totalmente dedicada ao Sphan e à ‘causa’ do patrimônio brasileiro.
Desse modo, sua vida, assim como ‘sua’ instituição, são consideradas
‘exemplares’.57

Há uma declaração de Aloísio Magalhães que também denota a ideia de uma vida dedicada à
causa do patrimônio. Num depoimento sobre o designer pernambucano, José Laurentino Melo
afirma o seguinte: “em conversa, dias antes de assumir a direção do ainda Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, um Aloísio intelectualmente maduro e sereno se
52
FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste. Ministério da Educação e Saúde: Rio de Janeiro, [1937]
(Publicações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 1), p. 16.
53
Cf. RUBINO, op. cit., e Idem. Entre o CIAM e o SPHAN: diálogos entre Lucio Costa e Gilberto Freyre. In
VOLFZON, Ethel et. al.(orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
54
Idem. Op. cit., 1991, p. 184.
55
Ibid., 193.
56
FONSECA, Maria Cecília Londres. A política federal de preservação nos anos 70 e 80. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Op. cit., 1996, p. 155.
57
GONÇALVES, op. cit., 2002, p. 47.
41

perguntava com naturalidade se toda a sua vida até aquele momento não fora uma preparação
para o cumprimento da tarefa que lhe estava reservada dali por diante”.58
Portanto, esse rigor científico e ético é associado à ideia de seriedade com relação ao
passado. A adoção desta postura por parte dos funcionários do SPHAN legitimaria a ocupação
dos cargos disponíveis neste órgão. No entanto, esta “atuação a serviço da nação, acima de
interesses particulares e governamentais”, aponta para uma característica peculiar do SPHAN
em relação aos demais órgãos estatais deste período: a relativa autonomia de que gozava. Para
Fonseca, tratava-se de uma “autonomia fraca”, em troca de uma não interferência nos
assuntos do governo, e que poderia ser interpretada como “sinal do pouco interesse político
que o serviço tinha para o governo federal, na medida em que constituía um recurso bastante
limitado – dadas as características da sociedade brasileira da época – para a mobilização
popular”.59 Desta forma, ter-se-ia uma espécie de pacto. Por um lado, o governo cooptaria a
elite intelectual, que passava a ter acesso aos quadros governamentais e ficava abrigada das
imposições ideológicas do governo de Vargas. Por outro lado, estes intelectuais modernos
teriam uma possibilidade real de intervenção no mundo social, ou, como prefere Ricardo
Benzaquen Araújo, “a inclinação utópica dos modernos articula-se com uma redefinição
vanguardista do Estado”.60
Cavalcanti sustenta a mesma posição, pois, segundo ele, “a ida para a repartição deixa
transparecer a crença moderna de que era o Estado o lugar da renovação e da vanguarda
naquele momento, assim como o vislumbre da possibilidade de aplicar na realidade ideias de
reinterpretação ou reinvenção de um país que estava sendo praticado nas páginas de seus
livros”.61 No entanto, discorda da tese da cooptação: “a baixa remuneração percebida obrigava
a que tivessem outras atividades de modo a completar o seu orçamento; tal fato repele a
hipótese vulgar mais extensamente difundida de que o Estado Novo haveria cooptado os
intelectuais através de suas contratações”.62 Num outro trabalho, Cavalcanti expõe de forma

58
MAGALHÃES, op. cit., p. 33.
59
FONSECA, op. cit., 1997, p. 136.
60
ARAÚJO, Ricado Benzaquen de. Nas asas da razão: ética e estética na obra de Lucio Costa. In NOBRE, Ana
Luiza et. al. (Orgs.). Um Modo de ser moderno. Lucio Costa e a crítica contemporânea. São Paulo: Cosac &
Naify, 2004, p. 67.
61
CAVALCANTI, op. cit., 1996, p. 111.
62
Ibid., p. 111. Trabalhando com uma perspectiva mais ampla, Sérgio Miceli analisa o problema da cooptação
de intelectuais pelo Estado a partir da análise das alterações pelas quais passou mercado intelectual entre o
final da Primeira República e o Estado Novo. Miceli propõe então a seguinte hipótese: “se na Primeira
República o recrutamento dos intelectuais se realizava em função da rede de relações sociais que estavam em
condições de mobilizar e as diversas tarefas de que se incumbiam estavam quase inteiramente a reboque das
demandas privadas ou das instituições e organizações da classe dominante, a cooptação das novas categorias
de intelectuais continua dependente do capital de relações sociais mas passa cada vez mais a sofrer a
mediação exercida por trunfos escolares e culturais cujo peso é tanto maior quanto mais se acentua a
concorrência no interior do campo intelectual” (MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil
42

mais clara o que pensa sobre esta relação entre governo e SPHAN:

Acredito, entretanto, também, que se a possibilidade de estilos tão diversos, em um


período de ‘fechamento’ político, aponta para um não-monolitismo do Estado, os
métodos de ação utilizados para a concretização das formas, tanto no caso do
Ministério da Fazenda quanto no da Educação e Saúde, através da anulação de
concursos públicos e de convite pessoal pelos titulares dos ministérios, indicam uma
utilização monolítica dos instrumentos de poder. Para o domínio do seu campo os
‘modernos’ possuíam um discurso arquitetonicamente fundado e um elo com o
campo da burocracia; o movimento de autonomização se dá, em aparente paradoxo,
com métodos políticos pouco autônomos e com um forte papel da ação humana
individual.63

Em outras palavras, o grupo de arquitetos modernos teria se apoderado de “seu campo” por
intermédio de uma rede de relações com o “campo da burocracia”, e, a partir daí, conquistado
uma determinada autonomia dentro da estrutura governamental, tendo, para isso, portanto,
utilizado meios pouco autônomos, em dependência dos grupos que já se encontravam no
poder.
Passando para um outro ponto característico das práticas do SPHAN, uma
contribuição bastante específica dos autores ligados à antropologia é a análise do tombamento
como um rito social, uma espécie de “momento mágico”, através do qual um bem adquire um
status bastante diverso do original. Tais hipóteses procuram desnaturalizar a memória
construída pelo SPHAN. Segundo Rubino,

se o tombamento não é a totalidade do trabalho de preservação, é o momento mágico


da classificação: é quando se fixa o que antes estava solto, quando se destaca e se
discretiza o que antes era parte de um contínuo. Ao ganhar um número de inscrição,
o bem ganha uma segunda existência: passa a fazer parte do modelo reduzido de um
país virtual.64

A autora fala até mesmo em um “totemismo cultural”.65 José Reginaldo Gonçalves, por sua
vez, defende que o tombamento é uma estratégia de “apropriação da cultura nacional”.66
Na mesma linha de pensamento, Mariza Santos acrescenta que “esse ato mágico de
nomear o mundo real, de dar-lhe substância simbólica, só adquire eficácia social se exercido
por um sujeito (indivíduo/grupo) possuidor de autoridade reconhecida, o que faz sobrepor, por

(1920-1945). São Paulo; Rio de Janeiro: Difel, 1979, p. xix).


63
CAVALCANTI, Lauro. Encontro moderno: volta futura ao passado. In CHUVA, Márcia. Op. cit., 1995, p.
42-43.
64
RUBINO, op. cit., 1991, p. 110.
65
Cf. Ibid., p. 110-111. A partir desta terminologia, mesclada com as hipóteses weberianas sobre a
racionalização do poder hierocrático, Rubino classifica inclusive Mário de Andrade como sendo o “profeta”
deste grupo e Melo Franco de Andrade o “sacerdote”.
66
GONÇALVES, op. cit.
43

seu turno, uma nuance de sacralidade aos atos exercidos”.67 O SPHAN, de acordo com esta
autora, teria sido organizado na forma de uma “academia”, de modo a criar um lugar de fala
que conferisse a seus próprios membros a autoridade de que necessitariam para “nomear a
realidade nacional”. Assim, a criação do “Conselho Consultivo”68 surgiria como uma
“estratégia simbólica”. Possuía, portanto, todo um caráter ritualístico, de modo a constituir um
“discurso performativo”. Segundo a autora,

sua própria composição já o qualifica como um órgão altamente técnico, cuja


característica principal consistia em procurar exibir publicamente que seus membros
possuíam um saber consagrado, um conhecimento acima de qualquer suspeita, uma
erudição humanista universalista e, acima de tudo, apresentavam uma
honorabilidade exemplar.69

As atas do conselho tornar-se-iam uma “espécie de culminação desse processo de


nomeação simbólica dos objetos móveis e imóveis”,70 onde se institucionalizariam os
discursos sobre a nacionalidade, dada a autoridade dessas reuniões no que tange à sua
capacidade de criar o real. As atas seriam, assim, uma espécie de materialização da autoridade
do conselho consultivo, que se manifestaria no poder de inscrição nos Livros do Tombo e na
transformação do status dos bens tombados, pois estes passavam então à categoria de
monumento, com toda a proteção legal de que passariam a dispor.
Um outro elemento que seria responsável por esta materialização da nacionalidade
seria a “retórica do patrimônio”. Segundo Santos,

cada conselheiro mantém diante de si e dos outros, a mesma atitude: a de quem


conhece o objeto sobre o qual fala, o que implicava poder de enunciação sobre o
mesmo. [...] Observa-se que este discurso é todo sustentado por categorias de cunho
universalizante, como cidadão e bem público, que constituem um dos fundamentos
da retórica do patrimônio.71

Gonçalves, por sua vez, interpreta esta retórica, que denomina “retórica da perda”, como
sendo uma estratégia de objetificação cultural de uma memória e identidades nacionais, que
seria possibilitada ante a iminência da perda dos bens autênticos representativos da cultura
nacional.72
Além disso, Fonseca destaca a coesão entre o grupo que compunha o Conselho

67
SANTOS, op. cit., p. 79.
68
Sobre o papel e as atribuições deste conselho, cf. ibid., p. 82 e GONÇALVES, op. cit., 2002, p. 66.
69
SANTOS, op. cit., p. 82.
70
Ibid., p. 82.
71
Ibid., p. 83.
72
GONÇALVES, op, cit., 2002.
44

Consultivo do SPHAN, onde as decisões costumavam ser tomadas por unanimidade, salvo
algumas exceções. Não obstante a composição heterogênea do conselho, seu perfil era
predominantemente conservador, além das afinidades intelectuais que possuíam entre si:

do ponto de vista de um projeto intelectual – enquanto tomada de posição


relativamente a uma concepção de história e de arte – os integrantes do SPHAN,
mais ou menos afinados com o credo modernista, propunham a re-elaboração do que
seria a tradição cultural brasileira, recusando tanto a cópia (neo) quanto a mistura
(ecletismo) de estilos pretéritos.73

Com base nestas afinidades intelectuais, além das qualificações técnicas e pessoais, de acordo
com a autora, os componentes do Conselho foram arregimentados principalmente por Rodrigo
Melo Franco de Andrade e Lucio Costa, considerado o “teórico do grupo”.74
Por fim, tem-se a relação daquilo que é considerado o “discurso do SPHAN” com o
passado. A ideia de uma evolução da cultura nacional (ora chamada de “processo
civilizatório”, ora de “trajetória”) se mostra um pressuposto presente até mesmo, a meu ver,
nestes autores cuja produção analiso. A preocupação com uma “tradição” nacional esteve, na
verdade, intimamente relacionada com um desejo de “modernização” (sobretudo na fase de
Melo Franco de Andrade), ou de “desenvolvimento” (Aloísio Magalhães). Assim, o SPHAN,
e quem nele se tivesse alojado, legitimar-se-ia como construtor do futuro da nação pela única
via possível, ou seja, através do conhecimento de seu passado.
Gonçalves destaca a construção de uma identidade (do próprio grupo que se estende à
nação75) através da “redescoberta” de seu passado. O autor trata da questão, em relação aos
anos 1920 e 1930, da seguinte forma:

aqueles intelectuais identificados com o Modernismo e associados ao regime político


do Estado Novo concebiam a si mesmos como uma elite cultural e política cuja
missão era ‘modernizar’ ou ‘civilizar’ o Brasil, elevando o país ao plano das nações
europeias mais avançadas. No entanto, é importante frisar que tal projeto estava
associado ao reconhecimento da necessidade de produzir uma imagem singularizada
do Brasil como cultura e como parte da moderna civilização ocidental. O problema
principal era, assim, não simplesmente imitar a Europa, mas identificar e afirmar
uma cultura brasileira autêntica, ainda que isto fosse feito através do vocabulário das
vanguardas modernistas europeias. Muitos propunham a valorização do ‘tradicional’
e do ‘regional’ na construção de uma imagem nacionalista singular do Brasil.
Acreditavam que, para identificar ou ‘redescobrir’ o Brasil, o país teria de retornar
aos seus mais ‘autênticos’ valores nacionais, os quais estavam supostamente
73
FONSECA, op. cit., 1997, p. 129.
74
Ibid., p. 130.
75
Este é também o argumento de Pedro Puntoni, numa análise que faz da relação entre a obra de Gilberto
Freyre e Lucio Costa (PUNTONI, Pedro. A casa e a memória: Gilberto Freyre e a noção de patrimônio
histórico nacional. In: FALCÃO, J. e ARAÚJO, R. M. B. de. (orgs.). O Imperador das idéias: Gilberto
Freyre em questão. Rio de Janeiro: Colégio do Brasil; UniverCidade; Fundação Roberto Marinho; Topbooks,
2001).
45

fundados no passado.76

Vimos anteriormente que Márcia Chuva também destacou, no discurso do SPHAN, a proteção
das características universais da cultura nacional, identificáveis em sua tradição artística,
sobretudo no barroco mineiro. Além disso, dois outros pontos podem ser destacados.
Em primeiro lugar, essa atenção ao passado está também exposta, como também já foi
analisado, no pensamento de Magalhães, na medida em que se preocupa com uma “trajetória”
da nação. No entanto, segundo Gonçalves, “diferentemente de Rodrigo, seu propósito não é
‘civilizar’ o Brasil preservando uma ‘tradição’, mas revelar a diversidade da cultura brasileira
e assegurar que ela seja levada em conta no processo de desenvolvimento”.77
Em segundo lugar, afirma-se que o passado não era preocupação apenas do SPHAN,
mas de toda uma elite intelectual preocupada com este “acertar de ponteiros” com a Europa.
Ricardo Luiz de Souza, por exemplo, fornece elementos que sustentam esta afirmação ao
analisar como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre
buscaram solucionar o problema da construção de uma nação moderna recorrendo à tradição
para a definição de uma identidade nacional.78 Otília Beatriz Fiori Arantes relaciona esta
questão com os textos que enfocaram, neste período, a problemática da formação nacional.
Segundo ela,

‘formação’ é propósito construtivo, deliberado, das elites dirigentes e cultivadas, de


dotar o país de linhas evolutivas que culminem no funcionamento coerente de um
sistema cultural local, tendo por modelo e parâmetro crítico a relativa organicidade
da vida cultural europeia no que concerne à sua capacidade de incidir (e formalizar)
no campo de forças constituídas pela sociedade moderna. Supõem portanto o ideal
de seriação, concatenação, continuidade, tradição, em contra-parte à barafunda de
nossa vida mental, em que nada se segue de nada, nada acumula que não seja logo
decapitado por intromissão de alguma coisa prestigiosa porém extrínseca ao quadro
de contradições locais que arduamente se estava procurando reconstruir.79

Os intelectuais que compuseram o SPHAN comungariam destas preocupações. O


patrimônio histórico e artístico a ser preservado relacionar-se-ia intimamente, portanto, com
os ideais modernistas da intelectualidade brasileira. Apoiada no trabalho de Antônio Cândido,
Fonseca interpreta este modernismo em oposição ao contexto cultural com o qual se
contrapôs. Desta forma, o escritor modernista procuraria se diferenciar de seus antecessores

76
GONÇALVES, op. cit., p. 41 (grifos meus).
77
Ibid., p. 51.
78
Cf. SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade nacional e modernidade brasileira: o diálogo entre Sílvio Romero,
Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
79
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Esquema de Lucio Costa. In: NOBRE, Ana Luiza et. al. (Orgs.). Op. cit., p.
96.
46

(cujo potencial crítico havia se perdido em função de uma subordinação aos interesses
externos) mediante uma concepção de arte como um campo autônomo. Em contato com as
vanguardas europeias, esses autores perceberam que a modernidade somente poderia ser
alcançada no Brasil, de forma “autêntica”, embasada numa tradição ainda por se encontrar ou
construir. A cultura brasileira somente poderia contribuir com a história universal da
civilização, colocando o país em pé de igualdade com as nações europeias, caso encontrasse
em suas manifestações específicas traços dessa universalidade. E essa busca se operaria no
passado, por intermédio de uma tradição que deveria, assim, ser preservada e estudada. Lucio
Costa teria percorrido este caminho, por exemplo, na arquitetura. A autora conclui, desta
forma, que “a temática do patrimônio surge, portanto, no Brasil, assentada em dois
pressupostos do Modernismo, enquanto expressão da modernidade: o caráter ao mesmo
tempo universal e particular das autênticas expressões artísticas e a autonomia relativa da
esfera cultural em relação às outras esferas da vida social”.80
Há, neste ponto, um certo consenso entre esses autores, cujas interpretações sobre a
dinâmica do SPHAN foram até aqui apresentadas. Santos, por exemplo, afirma que

o fato é que a Academia SPHAN nasce ancorada numa ideia básica que é o registro
da nação, cuja face era preciso tornar visível; não através da incorporação de traços
da natureza, como no romantismo, mas através da identificação de uma tradição
cultural que tivesse uma duração no tempo, cujo passado era preciso alcançar, e que
tivesse uma visibilidade no espaço, cuja configuração e moldura era preciso
estabelecer.81

Cavalcanti, que atribui papel central aos arquitetos modernos dentro do SPHAN, por sua vez,
escreve o seguinte: “no campo da arquitetura a ‘vitória’ dos modernos se dá por meio de uma
vinculação histórica e de uma vinculação ética; ao assumirem os polos do passado e do futuro,
logram se colocar, em uma perspectiva evolucionista, como a natural depuração e herdeiros
de toda uma tradição construtiva brasileira”.82 Para Rubino, no entanto, haveria sim uma
ruptura com o passado por parte dos modernistas, mas uma ruptura com o passado recente:
“não se trata, aqui, de manifestações modernas independentes do passado, mas que, no
esforço de se demarcar do passado que a gerou, constroem outro. Contra o passado recente,
um salto para trás, para o passado mais legítimo, onde se pode descobrir e inventar inclusive
uma modernidade avant la lettre”.83

80
FONSECA, op. cit., 1997, p. 98-99.
81
SANTOS, op, cit., 1996, p. 78.
82
CAVALCANTI, op. cit., p. 113.
83
RUBINO, op. cit., 1991, p. 115.
47

2.1.4 A tímida hipótese de uma diversidade discursiva

Com o que foi acima demonstrado não pretendo negar a existência de um conjunto de
práticas sedimentadas em torno de um consenso, especialmente no que diz respeito à questão
nacional e à sua evolução no tempo. É impossível se pensar num órgão cuja função é
organizar uma série de ações coordenadas sem que exista um acordo mínimo entre os
indivíduos que neles atuam. Contudo, ao defender o predomínio exacerbado de uma formação
discursiva hegemônica no SPHAN, cuja univocidade teria moldado as práticas
preservacionistas nacionais, estas análises obscurecem um problema fundamental para a
história da instituição: como um órgão, tão frágil, como bem afirma Fonseca,84 dependente de
alianças políticas, poderia ter sustentado uma prática unívoca por mais de sete décadas,
quanto mais em meio à complexa dinâmica dos grupos dirigentes no país durante este mesmo
período? Somente uma prática cultural capaz de abrigar variadas posições discursivas,
moldável às diversas conjunturas políticas, sociais, econômicas e mesmo linguísticas ou
culturais seria capaz de tal façanha.
No entanto, esta vertente interpretativa que relaciona a história do IPHAN a formações
discursivas hegemônicas tem predominado nesta área de estudos, e os poucos atrevimentos
que se contrapõem a esta postura são ainda muito tímidos.
Dos autores acima mencionados, apenas a antropóloga Silvana Rubino sugeriu uma
via alternativa para a interpretação dos dados oferecidos pelo conjunto dos bens tombados.85
Em primeiro lugar, de acordo com a autora, os primeiros tombamentos do SPHAN (215 bens
somente em 1938, o que demonstra o caráter de urgência no qual foi fundado o Serviço)
foram realizados sem uma definição muito clara de seus critérios. Neste período, os
tombamentos teriam sido efetivados com base em critérios ainda pouco claros: consoante
informações trazidas pelos artigos publicados na Revista do Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional; em respeito à demanda, anterior a 1937 (período denominado pelos
próprios atores do SPHAN como sendo sua “proto-história”86), apresentada pelos Estados; em
função dos “fatos memoráveis”, que remetem a eventos e personagens; e, por fim, em face da
urgência dos tombamentos ante a destruição do bem.

84
Cf. FONSECA, op. cit., 1997.
85
RUBINO, op. cit., 1991. Posteriormente a autora publicou outros trabalhos embasados na pesquisa realizada
em sua dissertação de mestrado, a exemplo de idem, Mapa do Brasil Passado. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. [Brasília], n. 24, p. 97-105, 1996; idem. A memória de Mário. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. [Brasília], n. 30, p. 138-155, 2002; e idem. Op. cit., 2003.
86
A respeito deste período anterior à criação do SPHAN, cf. RUBINO, op. cit., 1991, p. 21.
48

Se, por um lado, este período inicial do SPHAN demonstra a inexistência de uma
unidade discursiva clara a informar os critérios do tombamento, por outro, torna-se, segundo
autora, a origem de um processo cujo ápice seriam as práticas consolidadas deste órgão.
Assim, “a cristalização dessas noções nesse primeiro tempo de atividades terminou marcando
profundamente o perfil do SPHAN e suas realizações posteriores”.87 Disso sucede que, para a
pergunta sobre “o que significa para o SPHAN termos como ‘fato memorável’ ou ‘valor
etnográfico?”, encontrar-se-ia a resposta “no conjunto que o SPHAN elegeu, no trabalho que
o tombamento definiu e delimitou o ‘conjunto de bens móveis e imóveis’ do Brasil”.88 Deste
conjunto, deduzir-se-ia um “mapa do Brasil passado” em que predominariam os bens imóveis,
que deveria ser imputado, segundo a autora, ao “domínio dos arquitetos na instituição, mas
também à visão de passado calcado em bens arquitetônicos que dominou, justificada inclusive
por Mário de Andrade e Gilberto Freyre”.89 Dentre estes bens, haveria uma nítida hierarquia
interna, “onde se evidencia a predominância do bem imóvel religioso, seguido pelo urbano”.90
No entanto, a predominância de um tipo de bem, que corresponde a um conjunto
específico de valores, não exclui ainda um acordo que possibilite a inserção de grupos
variados num mesmo aparelho institucionalizado de ação cultural. Dizer que o patrimônio é o
retrato de uma minoria branca, católica e representante da elite política e econômica nacional
seria, como sugere a própria autora, tomar “a parte pelo todo”. Os 41 bens paulistas tombados,
ainda que de encontro aos 165 bens mineiros, atestam, mais que uma vitória absoluta de
determinado grupo, um espaço de negociação entre vários deles, ainda que todos eles sejam
pertencentes à “elite”. Há que se questionar se a própria autora, ao valorizar as hierarquias
entre os bens tombados, não superestima ela própria a parte em detrimento do todo.
Em segundo lugar, a respeito da Revista do SPHAN, Rubino afirma o seguinte:

a revista abrigou discursos díspares, que, mais do que fossem lineares e consensuais,
evidenciam o rosto da instituição, ou melhor, nos oferecem mais uma possível
história do SPHAN, que é intelectual, para além dos vários decretos e dos sólidos
tombamentos. A revista comporta diferenças que podemos chamar de embates:
opiniões autorais discrepantes, sobretudo sobre a originalidade ou não de nosso
patrimônio. Em outras palavras: na RSPHAN o debate sobre a nacionalidade, a
tradição e a modernidade brasileira ganham a dimensão escrita sobre o que se tomba
ou deve tombar. Pois a publicação ao mesmo tempo informou o que se deveria
preservar e explicou o que se estava preservando. E sobre estes bens já não tão
prévios, instaurou uma outra dimensão.91

87
Ibid., p. 120.
88
Ibid., p. 107.
89
Ibid., p. 128.
90
Ibid., p. 131.
91
Ibid., p. 184.
49

Rubino desenvolve esta argumentação discorrendo sobre as colaborações à Revista de autores


possuidores de pontos de vista bastante variados, como o próprio Rodrigo Melo Franco de
Andrade, Watsh Rodrigues, Joaquim Cardozo, Lucio Costa e, principalmente, Gilberto Freyre,
esboçando, assim, uma “história intelectual” do SPHAN.
Depreende-se, portanto, das afirmações da autora, que, se não podemos, no final das
contas, encontrar uma representatividade cultural mais ampla nos bens tombados, a Revista
teria sido um espaço para o embate entre diversas vozes. Tem-se, assim, uma história das
práticas do SPHAN e outra, intelectual. Rubino ainda afirma:

a eficácia e a durabilidade do SPHAN, assim como a permanência de seu diretor por


31 anos só foram viáveis pela construção de uma intersecção, de um espaço de
possibilidades entre os modernismos de Mário, de Rodrigo, de Capanema, do grupo
ligado aos CIAM,[92] do tradicionalismo parnasiano de Godofredo Filho e de outros
funcionários, da hegemonia, pretensa ou não, do Museu Nacional”.93

Creio que Rubino toca então num ponto fundamental para a compreensão da dinâmica
institucional do SPHAN, ao perceber a irrealidade de uma formação discursiva que domina as
outras e que sobre elas se impõem, como que numa trama oculta que visa impor uma espécie
de falsa consciência sobre o patrimônio cultural, forjando, assim, uma nação sob a perspectiva
de uma elite dominante. O SPHAN teria sido um palco no qual atuaram diversos atores, cada
um com uma visão de nação e de patrimônio específica. Se o patrimônio preservado tem uma
feição predominante, isso se deve, segundo a autora, mormente à cristalização dos critérios
adotados desde o início da instituição e ao grupo que compunha o Conselho Consultivo,
responsável pelo “momento mágico do tombamento”. Contudo, acredito que a história do
SPHAN não possa ser assim divida em duas, cada uma com sua própria dinâmica, como se
houvesse um SPHAN burocrático e outro intelectual. Para propor uma explicação alternativa
é necessário buscar um objeto de análise para além dos tombamentos.
Vimos, portanto, ainda que sucintamente, os principais pontos tratados por um
conjunto de textos relativamente recentes dedicados à análise das políticas preservacionistas
nacionais. O objetivo dessa exposição foi, na verdade, elaborar um quadro que permitisse
demarcar a posição desta pesquisa. Dessa forma, foi possível apontar a ênfase dada ao peso da
construção de uma formação discursiva hegemônica na institucionalização das práticas

92
Esta sigla designa o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Fundado em 1928, por um grupo de
arquitetos modernos que se reuniam inicialmente na Suíça, no castelo de La Sarraz Vaud (dentre eles Le
Corbusier, que redigiu a famosa “Carta de Atenas”), propunha uma série de princípios arquitetônicos e
urbanísticos que influenciaram em grande medida os arquitetos “modernos” brasileiros, sobretudo Lucio
Costa.
93
Ibid., 196.
50

preservacionistas levadas a cabo pelo SPHAN, hipótese notadamente presente nessa literatura
acadêmica.

2.2 AÇÃO INDIVIDUAL, LINGUAGENS E PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA

Para apreender as práticas preservacionistas nacionais nestes aspectos que lhes são
essencialmente importantes, ou seja, percebê-las como um espaço de atuação individual e
modificação social, é preciso, como foi mencionado, dirigir a atenção a outras ferramentas
que não apenas o instrumento jurídico do tombamento. Faz-se necessário, portanto, voltar a
reflexão para algumas mudanças, ocasionadas por disputas que ocorreram no interior das
práticas (fragilmente) institucionalizadas no âmbito do IPHAN. Deste modo, torna-se possível
repensar a historicidade dessas práticas, o que vinha sendo dificultado, a meu ver, pela
aplicação de uma perspectiva analítica que confere pouco significado à inovação das
realidades institucionais. E um objeto privilegiado para a percepção dessas mudanças são,
sem dúvida, os embates pelo sentido ocorridos em torno da definição de conceitos ou noções
chaves para a orientação das condutas efetivadas no IPHAN e em outros órgãos
preservacionistas, a exemplo da noção de “evolução da arquitetura brasileira”.
Nestas próximas subseções proporei uma abordagem alternativa à que foi realizada
pela literatura acadêmica apresentada nas páginas anteriores. Como já foi mencionado, este
trabalho enfatizará diversidade a discursiva presente nos órgãos de preservação patrimonial e,
o que é mais importante, como a atuação de sujeitos individuais contribuiu para determinadas
alterações ou inovações das práticas preservacionistas nacionais, o que será sustentado a
partir da análise da obra de dois arquitetos/historiadores, Luís Saia e Nestor Goulart Reis
filho, ligados a esses órgãos. Privilegiar-se-á, portanto, a perspectiva histórica, processual, em
detrimento da estrutural, muito embora não seja possível saber como as coisas mudam antes
de entender como elas funcionam.
Tratarei, a seguir, de três aspectos que considero importantes para o esclarecimento da
viabilidade de uma abordagem alternativa tal qual a que pretendo levar adiante. Na verdade,
esses aspectos são um mesmo, que, por se apresentarem à percepção em diferentes níveis,
requerem reflexões específicas. Refiro-me às ações individuais, à linguagem e à
historiografia.
51

2.2.1 A ação individual

Pelo menos desde a obra de Georg Simmel a ação individual tem sido posta em
destaque nas ciências sociais. No entanto, foi Max Weber, através do que se costuma chamar
sua “sociologia compreensiva”, quem forneceu talvez a maior contribuição metodológica para
este tipo de análise. Segundo Alfred Schütz

Weber reduce todas las clases de relaciones y estructuras sociales, todas las objetivaciones culturales,
todos los dominios del espíritu objetivo, a las formas más elementales de conducta individual. Todos los
complejos fenómenos del mundo social retienen sin duda su significado, pero éste es precisamente el
que los individuos implicados atribuyen a sus propios actos. La acción del individuo y el significado a
que esta apunta son lo único sujeto a la comprensión. Además, sólo mediante tal comprensión de la
acción individual puede la ciencia social acceder al significado de cada relación y estructura social,
puesto que éstas están, en último análisis, constituidas por la acción del individuo en el mundo social.94

No entanto, Weber não tratou teoricamente dessas questões, e, deste ponto de vista, somente
podemos ter acesso a uma análise mais profunda acerca da ação individual por intermédio de
seus comentadores posteriores.
Schütz propõe uma reflexão sobre o problema do significado subjetivo da ação. Em
primeiro lugar, ao contrário de Weber, este autor escreve que seria incorreto afirmar que
realmente existam condutas destituídas de significado.95 O que ocorre é um variável grau de
claridade com o qual captamos o significado da conduta do outro.
Em segundo lugar, a compreensão do significado da ação do outro é um problema de
perspectiva.96 Faz muita diferença se tento compreender a ação de um indivíduo que conversa
comigo numa situação face-a-face, a ação de um grupo de indivíduos que pouco conheço e
que agem distante de mim, a ação de um grupo de pessoas anônimas da qual tomo
conhecimento pelo jornal ou ainda a ação de meus contemporâneos, meus antepassados ou
mesmo meus sucessores. Além disso, o significado subjetivo da ação ou expressão para o ator
não tem que ser igual à sua conduta externa percebida por mim como observador. Uma total
penetração empática na mente do outro é algo inconcebível. Só tenho acesso ao significado
subjetivo da ação de outra pessoa por meio de suas “expressões” ou “objetivações”, que são,
por sua vez, meras “indicações” do significado “apontado” pelo ator que produz o objeto em
questão.

94
SCHÜLTZ, Alfred. Fenomenologia del mundo social. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1972, p. 36.
95
Weber traça uma distinção entre conduta afetiva e tradicional (ambas carentes de significado) e conduta
significativa Ibid., p. 47-49.
96
Segundo Schütz, Weber não trata, em absoluto, deste problema (Cf. Ibid, p. 49).
52

Por fim, Schütz nota que não podemos interpretar o significado subjetivo de uma
conduta apenas a observando.97 Os motivos não podem ser compreendidos a partir de um
“instantâneo” separado do contexto. Posso, portanto, compreender a minha conduta ou a de
outro como resultado de experiências passadas ou como expectativa de experiências futuras,
ou melhor, como um meio de atingir um fim desejado. O motivo, ou o “sentido”, encontra-se,
portanto, sempre fora do lapso temporal da conduta.
Significado indica, portanto, “una cierta manera de dirigir la mirada hacia un aspecto
de una vivencia que nos pertenece”.98 Assim, os significados das ações ou das condutas são
captados de acordo com o grau de atenção que lhes é dirigido. Percebemos um mundo
composto por objetos, ou melhor, objetivações, que, por sua simples existência, são dotados
de significação. No entanto, vivemos em meio a tais objetos sem nos perguntarmos sobre seu
significado até que este se torne para nós um problema. Podemos então tomar duas atitudes
em relação ao mundo cotidiano. A primeira seria aceitar as “objetividades ideais” dos objetos
e levar a vida como que “automaticamente”. A segunda se dá quando “atribuo significado” a
um destes objetos (expressões, artefatos ou ações), no sentido de separá-lo dos demais por ser
para mim, por exemplo, problemático. Para sanar tal problema, tento, portanto, compreender a
gênese de seu significado. E isto se torna possível por que todo objeto possui, segundo o
autor, uma unidade intencional composta por uma série de estratos que o constituiria.99
Acredito, enfim, que defender a fluidez e a polissemia dos significados disponíveis à
compreensão da ação dos indivíduos (desde que dirijamos a atenção a tais significados,
problematizando-os e não apenas os tomando em suas “objetividades ideais”) não exclui o
que foi sustentado por Schütz, ou seja, que o significado da ação nos é, e somente é, acessível
por meio de objetivações. Por outro lado, o fato de uma conduta ou expressão serem
objetivações não implica que sejam necessariamente compreensíveis com base num

97
Weber distingue dois níveis de compreensão. O primeiro é o que chama de “compreensão observacional
direta” do significado subjetivo de uma ação. Ele se dá, por exemplo, quando compreendemos que uma
pessoa está com raiva ao notarmos suas expressões faciais. O segundo é a “compreensão explicativa” ou
“motivacional”, que consiste em localizar um ato num contexto de significação inteligível e mais inclusivo.
Neste caso, o ato é colocado numa trama mais ampla de significado, num “curso de ação” ou “sequencia
motivacional”.
98
Ibid., p. 71.
99
O autor se apoia em Husserl ao fazer tal afirmação. No entanto, uma análise pormenorizada desta questão
excederia os limites deste trabalho. Sobre o problema dos motivos presentes nas ações individuais, a
necessidade de sua interpretação é defendida por Thomas Burger. De acordo com este autor, embora haja
“pressões” do grupo para que ajamos com base em um complexo de significados consensualmente
compreensível, é o ator que decide qual o significado ele deseja impor à sua ação, podendo ela ser ou
consensual ou puramente subjetiva (neste último caso, duas são as situações possíveis: ou não sou
compreendido ou forneço um novo significado para os complexos de significados sobre as ações humanas de
minha comunidade). Cf. BURGER, Thomas. Max Weber Interpretative Sociology, the understanding of
actions and motives, and a Weberian view of man. In Sociological Inquiry. V. 47 n. 2, p. 127-132, s.d.
53

determinado complexo de significações inter-relacionais. Uma impossibilidade de


compreensão, que pode demonstrar uma inovação nos complexos de significados
estabelecidos, apresenta especial interesse para o historiador, uma vez que, possivelmente,
está a indicar o surgimento de significados sociais alternativos aos preexistentes.
Peter Berger e Thomas Luckmann também tomam como pressuposto a centralidade da
ação individual para explicação dos fenômenos sociais. Segundo eles, “o mundo da vida
cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da
sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido que imprimem em suas vidas, mas é
um mundo que se origina na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles”.100
Um outro autor que sustenta a centralidade da ação individual para a compreensão da
realidade social é John Elster. Segundo ele, “a unidade elementar da vida social é a ação
humana individual. Explicar instituições e mudança social é mostrar como elas surgem como
resultado da ação e interação de indivíduos. Essa visão, com frequência chamada de
individualismo metodológico, é, na minha opinião, trivialmente verdadeira”.101 Para este
autor, as ações são explicadas por oportunidades, desejos e crenças, e nem sempre são
racionais, o que o leva então a uma minuciosa análise de como estes fatores interagem nas
escolhas que os indivíduos fazem. Poderia ainda citar os trabalhos de Edward Said, 102 Michel
Crozier103 e Raymond Boudon,104 entre outros, que demonstram a aplicabilidade do
individualismo metodológico na análise de diferentes recortes da realidade social.
Analisar a realidade histórica a partir das ações individuais não significa, contudo,
colocar o indivíduo numa posição de centralidade absoluta, como se a dinâmica social
estivesse exclusivamente na dependência de sua vontade subjetiva. Uma ação individual e
suas motivações somente podem ser compreendidas a partir de um contexto objetivo, que
abrange contextos formativos, inserções sociais e institucionais, redes profissionais e afetivas
etc. O que deve ficar entendido é que qualquer alteração num conjunto de normas
institucionalizadas depende, em primeiro lugar, da ação do indivíduo (que pode se tornar uma
ou mais ações coordenadas, com variados níveis de racionalidade) e, em seguida, das
condições objetivas de sua efetivação. As mudanças e aberturas ocorridas nas práticas

100
BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do
conhecimento. 18ª ed. – Petrópolis: Vozes, 1985, p. 35-36.
101
ELSTER, John. Peças e engrenagens das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumorá, 1994, p. 29.
102
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
103
CROZIER, Michel. O fenômeno burocrático: ensaio sobre as tendências burocráticas dos sistemas de
organização modernos e suas relações, na França, com o sistema social e cultural. Editora Universidade de
Brasília, 1981.
104
BOUDON, Raymond [dir.]. Tratado de sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
54

preservacionistas nacionais somente podem ser compreendidas como fruto da ação de


indivíduos (devendo ser considerada, portanto, a diversidade de origens e interesses)
combinada a condições favoráveis de efetivação. O papel da perspicácia do sujeito, relativo ao
grau de racionalidade necessário para que sua ação surta os efeitos almejados, é algo variável
e relativo, que deve ser medido em cada caso específico e concreto.
No caso em questão, várias visões do patrimônio se mostram em conflito dentro de
uma única instituição, que se sustenta ao longo do tempo mais pela flexibilidade em abrigar
diversos discursos que pela força de uma única formação discursiva hegemônica. É óbvio que
existe um consenso mínimo, de forma a deixar claro intersubjetivamente os papéis
institucionais a serem ocupados por cada ator social. No entanto, tais papéis estão sempre em
disputa, e, quanto mais autoridade um papel conferir a um ator e quanto mais este ator for
apto a problematizar a realidade objetiva que se lhe apresenta, mais chances há de se alterar
complexos de significados almejando privilegiar interesses e crenças individuais.105

2.2.2 A linguagem

Será possível agora tratar de um nível intermediário de especificidade das ações


humanas, uma vez que alguns de seus fundamentos foram abordados. Refiro-me à linguagem
e às possibilidades que oferece à ação humana no meio social.
Ao tratar deste problema, estarei invadindo um campo tradicionalmente ocupado por
outros especialistas, tais como filósofos, psicólogos e, obviamente, linguistas. Não me
aventurarei em reconstituir a trajetória das discussões relativas à linguagem, que remetem
pelo menos à Antiguidade Clássica, até porque, como afirma Patrick Charaudeau “há tantos
percursos históricos quantos forem os sujeitos que teorizam”.106 No entanto, embora haja o
risco de incorrer em deslizes em função do desconhecimento do terreno, creio que sejam
necessárias algumas considerações sobre a linguagem conforme estudada no campo da
linguística.
Creio que, atualmente, a tendência mais vigorosa nesse campo de investigação,
especialmente na análise do discurso, é a que considera o caráter pragmático da linguagem.
105
O papel dos atores individuais na consolidação de institucionalizações alternativas encontra acolhida nas
proposições contidas em BERGER; LUCKMANN, op. cit., 1985 e EISENSTADT, S. N. & RONIGER, L.
Patrons, clients and friends: interpersonal relations and the structure of trust in society. Cambridge:
Cambridge University Press, 1984.
106
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008, p. 15.
55

Este interesse pode ser definido por um de seus maiores estudiosos contemporâneos:

de modo muito grosseiro, seria possível ver na reflexão pragmática um esforço para
repensar a ruptura entre o lógico e o retórico, ou, quando ela se torna mais
deliberadamente linguística, para repensar a ruptura entre a estrutura gramatical e
sua utilização. Em outras palavras, existe pragmática linguística quando se considera
que a utilização da linguagem, sua apropriação por um enunciado que se dirige a um
interlocutor num contexto determinado, não se acrescenta de fora a um enunciado de
direito auto-suficiente, mas quando a estrutura da linguagem é radicalmente
condicionada pelo fato de ser a linguagem mobilizada por enunciações singulares e
produzir um certo efeito dentro de um certo contexto, verbal e não verbal.107

Dessa forma, o enunciado deixa de ser visto como uma unidade que por si só possui um
significado. As atenções se voltam para o contexto histórico social em que determinado ato de
linguagem foi proferido ou escrito. A linguagem passa a ser vista como uma ação capaz de
produzir efeitos.
Ainda de acordo com Dominique Maingueneau, teria sido com Austin que esta
“dimensão ilocutória” (ou ilocucionária) da língua haveria passado para o centro das atenções
dos estudos linguísticos preocupados com a análise discursiva. Segundo o autor,

o ‘ilocutório’ é portanto um conceito mais abrangente que o ‘performativo’. O que se


chama de ‘sentido’ de um enunciado associa dois componentes: ao lado do conteúdo
proposicional, de seu valor descritivo [...] existe uma força ilocutória que indica que
tipo de ato de linguagem é realizado quando se enuncia, como ele deve ser recebido
pelo destinatário: pode se tratar de uma súplica, de uma ameaça, de uma sugestão,
etc. Falar é, portanto, comunicar igualmente o fato de que estamos nos
comunicando, integrar na enunciação a maneira como esta deve ser apreendida pelo
destinatário. A interpretação do enunciado só se remata, o ato de linguagem só é bem
sucedido quando o destinatário reconhece a intenção associada convencionalmente à
sua enunciação.108

Outro aspecto da linguagem que se tornou importante nestas análises foi seu caráter
“institucionalizado”, algo que Saussure já teria apontado. Segundo Maingueneau, quando
Saussure definia a língua como uma instituição, “encarava-a como um ‘tesouro’ de signos
transmitidos de geração em geração, remetendo a atividade da linguagem à ‘palavra’; a
pragmática mantém a ideia de que a língua é uma instituição, mas confere-lhe outro relevo
[...] Nessa perspectiva, falar e mostrar que se tem o direito de falar como se está falando não
são separáveis”.109
Maingueneau ainda afirma, seguindo Austin, que a linguagem aparece “como uma
instituição que permite realizar atos que só adquirem sentido dentro dela”. 110 Fica claro nesta
107
MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 3.
108
Ibid., p. 7-8.
109
Ibid., p. 17.
110
Ibid., p. 18.
56

afirmação que uma relação intersubjetiva entre o falante e o ouvinte somente é possível
através de processos de sedimentação da linguagem. Em outras palavras, eu e o sujeito com
que falo precisamos ter interiorizado uma mesma linguagem objetivada para que ele interprete
o que digo exatamente como quero que ele interprete. Isso inclui não somente as palavras que
profiro, mas o modo como falo e o lugar de onde falo.
Não podemos nos esquecer de que Michel Foucault já havia trabalhado com esta
problemática ao se deter especificamente naquilo que chamou de “ordem do discurso”. Para o
filósofo, possuímos um desejo de verdade, cuja satisfação não se pode dar da maneira como
gostaríamos:

eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso: não queria ter de me
haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como
uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros
respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma;
eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz.111

No entanto, para ele, o poder e a autoridade que a verdade, ou pelo menos uma
aparência desta, poderia oferecer a um discurso somente se dá a partir de caminhos
previamente institucionalizados. Em outras palavras, poderíamos dizer que a função destas
instituições é conferir poder a um discurso, auferindo-lhe autoridade a partir de alguns
procedimentos: “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por
função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e temível materialidade”.112
Além disso, por outro lado, o discurso somente se daria a partir de normas já
institucionalizadas: “é sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade
selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma
‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos”.113 Deve-se ainda
observar que, para Foucault, “essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma
distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de
nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de coerção”.114
As duas perspectivas apresentadas são extremamente úteis para a compreensão crítica
do funcionamento da linguagem em dado contexto sócio-histórico. Trata-se, portanto, de um

111
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 7.
112
Op. cit., p. 8-9.
113
Op. cit., p. 35.
114
Op. cit., p. 18.
57

instrumental que permite apontar qual ato de linguagem pode ser, dentro de um contexto
específico, mais amplamente compreendido e, portanto, eficaz, e, além disso, mostrar quais
são os grupos que melhor se beneficiam desse aparato institucionalizado. Todavia, quando se
trata de analisar a linguagem numa perspectiva histórica, tais aportes metodológicos têm sua
eficácia reduzida. Uma vez que a linguagem institucionalizada é tida como algo que coage a
ação humana (só podemos ser compreendidos e respeitados se nos submetermos à “ordem do
discurso”), sobra pouco espaço para as inovações e, portanto, para as mudanças. Esquece-se
assim de um nível mais elementar do ato de linguagem, que também é uma ação individual, e
que, como tal, pode produzir mudanças. Deste modo, sem o devido cuidado, corre-se o risco
de autonomizar a linguagem de forma que pareça que esta aja, e não os homens. Pode então
parecer que os indivíduos são meros fantoches nas mãos de um contexto linguístico que
determina suas ações.
No entanto, não podemos afirmar que a mudança tenha sido desprezada nos estudos
dedicados à linguagem. O contexto sócio-histórico e o caráter institucionalizado da
linguagem, encarada como transformadora, produtora de efeitos, aparecem como centrais na
proposição teórica de Eni Orlandi. Segundo a autora,

a definição que se coloca como ponto de partida é a que caracteriza a linguagem


como transformadora. Ação sobre a natureza e ação concertada com o homem. Não
é, pois, ação no sentido, geral, em que a pragmática a considera. Para os objetivos da
análise do discurso é preciso que esse compromisso pragmático da linguagem seja
mais especificamente marcado pelo conceito de social e histórico. Um compromisso
que coloque a capacidade de linguagem na constituição da própria condição da
espécie, já que o homem não é isolável nem de seus produtos (cultura), nem da
natureza. Daí consideram a linguagem como interação, vista esta na perspectiva em
que se define a relação necessária entre homem e realidade natural e social.115

Orlandi considera então que não existe um sentido hierarquicamente superior aos
outros. Segundo a autora, “não há um centro e suas margens, há só margens”. 116 No entanto,
haveria a dominância de um destes sentidos, que se sedimentaria através de um processo de
institucionalização. O sentido legitimado (literal) se fixaria então como o centro, sem,
contudo, perder a relação com os outros sentidos (implícitos). Assim, num mesmo processo de
constituição da linguagem, existiriam um processo parafrástico (que “permite a produção do
mesmo sentido sob várias de suas formas”) e um processo polissêmico (“responsável pelo fato
de que são sempre possíveis sentidos diferentes, múltiplos”).117 Assim,

115
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade
Estadual de Campinas, 1988, p. 17.
116
Ibid., p. 20.
117
Ibid., p. 20.
58

esta tensão entre o mesmo e o diferente é que constitui as várias instâncias da


linguagem. Aí se situa a relação entre a variação, a multiplicidade inerente à
linguagem e a sua contenção (institucional). Expressa-se assim o conflito entre o
garantido, o institucionalizado, o legitimado, e aquilo que, no domínio do múltiplo,
tem de se garantir, se legitimar, se institucionalizar. A polissemia é o conceito que
permite a tematização do deslocamento daquilo que na linguagem representa o
garantido, o sedimentado. Esta tensão básica, vista na perspectiva do discurso, é a
que existe entre o texto e o contexto histórico-social: porque a linguagem é sócio-
historicamente constituída, ela muda; pela mesma razão, ela se mantém a mesma.
Essa é sua ambiguidade.118

No campo da historiografia, é possível encontrar uma perspectiva que admite a


mudança no âmbito da linguagem. John Pocock também a concebe como passível de ser
utilizada para “fazer alguma coisa”, como polissêmica e institucionalizada. No entanto, a
respeito da objeção relativa ao problema da intencionalidade dos atos de fala (numa polêmica
travada com Quentin Skinner119), Pocock defende que

ela [ou seja, a objeção] questiona não apenas que as intenções possam existir antes
de ser articuladas em um texto, como também que se possa dizer que elas existem
independentemente da linguagem em que o texto está construído. O autor habita um
mundo historicamente determinado, que é apreensível somente por meios
disponíveis graças a uma série de linguagens historicamente constituídas. Os modos
de discurso disponíveis dão-lhe as intenções que ele pode ter, ao proporcionar-lhe os
únicos meios de que ele poderá efetuá-las.120

Pocock afirma que um contexto linguístico pode apresentar um alto grau de


complexidade. Este contexto linguístico, de acordo com o historiador, determinaria os atos de
fala de um autor, que seria então “tanto um expropriador, tomando a linguagem de outros e
usando-a para seus próprios fins, quanto o inovador que atua sobre a linguagem de maneira a
induzir momentâneas ou duradouras mudanças na forma como ela é usada”.121 As linguagens
seriam tanto contínuas quanto transformáveis, e os autores teriam pouco controle sobre tais
alterações.
De acordo com a perspectiva de Pocock, os atores não têm, portanto, nenhum controle
das inovações a serem institucionalizadas alternativamente no campo da linguagem. No
entanto, os atores sabem o que falam. Sabem também que o que falam é importante para a
orientação de determinadas condutas. Sendo assim, falam (agem) racionalmente e procuram
assim produzir efeitos (algumas vezes mudanças) nas condutas que procuram orientar por
meio da utilização de determinados tipos de linguagem. Se as consequências alcançadas são
118
Ibid., p. 20.
119
Uma espécie de réplica a esta objeção pode ser encontrada em SKINNER, Quentin. Visions of politics:
regarding method. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, especialmente no capítulo intitulado
“Interpretation and the understanding of speech acts”.
120
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003, p. 27-28.
121
Ibid., p. 29.
59

ou não condizentes com suas intenções ou motivações, ou seja, são limitadas, isso depende da
análise dos fatores objetivos ligados a essas ações. Retirar assim a responsabilidade dos
sujeitos é, no mínimo, arriscado.
Orlandi, por sua vez, considera a linguagem como ação transformadora, influenciada
grandemente por uma perspectiva marxista. No entanto, enquanto a autora acerta em
considerar o aspecto polissêmico da linguagem, resta, a meu ver, considerar com maior
interesse o papel da ação individual nesses processos constitutivos. É necessário considerar
como o indivíduo pode modificar determinado contexto linguístico ou social ou, o que é até
mais provável, ser tolhido por eles em função de interesses mais bem “aparelhados”.
Há que se notar também que, enquanto determinados signos possuem significados
mais sedimentados e, portanto, mais arbitrários, sofrendo menos questionamentos,
problematizações ou quase nunca sofrendo uma atividade reflexiva, outros, pela função que
cumprem no mundo social, são alvos de constantes disputas. Deste modo, palavras como
“copo”, “cadeira”, “lâmpada” etc. dificilmente sofrerão re-semantizações ou serão alvo de
discussões em torno de seus respectivos significados, embora não deixem de ser polissêmicos.
Outro é o caso de noções ou conceitos, cujos significados, em grande parte, estão diretamente
ligados a disputas pela “nomeação da realidade” ou pela “orientação de condutas”. Segundo
Reinhart Koselleck, “a batalha semântica para definir, manter ou impor posições políticas e
sociais em virtude das definições está presente, sem dúvida, em todas as épocas de crise
registradas em fontes escritas”.122 Este é o caso de conceitos como “história”, “classes” e
“memória”, por exemplo, ou de noções como “evolução da arquitetura brasileira”.
Creio ser mais pertinente, portanto, definir a linguagem como um complexo de signos
e significados portador de diferentes níveis de consenso e sedimentação. Somente assim é
possível analisar determinadas mudanças semasiológicas (relativas ao sentido) e
onomasiológicas (relativas ao significado) ocorridas, num relativamente curto espaço de
tempo, em conceitos e noções centrais para a orientação das condutas concernentes às práticas
preservacionistas nacionais. Embora este caráter polissêmico da linguagem certamente esteja
claro em outros contextos, não é assim que ela tem sido encarada, por exemplo, nos textos que
foram apresentados no início deste capítulo. Para eles, como vimos, considera-se mais
importante a análise dos “consensos”, ou seja, das “formações discursivas” supostamente
sedimentadas ou institucionalizadas.
Em segundo lugar, a linguagem não pode ser desvinculada da ação individual. Para

122
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 102.
60

tanto, deve-se também entendê-la como um conjunto de “significados subjetivos objetivados”.


Ora, a objetivação se dá a partir de uma ação ou expressão individual. A linguagem nos está
disponível como objetos a serem interpretados e interiorizados. A partir do contato que temos
com estes objetos, podemos nós mesmos exteriorizar nossa subjetividade de forma a
contribuir com os complexos de significados existentes.
No entanto, é impossível que percebamos, na realidade cotidiana, essa pluralidade de
significados individuais atribuída aos objetos, vez que essa reflexividade demanda esforço e
tempo. Possivelmente só podemos dirigir esta atenção para um objeto de cada vez.
Precisamos obter um conjunto mínimo de conhecimentos e tipificações básicas para lidarmos
com a infinidade de outros objetos que se nos impõem à sobrevivência na vida diária.
Essa relação da linguagem com a realidade da vida cotidiana e com a atividade
individual e social foi tratada em pormenores por Peter Berger e Thomas Luckmann. Este
último, preocupado com a forma pela qual se reconstroem as realidades sociais, afirma que
esta reconstrução é comunicativa. Para Luckmann, os indivíduos “comuns” (em oposição aos
“teóricos”) são os primeiros a se defrontarem com o problema do significado da ação humana.
Eles vão, assim, constituindo, aos poucos, tipificações que lhes auxiliarão tanto no seu próprio
agir (de forma que este seja compreensível para as outras pessoas) quanto na compreensão da
ação dos outros indivíduos. Estas tipificações são construídas tanto com base na própria
experiência do indivíduo quanto a partir de “modelos de ação”, que constituem complexos de
significados disponíveis aos atores.123 Por serem úteis a diversas pessoas, essas tipificações,
intersubjetivamente compreensíveis, já fazem ou passam a fazer parte de sistemas de signos
ou de línguas. Tais sistemas são constituídos por significados estabilizados e adquirem assim
um caráter anônimo, pois podem se aplicar a qualquer pessoa (ou a um tipo de pessoas,
também anônimas124). As línguas são, desta forma, “sedimentos de inumeráveis ações
significativas passadas”, e, “desde el punto de vista empírico, la experiencia subjetiva es una
experiencia histórica, lo que significa que incluso las soluciones ‘nuevas’ a los problemas de
la vida social también formam siempre parte de una ‘tradición’ preexistente de significado, es
decir, de una lengua dada”.125 Por fim, as tipificações de significados subjetivos se articulam
em línguas históricas e são formuladas em narrativas e outros tipos de “reconstruções
comunicativas”. Conclui-se, portanto, que, para nós, os “analistas”, o significado das ações

123
Embora Luckmann não trate disso neste texto, entendo que o indivíduo pode ser tanto coagido a utilizar um
destes complexos – seja esta coação física ou simbólica – quanto optar, mediante livre escolha, por um deles,
dependendo das condições sociais concretas.
124
Isto também é mais bem elaborado em BERGER; LUCKMANN, op. cit.
125
LUCKMANN, Thomas. Nueva sociologia del conocimiento. Revista Española de Investigaciones
Sociológicas. S.l. 1996, p. 8.
61

individuais deve ser buscado nestes sistemas de tipificações de significados subjetivos, que
são constituídos, por sua vez, comunicativamente, ou, para usar um termo mais comum,
intersubjetivamente.
Creio que este modelo é perfeitamente válido, desde que se considere que tais
“sistemas de tipificação de significados subjetivos” possuem, como vimos, tensões inerentes e
diferentes graus de cristalização. Além disso, embora sejam múltiplos os significados dos
objetos, talvez tantos quanto o número de indivíduos que com eles se deparam e sobre eles
refletem, existe sempre um consenso, uma intersubjetividade mínima, que possibilita a
institucionalização de certas ações e o estabelecimento de determinados papéis. Seria o caso,
por exemplo, das noções de “trajetória” ou “evolução” (entendida de forma mais genérica),
constantemente empregadas nos textos sobre o patrimônio.
Portanto, seguindo Berger e Luckmann, podemos afirmar que a língua é um conjunto
de objetivações humanas, frutos da ação individual. Segundo estes autores,

a expressividade humana é capaz de objetivações, isto é, manifesta-se em produtos


da atividade humana que estão ao dispor tanto dos produtores quanto dos outros
homens, como elementos que são de um mundo comum. Estas objetivações servem
de índices mais ou menos duradouros dos processos subjetivos de seus produtores,
permitindo que se estendam além da situação face a face em que podem ser
diretamente apreendidos”.126

A significação, isto é, “a produção humana de sinais”, seria um caso especial e importante das
objetivações. A linguagem deve então ser concebida não só como um “complexo de
significados”, mas como um “complexo de significados e sinais”:

a linguagem, que pode aqui ser definida como sistema de sinais vocais, é o mais
importante sistema de sinais da sociedade humana. Seu fundamento, naturalmente,
encontra-se na capacidade intrínseca do organismo humano de expressividade vocal,
mas só podemos começar a falar de linguagem quando as expressões vocais tornam-
se capazes de se destacarem dos estados subjetivos imediatos ‘aqui e agora’. Não é
ainda linguagem se rosno, grunho, uivo ou assobio, embora estas expressões vocais
sejam capazes de se tornarem linguísticas, na medida em que se integram em um
sistema de sinais objetivamente praticável. As objetivações comuns da vida
cotidiana são mantidas primordialmente pela significação linguística. A vida
cotidiana é sobretudo a vida com a linguagem, e por meio dela, de que participo com
meus semelhantes. A compreensão da linguagem é por isso essencial para minha
compreensão da realidade da vida cotidiana.127

Embora Berger e Luckmann estejam pensando em uma forma específica de


linguagem, ou seja, a “cotidiana”, sua reflexão nos remete aos fundamentos desse tipo de ação

126
BERGER; LUCMANN, op. cit., p. 53.
127
Ibid., p. 55-56.
62

de um modo mais geral. É importante que tenhamos isso em mente a fim de lidar com o tipo
de linguagem específico em que repousa o objeto deste trabalho, ou seja, a produção
historiográfica.

2.2.3 Produção historiográfica

Já foi mostrado, por intermédio da análise da literatura especializada nas práticas


preservacionistas nacionais, que essas se ligaram diretamente aos anseios da intelectualidade
modernista brasileira. Uma das atividades primordiais de um órgão como o IPHAN foi (e tem
sido) proteger determinados bens culturais dotados de um valor de “autenticidade”, capazes
de atestar uma certa identidade cultural nacional. De fato, não há identidade sem história, sem
construção de sentido, pois “la identidad de los sujetos puede ser representada plenamente
sólo a través de sus historias porque esta identidad, en su presencia sincrónica, contiene
siempre más de lo que, a partir de las condiciones actuales, pudiera ser comprensible”.128
Desse modo, um tipo específico de linguagem, ou seja, a produção historiográfica, adquire um
papel fundamental nas práticas dos órgãos responsáveis pela preservação de bens culturais.
Além disso, órgãos como o IPHAN serviram a um projeto mais amplo de
modernização do Estado. Almejou-se uma modernização “autêntica”, amparada em valores
cuja legitimidade deveria ser buscada na tradição. A brasilidade ou essência nacional estaria
“aí”, ao nosso redor, há séculos, bastando ser valorizada e salvaguardada a fim de orientar as
ações no sentido de modernizar o país sem abandonar suas raízes. A historiografia também se
mostra, neste ponto, de fundamental importância. Segundo Jörn Rüsen, as histórias “servem
para esclarecer processos temporais em contextos abrangentes de uma apresentação que
articula o passado, o presente e o futuro em um construto significativo que funciona como
referência prática de orientação no tempo”.129 No entanto, não bastaria narrar uma história:
esta necessitaria de instrumentos que assegurassem sua veracidade, pois lidava-se com os
rumos do país.
Não podemos, portanto, seguir aquela proposição de Silvana Rubino, que separa as
práticas preservacionistas da produção intelectual. Tende-se, em geral, a tratar o tombamento
como momento mais importante das práticas preservacionistas. No entanto, parto aqui de um

128
LÜBBE, op. cit., p. 112.
129
RÜSEN, Jörn. História Viva. Brasília: Unb, 2007, p. 22.
63

pressuposto inverso: os tombamentos objetivam as histórias que se embatem pela construção


de uma memória e identidade nacionais. Se estas histórias, apresentadas principalmente em
forma de historiografia, são múltiplas (sem deixarem de ser oficiais), os tombamentos devem
também ser diversificados. Dessa forma, estes tombamentos atestam os diversos sentidos
atribuídos ao “processo civilizatório” ou à “trajetória” nacional, pensados mormente em
termos evolutivos. E este efeito prático da linguagem historiográfica se manifesta mais cedo
ou mais tarde, diretamente na instituição federal ou nas instituições alternativas (como as
surgidas no estado de São Paulo).
Em face da abrangência temporal abarcada por este trabalho, foi necessário optar por
uma forma de abordagem do material historiográfico que pudesse servir a diferentes contextos
de produção. Por esse motivo, as considerações que se seguem baseiam-se, em grande
medida, nas proposições “meta-teóricas” apresentadas por Jörn Rüsen.130
Em primeiro lugar, deve-se, portanto, levar em conta que a historiografia, além de sua
função identitária, é um meio de conferir sentido às ações presentes pela organização da
consciência histórica. A história é produzida quando carecemos de sentido para levar a cabo
determinadas ações no presente. Tais ações, por seu turno, dependem também de nossa
capacidade relativa à identificação de tipologias relacionadas a grupos identitários, tanto
aqueles aos quais pertencemos quanto aos que pertencem os outros, e esta identidade só é
percebida historicamente. A fim de suprir essa carência de sentido, a historiografia pode
oferecer uma forma eficaz de se produzir um conhecimento que se pretende válido, dotado de
racionalidade e amparado em critérios de cientificidade. Tem-se então uma importante
questão a ser respondida por quem intente uma análise enquadrada no campo da história da
historiografia: quais carências de sentido levaram à produção dos textos de história
abordados? Esse é o “nível normativo” da produção historiográfica, que lhe dá ensejo e para o
qual a mesma se destina.
Em segundo lugar, é necessário que se indague sobre como se procurou sanar as
carências de sentido referidas acima. Em outras palavras, com essa indagação propõe-se
investigar se comparecem no texto os princípios de regulação metódica que garantem a
validade do que se escreve sobre o passado histórico, ou, o que também é perfeitamente
possível, se tais princípios são deixados de lado em favor de formas historiográficas menos

130
Sobretudo em Idem, Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 2001. Não obstante Angela Maria de Castro Gomes haver oferecido um
instrumental eficaz e interessante no intuito de se compreender o que podia ser considerado historiografia no
período abarcado pelo Estado Novo, os limites cronológicos de seu trabalho aconselharam que, aqui, fossem
buscados instrumentos metodológicos de validade mais ampla. Cf. GOMES, Angela Maria de Castro.
História e historiadores. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.
64

rígidas. Desse modo, para além do nível prático da produção historiográfica, relacionado à
constituição de sentido e delimitação de identidades ligadas à orientação de determinadas
condutas, devemos também dirigir o olhar em direção a alguns aspectos específicos, próprios
da historiografia (embora alguns deles possam comparecer em outras formas de linguagem
escrita). Tais aspectos se referem ao modo pelo qual a produção historiográfica se fundamenta
metodicamente a fim de orientar condutas e delimitar identidades.
O primeiro aspecto que se relaciona com a atividade metódica de produção
historiográfica surge da seguinte questão: ela é pertinente do ponto de vista empírico? As
histórias narradas e que se pretendem válidas buscam primeiramente comprovar, por
intermédio da relação com a experiência, que as coisas se passaram de acordo com o que é
narrado. Com este intuito, são selecionadas “fontes” que, mediante critérios fundamentados,
forneçam credibilidade à argumentação de que se lança mão. Essas fontes adquirem caráter de
“verdade” a partir do momento em que podem ser verificadas pelos leitores (não que os
mesmos necessariamente as verifiquem, o que pode inclusive fazer com que, em alguns casos,
fontes forjadas também sejam consideradas verídicas). A produção historiográfica depende,
portanto, da experiência, entendida como “instância autenticadora da validade de sentenças
empíricas”, ou seja, “apenas o que pode ou deve ser reconhecido, por qualquer um, como um
dado empírico”.131 Além disso, a validade do material empírico selecionado permite que ele
seja “destacado” de seu contexto de significação ou importância cultural e de sentido, a ponto
de ser utilizado (e aprimorado ou negado) por outras narrativas.
Um segundo aspecto emana da seguinte questão: ela é pertinente do ponto de vista de
sua “importância cultural”132? Esta indagação relaciona-se com os valores que conduzem à
seleção de um passado significativo, ou seja, dotado de importância para a orientação da ação
no presente. O passado a ser narrado depende da perspectiva de quem o narra. Tal perspectiva
ancora-se em valores, ligados à posição ocupada na sociedade pelo historiador (e, portanto, às
exigências institucionais que deve seguir, ao que se quer, pode ou deve ser mudado, aos laços
profissionais e afetivos que possui, às implicações éticas do que escreve etc.), que, quando
explicitados, permitem seu relacionamento com outros valores.
Terceira questão indicadora de um aspecto metódico da historiografia: ela é pertinente
no que se refere ao sentido? O que define esse campo do conhecimento a que chamamos
“história” são as ideias que conferem um sentido temporal ao conjunto de fontes com o qual

131
Rüsen, Razão histórica, op. cit., p. 101.
132
Optei pelo conceito weberiano de “importância cultural” ao invés do de “significado”, pois este último
presta-se a confusões com o conceito de “sentido”, utilizado em geral na língua portuguesa como seu
sinônimo.
65

se trabalha. Tais ideias são construtos abstratos, que, tomados isoladamente, podem ser
chamados de teoria, cuja função é sistematizar o material empírico e, dessa forma, orientar
temporalmente a conduta dos indivíduos no presente. Ora, são justamente tais ideias ou
teorias que nos permitem organizar temporalmente a experiência que temos do tempo em
nossa consciência. As identidades são assim estabilizadas pela demonstração das
permanências e rupturas de um fluxo temporal.
Esses três “níveis metódicos” de produção historiográfica se originam, repito, de uma
função prática ou normativa inicial, ou seja, de uma “carência” de sentido para a ação ou de
delimitação de identidades. Deste modo, após a análise desses níveis, faz-se necessário um
confronto com o efeito prático posterior alcançado pela produção historiográfica. Ela volta,
portanto, ao nível do qual se originou, ou seja, o “prático” ou “normativo”. Poderíamos, desse
modo, compreender a prática historiográfica como uma espécie de atividade circular: ela
emana da vida prática, dos “interesses humanos” (carências de orientação no tempo), alcança
um nível “científico” ou “metódico”, no qual terá que lidar com as “ideias” (“perspectivas
orientadoras da experiência do passado”), “métodos” (“regras de pesquisa empírica”) e
“formas” (“de apresentação historiográfica”), para, por fim, tentar orientar novamente a ação
dos indivíduos na vida prática, satisfazendo ou não as intenções normativas que lhe deram
motivo.133
Pelo que foi acima exposto, fica claro que uma análise historiográfica não pode ser
condicionada ao nível textual. Uma análise puramente “formal” desconsideraria o caráter
prático e normativo da produção historiográfica, que, no caso da história da arquitetura
brasileira (sobretudo a que será aqui abordada) possui um papel fundamental. Serão
considerados aqui, portanto, os elementos ligados às motivações objetivamente disponíveis
para a compreensão da ação (historiográfica) dos sujeitos enfocados, a formatação
historiográfica na qual tais ações se conformaram e, por fim, os efeitos práticos que elas
tiveram nos contextos institucionais abordados.
Foram estes pressupostos metodológicos que condicionaram a estruturação dos dois
capítulos seguintes. No entanto, cabe ainda um esclarecimento acerca do objeto de
investigação propriamente dito. A noção de “evolução da arquitetura brasileira” se mostrou
um elemento importante para a compreensão dos embates ocorridos em torno das práticas
preservacionistas nacionais. A constituição narrativa de sentido para essa noção, que aparece
com diferentes formatos em cada um dos autores cujas obras serão analisadas, foram
fundamentais para o posicionamento dos mesmos em relação ao patrimônio cultural brasileiro
133
Rüsen oferece um interessante diagrama circular a esse respeito em Idem, Razão histórica, op. cit., p. 35.
66

e para a definição das práticas institucionais criadas para sua proteção.


No capítulo relativo a Luís Saia, é a noção de “evolução regional paulista” que
polariza a narrativa, enquanto que no capítulo dedicado a Nestor Goulart Reis Filho o mesmo
papel é ocupado pela noção de “evolução urbana”. Se fossem tomadas as obras de outros
arquitetos/historiadores preocupados em narrar a história da arquitetura nacional e regional (a
exemplo de Carlos Lemos e Sylvio de Vasconcellos, ou mesmo Lucio Costa), notar-se-ia que
a ideia de uma “evolução arquitetônica” é essencial para que as feições construtivas de um
determinado passado, selecionado como a origem das características peculiares de um povo,
sejam ligadas ao presente e ao futuro. A maneira preferida de “conectar” um “tipo” residencial
característico pretérito, retirado dos traços mais recorrentes do conjunto de restos
arquitetônicos existentes ou de seus vestígios, a uma ideia de tempo que pretende orientar
uma série de condutas no presente a fim de se construir um futuro racionalmente imaginado,
tem sido, sem dúvida, a defesa de que a arquitetura “evolui”. Trata-se, portanto, de uma
“noção” de evolução da arquitetura, uma vez que é frequentemente utilizada sem uma
sistematização mais rigorosa. É exatamente essa sua relativa “frouxidão” que lhe permite
receber variadas feições, de acordo com as características formativas e normativas de seus
autores.
Deste modo, inicio os capítulos com a apresentação de um pequeno quadro relativo à
vida profissional e intelectual dos autores. Assim é possível contextualizar melhor suas
respectivas trajetórias a fim de que, na seção posterior, seja realizada uma investigação mais
aprofundada acerca de seus contextos intelectuais de formação, ou seja, relativa às leituras por
eles realizadas e aos autores que conheceram e com quem aprenderam, dialogaram ou
conflitaram.
Em seguida, serão abordadas as obras historiográficas escolhidas em função da
percepção que oferecem acerca das “noções-chave” desta pesquisa. Inicialmente será feita
uma apresentação da estrutura da obra selecionada para que, posteriormente, sejam-lhe
analisadas as fontes, as relações com os valores e a construção do sentido. Deste modo serão
contemplados todos os aspectos metódicos da constituição narrativa de sentido conforme
detalhados logo acima.
Por fim, e talvez o mais importante, tentarei mostrar como essas diferentes
apresentações historiográficas em torno da noção de “evolução da arquitetura” de fato
orientaram as condutas relativas às práticas preservacionistas ao alcance dos autores em
questão. Tratarei, portanto, da atuação dos dois arquitetos enfocados junto aos órgãos
preservacionistas e das inovações que estas instituições passaram então a apresentar. Isso será
67

feito à luz do sentido histórico por eles construídos narrativamente e de suas respectivas
acepções e formas relativas à noção de “evolução da arquitetura”.
68

3 LUÍS SAIA E A EVOLUÇÃO REGIONAL PAULISTA: A HISTÓRIA DA


ARQUITETURA VISTA POR UM ÂNGULO PARTICULAR (1938-1975)

Imagino que o indivíduo menos afeito a discussões acadêmicas, guiando-se pelo senso
comum, deva imaginar que a preservação de edifícios antigos seja obra de saudosistas
preocupados com a salvaguarda das tradições de um povo. Certamente essa pessoa se
espantaria ao saber que, em São Paulo, essa atividade deve muito a um arquiteto socialista
muito simpático ao materialismo dialético.
Na verdade, essas afirmações podem causar espanto até mesmo em pessoas versadas
no tema. Isso deve ser imputado à pouca atenção dada até então aos aspectos que serão
abordados neste capítulo. Utilizando o instrumental fornecido pela história da historiografia,
tentarei mostrar a centralidade da noção de “evolução regional paulista” para as práticas
preservacionistas paulistas no período ora abordado, noção esta construída
historiograficamente, ou seja, através da escrita de uma particular história da arquitetura,
pensada pelo arquiteto Luís Saia.
Para tanto, tratarei inicialmente da formação desse arquiteto, seja através de sua
inserção acadêmica e profissional, seja por intermédio de suas leituras e demais referências
intelectuais e formativas. Em seguida, realizarei uma análise historiográfica de Morada
paulista, sua obra mais conhecida e significativa. Por fim, tentarei mostrar os efeitos dessa
ação (ou seja, da produção historiográfica de Luís Saia) no âmbito das práticas
preservacionistas paulistas.

3.1 INSERÇÃO ACADÊMICA E PROFISSIONAL

Para tratar desse assunto, abordarei inicialmente os aspectos intelectuais e


profissionais relativos à trajetória de Luís Saia. O intuito desta esquematização será
familiarizar o leitor menos afeito a esses dados, além de, desde já, situar os limites dos quais
serão retirados os elementos para a compreensão do objeto trabalhado.
Filho de imigrantes italianos, Luís Saia nasceu em São Carlos, cidade do interior
paulista, em 1911. Posteriormente seguiu para Campinas com sua família, quando ingressou
no famoso “Ginásio de Campinas”, fundado em 1869 com o nome de “Colégio Culto à
69

Ciência”. Fruto da iniciativa privada da elite republicana campineira (em que se destacava
Campos Salles, um dos fundadores da “Sociedade Culto à Ciência”), almejava-se construir
por meio desse colégio um símbolo do movimento republicano que então ganhava força. Em
1894 o Culto à Ciência passou para as mãos do Estado e começaram a ser exigidos exames de
seleção aos candidatos interessados em suas vagas. Embora o agora “ginásio” continuasse a
formar, sobretudo, os filhos das elites agrícolas locais, abriu-se a possibilidade de ingresso de
alunos “estranhos” aos quadros tracionais, principalmente aos filhos de imigrantes que então
passaram a povoar Campinas. Sua grade curricular, elaborada principalmente por elementos
seduzidos pelo progresso científico e social (conforme os receituários positivista e
evolucionista então predominantes), privilegiava a formação na área de ciências exatas e
oferecia, além disso, uma densa formação cívica e humanística, nos moldes dos projetos
republicanos daquela época.134 Em currículo composto pelo próprio Luís Saia, datado de 1974
e em papel timbrado no qual se vê escrito “Serviço Público Federal”, o arquiteto mostra ter
estudado nessa escola “até o 5º ano”.135
Em 1932 ingressou no curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica da capital
paulista, que em 1934 se tornaria uma unidade acadêmica da Universidade de São Paulo.
Concluiu o curso apenas em 1948. Segundo depoimento fornecido pelo arquiteto Nestor
Goulart Reis Filho, “o Luís Saia estava, naquele momento [da criação da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP, ou seja, em 1948], se formando na Escola Politécnica.
Levou uns quatorze anos para se formar. Às vezes trancava matrícula. Ficou sempre repetindo
matérias de áreas técnicas, que ele não estava muito interessado e se aflitava um pouco”. 136
Essa discordância em relação à matriz curricular da “Poli” pode ser também verificada na
relação que Saia guardava com seus professores, que já foi notada por alguns autores e acabou
gerando dificuldades institucionais entre este arquiteto e a Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP – a FAU.137

134
Estes dados foram retirados de CANTUÁRIA, Adriana Lech. A Escola pública e a competência escolar: o
caso do Colégio Culto à Ciência. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Faculdade
de Educação, 2000.
135
Este currículo foi encontrado em uma das pastas pessoais do arquiteto Antônio Gameiro, que trabalhou ao
lado de Luís Saia por vários anos e permitiu, gentilmente, que o historiador Jaelson Bitran Trindade o
digitalizasse a fim de servir como fonte deste trabalho.
136
Entrevista cedida por Nestor Goulart Reis Filho em 09 de junho de 2009.
137
Na entrevista supracitada, Reis Filho se recorda que Saia não teve acesso à FAU, pois a mesma era
dominada, após a saída de Anhaia de Mello, por “velhos professores” da Escola Politécnica (além do fato de
Saia ser comunista). Antônio Luís Dias de Andrade relata uma eventual insatisfação com Anhaia Mello
(ANDRADE, Antônio Luís Dias de. Comentário. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional:
60 anos: A revista. [Brasília], n. 26, p. 68-69, 1997, p. 68) e Silvia Ficher ainda se refere às suas desavenças
com Prestes Maia, famoso urbanista, professor da Escola Politécnica e prefeito de São Paulo por vários anos
(FICHER, Sylvia. Os arquitetos da Poli: ensino e profissão em São Paulo. São Paulo: Fapesp: Editora da
Universidade de São Paulo, 2005, p. 338).
70

Esta insatisfação com a formação profissional então oferecida aos arquitetos (que
continuou preocupando Saia até os últimos anos de sua vida138) possivelmente o levou a
procurar, por sua própria conta, caminhos formativos não subordinados diretamente à
academia. Talvez o mais importante para sua trajetória tenha sido a participação no Curso de
Etnografia realizado, em 1936, no Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo. Este
curso foi providenciado pelo então Diretor do DC, Mário de Andrade, que estava preocupado
em dotar as pesquisas sobre os aspectos da cultura popular nacional de uma postura mais
consistentemente científica, para o que seria necessário formar folcloristas e etnógrafos
“práticos”, portadores de um instrumental metodológico eficaz para realização de pesquisas
de campo. Com esta intenção, Mário de Andrade convidou Dina Lévi-Strauss, ex-assistente
do Musée de L´Homme, em Paris, para ministrar o Curso de Etnografia. A partir deste curso,
que teve a duração de 6 meses, foi formada então a Sociedade de Etnologia e Folclore,
composta principalmente pelos alunos do Curso de Etnografia.139
Luís Saia teve uma atuação efetiva na SEF, demonstrando uma formação etnográfica
que, em geral, não é levada em conta nos estudos a seu respeito ou relativos à ação
preservacionista da regional paulista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
– o SPHAN. Chefiou, em 1938, a “Missão de Pesquisas Folclóricas”, enviada ao Norte e
Nordeste do país para recolhimento de material fotográfico, fonográfico e fílmico, além da
coleta de material variado sobre as manifestações culturais daquela região.140 Além da
experiência em viagens de pesquisa, de grande importância para o arquiteto quando de sua
posterior atuação no SPHAN, a Missão lhe forneceu material para a publicação do artigo
“Escultura popular brasileira”,141 que não foi o único trabalho possibilitado por sua atuação na
SEF. Saia proferiu, nas reuniões dessa Sociedade, as comunicações “Um caso de arquitetura
popular”,142 “Notas de uma viagem a Bertioga”143 e ainda apresentou, junto a Mário de

138
Cf. Meditação melancólica. Morada paulista. Op. cit., 2005 (artigo ampliado em 1972).
139
A ideia da Sociedade foi lançada por Mário de Andrade num almoço em homenagem a Dina Lévi-Strauss,
que então se despedia do país. Entre seus sócios-fundadores, além de Dina Lévi-Strauss e Mário de Andrade,
podemos destacar o próprio Claude Lévi-Strauss (que também participou da Sociedade de Sociologia),
Emílio Willems, Ernani Silva Bruno, Fábio Prado (então prefeito de São Paulo), Luís Saia, Mario Wagner
Vieira da Cunha, Oneyda Alvarenga, Paulo Duarte, Plínio Ayrosa, Roger Bastide e Sérgio Milliet, entre
outros. Para mais informações sobre a atuação da SEF, Cf. AMOROSO, Marta. Sociedade de Etnografia e
Folclore (1936-1939). Modernismo e Antropologia. In: CENTRO DE CULTURA DE SÃO PAULO.
Catálogo da Sociedade de Etnografia e Folclore. São Paulo, 1993. Disponível em
http://www.centrocultural.sp.gov.br/livros/pdfs/sef.pdf. Acesso em 08.06.2001.
140
Chefiada em campo com Luís Saia, a Missão foi coordenada pela musicóloga Oneyda Alvarenga, então chefe
da Discoteca Municipal, e contou, também em campo, com o apoio do maestro Martin Braunwieser, do
técnico em gravações Benedicto Pacheco e do auxiliar Antônio Ladeira.
141
SAIA, Luís. Escultura popular brasileira. A Gazeta, São Paulo, 1944. Apud FICHER. Op. cit.
142
Boletim da SEF nº 1, doc. 287, p. 2, apud CENTRO DE CULTURA DE SÃO PAULO. Op. cit.
143
Boletim da SEF nº 3, doc. 287, p. 8, apud ibid.
71

Andrade, Edmundo Krug e Dalmo Belfort de Mattos, informações sobre festas do Estado de
São Paulo.144
Foi, muito provavelmente, da intensa atividade de Luís Saia na Sociedade de
Etnologia e Folclore e, por extensão, no Departamento de Cultura, que surgiu uma relação de
mútua admiração e respeito pessoal, intelectual e profissional entre o arquiteto e Mário de
Andrade. Esta proximidade, que pode ser claramente notada nas cartas enviadas a Rodrigo
Melo Franco de Andrade pelo polígrafo paulista,145 levará Saia ao Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – o SPHAN. Sobre a contratação deste último, temos a
interessante correspondência de Mário de Andrade relatando o problema a Rodrigo Melo
Franco:

quanto à indicação dum indivíduo pro SPHAN matutei duas horas e depois mais
tempo matutei dialogando com o Sérgio Milliet. É difícil... Me diga uma coisa: o
fulano é contratado, contrato precário, seis meses, quanto tempo? Pode-se retirar o
cargo a qualquer tempo? No caso de ser possível experimentar e não dando certo
retirar o cargo, poderia propor um rapaz bastante inteligente, estudante de
engenharia, dedicado à arquitetura tradicional, não passadista: Luís Saia. Tem o
defeito de ser integralista. Serviria havendo este complexo de inferioridade? Sei
que é ativo e como vivo em contato com ele, poderia orientá-lo bem.146

A partir de então Mário de Andrade, Luís Saia, o historiador Nuto Sant'Anna (que também
fazia parte do Departamento de Cultura) e o fotógrafo, também de São Carlos, Hugo Graesser,
o “Germano”, saíram a inventariar os bens passíveis de tombamento no Estado de São Paulo,
em viagens realizadas em automóveis cedidos pela prefeitura paulistana.147
Fruto dessas viagens foram três artigos enviados para os primeiros números da Revista
do SPHAN. Na Revista nº 1, foram publicados “A Capela de Santo Antônio”, assinado por
Mário de Andrade (que conta com a colaboração ativa de Luís Saia), e “A Igreja dos
Remédios”, de Nuto Sant’Ana.148 Na Revista nº 3, de 1939, Saia publica também o célebre
artigo “O alpendre nas Capelas Brasileiras”,149 escrito a partir das pesquisas em torno do
tombamento da Igreja de São Miguel Arcanjo na capital paulista, no qual trava grande
144
MATTOS, Dalmo Belfort de. A etnografia e a cruz. In: Boletim da SEF nº 4, doc. 287, p. 10, apud ibid.
145
ANDRADE, Mário de. Cartas de trabalho: Correspondências com Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936-
1945. Brasília: Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação Pró-Memória, 1981.
146
Ibid., p. 65 (carta de 6 de abril de 1937).
147
Mário de Andrade relata esse período de atuação em carta escrita a Rodrigo M. F. De Andrade em 23 de maio
de 1937. (Ibid., p. 66).
148
SANT’ANNA, Nuto. A Igreja dos Remédios. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, nº 1, p. 127-138. Rio de Janeiro, 1937. Em bilhete rápido de 25 de junho de 1937, encaminhado a
Rodrigo Melo Franco, Mário diz o seguinte: “Artigos irão dia 30. Um só histórico Nuto Sant’Ana. Outro, um
estudo sobre igreja S. Antônio, do município de S. Roque, com engenharia dentro, feito por mim e Luís
Saia”. ANDRADE. Op. cit. p. 73.
149
SAIA, Luís. O alpendre nas capelas brasileiras. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, nº 3. Rio de Janeiro, 1939.
72

polêmica com Gilberto Freyre acerca do tema.


Já em fins de 1937 e início de 1938, Mário de Andrade começa a tratar com Rodrigo
Melo Franco sobre sua substituição na regional paulista do SPHAN. Isso se deveu ao fato de
que passou a ser defesa, na gestão de Fábio Prado, a acumulação de cargos tal qual vinha
ocorrendo com Mário de Andrade (que pede demissão do SPHAN em janeiro de 1938). Este
sugere, num primeiro momento, o nome de Paulo Duarte,150 mas é o de Luís Saia, já cogitado
anteriormente,151 que prevalece. Acreditamos que esta indecisão se deveu a uma série de
fatores. Certamente o nome de Paulo Duarte não foi aceito em função de sua ligação com a
elite política paulista. Por outro lado, contra Saia pesavam sua postura ideológica (então
integralista) e sua inexperiência.152
A fim de contornar o “mal da juventude”, foi proposto a Luís Saia a apresentação de
um trabalho sobre a Aldeia de Carapicuíba.153 Convencido Rodrigo Melo Franco do potencial
do jovem Saia em função da qualidade do trabalho, a atuação da regional paulista até 1975,
sobretudo após 1945, norteou-se pela ação individual deste engenheiro-arquiteto, a ponto de o
mesmo Victor Hugo Mori, então superintendente da 9ª Superintendência do IPHAN em São
Paulo, afirmar que “Saia era o IPHAN e o IPHAN era Luís Saia”.154 A partir de então Saia
dedicou boa parte de sua vida profissional e intelectual à preservação dos bens culturais
paulistas e nacionais, tendo atuado também no CONDEPHAAT (entre 1969 e 1975),
elaborado projetos de lei e participado de importantes encontros nacionais, como os de
Salvador (1971), nos quais deixou também sua marca.155
As atividades de Saia, no entanto, não se restringiram ao âmbito do Patrimônio. Além
da atuação no campo arquitetônico, esse arquiteto também se destacou na área do
planejamento urbano.156 Sobre o plano diretor para Águas de Lindóia, Amanda Cristina Franco
150
Carta de Mário de Andrade a Rodrigo Melo Franco datada de 26 de janeiro de 1938. ANDRADE. Op. cit. p.
129-130.
151
Carta de Mário de Andrade a Rodrigo Melo Franco datada de 01 de novembro de 1937. Ibid. p. 109.
152
Cf. LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira; MORI, Victor Hugo; ALAMBERT, Clara Correia d’. Patrimônio: 70
anos em São Paulo. São Paulo: 9ª SR/IPHAN, 2008, p. 28.
153
O próprio Saia apresenta uma justificativa para a produção deste trabalho: “em 1937, quando auxiliar de
Mário de Andrade e candidato à chefia regional do então Serviço do PHAN, a fim de suprir a falha de não ser
ainda arquiteto diplomado, realizei um estudo sistemático da aldeia de Carapicuíba”. SAIA, Luís. Morada
paulista. op. cit., 2005, p. 20.
154
Ibid., p. 30.
155
Saia também destaca em seu currículo a colaboração na elaboração do Anteprojeto da Lei do SPAN assinada
por Mário de Andrade, a participação nas Comissões, designadas em 1951 e 1957, para o estudo de Projeto
de Lei para a criação do “Patrimônio Regional”, na Comissão incumbida do estudo e restauração e destinação
do Palácio Campos Elíseos, no Conselho de Cultura e Defesa do Patrimônio Histórico e Cultural da
Prefeitura de São Paulo.
156
Sylvia Ficher arrola suas atividades neste setor: “paralelamente, de 1950 em diante dedicou-se ao
planejamento urbano, tendo realizado planos diretores para São José do Rio Preto, Lins, Águas de Lindóia e
Goiânia. Em 1954, preparou o ‘Código de Uso Lícito da Terra’, projeto apresentado à Assembléia
Legislativa; em 1955 realizou o ‘Relatório Preliminar para o Planejamento do Estado de São Paulo”.
73

nos mostra como o mesmo possuiu caráter inovador para as cidades brasileiras de então.157 No
entanto, um levantamento mais completo das atividades de Luís Saia na área do planejamento
urbano encontra-se exposto na dissertação de Juliana Costa Mota, sobre os planos diretores
elaborados para Goiânia na década de 1950.158 De acordo com a autora, a atuação urbanística
de Saia se restringiu quase totalmente ao âmbito do Instituto dos Arquitetos do Brasil – o IAB
–, e sua ação neste âmbito não alcançou maior amplitude em função de, no mesmo período,
atuarem Anhaia Melo e Prestes Maia, que eram “figuras centrais do Urbanismo em São Paulo
e tinham grande destaque no quadro urbanístico nacional”.159
Dentre outras participações em atividades culturais,160 é interessante destacar aqui a
atuação na Comissão de História nas comemorações do 4º centenário de São Paulo, tendo
realizado, além de levantamentos urbanos (dos quais participaram, na qualidade de
estagiários, Nestor Goulart Reis Filho e outros alunos da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP), a restauração da atual “Casa do Bandeirante” no Butantã, segundo ele, a
pedido de Guilherme de Almeida, então presidente da Comissão do Centenário.161
Por fim, caberia ainda destacar a atividade docente de Luís Saia. Ele coordenou, em
1974, juntamente com o próprio Reis Filho e Ulpiano Bezerra de Menezes, o “Curso de
Especialização em Conservação de Monumentos e Conjuntos Históricos”, promovido pelo
IPHAN em parceria com o CONDEPHAAT e a USP. Muito embora Reis Filho relate que Saia
nunca tenha lecionado na FAU como professor dos quadros da USP, Ficher afirma que, em
1951, o engenheiro-arquiteto foi professor da cadeira “Arquitetura no Brasil” e, em 1955,
“realizou uma prova de títulos, mas não assumiu o cargo devido a algum incidente nunca
esclarecido e que sempre o magoou”.162 Muito provavelmente esse “incidente” diz respeito às
desavenças entre Saia e os professores da “Poli” que então dominavam a FAU. Foi também
FICHER. Op. cit., p. 339, entre outras atividades mencionadas em seu próprio currículo.
157
FRANCO, A. C. Entre o Racional e o Pitoresco: O Plano Diretor de Luis Saia para Águas de Lindóia, 1956.
In: V Seminário Nacional DOCOMOMO. São Carlos. Anais do V Seminário Nacional DOCOMOMO, 2003.
158
MOTA, Juliana Costa. Planos diretores de Goiânia, década de 60: a inserção dos arquitetos Luís Saia e Jorge
Wilheim no campo do planejamento urbano. Dissertação (mestrado). – Escola de Engenharia de São Carlos,
Universidade de São Paulo, 2004.
159
Ibid., p. 88.
160
De acordo com seu currículo, Saia foi membro do Conselho do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do
Júri de seleção da 1ª Bienal de Arquitetura, do Conselho da Fundação Álvares Penteado, da Comissão de
Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, da Comissão de seleção para a Bienal de Veneza (1960), da
Comissão de Exposição do Barroco da Fundação Álvares Penteado e da Comissão Estadual para o estudo do
Museu do Ferro. Saia omite, salvo em poucas exceções, as datas relativas a estas atuações.
161
SAIA, Luís. Morada paulista. Op. cit, 2005. Sobre as relações entre identidade paulista e esta obra de
restauração, cf. SODRÉ, João Clark A. A casa bandeirista de Luís Saia no IV Centenário de São Paulo:
Restauração e Preservação da Identidade Paulista. In: V Seminário Nacional DOCOMOMO. São Carlos.
Anais do V Seminário Nacional DOCOMOMO, 2003. De acordo com Saia, essa casa foi “convertida numa
discutida e esdrúxula Casa do Bandeirante, cujo recheio é – coisas de política – quase totalmente mineiro”.
SAIA, Op. cit., 2005, p. 62 (nota 2).
162
FICHER. Op. cit., p. 339.
74

professor livre-docente da Escola de Arquitetura de Minas Gerais (hoje pertencente à UFMG),


onde fez amizade com o arquiteto e historiador Sylvio de Vasconcellos (responsável também à
época pela regional mineira do SPHAN), dentre outras atividades didáticas esparsas.163 Juliana
Mota destaca ainda os cursos de planejamento que ministrou junto ao Instituto dos Arquitetos
do Brasil.164
Todavia, afora a atuação pedagógica institucional, podemos julgar, a partir do
depoimento de Reis Filho, que sua contribuição para a formação dos arquitetos paulistas
extrapolou os limites das salas de aula:

[Luís Saia] levou uma série de alunos do primeiro ano para trabalharem com ele no
IPHAN para fazer levantamento de arquitetura, desenhar arquitetura do século
XVII e XVIII, e ele não se interessava pela arquitetura do XIX, que considerava
acadêmica, e como tal não interessava. [...] O IPHAN era para nós a única fonte
teórica, de apoio teórico para o estudo do moderno e do tradicional, não no século
XIX, que era rejeitado. Então nós ficamos numa situação ainda de maior
dependência em relação ao SPHAN. Então uma parte nos vinha através do Luís
Saia, e a outra parte através das leituras e das atividades dos pesquisadores do Rio,
o Lucio Costa à frente.

Saia possui uma extensa e dispersa produção bibliográfica. Dentre os livros


propriamente historiográficos é possível citar Fontes primárias para o estudo das habitações,
das vias de comunicações e dos aglomerados urbanos de São Paulo no século XVII (1948), A
casa bandeirista (1954), Notas sobre a evolução da Morada Paulista (1957) e Morada
Paulista (1972 [1995 e 2005]). Dentre os artigos, “O alpendre nas capelas brasileiras” (1939),
“Uma relíquia de nosso patrimônio histórico” (1940), “Notas sobre a arquitetura rural paulista
no segundo século” (1944), “A fase heróica da arquitetura contemporânea já foi esgotada há
alguns anos” (1954), “O ciclo ferroviário” (1955), “Economia de sobremesa” (1955),
“Arquitetura paulista” (1959), “Considerações sobre uma residência” (1961), “Morada
seiscentista do Tatuapé” (1968), “Escultura popular em madeira (1974), “Evolução Urbana de
São Luís do Paraitinga” (1974) etc.165 Há também, na década de 1950, sobretudo, uma série de
artigos escritos sobre planejamento urbano.

163
Organizou o Curso Especial de Planejamento, na Faculdade de Arquitetura Mackenzie, e o Curso Extensivo
de Planejamento, no IAB/SP, além de ter lecionado nas faculdades de Arquitetura de Salvador, Porto Alegre e
Recife (FICHER. Op. cit., p. 339).
164
Mota destaca o “Curso de Planejamento” (dezembro de 1955), “Curso Complementar de Planejamento e
Urbanismo” (julho 1957), “Curso de Geografia e Urbanismo” (março de 1958) e “Curso Intensivo de
Planejamento e Urbanismo (junho de 1958). Seu currículo pessoal ainda menciona esses e mais alguns cursos
na área de planejamento.
165
Uma listagem mais completa encontra-se em FICHER. Op. cit., além de em seu próprio currículo pessoal.
75

3.2 CONTEXTO INTELECTUAL DE FORMAÇÃO

Modernismo, cultura popular, sociologia, socialismo,


regeneração do Brasil, tensão entre direita-esquerda –
tudo isso surgiu ligado ao nacionalismo e ao
profundo interesse pelas coisas brasileiras.166

Nesta seção, procurarei reconstituir alguns aspectos do contexto intelectual


objetivamente disponível e interiorizado por Saia, almejando com isso apontar as motivações
que forneceram sentido às ações desse arquiteto e os elementos culturais que utilizou para
tanto. Considero válido afirmar que determinado elemento foi ou não interiorizado pelo
arquiteto a partir das objetivações que nos são acessíveis, isto é, por meio de referências,
citações, relatos ou pelo cruzamento de outros tipos de fontes que permitam afirmar que o
arquiteto teve ou não contato com determinada obra ou autor. Deste modo, reconhece-se a
impossibilidade de uma penetração empática na consciência de qualquer ator analisado e
evita-se conjecturas que, por mais que apontem os rumos possíveis de uma pesquisa empírica,
não nos ofereçam os resultados buscados dentro do recorte temporal, espacial e temático
proposto.
Enquadrar Luís Saia em algum rótulo intelectual seria algo delicado, assim como o
seria para a grande maioria dos intelectuais de sua época. 167 O período em que o arquiteto
transita do integralismo para o materialismo histórico, ou seja, entre as décadas de 1930 e
1940, foi de grande confusão ideológica e de crise identitária para a intelligentsia nacional, o
que se somou a um sentimento geral de “missão”, como se os rumos do país estivessem nas
mãos desses “homens de cultura”.
Boa parte da intelectualidade nacional encontrou no Estado, após a “Revolução de
1930”, um espaço privilegiado de atuação. Esses intelectuais viam passando diante de seus
olhos a marcha do tempo, apontando para a necessidade de uma urgente ação que direcionasse
corretamente uma modernização que era percebida como inevitável, tendo em vista que,
conduzida unicamente pelos anseios do capital, esse processo histórico reproduziria no país os
efeitos catastróficos observados no cenário europeu. Após a Primeira Guerra Mundial, um
clima anti-liberal possibilitou dois movimentos coincidentes: uma confusa polarização

166
PONTES, Heloisa. Entrevista com Antonio Candido. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v.
16, n. 47, Out. 2001, p. 9. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69092001000300001&lng=en&nrm=iso > Acesso em 03.04.2010.
167
As considerações que seguem nesses parágrafos são inspiradas principalmente em LAHUERTA, Milton.
Elitismo, autonomia, populismo: os intelectuais na transição dos anos 40. (Dissertação de Mestrado).
Campinas, SP: Unicamp, 1992.
76

ideológica opondo direita e esquerda, e aquilo que Milton Lahuerta denomina “revolução
passiva”, ou seja, um consenso em torno de uma significativa alteração político-administrativa
comandada pelo Estado, legitimada por uma postura nacionalista, organicista e
modernizadora.
Se num primeiro momento o Estado Novo acaba se impondo, pelo consenso ou pela
coerção, como única via de atuação para os intelectuais brasileiros, a partir de 1942, quando o
governo se posiciona internacionalmente ao declarar guerra ao “Eixo”, essa intelectualidade
se vê num momento de crise em face do que Lahuerta considera uma conjuntura de
“transição”. Desse modo, o período que compreende os anos de 1942 e 1945 correspondeu a
uma crise identitária por parte dos intelectuais, pois o governo, que até então havia abrigado
os ideais de modernização dessa nova intelectualidade urbana, passava agora por um
momento de abertura liberalizante. Por um lado, os que eram “oposicionistas” tiveram que dar
o braço a torcer ao governo, que tomou uma postura satisfatória à maioria ao se opor ao
“Eixo”; por outro, os colaboradores do governo, satisfeitos com o centralismo da máquina
administrativa estatal, tiveram que enfrentar algumas incertezas frente à nova posição adotada
por Vargas e, no nível internacional, ao fracasso dos regimes totalitários e ao sucesso da
União Soviética. Foi neste período, ao que tudo indica, que Luís Saia foi atraído pelo
materialismo histórico como teoria privilegiada para a compreensão dos processos sociais e
sua ação diante deles. Nesse momento, além disso, a esquerda nacional se encontrava cindida
em diversas facções, o que é interessante para a compreensão do caldo cultural que orientou
as ações desse autor.
Tentarei, dessa forma, mostrar como Saia tomou contato com essas diversas correntes
de pensamento, levando em conta um contexto intelectual mais geral. Partirei do ano de 1932,
no qual o arquiteto se posiciona, primeiramente, a favor da Ação Integralista Brasileira. Ao
final, espero demonstrar que esta busca por referenciais ideológicos ou teóricos correspondeu
mais a uma necessidade de orientação de ações que visaram compreender a realidade regional
paulista, para a qual se mostrou fundamental a compreensão de processos mais amplos, nos
níveis nacional e internacional, a fim de conduzir corretamente um processo de modernização
que, dessa forma, poderia ser benéfico tanto para São Paulo quanto para o Brasil, de um modo
geral.
77

3.2.1 A Escola Politécnica de São Paulo

Antes de tratar das opções ideológicas de Luís Saia, creio ser necessário aprofundar
um pouco mais a análise acerca dos anos em que esse arquiteto passou na Escola Politécnica
de São Paulo, pois nessa instituição de ensino ele teve contato com conhecimentos teóricos e
práticos que lhe seriam de grande valia em sua vida profissional.
No mesmo ano em que ingressava na Ação Integralista Brasileira, Saia é admitido no
curso de engenheiro-arquiteto da Politécnica. Com relação ao ensino oferecido nesta
instituição, dispõe-se atualmente de um quadro bastante completo graças ao trabalho realizado
no livro Os arquitetos da Poli: ensino e profissão em São Paulo, de Sylvia Ficher.168 No
entanto, o curso de engenheiro-arquiteto era ministrado em cinco anos, e Saia demorou
quatorze para se formar. Fica assim difícil estabelecer com precisão quais professores teriam
fornecido os elementos posteriormente utilizados pelo arquiteto em seu trabalho no IPHAN,
mesmo sendo possível montar um quadro relativamente fechado das possibilidades.
Obviamente a formação na Politécnica muniu Luís Saia de um substancial
conhecimento técnico, o qual foi empregado com autoridade em suas minuciosas análises
relativas aos “restos” arquitetônicos tombados pelo IPHAN em São Paulo. O arquiteto
iniciou-se nos conhecimentos sobre geologia por intermédio da cadeira “Mineralogia,
Geologia e Petrografia”, ministrada por Moraes Rego no 3º ano do curso, o mesmo valendo
para o campo da economia na cátedra “Economia Política. Estatística Aplicada. Organizações
Administrativas” (os professores podendo ser Castro Barbosa, João Carlos Fairbanks ou
mesmo Carlos Alberto Vanzolini). Cabe ainda destacar o conhecimento adquirido por Saia no
que diz respeito aos estilos arquitetônicos em voga a partir de fins do século XIX e repassados
pelos professores da “Poli” (sendo o principal professor das cadeiras de História da
Arquitetura o arquiteto Alexandre Albuquerque). No entanto, as críticas dirigidas ao ecletismo
foram por certo possibilitadas por outras fontes.
Todavia, creio que o principal nome a ser destacado seja o de Anhaia Mello. 169 Saia
também teve aulas com Prestes Maia,170 com quem possuía, notoriamente, mais desavenças
que concordâncias (situação que se prolongaria pela vida profissional de Saia), mas cujas
aulas, de alguma forma, devem ter-lhe sido proveitosas, pois que se tornou (caso ainda não o
168
FICHER. Op. cit.
169
Sobre a atuação desse arquiteto, cf. FICHER, Sylvia. Op. cit.
170
Para mais detalhes sobre esse arquiteto, cf. Ibid., p. 154-166, e MOTA, Carlos Guilherme. Da cidade ibero-
americana: temas, problemas e historiografia. Disponível em <http://www.aedificandi.com.br/aedificandi/N
%C3%BAmero%201/1_especial_da_cidade_iberoamericana.pdf> Acesso em 27.03.2010.
78

fosse) um reconhecido desenhista (Prestes Maia ministrava as principais “aulas”171 de


desenho). Embora Prestes Maia tenha se destacado no urbanismo nacional, foi Anhaia Mello
quem trouxe com mais vigor este campo do conhecimento para o âmbito acadêmico.172
Como notou Juliana Mota, o contato com Anhaia Mello marcou profundamente a
atividade de Luís Saia na área do planejamento urbano. No entanto, creio que possamos ir
além e atribuir a Anhaia Mello um papel importante na percepção que seus alunos passaram a
ter não só da cidade, mas, por extensão, de sua relação com a sociedade. Interessante a este
respeito é o seguinte depoimento do arquiteto Vilanova Artigas:

Anhaia Mello só tratava de questões de urbanismo. A preocupação teórica não era


com a estética do edifício, porém com a problemática da cidade, ardente debate em
torno da problemática da cidade (...) [Os engenheiros da “Poli”] nunca o
caracterizaram como revoltoso, coisa que ele nunca foi, mas seria interessante
buscar na estrutura de seu pensamento as raízes do que nós podemos chamar de
urbanismo independente, de caráter local e descolonizador.173

Além disso, Anhaia Mello ainda pode ser caracterizado como o introdutor das discussões
sobre as vanguardas arquitetônicas modernas na Politécnica.174
Depreende-se então que, já na sua juventude acadêmica, Saia pôde ter contato com
todo um arcabouço teórico que teve um importante papel na análise da realidade e do qual
lançou mão adiante. Além do mais, essa formação “engenherática”, como diria o próprio
arquiteto, diferente daquela proposta nas escolas de belas-artes,175 como aquela na qual se
formou Lucio Costa, provavelmente possibilitou ao arquiteto paulista uma formação mais
“científica”, “racional”, e menos “formalista”, “idealista”, distinção que, em alguns aspectos,
pode ser estendida para a regional paulista em relação à direção central do SPHAN no Rio de
Janeiro.

3.2.2 O integralismo

É difícil precisar o que levou Luís Saia a se tornar um arquiteto preocupado com os
rumos da nação, muito embora esse sentimento permeasse, como já foi mencionado, boa parte
171
Havia na Politécnica uma diferenciação entre “cadeiras” e “aulas”, sendo que estas últimas possuíam um
caráter mais prático. Cf. FICHER, Op. cit.
172
MOTA, Juliana. Op. cit., p. 87.
173
Apud FICHER. Op. cit., p. 150.
174
Ibid., p. 151.
175
Cf. Ibid.
79

da intelectualidade da época. Sua primeira opção foi a adesão à Ação Integralista Brasileira
(AIB), em 1932. O arquiteto já dava mostras de uma atitude “rebelde”, manifesta no desejo de
estudar a nação a fundo a fim de melhorá-la. Muito embora tal atitude pudesse também
sugerir uma simpatia por uma ideologia autoritária de cunho fascista, é possível relativizar
essa impressão a partir do relato do jornalista Mário Mazzei:

minha geração foi muito integralista. Sentíamos muito as injustiças sociais, mas não
fomos comunistas, porque o Partido Comunista não era ainda muito importante.
Pertenci a uma facção integralista antifascista que incluía Ernani Silva Bruno, Luís
Saia, Roland Corbusier, Constantino Ianni.176

Embora esse relato não seja suficiente para esclarecer o que de fato seria um “integralista
antifascista”, nos permite ao menos perceber que o integralismo afigurou-se também, à época,
como um dos poucos espaços de ação política existentes à época para a juventude “rebelde”
de então.
Luís Saia participou, ao lado de Ernani Silva Bruno (ambos se tornariam membros,
mais adiante, da Sociedade de Etnologia e Folclore) da “Assembleia de Fundação da
Sociedade de Estudos Políticos”, realizada no dia 12 de março de 1932. Saia, então com 21
anos, ouviu um discurso proferido por Plínio Salgado, no qual exortava os que estavam ali
presentes a “estudar os problemas nacionais” e traçar, “em consequência desses estudos, os
rumos definitivos de uma política salvadora”.177 O “Manisfesto de outubro” pregava, dentre
outras coisas, a luta contra a influência estrangeira, considerando brasileiras todas as origens
étnicas encontráveis no território nacional, desde que demonstrassem interesse no
“engrandecimento da nação”. Nota-se assim um tom bastante ufanista que, no entanto,
incentivava a análise dos problemas nacionais, o que provavelmente atraiu Luís Saia.
Quando ingressou no SPHAN, em 1937, Saia ainda se mantinha fiel a esta postura
ideológica, conforme se pode depreender da correspondência trocada entre Mário de Andrade
e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Dentre os possíveis fatores que conduziram o arquiteto à
AIB, seria possível entrever uma precoce preocupação com a análise dos problemas da nação
e o caráter nacionalista do arquiteto. Imbuído dessas e de outras preocupações, menos
acessíveis por intermédio das fontes encontradas, Saia procurou, em 1936, ao Curso de
Etnologia e Folclore oferecido pelo Departamento de Cultura do Município de São Paulo.

176
Itálicos meus. Disponível em <http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?
Edicao_Id=175&breadcrumb=1&Artigo_ID=2631&IDCategoria=2676&reftype=1> Acesso em 25.03.2010.
177
“Manifesto de 7 de outubro de 1932” e “Apêndice Histórico sobre o manifesto de outubro” disponíveis em
<http://www.integralismo.org.br/novo/?cont=75> Acesso em 24.01.2010.
80

3.2.3 O marxismo: comunismo sem “carteirinha de partido”

O pensamento marxista adquiriu um importante papel na formulação da noção de


“evolução regional paulista” proposta por Luís Saia. Deste modo, convém investigar em que
condições o arquiteto tomou contato com o arcabouço teórico marxista, a fim de que seja
possível uma correta avaliação do “sentido” que Saia emprestou à arquitetura paulista.
Inicialmente, a migração da direita para esquerda não foi algo incomum naquela
primeira metade do século XX brasileiro. A adesão inicial a ideologias nacionalistas e
autoritárias não seria empecilho inexorável ao contato com os textos marxistas. O próprio
Plínio Salgado chegou a confessar que, em meados da década de 1920, suas leituras e as de
seus companheiros eram “todas marxistas”.178 De fato, o conhecimento da literatura marxista
pelos integralistas não deveria mesmo causar surpresa, haja vista que os mesmos
necessitariam se armar a fim de combater o comunismo, ainda que o distorcendo
propositalmente. Por outro lado, Antônio Cândido também já teve oportunidade de lembrar o
quanto era comum ao espírito rebelde da época a migração da direita para esquerda.179
Conforme demonstra Leandro Konder, o marxismo alcançou, no Brasil, no início da
década de 1930, um grande distanciamento em relação às discussões originais propostas por
Karl Marx, sobretudo no que diz respeito à dialética.180 De acordo com Konder, a noção de
dialética, tal qual a utilizada por Marx, teria sofrido duas “derrotas” até que chegasse à década
de 1930 brasileira, sendo que uma delas teria se dado no nível internacional, e a outra, no
nível nacional.
A primeira derrota da dialética, internacional, diz respeito à tentativa empreendida por
Engels no intuito de defender o caráter materialista do conceito marxista. Esse
empreendimento o teria levado a uma “naturalização” do conceito, abrindo as portas para uma
interpretação “objetivista” do mesmo (reduzindo o papel da criatividade do sujeito para a ação
178
KONDER, Leando. A Derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil até o começo dos anos
trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 158.
179
CÂNDIDO, Antônio. O significado de Raízes do Brasil. In HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do
Brasil. 26ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
180
KONDER. Op. cit. A re-elaboração deste conceito, realizada a partir das leituras que Marx fez da obra de
Hegel, é fundamental, dentro do arcabouço teórico marxiano, para a compreensão da ação revolucionária.
Assim, a perspectiva marxista se diferenciaria da hegeliana por propor “não só uma reavaliação do papel do
trabalho material na auto-criação e na autotransformação do ser humano” como também por exigir “uma
reavaliação do papel dos trabalhadores como força material capaz de, nas condições atuais, dar
prosseguimento à autotransformação histórica da humanidade” (Ibid. p. 5-6). Trata-se, em suma, de uma
concepção filosófica na qual cabe ao sujeito (a classe trabalhadora, ou proletária, no caso do “modo de
produção capitalista”) a compreensão dos elementos contraditórios da sociedade no presente (o que se dá
mediante uma análise histórica do desenvolvimento das relações de produção) visando uma intervenção
revolucionária, cujo objetivo principal seria interromper a exploração do homem pelo homem.
81

revolucionária) e para o caráter “reformista” adquirido pela Segunda Internacional181 (na qual
predominaram interpretações pautadas, principalmente, pelo evolucionismo biológico, tão em
voga à época, enfatizando a dimensão da continuidade da história).
Em seguida, ainda no nível internacional, o conceito de dialética, conforme empregado
por Marx, sofreria um golpe ainda mais profundo: após a tomada do poder na Rússia, graças à
bem sucedida união entre teoria e prática empreendida por Lênin, Stálin, seu sucessor, impôs
uma versão dogmática do marxismo, o “marxismo-leninismo”, submetendo assim a
criatividade revolucionária dos sujeitos à vontade da burocracia soviética. A teoria marxista
seria menosprezada ante a constante demonstração do sucesso prático do partido comunista
russo, propondo, em seu lugar, um rígido “etapismo”, no qual a ação criativa do sujeito ante
um mundo em constante mutação seria, propositalmente, esquecida.
Ainda segundo Konder, seria este marxismo, o “marxismo-leninismo”, que teria
chegado ao Brasil até inícios da década de 1930. Outros fatores teriam contribuído para a
“segunda derrota” que a dialética marxista sofreria, agora em território nacional.
Primeiramente, a dificuldade de difusão dos textos de Marx no Brasil era enorme, existindo,
nesse período, ainda poucas traduções de suas obras para o português (a própria compreensão
correta acerca da dialética e da concepção de história marxista, na Europa, via-se prejudicada
pelo fato de que muitos textos fundamentais escritos por Marx não haviam sido
publicados182). Em seguida, além das imposições do Partido Comunista russo, que levavam a
uma ênfase da prática (segundo a cartilha “marxista-leninista”) em detrimento da teoria,
haveria, no Brasil, segundo Konder, uma “subestimação da teoria”, favorecida pela grande
influência exercida por ideais positivistas e evolucionistas no país, somada ainda ao
predomínio da retórica nos debates políticos e intelectuais em detrimento da especulação
filosófica e teórica.
As leituras marxistas de Luís Saia se deram, provavelmente, alguns anos depois
daqueles estudados por Konder, mais especificamente no início da década de 1940. Em 1943
o arquiteto já demonstra sua simpatia pelo materialismo histórico num relato publicado no
jornal O Estado de S. Paulo.183 Neste depoimento, relativo à sua “visão de mundo”, Saia
declara que para ter tal visão e agir socialmente não seria necessário “carteirinha de partido”.
181
Ricardo Musse chega às mesmas conclusões partindo da análise do livro História e consciência de classe, de
Georg Lukács (MUSSE, Ricardo. A dialética como discurso do método. Tempo Social: Revista de Sociologia
da USP, v. 17, n. 1, junho de 2005, p. 367-389).
182
O principal deles seria, segundo Josep Fontana, A ideologia alemã, publicado apenas em 1932. FONTANA,
Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru, SP: EDUSC, 1998.
183
Dois anos depois esse e uma série de outros depoimentos, que saíram no jornal O Estado de S. Paulo sob o
título Plataforma da nova geração, foram publicados, com o mesmo nome, pelo historiador Mário Neme.
(NEME, Mário [org.]. Plataforma da Nova Geração. Porto Alegre: Globo, 1945).
82

Luís Saia se interessou portanto pelo materialismo histórico na medida em que este lhe
possibilitou a compreensão da realidade social paulista e sua ação em relação à ela, realidade
que para esse arquiteto seria processual e dialética. Dessa forma, nunca se mostrou preso a
dogmatismos e sempre esteve aberto às contribuições teóricas e historiográficas que lhe
permitissem uma compreensão ao mesmo tempo ampla e específica da realidade paulista. É
difícil mapear as leituras marxistas realizadas por Luís Saia e, mais ainda, o que de fato foi
utilizado em sua obra, visto que em momento algum isso é explicitado pelo autor. Por esse
motivo, a investigação desse aspecto crucial para a compreensão da noção de “evolução
regional paulista” fica limitada, neste ponto específico, por algumas inferências que não
podem sair do campo hipotético.
A partir de 1923 já se encontrava disponível uma tradução do Manifesto Comunista,
realizada por Octávio Brandão e publicada no jornal operário carioca “Voz Cosmopolita”. No
entanto, conforme aponta Edgar Carone, “apesar da existência de alguns ensaios escritos na
década de 1930, é na seguinte que se dá uma maior expansão da literatura marxista”. 184 Em
São Paulo, as primeiras obras marxistas foram traduzidas e publicadas pelo grupo trotskista
dissidente do PCB composto por Mário Pedrosa, Aristides Lobo e Lívio Xavier, que fundaram
a Editora Unitas (os primeiros livros editados foram ABC do Comunismo, de Nicolau
Bukharin [1933] e O Estado e a revolução, de Lênin [1934]). Em 1935 Caio Prado Júnior
traduziu e publicou, pelas Edições Caramuru, Tratado do materialismo histórico, também de
Bukharin.185 Não é possível afirmar com certeza se Saia tomou contato com o materialismo
histórico através destes livros, embora intelectuais bastante próximos a Saia, a exemplo de
Antônio Cândido e Mário de Andrade, tenham se aproximado do marxismo via Bukharin.186
É possível afirmar com certeza que Saia leu o livro Dialectique de la nature, de
Friedrich Engels (a Biblioteca Luís Saia conta com a edição de 1955 deste livro, profusamente
fichada pelo arquiteto) e O Capital, de Marx (Saia trouxe da Argentina uma edição, de 1960,

184
CARONE, Edgar. “Notícias sobre ‘brasilianas”. Perspectivas: Revista de Ciências Sociais. Universidade
Estadual Paulista, Ano I, Vol. I, n. 1, 1976, p. 212.
185
“Este livro teve divulgação mundial e gerou significativa polêmica com alguns dos principais quadros da
Intelligentsia do marxismo europeu nas décadas de 1920 e 1930, formuladas como duras críticas à natureza
positivista do marxismo bukharinista, pela sua tentativa de ‘melhorar’ o marxismo, pelo fato do pensador
bolchevique buscar uma aproximação metodológica com as ciências sociais acadêmicas, principalmente
aquelas centradas pelas proposições da reflexão sociológica durkheimiana (PINTO, João Alberto da Costa.
Caio Prado Júnior: a derrota do marxismo no Brasil. Revista Espaço Acadêmico. N. 70, março/2007.
Disponível em <http://www.espacoacademico.com.br/070/70esp_pinto.htm#_ftnref2> Acesso em
08.06.2010.).
186
A título de exemplo, seria possível citar alguns nomes de importantes intelectuais paulistas que se iniciaram
no marxismo (ainda que não necessariamente tenham se tornado marxistas) pelas leituras de Bukharin: Caio
Prado Júnior (PINTO, Op. cit.) Antônio Cândido (PONTES. Op. cit.), Mário de Andrade (KONDER,
Leandro. Intelectuais brasileiros & marxismo. Belo Horizonte: oficina dos livros, 1991).
83

em 5 volumes, da editora Fondo de Cultura Económica).187 O arquiteto também leu (e fichou)


o livro Introdução à lógica dialética, de Eli de Gortari, numa edição de 1960. No entanto,
Saia já poderia ter acesso, nesse período, às publicações de Georg Lukács e Antônio Gramsci,
que desde a década de 1920 se preocupavam em superar o reformismo hegemônico da
Segunda Internacional mediante uma retomada da dialética marxista.188 Além disso, segundo
C. F. Cardoso, “a partir da década de 1950 e, mais ainda, do decênio seguinte, um grande
debate teórico e metodológico entre marxistas de muitos países iniciou nova fase, muito mais
crítica e aberta ao trabalho criador do que a anterior”.189

3.2.4 A arquitetura moderna

Versando sobre a formação profissional em arquitetura, Saia afirma o seguinte:

ninguém nos convence que o Aleijadinho era apenas um mulato artisticamente


dotado e com profundo sentimento plástico; inteligente, dotado e muito culto, isso
sim. Ninguém pode afirmar que Corbusier, Frank Lloyd Wright ou Lucio Costa
sejam apenas fruto de inteligências privilegiadas, senso artístico notável e bossa
profissional; além de inteligentes e artisticamente capazes, esses artistas dignificam
sua obra e sua atuação profissional com um preparo minucioso e continuado, com o
apuro constante de seus conhecimentos, com a audiência permanente das realidades
sociais, com a atualização do seu aparelhamento mental, sempre em consonância
com a estrutura íntima da comunidade em que vivem.190

Tem-se neste trecho uma importante chave para a compreensão do relacionamento de


Luís Saia com o modernismo arquitetônico. Este movimento, representado no Brasil
sobretudo pela figura de Lucio Costa, lançou mão, em suas mais bem acabadas expressões, de
uma análise mais ampla da realidade construtiva, investigando aspectos históricos, sociais e
culturais que pudessem responder com mais eficácia aos problemas arquitetônicos
contemporâneos. É perceptível, portanto, uma imbricação entre prática e teoria tão ao gosto
da análise “dialética” empregada por Saia. Esse arquiteto aderiu aos preceitos da arquitetura
moderna brasileira, principalmente pelo “racionalismo” que esta pregava, ou seja, a
187
De acordo com informações do historiador Jaelson Britran Trindade, é possível inclusive encontrar a nota
fiscal dessa importante aquisição.
188
Sobre a historiografia marxista, vide CARDOSO, Ciro Flamarion e BRIGNOLI, Hector Perez. Os métodos
da história. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1981. Mais especificamente acerca da crítica empreendida à
Dialética da natureza por Lukács, especialmente em seu História e consciência de classe, cf. MUSSE. Op.
cit.
189
CARDOSO; BRIGNOLI. Op. cit.
190
SAIA. Morada paulista. Op. cit., 2005, p. 261.
84

investigação das condições reais de vida que conduziriam a uma “saúde plástica perfeita”, ou,
em outras palavras, a um correto equilíbrio entre forma e função. Saia critica, isso sim, um
outro “modernismo”, praticado em São Paulo, sobretudo a partir da década de 1950.191
Assim, por caminhos em certa medida diversos, Luís Saia e Lucio Costa (e a
arquitetura moderna por ele “liderada”) acabaram por se encontrar. Todavia, ao menos um
ponto de partida foi comum: a crença numa nação brasileira dotada de historicidade. E essa
coincidência conduziu a percepções temporais da nação muito semelhantes, ou seja, algo que
pode ser unificado numa linha evolutiva dotada de momentos de originalidade e de
“submissão” cultural. Assim, o século XIX era visto como um momento em que o Brasil
estava na dependência de outras potências econômicas europeias, sobretudo a Inglaterra do
ponto vista econômico e a França do ponto de vista cultural, que teria interrompido um longo
período de experimentação e de criação de formas originais de organização cultural e social.
Seria um dever dos arquitetos colaborar com o reatar desse fio evolutivo rompido, atuando
nas diversas frentes relacionadas com a modificação dos espaços de vida e convivência.
Dentre as correntes modernas internacionais que mais influenciaram Luís Saia, é
forçoso destacar o “funcionalismo orgânico” de Frank Lloyd Wright, “o racionalismo
empírico” de Alvar Aalto e a estética funcionalista moderna da Bauhaus, sobretudo no que diz
respeito à obra de Walter Gropius, a respeito da qual chegou a escrever um artigo, intitulado
“Gropius – o arquiteto no fundo do posso”,192 além do próprio Le Corbusier. A interação entre
construção e terreno conforme pregada por Wright pode facilmente ser notada, por exemplo,
na restauração do Sítio Santo Antônio, no município de São Roque.

191
“A pesquisa desesperada dessa interpretação unicamente através da forma – o que leva a arquitetura
modernista de São Paulo a uma exploração incansável e inútil de combinações dos elementos da linguagem
plástica que incidentalmente serviram a alguns projetos nacionais mais reussidos [neologismo a partir do
verbo francês réussir, que significa “ser bem sucedido”] (rampas, pilotis, brise-soleil etc.) – sobre constituir
uma preocupação amazonicamente alheia à substância do verdadeiro problema, representa um desmentido à
respeitável lição da arquitetura tradicional, cuja ‘inteligência’ e temática expressional souberam, mesmo nos
momentos de atividade criadora mais discreta, manter-se num alto nível de respeito próprio, resolvendo, sem
pretensões, os problemas que lhes eram propostos pela comunidade (...) Se cada época e cada comunidade
têm uma temática expressiva e uma intenção peculiar, é evidente teimosia pretender repetir experiências
plásticas destituindo-as de senso e de funcionalidade, especialmente quando essas experiências não
representam – como não representam no caso particular de São Paulo atual – a única e mais importante
contribuição para a solução dos legítimos problemas regionais”. SAIA, Luís Saia. Morada paulista, op. cit.,
p. 262.
192
Essa informação pode ser encontrada em seu currículo profissional elaborado em 1974, que indica que esse
artigo foi publicado em 1962 pela Publicação DAFAM, nº 2.
85

3.2.5. Historiografia brasileira

Na tentativa de compreender o processo histórico nacional Saia pôde contar com uma
ampla tradição historiográfica. Com relação à fase anterior da produção historiográfica
nacional (e nacionalista), ligada à produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, é
possível encontrar na Biblioteca Luís Saia uma grande quantidade de obras de Varnhagen,
Martius, Capistrano de Abreu e, principalmente, Afonso de E. Taunay e Alfredo Ellis Jr., que
dedicaram vários estudos à história bandeirante. Tais obras comparecem na pesquisa de Luís
Saia, em geral, como fornecedoras de dados empíricos a confirmar seus argumentos.
É na década de 1930, no entanto, que a historiografia brasileira dará um salto
qualitativo no que diz respeito às grandes interpretações da história nacional. Casa-Grande &
Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil
(1936), de Sérgio Buarque de Holanda, inovaram neste debate trazendo à baila a análise da
cultura material e tratando de forma diferenciada problemas como a contribuição da
miscigenação para a formação nacional, tema este que já vinha sendo trabalhado, de forma
menos consistente, por autores como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna e
outros.
Essa literatura não escapou a Luís Saia, adquirindo, pelo contrário, importante papel
em sua obra. Em nota de rodapé, o arquiteto afirma que

na década de 30, os interessados no estudo dos problemas brasileiros eram presas,


quando não de um pretenso universalismo palavroso, do saudosismo
aristocratizante dos Oliveira Vianna e do ‘nacionalismo’ de Ricardo Severo. Dois
livros, Casa Grande e Senzala e Raízes do Brasil, respectivamente de Gilberto
Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, contribuíram demais como tábua de
salvação.193

Como se não bastasse haver assim “se comprometido”, tendo se mostrado, portanto,
também “salvo” por estes dois autores, não é difícil encontrar em sua obra e trajetória
elementos que comprovem o contato de Saia com o pensamento de Freyre e Sérgio Buarque
de Holanda.194 Com relação ao primeiro, ao menos o artigo sobre “O alpendre nas capelas
brasileiras” indica uma leitura atenta da obra do intelectual pernambucano. Além disso, a
193
SAIA, Luís. Morada paulista, op. cit., p. 63 (nota 3).
194
Muito embora fosse perfeitamente possível ligar a obra de Luís Saia à de Caio Prado Jr. (outro grande
intérprete da história nacional) sobretudo pela perspectiva dialética de matriz engelsiana adotada por este
último, não pude encontrar maiores dados que indicassem mais uma troca de influências do que uma
coincidência de paradigmas, não obstante tenha ficado clara a proximidade do arquiteto em relação à
Universidade de São Paulo.
86

refutação de um ponto específico da obra do intelectual pernambucano não significa uma


discordância completa em relação ao seu pensamento. No que toca a Sérgio Buarque de
Holanda, a proximidade é ainda maior. Esse historiador paulista teve papel importante nas
políticas culturais paulistas desse período, envolvendo-se diretamente o Departamento de
Cultura ao lado da USP, e, por conseguinte, com Mário de Andrade. Seria, portanto, de se
estranhar que as hipóteses do historiador paulista não tivessem sido notadas por Saia.
Com relação aos aspectos que Saia mais aproveitou dessa historiografia “moderna”, é
possível destacar ao menos três deles: 1) uma certa noção de processo histórico nacional, 2) a
cultura material como fonte privilegiada e 3) a miscigenação como fator explicativo
importante para a formação nacional (embora em Raízes do Brasil ela não possua papel tão
fundamental quanto em Casa-grande & senzala).
Essa noção de processo histórico nacional não esteve presente somente na obra desses
historiadores, mas, de uma forma geral, permeou todo o pensamento modernista nesta sua
fase mais nacionalista, sobretudo em função de uma busca por originalidade e destaque entre
as demais nações. É possível definir esta noção a partir da identificação de uma “essência” ou
“ethos” existente por todo um período da história nacional, no qual teria predominado uma
organização rural da sociedade e sobre o qual repousaria a originalidade de nossa civilização.
Este período de formação nacional original seria interrompido bruscamente por uma série de
valores “importados” em função de uma explosão urbana ocorrida a partir do século XIX. O
papel de todos estes intelectuais modernistas seria, grosso modo, resgatar essa originalidade e
conciliá-la com a modernização do país, única forma de retirá-lo de uma posição subordinada
ante as demais nações.
Essa mesma ideia de processo encontra-se presente nas interpretações de Luís Saia, até
porque a noção de “formação nacional” adquiriu, naquele período, um certo caráter de
irrefutabilidade ante a qualidade dos trabalhos de intérpretes como Freyre e Sérgio Buarque
de Holanda. No entanto, a perspectiva dialética conferiu à análise do arquiteto um importante
grau de originalidade. O processo evolutivo paulista teria, portanto, suas próprias qualidades e
contradições internas e não poderia ser reduzido ao modelo nordestino, embora guardasse
com aqueles uma série de conexões ditadas por fatores mais abrangentes. São Paulo não
conheceria, por exemplo, uma sociedade rural como a nordestina, tendo em vista que a “tese”
abrigada foi a da negação do binômio rural-urbano. Além disso, a produção em larga escala
não logrou êxito na capitania do sul, assentando o poder patriarcal muito mais no poderio
bélico, baseado no apresamento aborígene, que na monocultura voltada para a exportação.
Talvez aqui Sérgio Buarque de Holanda tenha fornecido dados mais interessantes à pesquisa
87

de Luís Saia, uma vez que trabalhou mais diretamente com estas especificidades paulistas,
tendo produzido, em seguida, importantes trabalhos nesta linha, como Monções e Caminhos e
fronteiras.
Essa tradição historiográfica também ampliou o rol de fontes trabalhadas. Na obra de
Gilberto Freyre a casa se torna um documento privilegiado para a compreensão da formação
nacional, fato este que ajudou a legitimar no SPHAN, ao menos em sua “primeira fase”, uma
preocupação mais imediata com o patrimônio edificado. Por outro lado, as relações sociais e a
formação cultural que teriam se dado neste meio demandaram fontes alternativas para sua
compreensão, o que colocou esta historiografia brasileira em pé de igualdade, em termos de
avanços metodológicos, com o que vinha sendo produzido de melhor nos países de maior
tradição historiográfica. Freyre lança mão, assim, de uma infinidade de fontes para
compreender, sobretudo em Casa-Grande & Senzala, a vida rural nacional e as bases que, a
partir dela, teriam sido lançadas para nossa formação cultural. Essa espécie de “gênero de
vida” (organizado patriarcalmente, com base na agro-exportação escravista e gerador de
soluções culturais mestiças) teria conformado nossas características essenciais, que seriam
contrapostas, em seguida (sobretudo em Sobrados e Mucambos), a uma vida urbana, na qual a
adoção de normas de conduta exógenas haveriam deteriorado uma forma mais “ecologicada”,
como diria Luís Saia, de responder às imposições do meio natural.
Na obra de Sérgio Buarque de Holanda também fica claro que nossas “raízes” seriam
rurais, bem como que a antinomia “rural-urbano”, desencadeada com o traslado da corte para
a colônia, teria gerado importantes consequências sobre nossa vida cultural. No entanto, sua
obra não gravita, como em Freyre, em torno de somente um “objeto material” (a casa). Fica
antes dispersa em vários aspectos de nossa “cultura material” (dentre os quais não deixam de
figurar as habitações, numa posição menos privilegiada, no entanto) ligando-se mais a um
objeto que, a partir da década de 1970 poderia ser facilmente identificado, mutatis mutandis,
às “mentalidades”.
Luís Saia também tomou a arquitetura como objeto privilegiado para a compreensão
da evolução regional paulista e nacional. Para ele, a casa bandeirista, por exemplo, é a
expressão de um modo de vida mestiço e organizado socialmente com base em fórmulas de
origens feudais. No entanto, a análise do arquiteto paulista transcende o espaço da casa,
estendendo-se a uma ocupação mais ampla do território e relacionando-se a um processo de
divisão internacional do trabalho. Essa análise é possibilitada pela perspectiva dialética da
qual parte Saia, que lhe permite analisar diferentes processos (o da evolução arquitetônica, o
da evolução regional paulista, o da formação nacional e o da divisão internacional do
88

trabalho), tanto em suas características e contradições internas como nas conexões que
guardam entre si. Desta forma, para Luís Saia “a expressão casa-grande, (...) legítima no
Nordeste, nunca fez praça em São Paulo”.195 Isso significa que, para Luís Saia, o binômio
“casa-grande e senzala” não fornecerá a chave explicativa ideal para a compreensão da nação
como um todo: ele apenas comporá, como um processo específico e com um conjunto de
outros processos (do qual também faz parte o da evolução da casa paulista) um processo mais
amplo, ou seja, o da formação nacional.196 Isso se torna perfeitamente possível a partir da
perspectiva dialética da qual Saia se apropriou a fim de conferir sentido à evolução regional
paulista.
Contudo, o arquiteto se aproxima em grande medida destes dois autores pelo tema
elegido. Em última instância, a Nação era a preocupação geral destes intelectuais. Quando a
casa passa a ser uma espécie de artefato para a investigação da formação nacional, o olhar a
ela dirigido foca aspectos mais profundos que a materialidade da construção. Procura-se
desvendar o que os aspectos construtivos podem dizer acerca dos processos de formação e
organização originais da nação.
Por fim, tem-se a questão da miscigenação, que se tornou um ponto importante no
argumento de Luís Saia. Pela forma como é empregado no texto do arquiteto, é possível
afirmar que sua definição de arquitetura paulista só pôde ser levada a cabo em função da
tentativa anterior, intentada pela historiografia modernista, em definir um conceito não racista
(mais cultural que biológico) de miscigenação. A esse respeito é providencial a seguinte
passagem, retirada de Morada paulista:

é claro que o antipelagismo e o imediatismo biológico da mestiçagem levaram os


colonos a um nível de interpretação das condições naturais, cuja extraordinária
eficácia operativa somente poderia ser explicada pela intimidade ecológica que
ocorreu em São Paulo e que resultou em tamanha importância nacional na atividade
dos bandeirantes.197

Ora, para Sérgio Buarque de Holanda o mameluco também foi “inventado” a fim de
dar conta de uma forma de civilização que dependeu de dificultosas jornadas sertão à dentro,
para as quais a população autóctone já estava plenamente adaptada em função do longo
convívio com o meio tropical. Assim o português teria procriado e criado o mameluco, dotado
tanto de características genéticas (o pé achatado, por exemplo, que facilitaria as extensas

195
SAIA, Morada paulista, op. cit., p. 63 (nota 3).
196
Não obstante Freyre já rebata críticas como esta no prefácio que escreve à 2ª edição de Casa-grande &
Senzala.
197
SAIA, Luís. Morada paulista, op. cit., p. 228.
89

caminhadas no “mato”) quanto culturais, aprendidas com suas mães índias. Esses novos
traços “raciais” (entendidos mais em termos de adaptação cultural ao meio) possibilitariam
enfim as “bandeiras”, que, por sua vez, foram fundamentais para o domínio colonial sobre
faixas mais extensas que o litoral ocupado.
No entanto, o próprio Sérgio Buarque de Holanda se inspirou em Gilberto Freyre
(embora as referências ao escritor pernambucano deixem de comparecer em Raízes do Brasil
a partir de sua 2ª edição) ao elencar como fator explicativo para a formação nacional a
miscigenação cultural. Não há uma definição clara para o conceito de “miscigenação” em
Raízes do Brasil. Cristalina, todavia, é a aplicação deste conceito em suas interpretações, que
permitem antever uma matriz muito semelhante à empregada por Freyre.198
É possível assim supor que Freyre, Holanda e Saia partissem todos, portanto, de uma
mesma definição de miscigenação. Essa definição se mostrou a mais eficaz para o discurso
nacionalista dos últimos 80 anos, parecendo se deslocar cada vez mais do âmbito intelectual
(com o qual guarda uma relação ambivalente desde as investidas da “Escola Sociológica
Paulista”) para o senso comum, argumento este que mereceria um trabalho à parte. Saia
também conheceu o trabalho de Roger Bastide, com quem conviveu na Sociedade de
Etnologia e Folclore e cuja obra demonstra não só o encantamento deste antropólogo com a
cultura mestiça brasileira, mas também uma sofisticada definição para o conceito de
miscigenação.199 No entanto, conforme exposto, o arquiteto se apropriou mais claramente de
uma concepção de mestiçagem que mais se assemelha à empregada por Freyre e Holanda,
preocupando-se, sobretudo, em demonstrar como a casa bandeirista foi uma solução mestiça
para o modo de vida peculiar paulista. No entanto, não são apenas os contatos culturais e
étnicos que explicam a conformação arquitetônica da casa bandeirista, mas, igualmente,
fatores diversos como as relações sociais e de produção e o terreno, por exemplo (fatores que,
de maneira alguma, passaram despercebidos por esses outros dois autores).

198
Essa conceitualização está claramente expressa em Casa-Grande & Senzala, escrito três anos antes,
sobretudo no “Prefácio à primeira edição”, no qual, em extensa nota de rodapé, Freyre arrola o longo
percurso a partir do qual aprendeu a “considerar fundamental a diferença entre raça e cultura”, na qual
“assenta todo o plano deste ensaio”. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: introdução à história da
sociedade patriarcal no Brasil. 8ª ed. – Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1954, V. 1, p. 18 (nota 3).
Ricardo Benzaquen de Araújo foi talvez quem primeiro tenha lembrado essa origem neolamarckiana do
conceito freyreano, conforme exposto em ARAÚJO, Ricado Benzaquen de. Guerra e paz: Casa-Grande &
Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
199
Dentre as obras de Bastide encontráveis na Biblioteca Luís Saia, duas delas contam com o seu autógrafo para
Luís Saia: Imagens do Nordeste místico em branco e preto e Arte e sociedade. Sobre os problemas tocados
pela obra de Bastide, dentre eles o da miscigenação, há a interessante introdução de QUEIROZ, Maria Isaura
Pereira de [org.]. Roger Bastide: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
90

3.2.6 O Departamento de Cultura e a Sociedade de Etnologia e Folclore

Além dessa fecunda leitura do que então havia de mais sofisticado em termos de
historiografia nacional (e da proximidade com seus autores), é de extrema importância que
seja considerada a imersão de Luís Saia numa rede intelectual mais ampla. Se considerarmos
que esta rede gravitava principalmente em torno da figura de Mário de Andrade, deveremos
notar o quão privilegiada foi a posição deste arquiteto, que, ao lado de Oneyda Alvarenga, foi
um de seus amigos e interlocutores mais próximos. Na seção que tratou da biografia de Saia,
tive a oportunidade de mencionar como esta rede intelectual se estruturou em torno do
Departamento de Cultura e, mais especificamente, da Sociedade de Etnologia e Folclore.
Seria interessante mostrar agora, de forma sintética, que tipo de trabalho foi produzido por
este grupo.
Passada a ruptura inicial com a estética parnasiana, rompimento representado
emblematicamente pelo Movimento Modernista de 1922, cujo principal instrumento foi uma
apropriação das propostas vanguardistas europeias, essa nova geração de intelectuais passou a
adotar, em seguida, de forma geral, uma postura mais nacionalista (a exemplo das posteriores
movimentos “antropofágico”, “verde-amarelo”, “pau-brasil” etc.). Tal fato se prende
certamente a um desejo de cristalização do movimento modernista, que corria o risco de ser
considerado um novo “modismo” tão logo fosse acusado de tratar-se apenas de mais uma
imitação europeia. Surge assim a necessidade de demonstrar a autenticidade do modernismo
nacional. Para tanto, bastaria mostrar que essa estética sempre esteve presente aqui, diante de
nossos olhos, ou seja, que existiria uma cultura nacional autêntica como que por debaixo de
um “velho e empoeirado tapete europeu” lançado por uma já ultrapassada elite. Esse
movimento se deu não só em termos literários, mas também arquitetônicos, pictóricos,
historiográficos, musicais etc.
Esta postura é sem dúvida melhor representada no Estado de São Paulo pela figura de
Mário de Andrade. Já em 1919, interessado em arte religiosa brasileira, este polígrafo200 viaja
a Minas Gerais, oportunidade em que recolhe o material que servirá para a escrita da
200
Um exemplo da complexidade com a qual se depara o estudioso ao tentar definir o campo de atuação de
Mário de Andrade na área da cultura é o multifacetado número da Revista do IPHAN (instituição que
ultimamente tem se interessado muito pela figura mítica deste intelectual). Especialistas em artes plásticas,
literatura, folclore, música, direito, museologia, história intelectual etc. “disputam”, como representantes de
seus respectivos campos, o caráter precursor do intelectual, sendo todos os trabalhos igualmente relevantes e
bem fundamentados. Assim, talvez até mesmo a qualificação “polígrafo” seja insuficiente, vez que a atuação
política e artística são igualmente relevantes em todos estes âmbitos. (Cf. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Brasília: IPHAN, n. 30, 2002).
91

conferência “A arte religiosa no Brasil”. Cinco anos depois, retorna ao Estado, ao lado de
Blaise de Cendrars, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Já em 1928, viaja ainda para o
Nordeste, recolhendo de forma algo diletante um extenso material sobre cultura popular. Se,
inicialmente, estas pesquisas visavam “documentar material popular para servir de inspiração
aos compositores eruditos”,201 Mário de Andrade logo perceberá a necessidade de se trabalhar
cientificamente todos estes dados dispersos, de modo a fixar uma identidade artística
nacional. Além disso, tratar-se-ia de uma tarefa urgente, pois, segundo acreditavam, com a
rápida expansão urbana e industrial que passava a ser testemunhada por sua geração, todo esse
documentário estaria em vias de se perder. Essa será a tônica do trabalho desenvolvido junto
ao Departamento de Cultura, para o qual foi fundamental a amizade com os políticos e
intelectuais paulistas Fábio Prado e Paulo Duarte (além do contexto político criado pelo
interventor Armando Salles).
Aproveitando-se da política de apoio intelectual estrangeiro adotada nos primeiros
anos de construção da USP, Mário de Andrade convida então Dina Lévi-Strauss (esposa de
Claude Lévi-Strauss) para conduzir o já mencionado Curso de Etnografia. Esse curso
espelharia o desejo de Mário de Andrade em formar pesquisadores de campo com forte
embasamento científico. Eslizabeth Travassos menciona os textos arrolados por Dina Lévi-
Strauss nas “Instruções folclóricas” do Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore:
“Mélanges d’histoire des religions, de Hubert e Mauss, textos metodológicos do folclorista
finlandês Kaarle Krohn e os do francês Saintyves”.202 Marta Amoroso se recorda ainda das
notas das aulas do Curso de Etnografia elaboradas pela etnógrafa,

que dialogavam com os paradigmas da moderna investigação antropológica


desenvolvidos nos centros de investigação da época. Dina utilizava tratados
clássicos de antropologia (Tylor, Fraezer, Rivers) associados à produção norte-
americana de Franz Boas e do grupo de pesquisadores ligados a ele (A. L. Kroeber,
R. Lowie), além de monografias fundamentais de antropologia social (C. Wissler, P.
Radin, A. Metroux, B. Malinowski, C. G. Seligman, Junot, W. H. Rivers), que
ofereciam um panorama amplo da disciplina desenvolvida naquele momento nas
academias europeias e norte-americanas, a partir da pesquisa realizada na América
do Norte, América do Sul, Melanésia, África do Sul e Índia.203

Este caldo de conhecimento não pode ser tomado como acessório para a compreensão
da atuação de Luís Saia no “Patrimônio”. Aluno do Curso de Etnografia, participou
ativamente, como mostrei no início deste capítulo, da Sociedade de Etnografia e Folclore, o
201
BATISTA, Marta Rosseti. Introdução. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília:
IPHAN, n. 30, p. 06-24, 2002, p. 12.
202
TRAVASSOS, Elizabeth. Mário e o Folclore. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília:
IPHAN, n. 30, p. 90-109, 2002, p. 93.
203
AMOROSO. Op. cit., p. 67-68.
92

que se depreende pela apresentação de várias comunicações (que não se restringiram à


arquitetura), amparadas em pesquisas de campo metodicamente guiadas de acordo com as
aulas ministradas por Dina Lévi-Strauss. A Missão de Pesquisas Folclóricas chefiada em
campo por Luís Saia também “levou à risca” essas recomendações metodológicas de pesquisa
etnográfica,204 o que não foi abandonado no SPHAN, tanto no que diz respeito ao método de
realização de inventários dos bens a serem tombados como no caso específico do tombamento
da Aldeia de Carapicuíba, para o qual foi utilizado todo esse conhecimento etnográfico.
Além disso, esse saber antropológico e folclorístico forneceu claramente ferramentas
metodológicas essenciais à narrativa histórica produzida pelo arquiteto. Em primeiro lugar,
fica claro um interesse pela produção cultural popular, esboçada, como mostrei, logo no início
de Morada paulista. Mesmo que não seja possível, pela ausência de fontes, analisar as
técnicas construtivas populares, são as práticas cotidianas, organização social e cultural e as
características psicológicas gerais de um povo que fornecem os elementos para a
compreensão da evolução arquitetônica (e geral) paulista. O relacionamento de múltiplos
aspectos da realidade social num recorte sincrônico (economia, cultura, política, ecologia etc.)
fazem lembrar o conceito de “fato social total” de Marcel Mauss, presentes nas aulas de Dina
Lévi-Strauss, desde que não nos esqueçamos da solução diacrônica oferecida pela dialética
marxista. Da mesma forma, percebe-se que Saia teve contato com a obra de Franz Boas
através do Curso de Etnografia, o que reforça a constatação da apropriação de um conceito de
“raça” mais relacionado à cultura que à biologia, tão importante nas interpretações do
arquiteto.205

3.3 MORADA PAULISTA: EVOLUÇÃO REGIONAL E ARQUITETURA

Nesta seção, analisarei o livro Morada paulista considerando-o uma objetivação


resultante de uma ação individual específica. Esse tipo de ação, linguística e historiográfica,
visa, em síntese, orientar condutas e delimitar identidades a partir da constituição narrativa de
sentido para a noção de “evolução regional paulista”. Pode-se dizer, portanto, que se trata de
uma ação racional, uma vez que, amparada numa organização da consciência histórica, visa
produzir efeitos futuros a partir de uma ação presente. Obviamente tais efeitos são pouco
204
AMOROSO. Op. cit., p. 70.
205
Pode ser encontrado na Biblioteca Luís Saia o livro de BOAS, Franz. Race, language and culture. New York:
Macmillan, 1948 (306 / B 662 r)
93

controláveis pelo ator, dependendo o êxito de sua ação de condições objetivas de efetivação.
Desse modo, abordarei neste momento as “formas de controle” da prática (ação)
historiográfica de Saia, isto é, como amparou seus argumentos em fontes e como “garantiu” a
“verificabilidade” das mesmas; como selecionou os objetos de estudo a partir dos valores
sociais de seu tempo e de seu espaço, ou seja, como conseguiu comprovar que os assuntos
tratados são “importantes”; por fim, como conseguiu imputar ao seu material um sentido
consistente, capaz de “estabilizar as identidades” por intermédio de uma orientação segura no
tempo. Somente depois dessa análise será possível abordar, na próxima seção, as “condições
de efetivação”, no âmbito das práticas preservacionistas, da ação historiográfica de Luís Saia.
Para uma correta interpretação do significado dessa obra, pretendo abordá-la como um
trabalho historiográfico propriamente dito, e não como fonte para a análise de arquitetura. A
história da arquitetura residencial tem sido posta, ao menos no Brasil, a serviço de arquitetos,
e desconheço algum esforço anterior, no campo da história da historiografia, de tratamento
desse material.206 Desse modo, os poucos trabalhos críticos significativos que se debruçaram
sobre as proposições de Luís Saia se referem às restaurações que empreendeu quando esteve
no comando da regional paulista do IPHAN. Tais apontamentos limitam-se, no entanto, a
destacar falhas metodológicas relativas a aspectos arquitetônicos específicos das construções
restauradas, o que se mostra pouco proveitoso para os fins deste trabalho.207
Apresentarei, primeiramente, algumas considerações acerca da estrutura de Morada
paulista, realizando uma espécie de descrição daqueles capítulos que mais diretamente
interessarão ao objeto aqui enfocado. Pretendo com isso facilitar o relacionamento do texto
real com a análise que pretendo levar a efeito posteriormente. Com esta estruturação original
em mãos, a qual sempre que necessário poderá ser retomada, terei mais liberdade em realizar
um esforço analítico, ou seja, separar suas partes constituintes a fim de melhor visualizar a
imbricada rede de relacionamentos que dão vida ao texto.
Em seguida, esboçarei uma análise historiográfica seguindo os critérios metodológicos
expostos no início deste trabalho. Desta forma, como já foi sinalizado acima, considerarei os
aspectos empíricos, a relação com os valores e o sentido presentes na obra enfocada, de

206
Há, no entanto, um artigo, de autoria de Carlos Guilherme Mota, no qual interpreta-se um período da história
paulista com base na periodização proposta por Luís Saia. Cf. MOTA, Carlos Guilherme. São Paulo no
século XIX (1822-1889): esboço de interpretação. Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo. São Paulo, v. 4, n. 1, p. 9-16, 2004. Uma abordagem do trabalho de Luís sob uma perspectiva
historiográfica logo poderá ser encontrada no ainda inédito TRINDADE, Jaelson Bitran. Op. cit.
207
Cf. LEMOS, Carlos. Casa paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999; Idem. Introdução aos monumentos arquitetônicos
paulistas. In LEMOS; MORI; ALAMBERT. Op. cit., ANDRADE, Antônio Luís Dias de. O nariz torcido de
Lucio Costa. Sinopses. São Paulo, n. 18, p. 5-17, dez. 1992 e GONÇALVES. Op. cit.
94

acordo com o arcabouço metodológico apresentado no capítulo anterior.

3.3.1 A estrutura de Morada paulista

É importante, antes de tudo, saber por quem o livro foi estruturado. Não basta, todavia,
apontar rapidamente que pelo próprio Luís Saia. Creio que não seja imprudente dizer que
raros são os indivíduos cujas ações podem ser julgadas, ao longo de toda sua vida, pelos
mesmos critérios. É corriqueiro lermos em estudos mais detidos sobre determinados autores a
menção a duas ou mais fases de suas obras. Tem-se assim o “Friedrich Engels tardio” ou o
“Gilberto Freyre de Casa-Grande & Senzala”. Não acredito que seja diferente com Saia. É
óbvio que há diferenças na obra do “jovem engenheirando” apontado por Mário de Andrade e
o experimentado arquiteto da década de 1950 em diante, tomado em grande medida por
preocupações de ordem urbanística. E foi este último quem organizou, em 1972, o livro
Morada paulista.
De acordo com o próprio Luís Saia, tudo partiu de uma série de artigos publicados, em
1956, na Revista Acrópole, sobre a “evolução da arquitetura residencial paulista”
(“Arquitetura de circunstância”, “Intermezzo roceiro”, “Economia de sobremesa” e “Ciclo
ferroviário”). Segundo ele, “nessa época estava empenhado em recolocar certos problemas de
planejamento, armando cursos de extensão, elaborando projetos de lei sobre reforma urbana e
organizando a Comissão de Planejamento do IAB de São Paulo”.208 Somados aos artigos
sobre geologia, pedologia e edafologia, aqueles artigos foram republicados pela Acrópole sob
o título “Notas sobre revolução da morada paulista”.
Morada paulista foi então organizado a partir daquelas “Notas”, com o acréscimo de
outros artigos sobre a mesma temática . Pode-se dizer, além disso, que o livro foi estruturado
pela noção de “evolução regional paulista”, tendo como objeto a arquitetura residencial
daquele Estado.
Selecionados os artigos (escritos entre 1945 e 1963), o livro foi então dividido em
duas partes: “Notas sobre a evolução da morada paulista” (suprime-se o “r” de revolução) e
“Notas relacionadas com a tetônica demográfica de São Paulo”.
Antecedendo os artigos reunidos na primeira parte do livro, Saia escreve uma “Nota
prévia”, de grande valor para a interpretação de sua postura na escrita dos artigos ordenados
208
SAIA. Morada paulista, op. cit., p. 7.
95

em seguida. Foi certamente elaborado por ocasião da publicação do livro. Contrapõe-se o


significado da arquitetura paulista ao da arquitetura oitocentista mineira e baiana e explicitam-
se os tipos de fonte utilizados, apontando sua validade e limitações.
O próximo capítulo, intitulado “Quadro geral dos monumentos paulistas”, refere-se a
uma palestra “destinada a divulgar os esforços no sentido de proteção do patrimônio histórico
e artístico de São Paulo”.209 Esse capítulo funciona, no livro, como uma “preliminar” de cunho
teórico, na qual são expostos os períodos da evolução regional paulista bem como as “teses”
principais e ancilares de cada um deles, além daquelas teses ou hipóteses (a que chama de
“negadas”) que foram preteridas em detrimento de soluções mais recomendadas ao modo de
vida que se instalou no planalto paulista. Esse capítulo é de suma importância para a
compreensão da forma como Saia atribui sentido para sua narrativa. Para exemplificar o
quadro proposto por Luís Saia, talvez seja útil a elaboração de uma tabela (Tabela 1).
Em “Notas sobre a arquitetura rural paulista do segundo século”, Saia trata
detidamente do terceiro período da evolução regional paulista. Estas “notas” foram
originalmente publicadas na Revista do SPHAN nº 8,210 sob encomenda de Rodrigo Melo
Franco de Andrade, “e visavam fundamentar as iniciativas de tombamento e proteção dos
exemplares de morada da época das bandeiras, inventariadas pelo então Serviço do PHAN”.211
Neste artigo, Saia pretende definir a solução arquitetônica típica do bandeirante, 212amparando-
se, para tanto, em doze exemplares.213
Para a análise deste programa, Luís Saia lançou mão, por um lado, de um rico aparato
técnico que dará conta tanto da datação das residências quanto de minúcias construtivas,
relativas à técnica de taipa de pilão, à amarração do madeirame, à pintura das paredes e das
madeiras, às parcas decorações etc. Por outro lado, o arquiteto buscou em fatores macro-

209
Ibid. p. 8.
210
Embora o próprio Luís Saia afirme que os textos reunidos em Morada paulista foram escritos entre 1945 e
1963, e, em nota de rodapé, à p. 61 de seu livro, escreva novamente que o trabalho foi publicado em 1945,
vemos estampada na folha de rosto da referida Revista o ano de 1944.
211
SAIA. Morada paulista, op. cit., p. 8.
212
“De um modo geral, assim se poderia presumir o programa tipo da residência dos fazendeiros seiscentistas:
1) inteira separação da família e trabalho; 2) criação de uma faixa composta de alpendre-capela-quarto de
hóspedes; 3) residência familiar. Em consequência do partido adotado, surge o esquema construtivo: a)
escolha de uma plataforma plana; b) desenvolvimento da planta dentro de um retângulo; c) paredes de taipa
constituindo ao mesmo tempo vedação e estrutura; d) aproveitamento dos forros de quartos para
compartimentos de uso variável; e) telhado de quatro águas com cobertura de telhas de canal; f) separação
entre a família e os demais, por intermédio de uma faixa onde ficam a capela, o quarto de hóspedes e
alpendre; g) desenvolvimento da parte da família em torno de uma sala”. Ibid., p. 107-109.
213
Em São Paulo, as sedes das antigas fazendas localizadas nos bairros de Santana, Tatuapé, Jabaquara e
Caxingui, e nas proximidades do distrito de Santo Amaro; em Itapecerica da Serra, a casa do sítio do Calu;
em Cotia, as casas dos sítios do Padre Ignácio e Mandu; em São Roque, as casas dos sítios Santo Antônio,
Querubim e São Romão; e em Sorocaba, uma antiga casa de fazenda nas imediações da cidade (Cf. Ibid., p.
62-63).
96

estruturais explicações com as quais o detalhamento técnico não pode arcar.


Assim, a distribuição territorial destas residências se prenderia a uma estrutura
econômica de caráter “feudal-militar”, baseada mais no apresamento da população indígena
que na economia de subsistência (o que explicaria, por exemplo, a pouca preocupação com o
tamanho das propriedades).
A estrutura social do período, com o patriarca ocupando posição capital, explica, para
Luís Saia, a divisão dos espaços das construções bandeiristas, que se dividem em duas zonas
principais: a “faixa fronteira” e a zona da família. A primeira conta com um alpendre central
(também chamado de “pretório”), com uma capela, de um lado, e com um quarto de hóspedes,
do outro lado. Caracterizar-se-ia por ser o espaço de convivência com o mundo exterior, no
qual o senhor daria ordens e receberia seus convidados. Esse espaço estabelece também uma
clara divisão social:somente a família assistiria à missa dentro da capela (ou dentro da própria
sala da casa), ficando escravos e agregados abrigados sob o telhado do alpendre. Por sua vez,
o interior da residência, que possui uma sala central ladeada por alguns quartos, seria o espaço
no qual a família ficaria apartada do mundo exterior.
Participam ainda da explicação proposta por Luís Saia fatores de ordem cultural e
mesmo psicológica. O alpendre posterior dessas residências, bem como a ausência de cozinha,
indicaria “uma influência marcada dos costumes indígenas na maneira de cozinhar dos
colonos”,214 ou seja, do lado de fora da habitação, sobre trempes de madeira, utilizando jiraus
etc. Os vales, por sua vez, teriam sido evitados, pois os ares dos locais muito baixos
costumavam ser enfermiços, segundo orientações das Leis das Índias. A influência erudita
também teria contribuído para a escolha do partido: Saia inaugura aqui a tese da influência
paladiana (relativa ao arquiteto renascentista italiano Paládio) nas construções paulistas. Estas
construções ainda refletiriam “a psicologia do seu dono, não apenas quanto à forma, mas,
também, quanto à construção, não permitindo liberdades de acréscimo ou modificações”.215
Saia ainda encontra espaço nesse capítulo para discorrer acerca do próximo passo da
evolução da morada paulista. As habitações construídas para além desta circunscrição
territorial inicial já se referem a outro período e apontam para a evolução destas residências:
“em geral, o partido adotado nas outras residências rurais do século XVIII e XIX se prende a
razões diversas das que justificam e explicam as residências seiscentistas”.216 Esse tema será
mais detidamente trabalhado, no entanto, no artigo “Arquitetura de circunstância”.

214
Ibid., p. 79.
215
Ibid., p. 109.
216
Ibid., p. 104.
97

Tabela 1 - Esquema de periodização utilizado por Luís Saia

Período Construções típicas Tese principal Teses ancilares


Primeiro período: Poucos vestígios materiais. Exploração mercantilista (tese negada pelas a) penetração territorial (guerra e conquista à
1500-1554. condições topográficas e pedológicas do europeia); b) sediação simbólica de São Paulo
litoral santista) - “Toda a ação se realiza no planalto (influência indígena).
como um fenômeno de impacto entre a
coisa europeia e o ambiente americano” (p.
25-26).
Segundo período: Ausência de vestígios Mestiçagem - “Mestiçagem de tudo, de Ação dessacralizadora, “fundada na montagem
1554-1611 (ano do materiais. gente, de técnica militar, de dieta alimentar, de uma estrutura social de caráter feudal-
estabelecimento de de linguagem, de estilo de vida” (p. 27). militar”. Tese negada: “A teoria do baluarte
Parnaíba e Mogi das cercado, destinado a explicitar o sentido
Cruzes). aposseador da colonização portuguesa, se opôs
a solução biológica prática e o retorno às
formas já obsolecentes do feudalismo e da
organização primitiva da sociedade” (28-9).
Terceiro período: Habitações da classe Negação do binário “urbano rural” Distribuição dos colonos por um território
1611-1727: “se inicia dirigente (solução mestiça (domínio das teses colonas sobre as teses relativamente vasto, em forma concêntrica a
quando surgem os tendo a faixa fronteira jesuíticas). partir do “centro” (Piratininga), com um raio de
resultados das como principal aproximadamente 50 km.
dissensões entre característica).
colonos e quando
alguns destes se
estabelecem de modo
a criar os novos
pontos focais da
gente paulista”.
Quarto período: Habitações do litoral norte Falta de uma propositura econômica “capaz de dar-lhe individualidade definida e própria, com
1727-1765 de São Paulo (engenhos de temática autônoma e diretrizes próprias de desenvolvimento”.
(restauração da cana-de-açúcar).
capitania com o
Morgado de Mateus).
Quinto período: Construções e instalações De um lado, representa a “relativa vitalidade surgida com a restauração da Capitania e como
1765-1834 (Morgado que, “ou representam a decorrência das pretensões militaristas do Morgado de Mateus”, de outro, “um ralo sopro
de Mateus). repercussão de soluções longínquo das idéias que varriam o pensamento europeu, desobstruindo-o das formas
abstratas impostas ao sabor estruturais medievais e preparando-o para o amadurecimento do capitalismo e advento do
das circunstâncias (...) ou imperialismo”.
estão irremediavelmente
marcadas pela insubstância
que procede da pobreza e
da dependência”.
Sexto período: do Conjunto das instalações, Instituição do binário urbano/rural, “sob o Elevado número de pessoas exigido pela
Ato Adicional (1834) que resultara desta fase da qual se efetuou a ocupação territorial, técnica tradicional de cultura, beneficiamento,
até a crise (1929). formação paulista, como demográfica e econômica” de São Paulo. transporte e comercialização do café: a)
documentário mais decisivo conquista territorial por faixas sucessivas e a
desta época (ausência de cultura extensiva; b) distribuição das cidades
monumentos em rosários estendidos ao longo dos espigões;
característicos); existência c) rede ferroviária em forma dendrítica; d)
de “uma ou outra peça” formação de zonas centralizadas em cidades-
que, “quer pela chave; e) hipodamização do traçado urbano; f)
singularidade do seu valor tratamento artesanal dos problemas técnicos: 1.
arquitetônico, quer pelo condicionamento das soluções de equipamento
significado histórico às formas de implantação urbana adotadas; 2.
eventualmente expresso”, monopólio dos serviços públicos fundamentais;
merece uma “atenção 3. importação dos estilos.
especial”.
7º Período: 1929- Metropolização de São Paulo, como a) policultura, seguida das primeiras tentativas
1945. contradição fundamental da economia do de regionalização da produção; b)
café. transformação das estruturas urbanas e
superação do traçado hipodâmico; c) estouro da
organização dos serviços públicos; d)
industrialização.
8º Período: 1945-? Montagem de uma nova estrutura a) implantação de um sistema industrial a partir
econômico-social, baseada na da base metropolitana (nova negação do
industrialização. binômio urbano-rural); b) complementação do
esquema viário; c) explicitação do zoneamento
funcional; d) tratamento tecnológico dos
problemas de equipamento urbano e regional;
e) planejamento urbano e regional.

O próximo capítulo, intitulado “Casa bandeirista”, foi redigido, como já mencionei


anteriormente, para “explicar” a Casa Bandeirista, monumento restaurado pelo 4º Distrito da
DPHAN, sob supervisão de Luís Saia, em 1957, por ocasião das comemorações do 4º
centenário da capital paulista. Percebe-se claramente neste texto três partes distintas. A
primeira trata da conformação da sociedade bandeirista em suas especificidades. A segunda
98

relaciona o período áureo da sociedade bandeirista com sua arquitetura. A terceira refere-se
especificamente à casa do Butantã, que então era restaurada como símbolo paulista.
Conforme apontei, Saia salienta as especificidades da configuração da sociedade
paulista no período bandeirista. Defende mesmo uma clara autonomia dos paulistas em
relação à coroa. Forma-se naquele território uma sociedade específica, fruto de um isolamento
do restante dos domínios metropolitanos; no entanto, não se trata de um isolamento
geográfico (Saia, na esteira de Sérgio Buarque de Holanda,217 estava ciente das inúmeras
ligações estabelecidas pelos bandeirantes, inclusive com as possessões espanholas), mas de
um isolamento econômico. Ausentes os fatores interessantes ao mercantilismo português, a
sociedade paulista se viu então relativamente livre para se desenvolver de forma autônoma.
Neste ponto aparece uma interpretação que, a meu ver, merece ser destacada por uma
certa originalidade. Livre assim das contingências mercantilistas metropolitanas e em função
das “sugestões do ambiente”, criar-se-á na capitania de São Vicente uma sociedade de moldes
feudais, adaptada ao ambiente americano e relativamente livre do ponto de vista econômico.
O valor de um potentado medir-se-ia não pela extensão de suas terras (embora sua ausência
desqualificasse o indivíduo), mas pelo tamanho de seu exército, adquirido mediante o
apresamento da população indígena. Adota-se então o “instituto feudal” da sesmaria: no
entanto, sua localização e tamanho se volta para a economia de subsistência e para os pontos
estratégicos no que diz respeito às expedições dirigidas à caça do aborígine.
Outro “instituto feudal” que, segundo Saia, é adotado pela sociedade bandeirista, é a
“cruzada contra o infiel”, legitimada após longa fase de experimentação e em disputa direta
com os ideais jesuíticos (que foram, segundo o arquiteto, logo vencidos). Para essa
empreitada, “inventa-se o mameluco” (num argumento bastante semelhante ao de Sérgio
Buarque de Holanda em seu Caminhos e fronteiras), fundamental para todos os períodos da
evolução regional paulista.218
Iniciando a “segunda parte” do capítulo, Saia afirma que “a este período de
experimentação social e econômica, a este esforço de adaptação dos conceitos medievais às
condições específicas desta parte da Colônia Portuguesa, corresponde uma fase de
experimentação arquitetônica”.219 Embora trate-se de uma reafirmação do que foi exposto em
“Notas sobre a arquitetura paulista do segundo século”, fica mais claro agora algo que, no
texto anterior, havia sido considerado quase que intuitivamente: o “declínio” da solução

217
Cf. especialmente HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3ª ed., ampliada. – São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990 e _____. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
218
SAIA. Morada paulista,op. cit., p. 125-126.
219
Ibid., p. 127.
99

arquitetônica tradicional se liga diretamente ao enfraquecimento do modo de vida paulista, e,


o que denota uma contradição imanente do ciclo, tal enfraquecimento se deve justamente à
dispersão do paulista impulsionada por seu espírito aventureiro. A concepção “dialética” do
processo histórico começa a se tornar mais explícita nesse texto.
Em “Arquitetura de circunstância”, Saia analisa os exemplares de arquitetura colonial
encontrados no litoral norte paulista. As soluções construtivas e plásticas das habitações
confrontadas com modo de vida ali existente levaram o arquiteto a defender que não houve,
para este caso, um caráter regional próprio que condicionasse sua arquitetura. O povoamento
dessa região teria nascido do afluxo populacional advindo de São Paulo em direção a Minas
Gerais no período da exploração aurífera. Obstaculados pela coroa, essa população acabou
por se sediar naquela região, tendo como opção a cultura da cana-de-açúcar. Tem-se então,
neste local, uma série de habitações ligadas a engenhos que se diferenciam da arquitetura rural
em função de uma ligação mais próxima com o ambiente de trabalho (resguardada, no
entanto, a intimidade da família), da proximidade com o mar para o escoamento da produção,
da sediação nos vales, para aproveitamento do curso da água como força motriz para os
engenhos, e por determinados aspectos plásticos e construtivos, advindos de influências
exteriores. No entanto, as habitações ali encontradas puderam ser consideradas “elementos
legítimos de diferenciação e peculiaridade”.220
As residências estudadas em “Intermezzo roceiro” ligam-se ao fenômeno demográfico
que os autores paulistas denominam “torna viagem”. Este fenômeno relaciona-se com a
exaustão das minas de ouro e com a descoberta de terras férteis para além da região
originalmente ocupada pelos paulistas. A partir de agora, outro fator é somado aos demais na
explicação dos ciclos do processo histórico paulista: o solo. Assim, a arquitetura encontrada
nessa região geológica se liga a um modo de vida roceiro, implantado por mineiros, agora
responsáveis pelo desbravamento de São Paulo. Esta arquitetura, embora “aburguesada”, ou
seja, possuidora de caracteres advindos da arquitetura urbana mineira (a exemplo da estrutura
em “gaiolas”, o que possibilita a instalação em terrenos mais “decliventos”), relaciona-se
diretamente com a arquitetura bandeirista (compromisso técnico com a taipa de pilão, telhado
de duas águas abrigando toda a residência etc.), o que lhe permite, ao contrário das
residências encontradas no litoral, inseri-las na linha evolutiva da arquitetura paulista, ainda
que como mero “intervalo”.
Em “Economia de sobremesa”, Luís Saia se ampara numa grande quantidade de
dados estatísticos e fontes bibliográficas no intuito de dar conta de um fenômeno fulcral em
220
Ibid. p. 153.
100

seu esquema evolutivo: as alterações demográficas ocorridas no Estado de São Paulo em


função do surto da cafeicultura. Esse artigo trata de uma primeira fase deste novo ciclo, na
qual ainda permaneceriam traços tradicionais no que diz respeito à organização social e às
soluções arquitetônicas. Contudo, tão logo atingisse a maturidade, essa configuração exibiria
seu principal traço, que traria consigo sua principal contradição: a submissão ao capitalismo
internacional.
Ao fim desta primeira etapa, segundo Saia, “já se pode falar também em arquitetura do
café e – a fortiori – em residência do café”.221 A fazenda Pau-d’Alho é eleita o modelo
clássico, por comparecerem nela, “numa forma-tipo, todos os agenciamentos necessários e
suficientes para expressar arquitetonicamente a tese de uma sede de uma fazenda monocultora
de café, segundo o estilo que fez praça na área cafezista brasileira”.222 Tal estilo conforma, de
acordo com Saia, uma solução “mestiça”, na qual comparecem contribuições isoladas, como
as dos engenhos de açúcar e atividades de beneficiamento do milho, mandioca e mesmo
feijão, agora contando com um elemento novo e original: o terreiro, em torno do qual se
disciplinou e hierarquizou todas as unidades, conformando um conjunto todo voltado para a
exploração do café. Luís Saia dirige sua atenção, no entanto, para duas dessas unidades: a
senzala (para cuja análise teve que lançar mão de fontes escritas, haja vista a carência de
vestígios materiais) e a residência principal. Embora atendendo novas funções e adotando
novas soluções, essa residência rural poderia ser ligada à linha evolutiva da arquitetura
tradicional paulista ou por seu claro aproveitamento das soluções dos engenhos que a
precederam, ou pela manutenção da distribuição das funções pela casa: “salas sociais na
frontaria principal, camarinhas e quartos de dormir no lanço intermediário e varanda (sala de
refeições) no lanço posterior”.223
No entanto, não se pode, segundo Saia, falar ainda em uma “arquitetura urbana do
café”. Esta começaria a se definir após alguns fatos que preliminariam a próxima etapa do
ciclo: o depauperamento das terras do vale do Paraíba, que demandaria uma expansão
territorial da cultura do café; o distanciamento dos portos, que acarretaria na busca por
alternativas de escoamento da produção; e a falta de mão-de-obra escrava, que levaria a duas
soluções: ou a mecanização ou o emprego de mão-de-obra europeia. Estes fatores teriam
concorrido para uma nova configuração territorial, caracterizada por um binômio urbano-
rural, que traria profundas consequências tanto para a produção do café quanto para as
soluções arquitetônicas.
221
Ibid. p. 183.
222
Ibid. p. 185.
223
Ibid. p. 189-191.
101

Enquanto não foi completa a submissão da vida urbana aos interesses capitalistas
(processo que, segundo Luís Saia, atinge seu ápice com a instalação das ferrovias), a
arquitetura tradicional pôde conviver com as novas técnicas e materiais. Assim, a taipa de
pilão, técnica por excelência aristocrática na região, passou a dividir o espaço com vidros e
peças metálicas. O alpendre como espaço de contato com o mundo exterior (ainda que agora
instalado lateralmente) e a divisão dos espaços de acordo com o modo de vida rural se
mantiveram. As residências também se avultaram. Com a explosão do fenômeno urbano (pois,
segundo os dados apresentados por Saia, 90% das cidades paulistas nasceram neste período),
a construção tornou-se um negócio lucrativo.
Se o tom antes era saudoso, agora passa a ser por vezes irônico e reprovador. As
soluções condizentes com o meio e com os gêneros de vida são suplantadas em função dos
interesses capitalistas relacionados à exploração do café (ou melhor, no seu escoamento para o
mercado europeu). A instalação ferroviária (estabelecida de forma “dendrítica”) condicionaria
os assentamentos urbanos (organizados territorialmente em forma de “rosários”). As cidades
se organizariam caoticamente num traçado “hipodâmico” (ou seja, reticulado) que não
guardaria nenhuma relação com as ideias do arquiteto grego Hipodamo de Mileto. A
influência seria também cultural, e, já em fins do século XIX, “não houve mais possibilidade
de segurar um domínio quase exclusivista do ecletismo que tudo invadiu; desde o gosto para
escolher o vinho e a mulher, até a tendência para selecionar tipos de habitação de estilo
estrangeiro”,224 os quais Saia demonstra conhecer com suficiência.
Tratar-se-ia, portanto, do fim de uma longa evolução para a qual foram fundamentais
as “raízes” rurais paulistas. Essa evolução, que conta com diversos ciclos, desaguaria em
outra, agora submetida ao capitalismo internacional. No entanto, o arquiteto parece sentir-se
vingado pelo fato de que essa nova configuração geral da sociedade paulista traria em si uma
contradição inexpugnável: a concentração do esquema viário no eixo São Paulo-Santos
provocaria um intenso processo de metropolização. Como consequência disso, a região
adquiriria características próprias, que, em grande medida, fugiriam ao controle daquelas
imposições internacionais.
Saia analisa mais detidamente o esquema geral de configuração urbana paulista
ocasionado pelo segundo ciclo de exploração cafeicultora no capítulo intitulado “Ciclo
ferroviário”. Há no entanto que se destacar que, se do ponto de vista puramente arquitetônico,
ou melhor dizendo, se tomadas as residências ecléticas individualmente, elas não justificariam
sua permanência de acordo com os critérios tornados hegemônicos no âmbito do IPHAN, do
224
Ibid. p. 211.
102

ponto de vista urbanístico elas adquiriam especial significado enquanto “fisionomia


característica desse período”.225 Interessaria, portanto, analisar o ecletismo como sendo uma
espécie de fenômeno cultural urbano, em seu “conjunto”, visto que, individualmente, tais
habitações careceriam de maior significado.
Em “Meditação melancólica” (e seu posterior apêndice “Mais quinze anos de crime”),
Luís Saia reflete sobre o cenário da arquitetura contemporânea (em 1957 e, na seção
adicional, em 1972). Na verdade, trata-se de uma crítica aos arquitetos paulistas que, na sua
opinião, se abstinham de aproveitar o que de mais legítimo fora legado por estes quase
quinhentos anos de evolução da arquitetura paulista: a capacidade de responder originalmente
aos problemas impostos pelo conjunto de determinantes que caracteriza um ciclo de
organização social (Saia não utiliza, entretanto, nenhum destes termos neste capítulo, mas é o
que pode se depreender de sua leitura). Esse capítulo acaba funcionando, no conjunto da parte
reunida sob o título “Notas sobre a evolução da morada paulista”, como uma conclusão, na
qual são justificados o uso das fontes, métodos e teorias, e no qual se critica, com o olhar de
urbanista e arquiteto preocupado, os rumos que então estavam sendo seguidos pelos
profissionais de sua área.
Fecha-se assim a primeira parte e dá-se lugar às “Notas relacionadas com a tetônica
demográfica de São Paulo”. De acordo com Luís Saia, parece indispensável “que o arquiteto –
especialmente o que trabalha em planejamento – esteja em condições de promover a audiência
dos fenômenos e ocorrências compendiados nos mais diferentes ramos científicos”.226 O
arquiteto amplia, desta forma, o leque de conhecimentos necessários para a compreensão do
fenômeno arquitetônico, tomando como imprescindível, inclusive para que se evite
posteriores “desastres”, o conhecimento sobre as características do solo no qual se instalam a
arquitetura e as cidades. Acrescenta assim mais uma ordem de fatores a uma estrutura global,
cujas transformações ao longo do tempo são explicadas a partir da perspectiva dialética.

3.3.2 As fontes

A análise que segue foi empreendida com base nas evidências dispostas no livro
Morada paulista. Pretende-se, portanto, averiguar de que forma foi utilizado, neste livro, o

225
Ibid., p. 221.
226
Ibid., p. 12.
103

material empírico conseguido mediante o intenso trabalho de pesquisa realizado na regional


paulista do IPHAN. Sobre a metódica prática de pesquisa desse órgão, está para ser publicado
um artigo que trata mais especificamente do tema, com o conhecimento de causa de quem
testemunhou e colaborou diretamente com esse labor investigativo.227
Morada paulista trata de temas, muitas vezes tomados como hipóteses de trabalho,
que mereceriam maior desenvolvimento posteriormente. Assim, não se pode ajuizar de sua
leitura uma falta de rigor metodológico no trato relativo às fontes, quando o que se almejou
foi a produção de um tipo de texto historiográfico específico, cujo objetivo é fornecer
elementos orientadores de uma ação institucional dirigida à preservação de bens materiais
dotados de valores nacionais. O que tentarei mostrar a seguir é que não faltam aos textos aqui
analisados os aspectos que fazem deles “historiográficos”. O que não é lícito, a meu ver, é
tomar como parâmetro critérios adotados para a análise de textos predominantemente
acadêmicos, produzidos em contextos específicos, e assim desconsiderar práticas, também
historiográficas, voltadas para fins diversos.
É importante lembrar, portanto, que as afirmações que seguem não podem ser
estendidas para toda sua obra. No posterior São Luís de Paraitinga, por exemplo, escrito em
parceria com o historiador Jaelson Bitran Trindade,228 o arquiteto toma um extremo cuidado
com a explicitação das fontes utilizadas. A própria contratação de Trindade para o IPHAN
demonstra a preocupação de Saia com a pesquisa histórica, uma vez que este historiador
ficaria a cargo da realização de amplos levantamentos documentais, o que talvez configure
atitude pioneira nos órgãos preservacionistas nacionais. Assim, tem-se um exemplo de um
trabalho que se pretende um desenvolvimento rigoroso das diretrizes traçadas, já em formato
historiográfico, nos artigos reunidos em Morada paulista.
Tratando especificamente, portanto, desse livro, dois aspectos relacionados às fontes
saltam aos olhos quando de sua leitura: a diversidade do material utilizado e a pouca atenção
dada ao seu tratamento. Este último aspecto se deve principalmente à escassez de referências
e citações e diz respeito às fontes não arquitetônicas, essas sim, muito bem trabalhadas.
Com relação ao primeiro aspecto elencado, ou seja, a diversidade das fontes, fica claro
que ele se deve ao objeto enfocado. Quando Saia defendeu, já em sua “Nota prévia”, a
existência no Estado de São Paulo de “um excelente e vasto documentário sobre suas
residências tradicionais”,229 ele o fez com o apoio na tese de que sua “validade documentária”

227
TRINDADE, Op. cit.
228
SAIA, Luís; TRINDADE, Jaelson Bitran. São Luís do Paraitinga: Levantamento métrico arquitetônico e
fotográfico, e estudos da formação de uma cidade tradicional paulista. São Paulo: CONDEPHAAT, 1977.
229
Ibid., p. 15.
104

e o “nível artístico” por elas atingido se devia às “especialíssimas condições de formação


regional”. Relacionando assim a arquitetura à formação regional, Saia se viu obrigado a
comprovar a existência e a mutação de processos que denominou ora “ciclos” ora “períodos”,
fundamentais para a compreensão de aspectos arquitetônicos não explicáveis por uma
perspectiva meramente plástica ou construtiva. Assim, além da análise minuciosa dos “restos”
arquitetônicos, Saia lançou mão de uma vasta gama de fontes alternativas relacionadas à
economia, à cultura, à demografia e, como foi visto, à geologia e ciências afins. E o mais
interessante: cada período analisado (bem como a substituição de um por outro) demandou
um tipo de fonte específico.
Uma objeção que já foi feita a Luís Saia se prende ao fato de que, em sua análise sobre
a arquitetura bandeirista, o autor teria baseado sua interpretação em apenas doze exemplares
arquitetônicos.230 Embora o teor da crítica não seja falso, devemos notar que Saia demonstou
grande preocupação em explicitar e justificar essa limitação.
Em primeiro lugar, o estudo da arquitetura popular, mais interessante para o estudo das
“preferências coletivas”, apresentava algumas limitações. Saia afirmou que “é no estudo da
atual arquitetura popular que se deve procurar, ao que parece, o manancial mais rico de
informações para a análise da sua evolução, especialmente quando for possível a manipulação
simultânea do documento bibliográfico correspondente”.231 Demonstrando sua formação
folclorista, o arquiteto valorizou primordialmente a produção cultural popular, na esteira de
Mário de Andrade, no intuito de compreender as feições de um povo. Nesse sentido, como
admite, foi pensado o estudo sobre a Aldeia de Carapicuíba, trabalho ao qual já me referi na
seção que abre este capítulo. No entanto, da mesma forma como ocorre com as habitações do
primeiro século da colonização em geral, são escassos os vestígios das habitações populares, e
para estudá-las deve-se então recorrer a fontes alternativas (dentre as quais apontou, como
possibilidade, a própria arquitetura popular contemporânea, ou “atual”). Desse modo, segundo
o arquiteto “para o estudo da habitação popular, guardadas as devidas reservas, impostas pela
ausência de ‘restos’, encontrar-se-ia um documentário razoável na bibliografia, na iconografia
e, especialmente, no estudo da arquitetura popular da atualidade”.232 No entanto, faltaria
sistematização à grande quantidade de material bibliográfico disperso, e a iconografia, além
de parca, seria pouco confiável, como demonstrou em uma análise que fez dos desenhos de
Thomas Ender, realizados em 1817, que, confrontados, por exemplo, com os trabalhos de

230
Refiro-me às críticas apresentadas em LEMOS. Casa paulista. Op. cit. Tratarei melhor desta polêmica no
capítulo reservado a esse autor.
231
SAIA, Morada paulista, op. cit., 19.
232
SAIA. Morada paulista, op. cit., p. 17.
105

restauração na Igreja de São Miguel Paulista, demonstrariam sua irrealidade.


Luís Saia não se arriscou, no entanto, a estudos nos quais não pudesse lançar mão da
análise de fatos arquitetônicos concretos. Isso denota ao menos uma preocupação do autor: a
importância que confere à relação com a experiência no presente para a validação de suas
hipóteses, ainda que se afirme por alguns autores que esta concretude material tenha sido
muitas vezes manipulada pelo próprio arquiteto.233 Este aspecto pode ser ainda notado em seu
Morada paulista pelo grande número de fotos, ilustrações e mapas que nele comparecem. A
visualidade que demanda a narrativa tecida pelo arquiteto, pelo fato de se apoiar num tipo de
fonte que deve ser sobretudo visto, conta necessariamente com uma série de figuras a validar
seus argumentos.
Quanto ao fato de trabalhar fundamentalmente com residências pertencentes às classes
dirigentes, Saia se justificou da seguinte forma:

Não importa que o ponto de partida para uma análise abarque a totalidade do
fenômeno regional, se restrinja ao estudo de uma capela, prefira o exame de um
estabelecimento rural, especule o significado de uma residência ou se detenha a
dissecar a expressão de um elemento decorativo; o essencial é que exprima um
pensamento crítico filosoficamente lastreado em segura linha de pesquisa e
solidamente fundamentado em fenômenos legítimos da formação social, econômica
e política; que seja profissionalmente correto e operante, tecnicamente disciplinado
pela experiência e pelo longo trato do material manipulado; que seja
historicamente extraído da documentação mais qualificada; que seja
pedagogicamente veraz na sua fundamentação e nos seus exemplos, artisticamente
sincero na estimativa da justa medida em que devem ser entendidos os valores do
patrimônio tradicional e, especialmente, que seja dignificado pela preocupação de
encontrar as soluções para os problemas equacionados pela comunidade.234

Nessa passagem, percebe-se que Saia se preocupava em selecionar suas fontes em função dos
valores que norteiam sua ação junto ao SPHAN e com base em pressupostos teóricos que
considera seguros, ou seja, num “pensamento crítico filosoficamente lastreado”. Isso lhe
permitia, então, advogar em favor dos relativamente escassos vestígios materiais que se lhe
encontravam disponíveis para a tarefa de conferir, narrativamente, sentido à ação do órgão
preservacionista em São Paulo.
Luís Saia não descartou, como bom engenheiro-arquiteto, uma análise minuciosa dos
“restos arquitetônicos”. Para cada solução técnica procurou ressaltar sua relação com o que se
costumava fazer nas construções situadas anteriormente na linha evolutiva da qual fazem
parte, demonstrando um grande conhecimento de causa. Saia procurava validar suas hipóteses
233
É o que se pode depreender das conclusões dos trabalhos críticos já mencionados no início desta seção
(LEMOS, op. cit.; LEMOS; MORI; ALAMBERT, op. cit.; ANDRADE, O nariz torcido... op. cit., e
GONÇALVES, Restauração arquitetônica, op. cit.).
234
SAIA. Morada paulista, op. cit., p. 260 [grifo meu].
106

amparado na autoridade de quem há anos trabalhava cotidianamente com a preservação e


restauração de edifícios antigos. Certamente por isso o capítulo “Notas sobre a arquitetura
rural paulista do segundo século” se inicia com os seguintes dizeres:

Desde o início das atividades no Estado de São Paulo tem o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional encontrado, entre as peças recenseadas no planalto,
um tipo de residência rural que várias razões induzem a considerar como solução
arquitetônica típica para os fazendeiros mais abastados do século XVII, naquela
região. De fato, a experiência de vários anos de pesquisas, além de acusar para os
exemplares desse tipo de construção uma identidade de época, técnica e
funcionamento, não ofereceu base para qualquer argumento razoável, contrário a
esta hipótese.235

Saia demonstrava também uma grande erudição historiográfica. No entanto, não teve a
mesma preocupação em tratar e explicitar suas fontes neste campo, embora cite vez ou outra
historiadores, viajantes, biógrafos etc. O conhecimento histórico entra como uma espécie de
dado “objetivo”, cuja função seria fornecer as informações necessárias para a compreensão
dos processos determinantes da arquitetura. Não há assim, ao que tudo indica, um critério de
seleção do que seria válido ou não como conhecimento histórico, dando a impressão de que
Saia ia pinçando aleatoriamente o que conhecia e o que subjetivamente considerava aceitável
para a sustentação de suas hipóteses. Ora a autoridade dos autores fortalece seus argumentos,
ora estes dados são apropriados sem menção alguma à fonte.
Deste modo, de fato, Morada paulista se aproxima mais do gênero “ensaio histórico”
que de uma “historiografia acadêmica”, muito embora possa, a meu ver, ser ainda considerado
uma “obra historiográfica”. A forma como trabalha com as fontes permite, razoavelmente,
uma “referência à experiência”, mobilizando, assim, fontes “objetivas” a fim de conferir
sentido a uma experiência do tempo relacionada à arquitetura tradicional paulista.

3.3.3 A relação com os valores

Morada paulista está repleto do tempo presente de Luís Saia. Este arquiteto se
mostrou bastante imbuído de um sentimento que se tornou cada vez mais notável no meio
arquitetônico brasileiro:236 a crença de que o arquiteto tinha em suas mãos importantes
235
Ibid., p. 62 [grifo meu].
236
Sobretudo depois da apropriação que Lucio Costa fez da obra de Le Corbusier. Creio que para encontrarmos
este aspecto na obra do arquiteto suíço seja suficiente a leitura da Carta de Atenas e de LE CORBUSIER.
Mensagem aos estudantes de arquitetura. São Paulo: Martins, 2006. No que tange aos contatos de Lucio
107

ferramentas de modificação social, ou seja, este profissional passava a ter o dever de construir
uma sociedade mais justa por intermédio da intervenção no espaço habitado (individual e
coletivo).
Para Luís Saia, seria necessário analisar com seriedade a evolução regional paulista a
fim de que fossem desvendadas as reais possibilidades de mudanças. Assim, a constituição de
um “sentido” passa a ter uma função transformadora. No entanto, essa função, diferentemente
do que se poderia esperar de um leitor de Marx, não seria responsabilidade da classe
trabalhadora (ou apenas dela), mas também e principalmente dos arquitetos. Saia adotou,
portanto, uma postura que poderia ser considerada elitista ou mesmo vanguardista. Os
arquitetos teriam assim uma grande parcela de responsabilidade sobre os rumos da sociedade,
cabendo a esse grupo identificar os principais problemas urbanos (numa escala inicialmente
regional) para, então, intervir de forma eficaz, visando um uso mais igualitário das cidades.
Saia se lançou a tal propósito em algumas das frentes de atuação profissional que se
abriam ao arquiteto em sua época. Dentre elas, destaco a preservação patrimonial, o
planejamento urbano e a docência, sendo que, em maior ou menor medida, todas elas
compareceram na área menos estudada de sua atuação: a da produção historiográfica.
A preocupação de Saia com este último campo de ação se prendeu certamente ao fato
de que o sentido de suas práticas arquitetônicas somente pode ser construído narrativamente.
A narrativa historiográfica, por conseguinte, é capaz de conferir veracidade, dotando sua
atuação no campo do patrimônio, do planejamento urbano e da docência de maior eficácia e
legitimação. Dessa forma, ficam claros os valores que orientaram a produção historiográfica
de Luís Saia, a qual tentarei relacionar a cada um dos campos de atuação mencionados.

3.3.3.1 O patrimônio

Saia escolheu alguns de seus objetos de pesquisa numa relação direta com o trabalho
da regional paulista do SPHAN, e seu Morada paulista fornece elementos claros em relação a
isso. A respeito das “Notas sobre a arquitetura rural paulista do segundo século”, por exemplo,
o arquiteto escreveu que elas “foram organizadas a pedido de Rodrigo Melo Franco de
Andrade e visavam fundamentar as iniciativas de tombamento e proteção dos exemplares de

Costa com a obra (e pessoa) de Le Corbusier, cf. NOBRE, Ana Luísa et. al. [Orgs.]. Um Modo de ser
moderno. Lucio Costa e a crítica contemporânea. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
108

morada da época das bandeiras, inventariadas pelo então Serviço do PHAN”.237


A fundamentação então intentada tentou mostrar a especificidade da atuação do órgão
paulista, à qual já havia sido feita menção numa carta de Mário de Andrade remetida a
Rodrigo Melo Franco de Andrade:

e há o problema geral de S. Paulo. Você entenderá comigo que não é possível entre
nós descobrir maravilhas espantosas, do valor das mineiras, baianas,
pernambucanas e paraibanas em principal. A orientação paulista tem de se adaptar
ao meio: primando a preocupação histórica à estética. Recensear e futuramente
tombar o pouco que nos resta seiscentista e setecentista, os monumentos onde se
passaram grandes fatos históricos. Sob o ponto de vista estético, mais que a beleza
propriamente (esta quase não existe) tombar os problemas, as soluções
arquitetônicas mais características originais. Acha bom assim?238

Essa passagem não deve ser entendida como uma lamentação de Mário de Andrade em
função da pobreza artística de São Paulo. Trata-se antes da explicitação da forma pela qual a
intelectualidade paulista conseguiu uma inserção (vedada na esfera municipal e estadual pelas
medidas centralizadoras do governo de Getúlio Vargas) no principal órgão cultural de então
no âmbito federal, procurando agir com a anuência e apoio deste (o que se expressa, por
exemplo, no “acha bom assim?” de Mário de Andrade).
Os poucos funcionários da regional paulista do SPHAN foram formados nos quadros
do Departamento de Cultura e da Sociedade de Etnologia e Folclore, instituições nas quais se
desenvolveu uma concepção ampliada de “cultura”, conforme já mostrado, ainda que de
passagem, anteriormente. Noutra oportunidade, Mário de Andrade se expressa da seguinte
forma, a respeito do papel do Curso de Etnografia:

organizado sob bases eminentemente práticas, teve como intenção principal formar
folcloristas para trabalhos de campo. Com efeito, o que nos prejudica muito em
nossos museus, é que suas coleções, por vezes preciosas como documentação
etnográfica, foram muito mal recolhidas, de maneira antiquada, deficiente e
amadorística, não raro inspirada no detestável critério de beleza ou da raridade do
documento.239

Fica claro, portanto, que se trata muito mais do dever de selecionar e preservar os documentos
relacionados aos modos de vida de um povo, a respeito dos quais os padrões estéticos elitistas
teriam pouco a dizer.
No entanto, Mário de Andrade não se lançou à tarefa de armar um quadro teórico que
237
Saia, Morada paulista, op. cit., p. 8.
238
ANDRADE. Op. cit., p. 69.
239
Idem. Folclore. In: MORAES, Rubens Borba de; BERRIEN, William (orgs.). Manual Bibliográfico de
Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Souza, 1949, p. 209. Apud ANDRADE, Cartas de
trabalho, op. cit., p. 27 [grifo meu].
109

orientasse a seleção dos artefatos significativos para a cultura nacional. Partindo da leitura do
Anteprojeto que elaborou a pedido de Gustavo Capanema, vê-se que Mário possuía uma
concepção bastante ampla de cultura. Contudo, não havia nesta concepção, ao menos de
forma suficientemente elaborada, um sentido que se mostrasse útil à orientação da vida
presente. Esse trabalho coube a seu sucessor no comando do SPHAN, e seu Morada paulista
é uma fonte privilegiada para que tal aspecto seja captado.
Saia defendeu então uma originalidade cultural que se prenderia aos “esquemas de
formação histórico-sócio-econômica” regionais. Por outro lado, reconheceu uma situação de
dependência cultural, ligada a uma lógica de divisão internacional do trabalho, na qual a
explicação das manifestações culturais regionais teria sido feita a partir do que seria
considerado “bom, belo e verdadeiro” pela ótica do dominador. Tais esquemas interpretativos,
segundo Saia, “não apresentam valor operativo algum capaz de socorrer à composição de
armaduras teóricas úteis ao esforço de nossa valorização histórica e instrumentação
cultural”,240 e serviriam apenas para sustentar uma posição de inferioridade da ex-colônia, que
ainda se encontraria numa incômoda posição subalterna no âmbito global (Saia não utiliza o
termo “imperialismo”). A cultura deveria adquirir caráter instrumental, útil ao esforço de
superação da dependência em relação às nações ricas. Tratar-se-ia, portanto, de identificar e
valorizar os dados culturais que indicassem soluções regionais capazes de promover um
desenvolvimento legítimo, com base nas necessidades reais de um povo.
Deste modo, a elaboração de uma interpretação assentada na noção de “evolução
regional paulista” adquiriu importância inquestionável no âmbito preservacionista daquele
Estado. Ao lado da minuciosa descrição dos diversos ciclos ou períodos da evolução regional
paulista, esforçou-se em ligar-lhes às edificações preservadas pela 6ª Região do SPHAN,
justificando assim seu trabalho em bases teóricas bem definidas. Tal é o caso dos doze
exemplares de habitação tradicional paulista analisados em “Notas sobre a arquitetura rural
paulista do segundo século”: mesmo que já houvessem sido anteriormente arroladas sob o
comando de Mário de Andrade, foi a precisa datação e descrição das técnicas construtivas,
relacionadas a um esquema construtivo típico e a um recorte temporal preciso (a “casa
bandeirista” que se consolidou entre 1611 e 1727), que legitimou a proteção de alguns deles
pelo órgão federal. O mesmo se pode dizer em relação à fazenda Pau-d’Alho no que diz
respeito ao ciclo do café e a tantas outras habitações estudadas pelo arquiteto.

240
SAIA. Morada paulista, op. cit., p. 23.
110

3.3.3.2 O planejamento urbano

Com relação às preocupações urbanísticas de Luís Saia, já expus, no início da


subseção que trata da estrutura da Morada paulista, o fato de que o referido livro foi
organizado a partir de textos escritos quando o arquiteto estava preocupado em “recolocar
certos problemas de planejamento”. E, de fato, tomando Morada paulista como um todo,
percebemos que sua produção historiográfica se relaciona, de forma direta, com sua definição
de planejamento urbano.241
Ora, Morada paulista não se ocupa somente das residências paulistas, mas de uma
série de fatores regionais relacionados à ocupação do solo de uma forma geral, sendo tal
ocupação apreendida ao longo de um processo explicado “dialeticamente”. Não é só o
contexto que explica a habitação, sendo a outra direção, ou seja, a habitação explicando o
contexto, igualmente válida. A investigação da formação regional paulista pela perspectiva
dialética serviu também ao propósito de resolver os problemas contemporâneos urbanísticos
daquela região, uma vez que não seriam redutíveis a modelos que se pretendiam universais.
Além de entender a origem de tais problemas, situados num tempo passado – como os
problemas urbanos trazidos pela exploração do café, por exemplo –, uma investigação
histórica resgataria soluções autênticas de desenvolvimento perdidas em função de interesses
alheios à realidade regional, a exemplo dos anseios capitalistas. No capítulo “Notas para a
teorização de São Paulo”, Saia expressou de forma clara esta preocupação, haja vista que,
analisando o processo de ocupação urbana da capital paulista desde seus primórdios,
atrelando-o às condições gerais de desenvolvimento regional e nacional, procurando
compreender os motivos que levaram a rupturas de sistemas estabelecidos e às causas da
situação contemporânea, o arquiteto chegou a conclusões surpreendentes para a época sobre
temas até hoje preocupantes, a exemplo das enchentes que volta e meia voltam a afligir os
paulistanos.

3.3.3.3 A docência

A investigação dos problemas urbanos paulistas conduziu Luís Saia à constatação da


241
A respeito do conceito de “plano diretor” empregado por Saia, cf. MOTA. Op. cit., 2004, p. 90.
111

má formação dos arquitetos contemporâneos. Tratar-se-ia de uma continuidade em relação à


formação profissional dos arquitetos surgida nos últimos anos do século XIX, ou seja, no
período em que as cidades se ampliaram assustadoramente em função do sucesso econômico
representado pela exploração cafeeira. O curso da Escola Politécnica teria sido montado para
funcionar na entressafra do café”. Ainda segundo Saia, “o urbanismo era então matéria de
ordenamento do espírito e, para os mais sérios, uma espécie de muro das lamentações das
desgraças urbanas”.242
Luís Saia então propôs um modelo alternativo de ensino, que passava pela “análise de
arquitetura tradicional”. Essa análise, portanto necessariamente histórica, tornaria os
arquitetos capazes de enfrentar

com propriedade e adequação, as questões de ordenamento do espaço; esclarecida o


suficiente para a escolha dos esquemas construtivos mais satisfatórios para cada
caso, apurada na sensibilidade para selecionar os resultados plásticos
verdadeiramente expressivos, fatores esses que conferem aos projetos maior
significado social, maior validade artística e maior adequação filosófica.243

Desta forma, Saia combateu um ensino de arquitetura meramente “decorativista”, que


sonegaria aos alunos de arquitetura uma “maior cota de racionalidade, característica da
arquitetura moderna”, defendendo, por outro lado, um “processo criador peculiar da
arquitetura, para o qual concorrem igualmente os modelos de programa, espaço organizado,
esquema construtivo e resultados plásticos, devidamente instrumentados pelas noções de Tese
e Partido”,244
A necessidade de uma ampla formação do arquiteto profissional se imporia sobretudo
nos dias atuais. Se, anteriormente, a “ação do arquiteto esteve confinada ao exercício
decorativo de interesse quase exclusivo das classes mais abastadas”, bastando ao arquiteto,
portanto, servir aos interesses individuais da classe dominante, Saia via naquele momento a
necessidade de uma formação urbanística para o arquiteto, “tanto no estudo dos edifícios
como no remanejamento das cidades e reimplantação de novos núcleos urbanos”, atribuindo
ao arquiteto responsabilidades sociais bem mais vastas. Saia parecia prever os problemas
urbanos recentes, alertando os arquitetos para os problemas que hoje se expressam num
tráfego urbano quase impraticável não só nas grandes cidades, como também nas médias e até
mesmo pequenas, e a ocupação desordenada dos espaços, acarretando problemas cada vez
mais graves relacionados a enchentes e deslizamentos de terra.
242
SAIA. Morada paulista, op. cit., p. 251.
243
Ibid., p. 261.
244
Ibid., p. 261.
112

Assim, essa reflexão sobre o ensino de arquitetura, colocado num livro de história,
permite esclarecer uma clara “importância cultural” para a pesquisa histórica e apresentação
historiográfica presente em Morada paulista: munir os arquitetos contemporâneos de um
conhecimento eficaz para a orientação das práticas arquitetônicas presentes.

3.3.4 O sentido

Tentei descrever na subseção anterior, relativa ao significado, os problemas do


presente que compareceram na construção de Morada paulista. Tais problemas dependem
diretamente de como o autor os percebe em sua realidade imediata. Poderia dizer que todos os
problemas trabalhados por Luís Saia se prendem a um outro mais amplo, ou seja, a uma
carência de sentido gerada por uma espécie de dever de compreender e modernizar a nação.
Esse sentido precisa ser construído a fim de que as decisões a serem tomadas “de agora em
diante” o sejam de forma racional, amparadas num conhecimento de uma verdade que não
pode ser universal, mas “relativa” a um momento histórico e a um recorte espacial peculiares.
A partir da leitura de Morada paulista, depreende-se que, para seu autor, são
“verdadeiras” aquelas experiências cuja eficácia se liga à relação guardada com uma
determinada ideia de processo histórico, segundo ele passível de ser conhecido objetivamente.
Por outro lado, o passado também comporta ações consideradas equivocadas, cujas
consequências podem ser percebidas no presente. Esse conjunto de experiências, “boas ou
más”, dependendo de quem as acione, só se encontra disponível por intermédio daquilo que
podemos chamar “tradição”. Este conceito melhor se define, para os fins da presente reflexão,
como sendo um complexo de experiências passadas disponíveis no presente e prontas para
que sejam transformadas em “história”. Assim, tais experiências já foram trabalhadas de
forma a serem legadas às gerações vindouras como constituintes do tempo histórico, e não
mais do tempo natural.245 A tradição, portanto, também é fruto de lutas e imposições.
Enquanto tradição, esse caldo de experiências não pode, por si só, orientar condutas. É
necessário, primeiramente, que tais experiências sejam recolhidas a partir de um significado
imputado subjetivamente (o que, no caso da obra em questão, relaciona-se com o que Saia
considerou importante para a prática arquitetônica em seus variados nichos). Por outro lado, é

245
Uma definição melhor trabalhada para o termo “tradição”, na qual se baseia o que foi dito a respeito, pode ser
encontrada em RÜSEN. Razão histórica, op. cit., p. 73-77.
113

preciso também que estas experiências possam ser consideradas verdadeiras, sejam elas
equivocadas ou acertadas, algo que chamamos anteriormente de “pertinência empírica”. Por
fim, para orientar eficazmente a ação dos “indivíduos alvo”, no caso todos os atores,
principalmente arquitetos e urbanistas, ligados às práticas preservacionistas e projetivas, isso
tudo deve ser narrado de modo que “faça sentido”.
Saia encontrou esse sentido numa ideia de processo histórico construída a partir dos
diversos componentes que constituíam o complexo cultural de sua época. Essa ideia de
sentido, que ora descreverei com base em seu Morada paulista, possibilitou ao arquiteto
“separar o joio do trigo”, indicando quais seriam as experiências acertadas e equivocadas do
passado e mostrando como o presente é fruto dessas ações pretéritas. Além disso, este sentido,
expresso na forma de uma “evolução regional”, possibilitaria uma interferência no processo
histórico por intermédio do conhecimento de sua suposta racionalidade. O futuro poderia ser
então alterado, para melhor, por intermédio de uma correta intervenção no presente.
Em primeiro lugar, convém notar que Saia não se prendeu a modelos pré-estabelecidos
ao analisar a sociedade paulista em seus diferentes recortes cronológicos. Foram considerados
assim os processos específicos regionais em conexão com processos de maior amplitude. As
peculiaridades foram percebidas em seus elementos mesológicos, mediante um olhar
etnográfico que relaciona cultura e sociedade às condições de economia e meio. No entanto,
não se tratou de uma análise puramente estrutural: importaria conhecer os motivos pelos quais
a sociedade paulista tradicional se alterou a ponto de, no presente, dever ser como que
“resgatada”, sob o risco de desaparecimento das “soluções regionais”, consideradas as mais
indicadas para um correto desenvolvimento regional e nacional a partir do presente.
Neste ponto impõe-se um questionamento fundamental para a compreensão da ideia
de sentido presente na obra de Luís Saia. Essa “evolução regional paulista” seria natural ou
dependente da criatividade subjetiva? Isso desloca a reflexão para os debates em torno da
concepção marxista de “dialética”. Tudo leva a crer que Saia tenha tido à sua disposição,
inicialmente, textos produzidos por uma vertente bastante próxima do pensamento positivista
e evolucionista. Foi o caso das primeiras traduções brasileiras, realizadas na década de 1930,
das obras de Nicolau Bukharin, além da própria produção nacional. A partir da década de
1960, existem evidências (apresentadas na subseção “2.3” deste capítulo) que demonstram o
interesse de Saia por um aprofundamento das questões relacionadas à dialética marxista, o
que se traduziu em seus textos escritos a partir de então. De qualquer forma, Saia nunca
buscou no marxismo modelos nos quais pudesse ser enquadrada a sociedade paulista, mas
uma ferramenta que pudesse explicar de forma eficaz o seu processo histórico.
114

É no capítulo “Quadro geral dos monumentos paulistas” que se pode encontrar a


explicação mais acabada de como é compreendido o processo que denomina “evolução
regional paulista”. Saia divide a sociedade paulista, tomada em sua instância temporal, em
“períodos” ou “ciclos” classificados de acordo com as soluções que lhes foram
predominantes. O foco da análise incide em dois pontos: na descrição desses elementos
predominantes de cada ciclo (economia, forma de ocupação territorial – consideradas as
condições do terreno –, relações sociais, cultura e, por fim, arquitetura) e os fatores que
levaram às mudanças dessas preferências.
O movimento diacrônico da análise de Saia é possibilitado pelo confronto daquilo que
chama de “teses”. A partir da oposição entre os interesses econômicos e as condições do meio
emergiria uma síntese expressa nos modelos predominantes de exploração econômica,
ocupação territorial e arquitetura. Sobre essas “teses”, Saia escreve o seguinte:

cada período característico da formação regional contém pelo menos uma tese
principal e uma família de teses ancilares. É possível que a hierarquização dessas
teses acolha controvérsias, mas é certo, por outro lado, que é sempre possível
distinguir, não só em relação à tese principal, como no que diz respeito às teses
ancilares, um jogo dialético de oposições que desembocam em decididas
preferências por soluções características, partidos dominantes, esquemas
endossados pela maioria ou mesmo por uma quase unanimidade coletiva. Em certos
casos, a proposição-tese é tão clara que o simples enunciado dela é bastante
esclarecedor; em outros casos é indispensável uma análise crítica para extrair dos
fatos aquele travamento ou aquelas aproximações que lhes conferem significados
expressivos, os quais de outra forma permaneceriam despercebidos.246

É justamente a partir dessa compreensão do processo histórico que Saia pôde elaborar o
“quadro teórico” que possibilitou a periodização exposta na “Tabela 1”.
Pode-se afirmar, portanto, que, para Luís Saia, a evolução de um processo histórico
não é nem puramente objetiva nem subjetiva, mas um confronto entre essas duas forças.
Exemplo disso é o “quadro” no qual situou os monumentos paulistas. O primeiro período da
evolução regional paulista, por exemplo, caracterizar-se-ia, como já foi visto, pelo confronto
entre a “tese mercantilista” (ou seja, uma espécie de “teoria” que orienta a ação colonizadora,
para a qual interessaria a exploração da cana-de-açúcar para a exportação) e sua “negação” (as
condições topológicas e pedológicas do litoral santista), do qual teria emergido uma síntese
expressa numa outra tese, a da “mestiçagem intensiva”, “de tudo, de gente, de técnica militar,
de dieta alimentar, de linguagem, de estilo de vida”,247 o que teria possibilitado, por sua vez,
uma penetração mais eficaz no interior do continente e a criação de soluções econômicas e

246
SAIA. Morada paulista, op. cit., p. 224.
247
Ibid., p. 27.
115

materiais mais propícias ao meio. Desse modo, “ao sentido carismático da ação religiosa (…)
se opôs, em São Paulo, uma ação colona de sentido dessacralizante, fundada na montagem de
uma estrutura social de caráter feudal-militar”.248
A ação metropolitana seria negada pelas reais condições do meio, às quais os
colonizadores tiveram que se adequar por intermédio de soluções inovadoras. O meio não
determinaria assim o processo social, mas influiria decisivamente nas soluções encontradas.
Da mesma forma, a “ação criativa dos sujeitos” encontraria no meio limitações às quais deve
adequar-se.
A partir do que foi exposto, tem-se uma sucessão de períodos ou ciclos que vão se
engendrando de forma “dialética” (lembrando que se trata de uma leitura bastante particular
da literatura marxista). Do confronto entre uma tese e sua antítese (ou seja, sua negação),
nasceria uma síntese, caracterizada pela aceitação, por parte da maioria dos indivíduos da
comunidade, das soluções mais propícias a determinado momento do processo histórico.
Dependendo das contingências sociais e ambientais, emergiria a contradição até então abafada
pelas condições predominantes, levando a situação de equilíbrio a um novo jogo de oposições.
Em outras palavras, ocorreria uma alternância entre o predomínio de soluções características,
expresso em ciclos ou períodos bem demarcados cronologicamente, e a emergência de
contradições sistêmicas que conduziriam à ruptura de um ciclo e ao surgimento de outro. Em
cada um destes períodos seria possível identificar teses principais, ancilares e teses que foram
negadas (mas que, no entanto, podem continuar existindo de forma mitigada, até que, por
alguma contingência, retomem sua força acarretando a ruptura do ciclo). As sínteses
identificáveis em cada período (não excluídas suas novas antíteses) levariam não só à
compreensão dos partidos arquitetônicos adotados, mas de toda configuração social da região
analisada em função de seus determinantes estruturais então predominantes.
A fim de tornar mais claro como a noção de “evolução regional paulista”, entendida
portanto como um processo, conduz a narrativa produzida em Morada paulista, seria
interessante descrever de modo sucinto a forma que ela toma nesse livro. Inicialmente, o
caráter errante do paulista (estabelecido naquele modo de vida de origens feudais mas
adaptado ao meio já dominado pela população autóctone) o conduziria à busca por metais
preciosos nos sertões de Minas Gerais e Goiás, o que teria causado um esvaziamento da
capitania e levado a arquitetura típica paulista do segundo século da colonização a um
declínio. A exaustão das minas teria trazido os mineiros de volta a São Paulo, surgindo assim
um esquema construtivo de base agrícola propício ao plantio da cana de açúcar. A produção
248
Ibid., p. 28.
116

agrícola voltada para a exportação teria conduzido o povo paulista à exploração do café tão
logo este se mostrasse mais lucrativo, o que transformaria o partido arquitetônico dirigido à
produção da cana de açúcar e ainda dotado de características tradicionais em outro, agora
condicionado pelo café e caracterizado pelo terreiro central. O enriquecimento auferido pela
cafeicultura conduziria a um crescimento urbano descontrolado, que acabaria se tornando o
principal inimigo das elites rurais e assim por diante.
Desta forma, a meu ver, seria sempre a iniciativa de um sujeito histórico (o “paulista”),
buscando novas formas de produção e trabalho e engendrando, por conseguinte, novos modos
de exploração social, que ocasionaria as mudanças de ciclos dentro da evolução regional,
muito embora o “povo paulista” estivesse sempre condicionado pelas condições reais de vida
(modos de exploração econômica, relações sociais pré-estabelecidas, disponibilidade e
qualidade do solo etc.). Aqui é possível portanto, reconhecer mais uma diferença em relação
ao marxismo, visto que não se trata de uma luta de classes propriamente dita, mas da disputa
entre paulistas (tanto dominadores quanto dominados) e a metrópole. A relação deste mesmo
sujeito histórico com as condições objetivas de existência e a consequente criação cultural
advinda dessa relação remete, por sua vez, muito mais a autores como Freyre e Buarque de
Holanda, que também pensaram a história nacional de forma “evolutiva”, embora o termo
preferido pelos historiadores modernistas seja “formação”.
A evolução regional paulista tampouco deve ser pensada de forma unilinear, mas em
conexão com processos mais amplos. Os compromissos com uma “economia colonial” nunca
são esquecidos, seja no período bandeirista ou no ciclo cafeeiro. Nos primeiros séculos da
colonização, a sociedade paulista, embora tenha alcançado uma relativa autonomia em relação
à metrópole, teria se constituído num contexto de exploração comercial europeia e em
resposta às suas tentativas mal sucedidas de colonização na zona meridional brasileira. A
partir do século XIX, por sua vez, a dependência em relação à economia metropolitana seria
ainda maior, determinando inclusive a adoção de costumes e gostos europeus.
Um exemplo dessa situação de dependência seria a posição subordinada ocupada pela
colônia na “divisão internacional do trabalho”, situação que somente no século XX passaria a
ter condições de ser modificada. No período bandeirista, essa divisão teria levado a técnica, de
um modo geral, a uma involução limitada ao nível do artesanato. Essa situação só não teria
correspondido a uma maior pobreza técnica e artística pelo fato de que, dadas as condições de
relativa autonomia em relação à metrópole, a sociedade paulista pôde selecionar de forma
mais livre, através do que Saia denominou “inteligência coletiva”, as soluções mais indicadas
117

ao meio e ao modo de vida.249 Tal situação não se repetiria no período cafeeiro, uma vez que
todas as soluções técnicas e tecnológicas foram postas a serviço dos interesses da “economia
colonial”, em prejuízo de soluções regionais “autênticas”. A situação de dependência em
relação à economia e cultura europeia seria a contradição a ser superada, segundo se
depreende da leitura de Morada paulista, do momento inicial da colonização até seu presente
imediato.
Se não é possível indicar com clareza o grau de profundidade da reflexão teórica
efetuada por Luís Saia, ao menos pode-se compreender melhor a noção de “evolução regional
paulista” à luz do complexo teórico que lhe estava disponível. Reconhecer nessa noção um
processo dialético evita confundi-la com um evolucionismo determinista, o que reduziria em
muito a compreensão da ideia que orientou as práticas preservacionistas paulistas no período
analisado. Trata-se de uma ferramenta analítica que, segundo acreditou Saia, tornaria possível
reconhecer os sucessivos estágios da realidade histórica paulista e, dessa forma, orientar com
mais eficácia a ação da regional do IPHAN. A narrativa histórica produzida por Saia, norteada
pela noção de “evolução regional paulista”, pode ser traduzida num sério esforço de assegurar
a validade do trabalho ao qual se lançou com tanto afinco ao longo de seus últimos 38 anos de
vida.

3.4 AS PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS

Já mostrei anteriormente que a produção historiográfica é tomada, neste trabalho,


como uma modalidade de ação individual que objetiva a produção de efeitos. Embora essa
longa análise do livro Morada paulista seja necessária para a compreensão do objeto aqui
abordado, ela não é suficiente para que seja abarcada a realidade mais ampla de uma ação
racional efetuada num texto de história. Isso também demanda a análise dos efeitos dessa
ação, para a qual devem ser levados em conta não só as motivações do ator, mas também as
condições objetivas de sua efetivação. É imperativo, portanto, investigar o nível normativo da
produção historiográfica (ou seja, a forma pela qual ela delimita identidades e orientada
condutas a partir da organização da consciência histórica) no âmbito prático ao qual se
destina. No caso em tela, a produção historiográfica deve ser relacionada, a fim de que seu
249
Embora essa ideia se assemelhe a um processo de seleção natural, nos moldes de um possível
“evolucionismo histórico”, é necessário lembrar que seleção natural não se confunde com “seleção social”,
de acordo com as considerações tecidas em ELSTER, Op. cit.
118

papel normativo seja corretamente compreendido, às práticas preservacionistas paulistas.


Não obstante a preservação de monumentos históricos já compusesse, desde pelo
menos 1924, os projetos culturais da intelectualidade modernista paulista, foi após a atuação
de Luís Saia que estas práticas se cristalizaram em São Paulo, vigorando inalteradas até sua
morte e influenciando a geração posterior. Esta sedimentação se deu em função do
estabelecimento de critérios históricos mais precisos possibilitados pela obra historiográfica
do arquiteto, haja vista que, em São Paulo, a proteção dos monumentos históricos se pautou
mais pelo caráter histórico que pelo estético, conforme adiantou Mário de Andrade já no
início das atividades da regional paulista do SPHAN. Nesta última seção, analisarei como tais
práticas se deram, no Estado de São Paulo, dos momentos que antecedem a atuação de Saia
até seus últimos anos de atuação junto ao órgão federal.

3.4.1 A “proto-história”250 do SPHAN em São Paulo

1924 foi, de fato, um ano importante dentro da história das práticas preservacionistas
nacionais. É neste ano que José Mariano Filho envia seus alunos da Escola Nacional de Belas-
Artes (ENBA) a Minas Gerais para o estudo da arquitetura tradicional. Dentre eles
encontrava-se Lucio Costa, que ainda não havia se “convertido” ao modernismo, mas que, a
partir de então, teria em mãos os elementos que lhe permitiriam visualizar um vínculo entre
arquitetura tradicional e moderna. No mesmo ano, Olívia Guedes Penteado, Godofredo da
Silva Teles, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e seu jovem filho e Mário de Andrade
acompanharam Blaise de Cendrars numa viagem às cidades históricas mineiras. Espantados
tanto com a riqueza plástica dos monumentos daquelas cidades quanto com o estado
periclitante em que se encontravam, estes intelectuais modernistas desejaram constituir uma
“Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil”, cujo estatuto chegou a ser
redigido por Cendrars. Embora fosse proposta neste documento uma entidade privada, a
amplitude do que seria protegido o assemelharia em muito ao Anteprojeto escrito por Mário
de Andrade em 1936, sobretudo em função da “vertente antropológica” na qual se
amparava.251

250
Termo criado por RUBINO. As fachadas da história, op. cit.
251
A respeito desta viagem e das propostas deste grupo, cf. CALIL, Carlos Augusto Machado. Sob o signo do
Aleijadinho: Blaise Cendrars precursor do Patrimônio Histórico. In: ANDRADE, Antônio Luís Dias [et al.].
Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9ª SR/IPHAN, 2006.
119

Segundo Carlos Augusto Calil, a “Revolução de 5 de julho”252 teria ocasionado a


dispersão desordenada do grupo para o interior do Estado e o conseguinte abandono do
projeto. Todavia, a discussão sobre a preservação dos monumentos históricos nacionais
precede, no âmbito jurídico, esta tentativa,253 e, até os primeiros anos da década de 1930, não
houve força política suficiente para a aprovação de um texto legal de abrangência nacional
referente ao tema. A partir de então, as iniciativas neste sentido passaram a se concretizar:
Ouro Preto é erigida, em 1933, a “monumento nacional”; são redigidos decretos, no ano de
1934, relativos ao tema, e a Constituição do mesmo ano, em seu 148º artigo, fazia menção à
proteção dos “objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país”, atribuindo
responsabilidades à União, aos Estados e aos Municípios. Além da urgência representada pelo
tema da proteção dos monumentos históricos em face da grande expansão urbana ocorrida no
período (aspecto este notado por uma parcela cada vez maior da intelectualidade nacional,
sobretudo a paulista, para a qual o problema da urbanização era ainda mais premente),
dispunha-se agora de força política conseguida pela maior centralização do poder nas mãos de
um grupo também bastante preocupado em forjar uma memória e uma identidade nacionais.
É neste quadro que Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde Pública,
solicita a Mário de Andrade a elaboração de um ante-projeto de lei que organizaria um serviço
responsável pela proteção do patrimônio artístico nacional.254 Seguindo a linha de atuação
esboçada no recém criado Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, Mário de
Andrade dotou o órgão, que se chamaria SPAN (Serviço do Patrimônio Artístico Nacional),
de um caráter mais etnográfico, trabalhando com um conceito bastante ampliado de arte, para
o qual as edificações de valor artístico e histórico seriam apenas uma parte de um todo mais
abrangente. Mais adiante, por intermédio do Decreto-Lei nº 25 de 30.11.1937, foi organizado
o SPHAN, com uma atuação mais restrita, voltada para a proteção dos bens nacionais móveis
e imóveis, dotados de valor artístico e histórico (no qual os arquitetos modernos encontrariam
um espaço privilegiado de ação).

252
Considerada o maior conflito bélico do Estado de São Paulo, essa segunda revolta tenentista, ocorrida em
1924, também conhecida como “Revolução Esquecida”, “Revolução do Isidoro” ou “Segundo 5 de julho” (o
primeiro foi dois anos antes, quando da “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”), foi uma tentativa armada,
encabeçada pelo general reformado Isidoro Dias Lopes, que almejava depor Carlos Campos, então Presidente
do Estado.
253
Cf. Ibid., p. 85. A respeito das discussões sobre o tema anteriores à implantação do SPHAN, conferir os
interessantes quadros fornecidos por RUBINO. As fachadas da história, op. cit., e RODRIGUES, op. cit..
254
A íntegra deste texto encontra-se disponível na REVISTA DO INSTITUDO DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL nº 30 e em ANDRADE. Cartas de trabalho, op. cit.
120

3.4.2 O SPHAN em São Paulo

Mário de Andrade foi então procurado pelo amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade
(responsável pela elaboração do texto do Decreto-Lei e convidado por Capanema para dirigir
o recém-criado órgão), que lhe propôs o cargo de Assistente Técnico da 6ª Região do SPHAN,
cuja abrangência incluía os Estados de São Paulo e Mato Grosso. Empolgado (e ocupado)
com o Departamento de Cultura, Mário, a princípio, relutou em aceitar o cargo, indicando,
primeiramente, o amigo Paulo Duarte (que inclusive desejou implantar um órgão nos moldes
do SPAN em São Paulo, mas, em função das contingências políticas, acabou perseguido pelo
Governo Vargas e abortando o plano). Ante a negativa de Rodrigo, Mário de Andrade aceitou
o cargo, tratando desde logo de inventariar os bens passíveis de tombamento no Estado de São
Paulo, instrumento jurídico inovador no que tangia à proteção dos bens culturais nacionais.
Em carta já citada, Mário de Andrade deixou clara, no entanto, uma condição: “a
orientação paulista tem de se adaptar ao meio: primando a preocupação histórica à estética”.
Mais do que um lamento ante a pobreza artística tradicional do Estado, como já argumentei,
trata-se de uma firme postura intelectual, pautada no trabalho desenvolvido anteriormente na
Sociedade de Etnologia e Folclore e no Departamento de Cultura. Se o SPHAN não abria
espaço para a investigação e proteção do que então se entendia por “cultura popular”,
englobando arte, saberes, objetos etc., o que mais se aproximaria disso seria, portanto, o
aspecto “histórico” dos bens móveis e imóveis a serem tombados. Saíram então Mário de
Andrade, os assistentes Nuto Sant’Ana e Luís Saia (que já havia colaborado com a elaboração
do Anteprojeto do SPAN) e o fotógrafo “Germano” a inventariar, na capital e arredores, em
automóveis cedidos pela prefeitura (às vezes o próprio prefeito Fábio Prado acompanhava
Mário de Andrade nestas viagens), os bens que interessassem ao órgão recém criado.
Neste primeiro momento, os critérios históricos ainda não estavam claramente
definidos. Pautava-se a escolha pela ligação do bem a ser tombado aos nomes e feitos dos
bandeirantes (dada a importância que passou a lhes ser atribuída em função do papel central
que estes homens teriam prestado à expansão territorial e prospecção de riquezas), pela
iminência da perda deste bem, pelo valor artístico impregnado nas construções e, finalmente,
pelo seu simples valor de ancianidade, sobretudo se inserido no período colonial. Isso se
encontra claramente expresso no “Primeiro Relatório enviado pelo Assistente Técnico de
Diretoria do SPHAN” (datado de 16 de outubro de 1937).
121

Com base no levantamento realizado em 2007 por Carlos Lemos,255 Vitor Hugo Mori
aponta que dos mais de 90 bens mencionados nesse relatório elaborado por Mário de Andrade
em 1937, 24 foram tombados pelo órgão federal, sendo que somente 3 deles durante o período
no qual foi chefiado por Mário de Andrade (Igreja de São Miguel Paulista, em São Paulo,
Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Residência Jesuítica Anexa, em Embu, e Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Candelária, em Itu). Dentre os demais, todos foram tombados durante a
gestão de Luís Saia, com exceção da Capela da Venerável Ordem Terceira do Carmo, em São
Paulo (tombada em 1999). Isso indica que nos primeiros anos de atuação do órgão regional a
maior preocupação foi dirigida ao levantamento dos bens passíveis de tombamento.
Seria ainda interessante mencionar que dos 58 tombamentos realizados pela regional
paulista até 2007, 50 se deram no período de atuação de Luís Saia. Importa, contudo, para os
fins deste trabalho, averiguar em que medida a obra historiográfica do arquiteto influiu na
seleção e proteção destes bens.
Como foi mostrado anteriormente, a produção historiográfica levada a efeito por Luís
Saia se intensificou na década de 1950, quando a questão urbana se torna fundamental em sua
obra. No entanto, o arquiteto já havia publicado dois importantes artigos: “Os alpendres nas
capelas brasileiras”, de 1939, e “Notas sobre a arquitetura rural paulista no segundo século”,
de 1944, além de ter contribuído com o artigo de Mário de Andrade sobre a capela de Santo
Antônio, publicado em 1937. Do total dos bens tombados durante a atuação de Luís Saia, 17
tombamentos foram realizados até o final da década de 1940. Isso indicaria que todos esses
bens foram tombados sem o apoio dos critérios históricos elaborados mais consistentemente
após a década de 1950, ou seja, sem estarem amparados na construção teórica fundamentada
na noção de “evolução regional paulista”.
Não creio, no entanto, que este dado seja suficiente para que esta última hipótese seja
sustentada. Mostrei anteriormente que, até a década de 1940, Saia já havia interiorizado todos
os elementos que lhe permitiriam defender a especificidade regional paulista a partir de um
olhar predominantemente etnográfico. Com exceção da Barraca de Euclides da Cunha, em
São José do Rio Pardo, todos os demais tombamentos dentre os 17 realizados nesse primeiro
período (ou seja, até a década de 1950) se ligam ou à arte religiosa jesuítica (influência
mariodeandradiana corroborada por Lucio Costa) ou às atividades bandeirantes. De qualquer
modo, todos os demais 16 tombamentos se referem ao período seiscentista. Ora, o artigo de
1944, escrito com o intuito de justificar os tombamentos realizados neste período, define
claramente, como já foi mostrado, uma espécie de ciclo bandeirista, apontando inclusive os
255
LEMOS. Op. cit., 2007.
122

motivos que teriam levado a um novo ciclo, relacionado ao tipo de trabalho predominante no
período em que o modo de vida bandeirista entra em declínio e é favorecida a exploração de
cana de açúcar no litoral norte paulista.
Assim, se aparentemente não há, até fins da década de 1940, uma produção
historiográfica consistente por parte de Luís Saia, capaz de conferir um sentido claro às
práticas preservacionistas paulistas, existe já uma consciência histórica firmemente
constituída, capaz de imputar uma espécie de “proto-sentido” para a formação regional
paulista, rematado, a partir da década de 1950, com a aplicação do conhecimento urbanístico e
da sua perspectiva processual particular. Por “consciência histórica” compreendo aqui a forma
pela qual o indivíduo organiza interiormente passado e futuro, experiência e expectativa, de
modo a conferir sentido à sua ação no presente. Isso ajuda a entender porque neste momento
praticamente todos os bens tombados pertencem ao período bandeirista: até então, ao que tudo
indica, já estava claro para o arquiteto que aquilo que posteriormente seria definido como
“ciclo bandeirista” seria fundamental para a compreensão da especificidade paulista; o que
talvez ainda não estivesse claro é a forma como este ciclo evoluiria para outros, abrangendo
um processo mais amplo da evolução regional paulista.
A partir da década de 1950 amplia-se o lapso temporal no qual estão inseridos os bens
tombados pelo IPHAN. Com exceção dos ciclos mais recentes (ou seja, aqueles posteriores à
expansão ferroviária ocorrida no território paulista), todos os demais possuem ao menos um
representante típico tombado. Da “arquitetura de circunstância”, é possível citar a “Casa Sede
da Fazenda Engenho d’Água”, em Ilhabela; do ciclo cafezista (“economia de sobremesa”), foi
tombada, entre outros edifícios, a “Fazenda Pau d’Alho”, considerada um tipo “clássico” do
período pelo arquiteto; do ciclo ferroviário, a “Casa de Prudente de Morais”, em Piracicaba,
ou o “Edifício do Museu Republicano da Convenção de Itu”. Do período chamado
“intermezzo roceiro”, talvez se pudesse incluir a “Casa Natal de Oswaldo Cruz”, em São Luís
do Paraitinga, que se ligaria mais àquele “5º ciclo” apresentado em “Quadro geral dos
monumentos paulistas” (vide “tabela 1”), ao qual pertenceu esta cidade.
Falta ainda responder a uma questão fundamental: em que medida esses tombamentos
se diferenciam daqueles enquadrados no conhecido “patrimônio pedra e cal”? Não teria Luís
Saia privilegiado também monumentos arquitetônicos isolados pertencentes
privilegiadamente à arquitetura religiosa colonial? Para tentar responder a estas perguntas, é
necessário tecer antes algumas considerações.
Luís Saia foi um funcionário público, e, como tal, teve que ceder a uma série de
imposições, visto que possuía uma autoridade limitada dentro do órgão. Isso não significa que
123

o arquiteto trabalhasse a contragosto. Muito pelo contrário: assim como uma grande
quantidade de intelectuais do período, Saia parece ter visto no SPHAN um espaço para a
implementação de ideais progressistas de modernização nacional. No entanto, este espaço
oferecia uma limitação básica: seriam tombados os bens móveis e imóveis dotados
principalmente de valor artístico e histórico. Não havia lugar (nem recursos) no SPHAN para
a ampla investigação cultural, amparada no que havia então de mais avançado em termos de
teorias e métodos antropológicos e folclorísticos, conforme pretendido pela intelectualidade
paulista reunida em torno da USP e do Departamento de Cultura. E, dadas as características
centralizadoras do Estado Novo, não havia, a partir de 1937, outro lugar para tal atuação no
campo da preservação cultural.
Desta forma, Saia apenas pôde preservar, no SPHAN, um grupo restrito de vestígios
do passado que indicariam os rumos de uma modernização pertinente, atenta às necessidades
locais. Além disso, segundo Cristiane Gonçalves “a grande tarefa colocada aos colaboradores
regionais era, além de identificar e coletar dados acerca do patrimônio de bens móveis e
imóveis, proceder às medidas cabíveis para efetivação dos tombamentos e restauração dos
respectivos monumentos”.256 Como apontei acima, essa atuação deveria ainda se conter aos
bens que apresentassem valores artístico e histórico.
O domínio artístico englobava, em São Paulo, principalmente a arte jesuítica,
analisada por Mário de Andrade (que também estudou a fundo a obra do padre Jesuíno do
Monte Carmelo, na verdade carmelita) e Lucio Costa (que publicou, no número 5 da Revista
do SPHAN, um célebre artigo dedicado à arte jesuítica no Brasil). Assim, o grosso da arte
religiosa colonial paulista já havia sido estudado pelos dois intelectuais supracitados, e isso
não foi alvo de questionamento de Saia, que respeitou a autoridade dos mesmos e se limitou a
tombar o que por eles foi analisado e a propor alterações no âmbito restrito dos aspectos
construtivos.
Foi, contudo, no âmbito histórico que Luís Saia conseguiu atuar de forma mais
interessante. Graças a essa sua atuação, foram tombados bens que provavelmente não
encontrariam lugar dentro dos critérios cunhados pelo órgão central. O arquiteto estabeleceu,
com clareza, em que medida as técnicas construtivas e partidos locais adquiririam relevância
nacional ao ligá-los ao modo de vida dos bandeirantes, grupo este já legitimado dentro da
historiografia nacional.257
256
GONÇALVES. Op. cit., 2007, p. 56.
257
A respeito da construção da figura do bandeirante, Marly Rodrigues diz o seguinte: “esta fora construída
desde o final do século XIX no interior do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo por uma elite que
pretendia estruturar a República. Como registra [Lílian Moritz] Schwarcz, construiu-se uma história regional
que procurava dar conta da totalidade brasileira”. RODRIGUES, Op. cit., p. 35.
124

Assim, o fato de um edifício ter sido construído com taipa de pilão nas paredes
externas acabou se tornando um forte argumento favorável ao seu tombamento, sobretudo
após o artigo escrito em 1944, ou seja, o já aludido “Notas sobre a arquitetura rural paulista do
segundo século”. Da mesma forma, uma casa que contasse uma planta constituída de desenho
retangular, faixa fronteira (composta por pretório, quarto de hóspedes e capela) e sala central
posterior ladeada por alcovas, seria uma candidata quase certa ao tombamento. Seriam vários
os exemplos a serem arrolados, mas bastaria aqui a menção às casas do Sítio do Mandu e do
Padre Inácio, ambas em Cotia, à Casa e Sobrado situada na Praça da Matriz de Santana de
Parnaíba, às casas do Sítio Morrinhos e do Tatuapé, ambas em São Paulo, e à casa do Sítio de
Santo Antônio e Capela Anexa, em São Roque.
A vinculação a “grandes nomes” de “nossa história” serviu também, algumas vezes,
como pretexto para proteção de edifícios significativos do ponto de vista da “evolução
regional paulista”. Esse é o caso da Casa do Conselheiro Rodrigues Alves, em Guaratinguetá.
Segundo Carlos Lemos, a região do alto Vale do Paraíba do Sul “nunca chegou a possuir um
exemplar de casa rural, que normalmente chamamos de ‘bandeirista’, como aquelas
encontráveis na bacia do alto Tietê”,258 não obstante ter sido a região povoada desde o
“segundo século”. No entanto, a residência representa os períodos iniciais da expansão
cafezista, muito bem delineada por Saia no artigo “Economia de sobremesa”. Se não fosse
pelo pretexto de ter sido berço de um “grande nome”, esse período da “evolução regional
paulista” não contaria com seu testemunho material. O mesmo pode ser dito em relação à casa
de Oswaldo Cruz, em São Luís do Paraitinga. Preservou-se assim ao menos um remanescente
do núcleo urbano cujo tombamento só muito recentemente tem sido cogitado com seriedade,
não obstante os esforços anteriores do próprio Saia.259
O pequeno número de bens tombados em São Paulo (em comparação ao total de
tombamentos efetuados pelo IPHAN) poderia indicar a pouca relevância do trabalho da
regional paulista para a definição de uma memória e identidade nacionais. No entanto, este
argumento não é condizente com a autoridade que Saia conquistou no meio preservacionista,
nem com o lugar que a arquitetura bandeirista adquiriu na história da arquitetura brasileira.
Acredito que o número limitado de bens protegidos se deva muito mais à falta de recursos e
material humano. As cartas de Mário de Andrade ao seu superior e amigo Rodrigo indicam
claramente essa escassez (o polígrafo teve que pagar os seus assistentes – dentre eles Luís
258
LEMOS. Op. Cit., 2007, p. 119.
259
SAIA; TRINDADE. Op. cit. (este capítulo foi escrito antes da realização de um pormenorizado relatório
sobre São Luís de Paraitinga por Jaelson Trintade, que, por um feliz acaso, foi concluído antes das
desastrosas enchentes ocorridas no final de 2009, responsáveis pela destruição da quase totalidade do centro
histórico dessa cidade).
125

Saia – com seus próprios “cobres”,260 além de abrigar inicialmente a regional paulista do
SPHAN em sua própria casa!). A esse respeito, há o interessante relato de Nestor Goulart Reis
Filho, que dá sustentação a este argumento:

era muito difícil, uma dificuldade de acesso, sem estradas etc., havia muito pouca
coisa. Então a ação era muito limitada nesse sentido. Eles pegavam... O Saia
especialmente. Ele achava que só ia fazer aquilo que ele pudesse cuidar. Então
tombava o mínimo indispensável. E aí se dedicava àquilo. Não tinha essa visão de
tombamentos extensivos, abrangentes. E aí pegava cada projeto, discutia para
investir, e tinha muito pouco dinheiro a cada ano. Ficavam numa obra aqui, ali. Às
vezes, quando terminava, quando achava que tinha terminado o projeto anterior,
tinha que começar de novo, que os cupins atacavam, ou o arquivo estava arruinado,
quem devia tomar conta era um convento, o convento não cuidou, deixavam
infiltrar, tinha que começar tudo de novo. Era um universo limitado. Não era muito
grande, mas era isso que eles faziam. Ele era bastante independente, nesse sentido
técnico, do órgão central.

O relato supracitado toca num aspecto importante para a compreensão das


especificidades das práticas preservacionistas paulistas, ou seja, a independência dessa
regional em relação à direção geral do SPHAN. É partindo deste aspecto que se torna possível
mensurar a real margem de inovação à disposição das regionais estaduais, permitindo a
relativização do poder de coerção alcançado pela “formação discursiva hegemônica”
institucionalizada e legitimada em nível nacional.
Um aspecto interessante para análise dessa autonomia relativa (na verdade bastante
limitada) são os restauros levados a cabo na regional paulista.261 A decisão final de fato cabia
ao Diretor de Estudos e Tombamentos, ou seja, Lucio Costa. Isso demonstra o caráter
centralizador da burocracia vigente durante o Estado Novo: Vargas confiou uma série de
poderes a Gustavo Capanema, que, por sua vez, delegou alguns deles a Rodrigo Melo Franco
de Andrade que, por fim, confiou a Lucio Costa as decisões sobre todos os aspectos ligados ao
tombamento e à manutenção dos bens tombados. Assim, pode-se depreender que o aparato
burocrático do governo Vargas estruturou-se por intermédio de uma série de redes
interpessoais que garantiam um relativo controle das decisões políticas e administrativas nas
mãos do Presidente da República. Entre a atuação de Saia e o gabinete ditatorial havia apenas

260
ANDRADE. Cartas de trabalho, op. cit., p. 67.
261
Segundo ainda o relato de Reis Filho, “[a autonomia] era relativa, veja: na parte dos restauros tinha que
mandar os projetos para o Dr. Lucio que era o Diretor. Os projetos eram mandados para o Rio, eram
discutidos na correspondência. (...) Mas eles discutiam muito cada projeto. O Dr. Lucio centralizava um
pouco as decisões, mas ao mesmo tempo as informações. E eles se correspondiam, eram todos amigos, para
saber o que estavam achando, como é que era. (...) Não era, não havia esse desembaraço de fazê-lo sem ouvir.
Nem ousaria. Era muito consenso também, não é? Era muito consenso. As pessoas trocavam idéias, havia um
corpo de conhecimento mais ou menos comum entre eles. E às vezes um saía de um estado, ficava algum
tempo num estágio, no outro. (...) Mas eram muito dependentes do Rio de Janeiro. Temos pouca coisa. Senão
ele não poderia... O Dr. Lucio não poderia controlar. Era pouca coisa”.
126

três homens, todos da mais estrita confiança do presidente.


No entanto, essa consistente rede não é suficiente para assegurar um total controle das
ações de todos os indivíduos subordinados ao poder central. A análise das ações individuais se
mostra assim fundamental para uma averiguação mais correta do funcionamento de aparatos
institucionalizados como este no qual Luís Saia se inseriu. Trabalhos como o já citado artigo
“O nariz torcido de Lucio Costa”, de autoria de Antônio Luís Dias de Andrade e sobre os
trabalhos de restauro realizados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, situada no município
de Embu,262 e o livro Restauração arquitetônica, de Cristiane Souza Gonçalves, sobre outras
quatro intervenções de Saia,263 mostram o grau de arbitrariedade conquistado nas restaurações
levadas a cabo pela regional paulista sob a chefia do arquiteto paulista. Mesmo que com o
“nariz torcido”, ou seja, ainda que a contragosto, Lucio Costa acabou acatando, por exemplo,
as sugestões de Saia para os beirais e torre sineira da Igreja de Embu. 264 Da mesma forma, foi
aceita a ideia para o gradil lateral da Igreja de São Miguel Paulista, a demolição da “casa do
Barão”, no Sítio de Santo Antônio em São Roque, a extensão total da casa grande restaurada
na mesma localidade e a feição do alpendre de sua capela (sempre com a desconfiança de
Lucio Costa).265 Nem mesmo a autoridade de Paulo Tedim Barreto, que publicou um artigo
versando sobre a tipologia das casas de câmara e cadeia brasileiras,266 foi suficiente para
impedir que Saia se baseasse na sua teoria sobre a evolução regional paulista e restaurasse a
Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia da forma como ela se encontra atualmente nessa cidade,
em oposição a técnicos influentes da Direção Central do SPHAN, a exemplo do próprio
Barreto e de Edgard Jacintho da Silva.267
Esses episódios são capazes de demonstrar que, mais que a imposição de um consenso
por parte da direção central do órgão estatal, o SPHAN estruturou sua atuação (e a base de
conhecimento para as atuações posteriores) na acomodação de dissensos. Para tanto, realizou-
se um acordo em torno de um consenso mínimo (ou seja, a incessante pesquisa das raízes da
nacionalidade e a utilização prática disso para a modernização do país) e do estabelecimento
de consensos secundários com base na autoridade demonstrada pelos atores em questão. Luís
Saia conquistou sua autoridade neste campo através das pesquisas que levou a cabo e,
sobretudo, pela apresentação historiográfica de suas ideias, produzindo, como diria Lucio
Costa, uma “argumentação lógica” de difícil refutação.

262
ANDRADE. Op. cit., 1992.
263
GONÇALVES. Op. cit., 2007.
264
Cf. ANDRADE. Op. cit., 1992.
265
Cf. GONÇALVES. Op. cit., 2007.
266
BARRETO, Paulo Tedim. Casas de Câmara e Cadeia. In: Revista do Patrimônio, n. 26, p. 362-443, 1997.
267
GONÇALVES. Op. cit., 2007, p. 147-150.
127

Enfim, para que seja respondida a questão sobre a relevância da produção


historiográfica no que diz respeito aos tombamentos paulistas, poderia dizer o seguinte: o que
se tombou e se restaurou em São Paulo, entre 1938 e 1975 (e até mesmo posteriormente), foi a
história da evolução regional paulista conforme narrada por Luís Saia. Diria ainda mais: a
capacidade de suprir carências de sentido pela prática dos tombamentos não repousa somente
nas mãos do Conselho Consultivo, como defende Marize Santos, por exemplo. Depende
muito mais, conforme creio ter sido suficientemente demonstrado, da autoridade discursiva
dos indivíduos que se empenham em demonstrar, sobretudo no âmbito historiográfico, quais
bens são dignos de tombamento. Assim, raramente o Conselho Consultivo do SPHAN
questionou os pareceres de Lucio Costa, da mesma forma que o próprio Costa se rendeu boa
parte das vezes à autoridade de Luís Saia no que diz respeito à arquitetura tradicional paulista.
Fica claro, por fim, que esta autoridade baseia-se, como foi mostrado, na capacidade de
demonstrar metodicamente um sentido para as práticas preservacionistas, o que só pode ser
feito narrativamente, ou melhor, historiograficamente.

3.4.3 O CONDEPHAAT

Os parâmetros consolidados na regional paulista se estenderam ao Conselho de Defesa


do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo – o
CONDEPHAAT -, principalmente nos seus primeiros anos de vigência. Já me referi, no início
deste capítulo, à criação e consolidação desse órgão. Isso foi possível num contexto em que se
buscava uma maior descentralização na proteção dos bens culturais da nação, atribuindo
maiores responsabilidades aos estados e municípios, descentralização esta possibilitada pela
gestão de Renato Soeiro à frente da então Diretoria do Patrimônio Artístico e Nacional. Marly
Rodrigues, que estudou a trajetória do CONDEPHAAT, afirma que este conselho “foi criado
no momento em que se acelerava a expansão do consumo e da cultura de massas no país”, 268
daí a letra “T”, de “Turístico”, completando a sigla. Além disso, os momentos iniciais desse
órgão foram marcados pelas divergências entre seus membros (opondo inicialmente um corpo
técnico, composto principalmente por arquitetos, a outro, de cunho tradicionalista, do qual
fazia parte principalmente membros dos Institutos Históricos e Geográficos locais), e pela
falta de recursos materiais e administrativos para que os tombamentos estaduais fossem
268
RODRIGUES, Op. cit., 57.
128

efetivados.
Embora não tenha presidido o Conselho, Saia ocupou a cadeira reservada ao IPHAN
até 1975, ou seja, seu último ano de vida. Segundo Rodrigues, “desde logo conhecedores dos
fazeres técnicos e de conceitos relativos à preservação, os conselheiros arquitetos procurariam
desempenhar papel central no estabelecimento da metodologia do novo órgão, que acabou por
tornar-se herdeiro e reprodutor da ortodoxia do SPHAN”.269 Para essa historiadora, tal
continuidade refere-se especificamente ao “excessivo cuidado com a História da
Arquitetura”,270 à consideração dos “ciclos” da história paulista como critério para
tombamento, incluindo aqueles relativos ao café e à industrialização, e a um certo
academicismo, pelo qual “a estratégia de documentação permitia comprovar os valores
históricos e estéticos nacionais e universais, o que revestia os tombamentos de um caráter de
utilidade pública”,271 sendo este último argumento retirado das já comentadas hipóteses de
Marize Santos.
Não obstante Rodrigues constate corretamente a marcada influência que Saia exerceu
nos primeiros anos de existência do CONDEPHAAT, creio que a adoção de algumas
premissas a conduzem a críticas por vezes excessivas. Segundo Rodrigues,

palavra que envolve idéia de progresso, decadência e sucessão contínua de


atividades exclusivas, o ciclo afigurava-se como forma de situar um bem material
nos limites do tempo e do espaço dando-lhe historicidade, embora restrita, pois o
critério econômico não atende à complexa rede de relações culturais presentes em
um período histórico.272

Desta forma, a autora não demonstra levar em conta a utilização, por parte de Luís Saia, de
uma perspectiva processual particular, inspirada em alguns aspectos na dialética marxista, na
qual considera a conexão de vários processos, dentre eles o econômico, que compõem um
processo mais amplo, ou seja, o da evolução regional paulista. Assim, o “ciclo bandeirista”,
por exemplo, não diz respeito apenas a uma cultura de subsistência, mas a um modo de vida
que depende das formas de ocupação do solo (distribuição concêntrica de fazendas em torno
de Piratininga), de heranças culturais (a influência feudal) e de apropriações e outras culturas
(a “criação” do mameluco por intermédio da miscigenação com a população autóctone), da
adaptação ao meio (criação de uma cultura material – a exemplo da casa – que possibilitasse o
aproveitamento do novo espaço, formas de alimentação, de comunicação etc.), dentre outros

269
Ibid., p. 60.
270
Ibid., p. 65.
271
Ibid., p. 57.
272
Ibid., p. 64.
129

aspectos que conformam processos específicos e interconectados de apropriação, adaptação,


criação e obsolescência. Como Saia demonstra, o poder do bandeirante nem ao menos girou
em torno de uma exploração econômica, mas de um apresamento indígena que lhe conferiria
poderio militar. As mesmas considerações podem ser estendidas aos demais ciclos.
Com relação ao “academicismo” destes órgãos, não discordo da ideia de que isso
contribua para que estes funcionários sejam revestidos de uma autoridade discursiva,
conforme sustenta Marize Santos. No entanto, não se trata apenas disso. A construção de uma
nacionalidade gera uma carência de sentido que, como é sabido, necessita de um rigor
metodológico quanto mais se procure um saber “verdadeiro”. Ora, “academia”, na acepção
utilizada por estas autoras, poderia ser perfeitamente definida como um espaço institucional
no qual se tem por consenso mínimo o emprego de ferramentas metodológicas de eficácia
demonstrada cujo intuito é a busca de respostas racionais (verdadeiras) para hipóteses de
relevância coletiva. De fato foi isso que se praticou e se pratica no IPHAN. As próprias
autoras fazem parte deste mundo, desde que pretendam, com rigor científico, dizer algo
“verdadeiro” ou “racional” sobre qualquer objeto de pesquisa. Se houve uma democratização,
sobretudo a partir da segunda metade da década de 1970, na definição de diferentes
identidades (passou-se então a valorizar a heterogeneidade cultural nacional), é porque
diferentes grupos passaram a ter acesso às ferramentas metodológicas necessárias para a
definição de suas respectivas identidades. Não só os arquitetos, mas agora historiadores,
antropólogos, sociólogos. Não só brancos, mas negros, filhos de imigrantes, descendentes de
mamelucos etc. Assim, a questão do “academicismo” parece estar, ainda hoje, mal colocada.
Não houve uma mudança fundamental, de 1937 para cá, das formas de se definirem uma
nacionalidade e a(s) identidade(s) dessa nação.

3.5 CONCLUSÃO

O intuito deste capítulo foi demonstrar que não é possível reduzir as práticas
preservacionistas implementadas pelo IPHAN a um corpus conceitual cristalizado, muito
embora esse tenha que ser levado em conta em qualquer análise desse tipo. Contudo, mesmo
definir o que vem a ser esse corpus se torna tarefa complicada, quanto mais se encarado a
partir de um número restrito de atores.
Desta forma, quis mostrar que, para a compreensão destas práticas, é fundamental que
130

levemos em conta as ações individuais dos sujeitos nelas envolvidos. A história da


historiografia se mostrou, a meu ver, um domínio privilegiado para este fim, à medida que
permite alcançar as noções e conceitos alternativos formulados no único meio que lhe pode
conferir eficácia, ao menos no caso em questão, ou seja, a narrativa historiográfica.
Com essa meta específica delineada, evitei tecer qualquer espécie de juízo de valor
alheio a ela. Creio, dessa forma, que certas críticas, ainda que pertinentes, devam ocupar
estudos à parte. Refiro-me, por exemplo, à forma pela qual Saia mitigou o extermínio da
população autóctone americana, seja englobando toda a diversidade de etnias hoje extintas no
dissolvente conceito de “índio”, seja relegando sua contribuição apenas àquilo que tais etnias
forneceram à cultura paulista, esquecendo-se de que o genocídio pelo qual passaram não foi
total, ainda que devastador.273 Poderia mencionar também o caráter elitista que confere à ação
revolucionária, talvez influência do binômio “cultura erudita/cultura popular”, tão influente
no pensamento de Mário de Andrade.
É forçoso dizer também que alguns aspectos interessantes infelizmente não puderam
ser contemplados neste capítulo. Exemplo disso é o papel das questões concernentes à estética
na reflexão realizada pelo arquiteto. É possível encontrar em sua biblioteca obras que vão de
Plotino a Suzan Langer, passando por Kant, Hegel etc. Todavia, a exploração de mais essa
possível fonte excederia a capacidade de trabalho prevista para esta dissertação, além de
muito provavelmente não contribuir com nenhum argumento além de demonstrar, mais uma
vez, a amplitude reflexiva e a força individual da produção historiográfica de Saia.
O arquiteto em questão também não elaborou a única concepção de evolução
arquitetônica influente no Estado de São Paulo. Afirmar isso seria negar as premissas
apresentadas no capítulo anterior. No entanto, no período em que esse arquiteto atuou, suas
interpretações foram, de fato, pouco discutidas. Essa situação começou a mudar, sobretudo, a
partir de 1974, ano em que ocorreu o Curso de Conservação e Restauro, ministrado por vários
professores, na USP. Nesse momento, outros atores percebem a possibilidade de ocupar o
promissor e prestigiado(r) local até então dominado por Saia, que já contava com 63 anos de
idade e viria a falecer no ano seguinte.

273
No campo da historiografia, uma boa leitura no que diz respeito a relação entre paulistas e brasis, como
prefere Mário Maestri (MAESTRI, Mário. Terra do Brasil: a conquista lusitana e o genocídio tupinambá.
São Paulo: Moderna, 1993), é MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens
de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
131

4 NESTOR GOULART REIS FILHO E A “EVOLUÇÃO URBANA”: AS


NOVAS DEMANDAS DO PATRIMÔNIO PAULISTA (1964-1986)

A 6ª Região do IPHAN, sob o comando de Luís Saia, logrou inserir São Paulo no
“mapa do Brasil passado”.274 Contudo, os recursos financeiros e humanos de que dispunha
esse órgão eram limitados e, nos últimos anos de vida desse arquiteto a demanda pela
preservação do patrimônio cultural brasileiro começava a se expandir significativamente. Essa
expansão acompanhava o crescimento urbano e industrial, a ampliação do conceito de
patrimônio cultural e a diversificação dos grupos interessados no controle desses bens
culturais.
Esse fenômeno não ficou restrito ao Brasil. Com a destruição em larga escala
ocasionada pela Segunda Guerra Mundial, os problemas envolvendo a conservação e
restauração ganharam destaque, o mesmo ocorrendo em relação à reconstrução e
planejamento urbano aliados ao desenvolvimento econômico e social. Um dos principais
documentos gerados por essas discussões foi a Carta de Veneza, cujos ecos logo se fizeram
perceber por aqui. Vários técnicos da Unesco foram trazidos ao Brasil principalmente por
intermédio da gestão de Renato Soeiro junto ao IPHAN, e tomou-se assim conhecimento de
uma série de novos objetos e critérios de conservação e restauração a serem incorporados na
problemática da preservação do bens culturais nacionais. Além disso, essa nova demanda
passou a exigir a descentralização cada vez maior das ações preservacionistas, que passaram a
ser atribuições também de estados, municípios e mesmo da sociedade civil. A tudo isso
somou-se ainda a percepção do potencial econômico desses bens culturais.
As ações individuais que ora serão analisadas indicam muito bem as possibilidades de
atuação e inovação no campo das práticas preservacionistas nacionais desse novo período. Se
Nestor Goulart Reis Filho não se destacou tanto quanto Luís Saia no âmbito paulista (até
porque o campo de ação teve que ser dividido com um número muito mais expressivo de
atores), deve-se reconhecer que sua atuação, dentro dos limites impostos, foi responsável por
modificações significativas notadas a partir de então nas ações preservacionistas paulistas e
nacionais. Tais alterações relacionam-se sobretudo com os fenômenos de explosão urbana
observados a partir de então, que acabaram por repercutir de forma direta no campo das
políticas de proteção de bens culturais. A obra de Reis Filho possibilitou uma consistente
orientação para a preservação dos “conjuntos” históricos, que passavam a encabeçar a lista
274
Cf. RUBINO. Op. cit., 1992 e 1997.
132

dos itens de maior importância como vestígio material dos processos definidores de
identidades coletivas.
O êxito da empreitada empreendida por Reis Filho se deve certamente ao fato de que
ele se lançou, primeiramente, ao campo mais importante das ações de construção de memória
e identidade de um “povo”, ou seja, a “produção de sentido”. A noção de “evolução
arquitetônica” diretamente atrelada à de “evolução urbana” se mostrou, como veremos, uma
importante ferramenta para a orientação das ações preservacionistas nesse período. Neste
capítulo procurarei mostrar como se deu essa produção de sentido, isto é, a partir de quais
significados ou motivações e em quais efeitos implicou essa ação.
Para tanto, manterei o mesmo esquema aplicado ao capítulo anterior. Serão analisadas
a inserção acadêmica e profissional que abrangem e permitem uma compreensão das ações de
Reis Filho, a produção historiográfica desse autor e como, a partir dela, foi possível imputar
sentido à arquitetura nacional (assegurando-lhe o posto de importante vestígio material num
contexto de expansão dos objetos a serem preservados) e, por fim, os efeitos, nos variados
campos que se abriram à ação preservacionista, das práticas que passaram a possuir novos
significados.

4.1 INSERÇÃO ACADÊMICA E PROFISSIONAL

Boa parte dos dados que serão elencados nesta primeira seção foram extraídos de uma
entrevista gentilmente cedida pelo próprio Nestor Goulart Reis Filho, ainda em plena
atividade junto ao Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação – o
LAP – da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP – a FAU.275 Esse tipo de fonte, a
oral, como é sabido, traz suas vantagens mas também suas dificuldades. No entanto, creio ser
perfeitamente possível elaborar um quadro confiável relativo à formação intelectual e
profissional deste arquiteto, desde que realizado o devido confronto com outros tipos de
fontes.276 Assim, as citações sem referências foram retiradas da entrevista.
275
Embora esteja aposentado desde 2001, Reis Filho continua na atividade docente junto ao Programa de Pós-
Graduação da FAU-USP.
276
Para a realização da mencionada entrevista me baseei, principalmente, em MEIHY, José Carlos Sebe Bom.
Manual de História Oral. 5ª Ed. – São Paulo: Edições Loyola, 2005. Elaborei inicialmente um questionário
fechado com perguntas sobre o relacionamento de Reis Filho com os demais autores e sobre as instituições
preservacionistas paulistas. No entanto, Reis Filho acabou fornecendo um rico quadro num relato cuja
transcrição totaliza 29 páginas. Para confrontar os dados que foram narrados pelo autor, utilizei outras
entrevistas também fornecidas por ele a outros entrevistadores (sobretudo a disponível em
133

Destacarei aqui apenas os dados significativos enquadrados principalmente entre os


anos de 1964 e 1986, que correspondem, respectivamente, ao início da efetiva atividade
docente na FAU e à atuação junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano
(CNDU). Nesse curto período já é possível encontrar o desenvolvimento de uma noção
particular de evolução arquitetônica. Esta se liga diretamente à evolução urbana e foi
constituída no ambiente possibilitado pela atividade docente na FAU, efetivando-se nas
práticas preservacionistas paulistas, que a partir da criação do CONDEPHAAT e do Curso de
1974 ficaram cada vez mais a cargo dos professores dessa Faculdade (numa disputa
diretamente travada com as práticas institucionalizadas no IPHAN paulista).
Nascido em 1932, na cidade mineira de Cataguases, Nestor Goulart Reis Filho
ingressou no curso de arquitetura da FAU em sua quarta turma, ou seja, em 1951. Esta
faculdade havia sido criada em 1948, e, neste início de atividades, ela ainda não oferecia uma
formação teórica consistente. Seu currículo era inovador para a época, na qual haviam apenas
sete cursos de arquitetura, a maioria deles funcionando ou como um anexo das escolas de
engenharia ou de acordo com o modelo das “Escolas de Belas Artes”.277 No entanto, o curso
da FAU voltava-se principalmente para a prática projetiva com ênfase em arquitetura
moderna, em detrimento dos aspectos teóricos e acadêmicos. O “único teórico possível” de
acordo com Reis Filho, era o arquiteto Luiz Ignácio de Anhaia Mello, que afastara-se da
Faculdade após um desentendimento com o conselho dessa instituição, “desarvorando” os
alunos da FAU no que diz respeito a este tipo de formação.
As atividades desenvolvidas no Grêmio Estudantil da FAU levaram esses jovens
alunos a conhecerem o trabalho que vinha sendo realizado no SPHAN. Isso se deu, em
primeiro lugar, por intermédio de uma das atividades do grêmio, na qual os trabalhos teóricos
disponíveis sobre arquitetura (sobretudo os textos da Revista do SPHAN, no que diz respeito à
arquitetura tradicional) eram copiados, editados e apostilados, sendo que a seleção dos textos
era feita por indicação dos “mais velhos”. Reis Filho também menciona o trabalho pioneiro
desses alunos no que se refere à montagem de um acervo fotográfico, a cores, sobre
arquitetura, o único disponível inclusive para os professores da época. Nessa época foi criado
o Centro de Estudos Folclóricos, fundado por alguns alunos, dentre eles o arquiteto Antônio

http://www.arcoweb.com.br/entrevista/entrevista52.asp), além do currículo fornecido pela Plataforma Lattes.


277
Em São Paulo, além do curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica (a respeito do qual tratei no
capítulo anterior), havia o da Universidade Mackenzie, de viés academicista, sendo os demais cursos de
arquitetura em Escolas de Belas Artes, como a do Rio de Janeiro, que foi a “matriz”, Porto Alegre, Salvador e
Recife. Somente em Belo Horizonte havia uma Faculdade de Arquitetura independente (na qual se
destacaram nomes como, por exemplo, Sylvio de Vasconcellos, sendo que o próprio Luís Saia se tornou
professor livre-docente desta Faculdade). (Dados fornecidos pelo próprio Nestor Goulart Reis Filho em seu
depoimento. Cf. também FICHER. Op. cit.).
134

Carlos Alves de Carvalho, cujas atividades pautavam-se no trabalho da regional da


DPHAN.278
Por outro lado, esses jovens estudantes trabalharam diretamente com Luís Saia, como
no caso das comemorações pelo 4º Centenário da Cidade de São Paulo, ocasião na qual Reis
Filho relata ter realizado, junto com dois outros colegas seus, um trabalho, sob a orientação
daquele arquiteto, sobre a história urbana do Estado de São Paulo. Estes alunos levantaram
cerca de 50 mapas, o que, sem dúvida, foi extremamente significativo para a formação de
Reis Filho. Assim, em função do interesse desses alunos, tanto pela arquitetura “moderna”
quanto pela “tradicional”, muito influenciados pelas leituras dos textos produzidos por Lucio
Costa e outros intelectuais do SPHAN, Reis Filho afirma que “as fontes, a meu ver, passavam
pelo Patrimônio, que era onde as duas tradições [ou seja, a arquitetura tradicional e a
moderna] se encontravam”.
Além de Luís Saia, Reis Filho tomou contato, desde a época de estudante de
arquitetura, com outros nomes importantes da arquitetura moderna brasileira. O arquiteto
narra, por exemplo, que, com dezenove anos, foi para o Recife junto com alguns colegas seus
e o engenheiro Airton Carvalho. Foram para o nordeste de automóvel e assistiram às aulas
ministradas pelo “Dr. Airton” nas ruas de Olinda, com a câmera fotográfica em mãos e muita
curiosidade. Airton de Carvalho foi figura importante dentro da história do IPHAN, tendo
sido diretor da regional de Pernambuco e composto um grupo, no mesmo Estado, de
importantes figuras, como o calculista e poeta Joaquim Cardoso (que trabalhou ao lado de
Oscar Niemeyer) e o arquiteto mineiro Luiz Nunes.279
Reis Filho se formou arquiteto em 1955, passando a atuar um mês depois como
professor assistente na FAU. Em 1958 decidiu prestar concurso para o quadro de professores
efetivos daquela Faculdade. A banca foi composta por Sylvio de Vasconcellos, Diógenes
Rebouças (conceituado arquiteto baiano, também ligado ao IPHAN) e Lourival Gomes
Machado (que, segundo Reis Filho, era o “grande historiador de arte”). Tendo sido mal
sucedido nessa tentativa, o arquiteto percebeu que a formação oferecida pela FAU seria
insuficiente para sua carreira de professor, motivo pelo qual ingressou, logo em seguida, no
curso de Ciências Sociais da USP, sem abandonar, contudo, a docência. No entanto, o

278
Cf. SZMRECSANYI, Maria Irene. Origens da pesquisa em história na FAU-USP e os primeiros orientadores.
Desígnio: revista de história da arquitetura e do urbanismo. Universidade de São Paulo. Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo. Área de concentração de pós-graduação. História e fundamentos da arquitetura e
do urbanismo. N. 1, São Paulo: Annablume, 2004.
279
Reis Filho ainda lembra que Airton de Carvalho vinha de família tradicional, era historiador, curiosamente
monarquista, possuía formação de direita católica além de ser figura curiosa e inteligente, pela qual
demonstra muito respeito.
135

arquiteto confessa que sua formação historiográfica foi obtida, na verdade, nos trabalhos do
IPHAN, visto que o curso de Ciências Sociais não oferecia nenhuma disciplina na área de
história.
Após ter se formado em Ciências Sociais em 1962 (num contato direto, portanto, com
o grupo de Florestan Fernandes), Reis Filho se torna finalmente, em 1964, professor livre-
docente da FAU, com uma tese intitulada Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana no
Brasil (1500-1720).280 A FAU acabara de passar, em 1962, por uma importante reforma
curricular, adotando moldes que persistem até hoje. A alteração mais significativa é que essa
Faculdade passou então a contar com três departamentos: Projetos, História da Arquitetura e
Tecnologia da Arquitetura. Reis Filho teve então um papel importante na consolidação da
FAU como um local privilegiado para a produção da história da arquitetura, tanto paulista
quanto nacional.281
Muito embora possua uma carreira bastante diversificada, Reis Filho se dedicou,
principalmente, à pesquisa e à docência. Entre 1968 e 1972, assumiu o cargo de chefe do
Departamento de História da Arquitetura e Estética da FAU-USP. Logo em seguida, tornou-se
o primeiro diretor ex-aluno dessa Faculdade, cargo no qual permaneceu até 1975.
Concomitantemente à direção da FAU, entre 1973 e 1975, assumiu a presidência da
Associação Brasileira de Escolas de Arquitetura, o que demonstra o engajamento do arquiteto
nessa área de atuação.
Relacionado diretamente à pesquisa histórica, é importante destacar a criação do já
mencionado LAP. Em torno deste laboratório de pesquisa, Reis Filho tem realizado e
coordenado importantes estudos sobre arquitetura, urbanização e preservação, tanto em nível
local como nacional. Além de trabalhar num número expressivo de pesquisas, Reis Filho tem
sido responsável pela orientação de uma série de outros pesquisadores naquele laboratório,
cujos trabalhos são regularmente publicados nos Cadernos do LAP.
Com relação à atuação na área da preservação e conservação patrimonial, Reis Filho
tem atuado diretamente nesta área desde, pelo menos, 1963, quando propôs, numa sessão
pública, a criação de um órgão estadual, o que lhe teria custado, segundo narra, uma
desavença com Luís Saia. Em 1969, quando foi criado o CONDEPHAAT, Reis Filho foi
indicado a ocupar a cadeira destinada à USP no seu Conselho Deliberativo. A indicação não

280
REIS FILHO, Nestor Goulart . Evolução Urbana do Brasil: 1500-1720. São Paulo: Pioneira, 1968. v. 1. 138
p. Em 1967, Reis Filho adquire seu segundo título de professor livre-docente, com a tese Urbanização e
Teoria - Contribuição do Estudo das Perspectivas Atuais para o Conhecimento dos Fenômenos de
Urbanização. (REIS FILHO, Nestor Goulart . Urbanização e Teoria. São Paulo: FAU-USP, 1967. v. 1. 127
p.).
281
Cf. SZMRECSANYI. Op. cit.
136

partiu da FAU, mas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – a FFCL –, então
dirigida pelo historiador Eurípedes Simões de Paula.
Reis Filho presidiu o Conselho entre os anos de 1975 e 1980, quando o órgão passou
por algumas mudanças em relação aos primeiros anos de sua existência (tratados no capítulo
anterior). Segundo Marly Rodrigues, o CONDEPHAAT teria sofrido o impacto das novas
ideias debatidas no Curso de Conservação e Restauro oferecido na FAU, em 1974, sobretudo
no que se refere à noção de “patrimônio cultural” trazida por Hugues de Varine-Boham. Além
disso, a participação cada vez mais efetiva da sociedade (considerando o início de um
processo de abertura política a partir do final da década de 1970), as mudanças nas políticas
preservacionistas ocorridas no plano federal e a participação efetiva de acadêmicos advindos
de outras áreas do conhecimento (a exemplo de Aziz Ab'Saber, na área da Geografia, e
Ulpiano Bezerra de Menezes, na área da arqueologia e história), colocariam novas questões
em pauta.282 No entanto, creio que a produção historiográfica dedicada à questão do
urbanismo tenha sido igualmente importante para a adoção de novas posturas, afinal, a
importância adquirida pela noção de “patrimônio ambiental urbano”, como destaca a própria
autora, não pode ser desvinculada desta produção preocupada com uma investigação relativa
aos problemas de evolução urbana.
Não obstante a postura então adotada pelo CONDEPHAAT, visando uma ampliação
da noção de patrimônio, este órgão se viu em grande parte tolhido em sua ação devido a
empecilhos políticos e administrativos, o que ocasionou uma perda de credibilidade não
somente em relação à sociedade, mas também aos membros do Conselho Deliberativo, que,
em 1982, chegaram a pedir uma demissão coletiva quando da demolição em massa dos
casarões antigos situados na Avenida Paulista.283
Reis Filho também procurou vias alternativas de atuação. Em 1975, foi empossado
vice-presidente da Empresa Municipal de Urbanização (EMURB), e, em 1979, tornou-se
presidente do mesmo órgão. A EMURB foi criada, em 1971, como uma empresa pública com
o intuito de elaborar estudos de planejamento visando intervir no espaço urbano. Esta empresa
se mostrou uma ferramenta mais eficaz que o próprio CONDEPHAAT no que diz respeito à
preservação de núcleos urbanos, fornecendo instrumentos reais de intervenção e de adaptação
desses ambientes aos usos contemporâneos.
Em 1986 tornou-se membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano
(CNDU). O CNDU foi um desdobramento da Comissão Nacional de Política Urbana

282
RODRIGUES. Op. cit.
283
Cf. Ibid.
137

(CNPU), criada durante a presidência de Ernesto Geisel, a partir do Plano Nacional de


Desenvolvimento (PND). Neste período o país passava por graves problemas de urbanização,
causados principalmente pela migração em massa. Foi, contudo, a partir do Governo de
Tancredo Neves que esses problemas urbanos passaram a ser enfrentados com mais seriedade.
Cria-se, nesse período, o Ministério de Habitação e Desenvolvimento Urbano, ao qual ficou
subordinado o BNH – Banco Nacional da Habitação. Segundo Reis Filho, “estávamos
convencidos de que o meio técnico brasileiro havia amadurecido ao longo daqueles anos,
inclusive nas universidades, mas o meio político, refletindo uma visão provinciana e muito
ultrapassada dos problemas, não se mostrava preparado para incorporar essas
contribuições”.284
No mesmo ano, fundou e passou a coordenar, até 1990, a Comissão de Patrimônio
Cultural da USP – CPC –,285 responsável pela proteção dos edifícios pertencentes à
Universidade e por uma série de atividades culturais. Embora essa comissão possuísse um
escopo de atuação mais limitado,286 sua criação faz parte de uma tendência que não escapou a
Reis Filho: a crescente pulverização dos instrumentos de preservação de bens culturais. Dadas
as limitações políticas e administrativas apresentadas pelos órgãos preservacionistas estaduais
e federais, fez-se necessária a criação de diversos órgãos descentralizados, visto que a
expansão urbana, industrial, demográfica e imobiliária ameaçava progressivamente os bens
culturais coletivos. Além disso, ampliava-se a noção de patrimônio (aumentando o número de
bens a serem salvaguardados) e um número cada vez maior de grupos percebia o valor desses
bens tanto para o desenvolvimento econômico quanto para reaver uma cidadania tolhida pelo
regime militar.
Só muito recentemente Reis Filho participou diretamente do IPHAN, tendo se tornado
membro de seu Conselho Consultivo entre os anos de 1999 e 2009. No entanto, em 1974, ao
lado de Luís Saia (representando o IPHAN) e Ulpiano Menezes, Reis Filho montou o Curso
de Especialização em Conservação e Restauro, numa parceria entre IPHAN, FAU e
CONDEPHAAT. Por um lado, esse curso atendia uma exigência de cooperação entre o
IPHAN e as Universidades públicas, mostrando-se um fruto da gestão de Renato Soeiro e das
diretrizes estabelecidas pelo Encontro de Governadores para a Preservação do Patrimônio,
ocorrido em 1971 na cidade de Salvador, BA. Por outro, abria espaço para a construção do
Programa de Pós-Graduação da FAU, que ainda não contava com cursos de mestrado e
284
REIS FILHO, Nestor Goulart. Urbanização e planejamento no Brasil – 1960/1983. São Paulo: FAU-USP,
1999, p. 6. (Cadernos de pesquisa do LAP).
285
Atualmente “Centro de Preservação Cultural”.
286
A CPC possuía, inicialmente, “a incumbência de propor a fixação de diretrizes gerais quanto à destinação do
patrimônio da universidade de São Paulo, sob o ponto de vista cultural” (Portaria nº 39 da Reitoria da USP).
138

doutorado.
No que se refere especificamente às suas pesquisas relacionadas às áreas da
arquitetura, urbanismo e patrimônio, além de numerosos artigos publicados em periódicos
acadêmicos e outros tipos de revistas e jornais, de várias participações em livros diversos, de
uma extensa produção de trabalhos técnicos e da coordenação dos Cadernos de pesquisa do
LAP, nos quais também possui um grande número de trabalhos publicados, Reis Filho possui
ainda uma significativa lista de livros publicados. Dentre eles poderíamos mencionar o
Catálogo de iconografia das Vilas e Cidades do Brasil Colonial: 1500/1720, de 1964, que
reúne o material utilizado na defesa de sua primeira tese de livre-docência, publicada em 1968
sob o título Evolução Urbana do Brasil: 1500-1720 (com sua 2ª edição publicada em 2000).
Um ano antes publicou sua segunda tese de livre-docência, intitulando o livro Urbanização e
teoria: contribuição ao estudo das perspectivas atuais para o conhecimento dos Fenômenos de
Urbanização. Em 1970 publica seu Quadro da arquitetura no Brasil (que hoje já atinge sua 8ª
edição), em seguida São Paulo, Guia dos bens tombados (1982) e Aspectos da História da
Engenharia Civil em São Paulo: 1860-1960 (1989). Na década de 1990 publica São Paulo e
outras cidades - produção e degradação dos espaços urbanos (1994), 100 Anos de Ensino de
Arquitetura e Urbanismo em São Paulo (1996) e Racionalismo e Proto-Modernismo na Obra
de Victor Dubugras (1997). Nesta última década, Reis Filho ainda publicou Imagens de Vilas
e Cidades do Brasil Colonial (2000), Restauração do Palácio Campos Elíseos - Um Marco
na História de São Paulo (2002), Parque Cientec - Parque da Ciência e Tecnologia da USP -
Restauração do Conjunto Arquitetônico de Importância Histórica para Abrigar Atividades de
Difusão de Ciência e Tecnologia (2003), Leituras Cartográficas Históricas e
Contemporâneas (2003), São Paulo: Vila, Cidade, Metrópole (2004), Victor Dubugras -
Precursor da Arquitetura Moderna na América Latina (2005), Notas sobre Urbanização
Dispersa e Novas Formas de Tecido Urbano (2006), Dispersão Urbana - Diálogo sobre
pesquisas - Brasil – Europa (2007), Brasil: estudos sobre dispersão urbana (2007) e Sobre
dispersão urbana (2009).287

287
Não foram mencionados os livros sobre redes ferroviárias. Para uma listagem completa, cf.
<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4787848T3> Acesso em 09.06.2010.
139

4.2 CONTEXTO INTELECTUAL DE FORMAÇÃO

Embora Luís Saia e Nestor Goulart Reis Filho sejam quase da mesma geração, existem
aproximadamente duas décadas que separam suas respectivas formações iniciais ou seus
“processos de socialização secundária” (como diriam Berger e Luckmann288 e muitos outros
cientistas sociais e psicólogos), nos quais o indivíduo passa a buscar novas formas de
conhecimento do mundo que não aqueles fornecidos pelo núcleo familiar. Nesses vinte anos
já é possível reconhecer, ao menos no contexto paulista, alterações substantivas nas formas de
produção do conhecimento, nas quais se pode observar um abandono gradual do ensaísmo em
favor de formas mais metódicas de pesquisa acadêmica, sobretudo se tomarmos o ambiente
uspiano, no qual se forma Reis Filho. Se estendermos esse lapso para trinta anos, será possível
perceber alterações no âmbito das práticas preservacionistas, que serão expostas
oportunamente neste capítulo.
Apenas essas modificações contextuais já seriam suficientes para uma compreensão
das alterações semasiológicas e onomasiológicas sofridas pela noção de “evolução da
arquitetura brasileira”. Todavia, para que seja possível compreender como elas foram
construídas narrativamente e como produziram efeitos específicos (ou seja, efeitos motivados
individualmente e limitados contextualmente), é necessário analisar as motivações subjetivas
(desde que objetivamente disponíveis à análise) presentes na constituição narrativa de sentido,
isto é, na produção historiográfica abordada, responsável pela orientação das condutas
preservacionistas enfocadas.
Desse modo, reconstituirei, da mesma forma como foi feito no capítulo anterior, os
elementos culturais mais importantes disponíveis e efetivamente interiorizados por Reis Filho,
de modo que seja possível compreender quais foram as motivações de sua ação, analisada em
sua produção historiográfica. Farei isso, conforme já foi realizado em relação à Luís Saia,
com base nas evidências disponíveis nos próprios textos analisados e em fontes auxiliares,
como o próprio relato do autor e fontes bibliográficas, tanto do mesmo quanto de outros,
relacionadas com a produção analisada.

288
BERGER; LUCKMANN. Op. cit.
140

4.2.1 Os anos 1950 em São Paulo

Terminada a Segunda Guerra Mundial, o país se viu em condições de alavancar um


processo de industrialização sem precedentes. São Paulo foi o estado que mais se aproveitou
desse momento, superando o Rio de Janeiro na posição de principal centro industrial
brasileiro e conhecendo, consequentemente, uma grande expansão urbana.
Esse também foi um período de efervescência cultural, no qual uma série de
importantes centros culturais foram criados com o dinheiro advindo da industrialização.289
Assim, em 1947, funda-se o Museu de Arte de São Paulo (MASP), idealizado pelo empresário
e jornalista Assis Chateaubriand (que atualmente empresta seu nome ao museu) e pelo
marchant Pietro Maria Bardi, cuja esposa, Lina Bo Bardi, foi responsável pelo projeto do
prédio do atual museu, situado na Av. Paulista, hoje tombado pelo IPHAN. No ano seguinte é
fundado o Museu de Arte Moderna (MAM), que reunia um valioso acervo doado por
Francisco Matarazzo Sobrinho (o “Ciccilo”) e sua esposa, Yolanda Penteado, sendo que foi
instalado, inicialmente, da mesma forma que o MASP, no prédio dos “Diários Associados”,
cujo proprietário era o próprio Chateubriand.290 Ainda em 1948, o empresário italiano Franco
Zampari funda o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), tendo importado para tanto atores e
técnicos italianos de alta qualidade. Franco Zampari ainda cria, com o apoio, mais uma vez,
de Ciccilo Matarazzo, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que, sustentada por
empresários paulistas, produziu 22 filmes no espaço de quatro anos, tornando-se o primeiro
estúdio cinematográfico brasileiro em moldes profissionais.
Nestor Goulart Reis Filho relata o quão significativo foi este período em sua trajetória.
Quando o MASP foi fundado, Reis Filho acabara de se formar num colégio de padres.
Segundo ele, em função disso, foi reprovado no vestibular para o curso de arquitetura da
FAU-USP, que havia sido fundado naquela mesma época e, então, começou a frequentar um
curso de desenho no teatro da cidade. Reis Filho conta que então “ficava por lá” visitando os
museus e participando dos cursos que neles eram oferecidos. O acervo disponibilizado por

289
Enfocando principalmente a Bienal de São Paulo, é possível encontrar uma boa análise sobre o contexto
artístico-cultural paulistano de fins da década de 1940 e início da década de 1950 em OLIVEIRA, Rita Alves
de. Bienal de São Paulo: impacto na cultura brasileira. São Paulo em perspectiva. [São Paulo, SP], n. 15, v. 3,
p. 18-28, 2001. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/spp/v15n3/a04v15n3.pdf> Acesso em 12.08.2010.
290
O conselho de administração do MAM foi inicialmente composto pelos arquitetos Villanova Artigas e Luís
Saia e os críticos Sergio Milliet e Antonio Cândido Mello e Souza, entre outros. A 1ª Bienal ocorreu em 1951,
com a participação de 21 países, em edifício adaptado por Luís Saia e Eduardo Knesse de Melo. Em 1963, a
Bienal se separa do MAM, Ciccilo Matarazzo extingue a sociedade que sustentava o museu, e seu acervo é
então doado à USP, que cria o Museu de Arte Contemporânea (MAC).
141

esses museus era algo até então impensável no país. O futuro arquiteto fez também cursos
com o cenógrafo Aldo Calvo, do TBC, e se interessou pela parte de arquitetura envolvida na
produção de cinema da Companhia Vera Cruz.
Segundo Reis Filho, esse clima de efervescência cultural é importante para que se
entenda porque “uns meninos de 18 e 20 anos saíam lendo certas coisas, visitando certas
coisas, estudando”. O contato com este grande acervo de arte, sobretudo arte moderna, mas,
sem dúvida, boa arte (chegada em São Paulo pelo “mecenato” dos principais industriais da
metrópole) fixou o padrão estético que levaria jovens como Reis Filho à FAU e ao IPHAN,
onde essa linguagem melhor se expressou em termos arquitetônicos.

4.2.2 A FAU e o SPHAN

Após aprovado no curso de arquitetura da FAU, Reis Filho reconheceu desde logo o
caminho profissional que iria seguir por toda sua vida. Como já foi mencionado, o arquiteto
até hoje se dedica ao ensino e à pesquisa naquela faculdade. Desde cedo interessado pela
estética moderna, ao buscar essa linguagem no meio arquitetônico acabou compreendendo a
necessidade de estudar detidamente a arquitetura tradicional brasileira, o que levou Reis Filho
ao contato com o SPHAN. No entanto, somente isso não explica as fontes que tornaram esse
arquiteto um estudioso da história do urbanismo nacional.
Como vimos, a FAU careceria, nos seus primeiros anos, da formação teórica que Reis
Filho e alguns de seus colegas procuravam. No entanto, o arquiteto chegou a frequentar as
aulas de Anhaia de Mello na FAU, o mesmo que havia sido professor de Luís Saia na Escola
Politécnica. Assim como influenciaram Saia, as aulas de Anhaia Melo despertaram certamente
em Reis Filho o interesse pela temática do urbanismo.
Reis Filho teve então que recorrer ao que havia disponível no campo da teoria e da
história da arquitetura, produção esta quase que exclusivamente advinda do SPHAN. O
arquiteto narra ter ficado profundamente marcado por um artigo de Paulo Tedim Barreto,
sobre a arquitetura tradicional piauiense,291 no qual o autor, segundo Reis Filho, “com
adequada visão de conjunto”, abarca a escala urbanística e as políticas urbanizadoras do
século XVIII, “como parte da política colonizadora portuguesa nas administrações de D. João

291
BARRETO, Paulo Thedim. “O Piauí e sua arquitetura”. Revista do SPHAN. Rio de Janeiro, n. 2, p. 187-223,
1938.
142

V e de Pombal”.292 Este estudo abriu então os olhos de Reis Filho para uma perspectiva que
iria explorar adiante, numa postura distante de autores como Sérgio Buarque de Holanda e
Robert Smith. Isso significa dizer que Reis Filho passou a defender a existência de uma
política urbanizadora e de formas de planejamento urbano durante o período colonial, ao
contrário de uma suposta lassidão portuguesa relativa às cidades, expressa no pouco interesse
pela ordem e em contraposição à colonização espanhola.
Outros autores ligados ao SPHAN foram igualmente significativos para a formação
intelectual de Reis Filho, principalmente no que diz respeito a aspectos arquitetônicos e
urbanísticos regionais. O arquiteto cita, por exemplo, os trabalhos de Joaquim Cardoso sobre
o Recife293 e de Sylvio de Vasconcelos sobre a formação das vilas mineiras.294 Além desses,
lembra-se ainda de Ayrton de Carvalho (PE), José Reis (RJ), Alcides Miranda da Rocha (RJ) e
Luís Saia, “com Lucio Costa à frente”. Embora nos estudos sobre arquitetura civil esses
autores tenham ampliado “em muito os conhecimentos sobre os aspectos intra-urbanos de
nossas vilas e cidades coloniais”, não teriam eles se voltado especificamente para a História
do Urbanismo e da Urbanização.295
No entanto, para o caso de Luís Saia, creio que a influência exercida sobre Reis Filho
tenha sido mais significativa, embora o autor não o arrole de maneira destacada quando faz
alusão a seu referencial teórico. Mencionei há pouco que os caminhos de Reis Filho cedo se
cruzaram com os de Luís Saia. De fato, em várias ocasiões este último parece ter oferecido
oportunidades de trabalho aos mais jovens. Antônio Luiz Dias de Andrade, que sucedeu Saia
na regional paulista do IPHAN, iniciou lá sua carreira como estagiário. O primeiro contato
com Carlos Lemos também teria sido amistoso.296 O historiador Jaelson Bitran Trintade
também iniciou sua carreira no IPHAN em sua mocidade, e se recorda de Saia com
admiração. Talvez esse modo de tratar os mais jovens seja um reflexo da convivência com
Mário de Andrade, que demonstrou a mesma abertura ao então “jovem engenheirando”.
Parece ter sido comum a presença de jovens estudantes de arquitetura estagiando no IPHAN,

292
REIS FILHO, Nestor Goulart. Notas sobre a evolução dos estudos de história da urbanização e do
urbanismo no Brasil. São Paulo: FAU-USP, 1999, p. 25. (Cadernos de Pesquisa do LAP, n. 29).
293
Especialmente CARDOSO, Joaquim. Observações em torno da história da cidade do Recife no período
holandês. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 4, p. 383-405, 1940.
294
A exemplo de VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica: formação e desenvolvimento. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1956.
295
REIS FILHO, Nestor Goulart. Notas sobre a evolução... op. cit., p. 24.
296
A respeito de um trabalho seu reprovado na Faculdade de Arquitetura da Mackenzie, Lemos narra o seguinte:
“fui procurar Luís Saia na sede do SPHAN, na Rua Marconi, a quem não conhecia pessoalmente, só de nome
e por meio da revista daquela entidade, cuja edição de número 8 consultara na Biblioteca Municipal para
fazer o meu trabalho. Foi gentilíssimo e, como era vaidoso do seu saber naquele campo em que não havia
mais ninguém interessado, resolveu fazer uma candente defesa do meu projeto, demonstrando grande
erudição”. LEMOS, Viagem pela carne. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 140.
143

e foi numa dessas oportunidades que Reis Filho conheceu Luís Saia. Foi naquele já
mencionado trabalho, no qual Reis Filho e seus colegas ficaram a cargo de realizar um
levantamento cartográfico do Estado de São Paulo, que o jovem estudante de arquitetura teve
um dos primeiros contatos com este tipo de fonte, ou seja, com plantas e mapas urbanos, além
dos materiais iconográficos, cabendo recordar o quão importante esse material se tornaria
posteriormente para a obra desse arquiteto. É pouco provável que Reis Filho desconhecesse os
principais textos de Saia, no qual a ocupação rural e urbana tiveram papel cuja importância já
foi destacada no capítulo anterior. É também clara a utilização de uma periodização
semelhante à proposta por Saia para a evolução regional paulista. Embora Reis Filho tenha
deixado claro o interesse em explorar algumas áreas que não chamaram muito a atenção do
arquiteto do SPHAN, é difícil escamotear as semelhanças que se evidenciam, por exemplo,
em Quadro da arquitetura no Brasil.
Dessa sua época de estudante de arquitetura também foram importantes as viagens que
realizou pelo país. Juntando dinheiro para viajar nas férias, enfrentou as precárias condições
de locomoção da época para conhecer o Nordeste (tendo se tornado amigo e admirador do
arquiteto Ayrton de Carvalho no Recife), Minas Gerais e Rio de Janeiro (principalmente
Parati), até onde é possível saber. Assim como aconteceu com vários outros intelectuais
brasileiros (e mesmo estrangeiros), foi a partir do contato com os testemunhos materiais de
outras épocas que, sem dúvida, Reis Filho se indagou sobre a evolução das configurações
urbanas, passando a pensar então nos estágios que mediaram o processo do qual fazem parte
aquela época e a nossa.

4.2.3 O Curso de Ciências Sociais da USP

A primeira tentativa de ingresso no quadro de professores efetivos da FAU mostrou a


Reis Filho a necessidade de aprofundamento no conhecimento dos processos sociais, sem o
qual, como notaram os principais arquitetos nacionais (dois deles, como vimos, compuseram a
banca a que se submeteu Reis Filho), é impossível compreender os problemas de arquitetura.
Por esse motivo ingressou no curso de Ciências Sociais da então Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras – FFCL – da USP.297 Acabou assim imerso num importante espaço de
297
Segundo Maria Irene Szmrecsanyi, a influência de Lourival Gomes Machado e o prestígio de que então
gozavam as Ciências Sociais teriam sido também fatores decisivos na escolha de Reis Filho por esse curso.
SZMERECZANYI, Maria Irene. Percurso através da imagem: teoria e método na historiografia de Nestor
144

discussões sociológicas que marcaram as ciências humanas no Brasil. Faz-se então necessário
caracterizar sumariamente a segunda geração da “Escola Sociológica Paulista”, pensando em
alguns aspectos importantes para a compreensão da produção historiográfica de Reis Filho.
Um trabalho que permite tal caracterização é o relativamente recente artigo de Luiz
Carlos Jackson, intitulado “Gerações pioneiras na sociologia paulista (1934-1969)”.298
Segundo esse autor, “quase toda produção acadêmica nas ciências sociais tinha como foco o
problema da modernização brasileira”, o que levou a uma ênfase nas análises dos “processos
constitutivos de nossa formação – social, econômica, política e cultural”.299 Esse período
caracterizar-se-ia também pela existência de projetos acadêmicos conflitantes, “orientados
pela convicção nas possibilidades de intervenção pela sociologia no processo de
modernização brasileiro”.300 No caso específico paulista, a produção acadêmica na área de
sociologia polarizou-se nos núcleos representados pela Escola Livre de Sociologia Paulista
(ELSP), e pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (FFCL). A primeira, criada
em 1933, destacava-se, no período analisado, por pretender “realizar um amplo panorama
empírico da realidade brasileira por meio dos ‘estudos de comunidades”,301 conforme projeto
encampado por Donald Pierson. A segunda, fundada em 1934, poderia ser então caracterizada
pelo projeto encabeçado por Florestan Fernandes (à frente da cátedra “Sociologia I”, após
1954), na linha de uma “sociologia do desenvolvimento”.
Florestan Fernandes ocupou uma posição importante dentro da segunda geração de
sociólogos da FFCL. De acordo com Jackson, embora não tenha sido responsável pela edição
de nenhum periódico acadêmico, ele compareceu com suas publicações em quase todas as
revistas especializadas da época. Sua atuação como docente foi também determinante para o
formato adquirido pelo curso de ciências sociais da FFCL a partir de então, embora tenha
convivido com posições divergentes dentro do mesmo curso.302 Não seria de se estranhar,

Goulart Reis Filho. Desígnio: revista de história da arquitetura e do urbanismo. Universidade de São Paulo.
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Área de concentração de pós-graduação. História e fundamentos da
arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Annablume, n. 3, p. 127-144, março 2005, p. 129.
298
JACKSON, Luiz Carlos. Gerações pioneiras na sociologia paulista (1934-1969). Tempo social. Revista de
Sociologia da USP. V. 19, n. 1, p. 115-130, jun. 2007. Além de tratar especificamente do período no qual Reis
Filho foi aluno da FFCL-USP, este artigo possui a vantagem de dialogar com uma significativa literatura
sobre a mesma temática.
299
Ibid., p. 115.
300
Ibid., p. 117.
301
Ibid., p. 118.
302
“Disputas mais acirradas ocorreram quando Florestan Fernandes foi indicado por Bastide para substituí-lo em
1954. Nesse contexto, as assistentes Gilda de Mello e Souza e Maria Isaura Pereira de Queiroz transferiram-
se, respectivamente, para a Filosofia e para a Sociologia II. Esta (na qual trabalharam Florestan e Antonio
Candido, como assistentes, até 1954 e 1958, respectivamente) reuniria, sob a cátedra de Fernando de
Azevedo (substituído em 1964 por Rui Coelho), sociólogos com orientações teóricas diversas, como Rui
Coelho e Azis Simão, por exemplo. Na Sociologia I, prevaleceu a orientação ‘científica’ imposta por
Florestan Fernandes a seus discípulos, entre os quais Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria
145

portanto, a influência que exerceria sobre seus alunos, e alguns dos aspectos de sua obra são
realmente reconhecíveis na produção historiográfica de Nestor Goulart Reis Filho.
Octávio Ianni oferece no texto publicado sob o título “A sociologia de Florestan
Fernandes” um quadro interessante a respeito do trabalho acadêmico desse sociólogo, não
obstante o tom laudatório propício à ocasião em que foi proferido.303 Dentro deste quadro,
podemos identificar, principalmente, os seguintes aspectos: uma postura crítica, que questiona
tanto a realidade social quanto o pensamento produzido sobre ela; o diálogo com as correntes
funcionalista (Durkheim), compreensiva (Weber) e dialética (Marx) da sociologia; e o
“compromisso com as exigências lógicas e teóricas da reflexão científica”.304 Todos estes
aspectos podem ser encontrados, ainda que de forma peculiar, na produção historiográfica
levada a cabo por Reis Filho.
É importante, no entanto, que se esclareça não só do que se trata a produção
acadêmica predominante no curso de Ciências Sociais da USP, mas também a forma pela qual
ela se institucionalizou e legitimou. Após assumir a cadeira ocupada anteriormente por Roger
Bastide, que desenvolvia com seu grupo, até 1954, trabalhos mais voltados para o folclore e
para a questão racial, Florestan Fernandes passou a desenvolver um projeto no qual prevalecia
uma orientação “científica”, “centrado na análise sociológica do capitalismo dependente e da
formação da sociedade de classes no Brasil”.305 Tal projeto se oporia ao desenvolvido na
ELSP, considerado politicamente “conservador” pelos autores da USP. Cabe ainda ressaltar
que a linha estabelecida pelo grupo da FFCL se consolidou por intermédio de uma série de
estratégias acadêmicas, dentre as quais se destacam o sistema de cátedras vigente naquela
Universidade306 e a organização e publicação de periódicos. Dentre essas publicações,
poderíamos mencionar as revistas Sociologia, que “expressou a liderança exercida até meados
dos anos 1950, nas ciências sociais paulistas, por Donald Pierson e Emílio Willems”,307 e o
Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, editado por intelectuais como Antônio

Sylvia de Carvalho Franco e Marialice Forachi. O desenvolvimento da sociologia na USP foi marcado
fortemente por essa divisão, pelas disputas entre as cadeiras e internas a elas, sobretudo na Sociologia I,
acirradas depois de 1964”. Ibid., p. 119-120.
303
IANNI, Octávio. A Sociologia de Florestan Fernandes. Estudos Avançados. São Paulo, v. 10, n. 26, abr. 1996.
(Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
0141996000100006&lng=en&nrm=iso> Acesso em 18.02.2010). Trata-se de palestra proferida pelo autor
por ocasião do “Ato Presença de Florestan Fernandes”.
304
Ibid. p. 32-33.
305
JACKSON. Op. cit., p. 124.
306
Esse sistema fazia com que a carreira acadêmica dos intelectuais dependesse mais diretamente da
proximidade com o “chefe” da cátedra, vez que este último é quem nomeava seus assistentes, concorrentes
diretos ao cargo de professor catedrático. Assim, relações de afinidade de diversos tipos (social, de gênero, de
amizade e de relacionamento amoroso, por exemplo) se tornavam fundamentais para a consolidação das
carreiras acadêmicas. Cf. Ibid.
307
Ibid., p. 118.
146

Cândido e Lourival Gomes Machado, que, dentre outros, organizaram anteriormente a revista
Clima.
Reis Filho se aproveitou claramente dessa rede intelectual consolidada na USP.
Exemplo disso é que os textos reunidos em Quadro da arquitetura no Brasil foram
originalmente publicados no Suplemento Literário (“por apresentação do mestre e amigo
Lourival Gomes Machado”308). A experiência em pesquisa acadêmica adquirida na FFCL
certamente também lhe foi útil para a posição destacada que passou a ocupar na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da mesma Universidade. Além das pesquisas desenvolvidas em
torno do Laboratório de Pesquisas sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação (LAP), Reis
Filho utilizou a estrutura do mesmo Laboratório para consolidar um grupo de pesquisa em
torno de um esquema um tanto quanto fechado de publicações, conforme pode ser verificado
nos Cadernos do LAP.

4.2.4 A historiografia

Conforme relata o próprio Reis Filho, o seu interesse por história manifestou-se em
três momentos diferentes. O primeiro diz respeito à educação recebida já em casa, para a qual
“estudar Brasil era obrigação de todos, inclusive do que quisesse ter o mínimo de formação
intelectual”. Assim, estudou, já em casa, história do Brasil, mas no “sentido de formação
brasileira”. O segundo momento se relaciona aos anos em que estudou arquitetura na FAU,
sendo que foi buscar nas fontes do SPHAN o conhecimento necessário sobre arquitetura
tradicional, conforme já analisado. O terceiro momento se liga aos anos do curso de ciências
sociais, quando adquiriu interesse pela análise dos processos sociais e, nos intervalos entre as
aulas assistidas (na FFCL) e ministradas (na FAU), “ia para a biblioteca de história ou de
geografia ou estudos de administração” a fim de, principalmente, compreender os processos
de urbanização.
Dado o “sentido de formação brasileira” de suas primeiras leituras historiográficas
(realizadas ainda “em casa”), é provável que Reis Filho desde cedo tenha conhecido autores
como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, frequentemente
citados por ele. O primeiro forneceu principalmente a percepção da “síntese de contrários’

308
REIS FILHO, Quadro da arquitetura..., op. cit., p. 9.
147

como força modeladora do caráter idiossincrático da sociedade brasileira”,309 bem como os


elementos necessários para a compreensão das mudanças culturais ocorridas no século XIX
brasileiro, impressionando Reis Filho principalmente por ser um historiador social, “na linha
de Braudel”, conforme ele próprio afirma em seu relato pessoal, e, em função disto, ser muito
mais sofisticado que outros autores que igualmente tentaram interpretar a formação brasileira,
a exemplo de Afonso Arinos de Melo Franco e Oliveira Vianna. Interessou sobretudo ao
arquiteto o livro Sobrados e Mucambos, por tratar do urbanismo (de forma mais discreta) e,
principalmente, dos primórdios da vida predominantemente urbana do Brasil.
Com relação a Caio Prado Junior, o mesmo parece ter servido de fonte sobretudo para
a compreensão dos processos sócio-econômicos nacionais.310 Maria Irene Szmereczanyi
demonstra ainda o diálogo com autores como Celso Furtado e Paul Singer, sobretudo no que
diz respeito ao interesse desse autores pelos “dinamismos sociais e suas origens”.311
Quanto à leitura que fez da obra de Buarque de Holanda, seria interessante transcrever
um trecho de uma opinião mais recente sobre Raízes do Brasil:

Os textos reunidos em ‘Raízes do Brasil’ procuravam uma forma flexível de


explicação para as especificidades sociais do Brasil, contrapondo-se às visões
positivistas e às formas de história de celebração da importância de certos setores
sociais do passado. Fazendo uso dos recursos lógicos de uma dialética da
bipolaridade (que Gilberto Freyre explora em ‘Casa Grande & Senzala’ e ‘Sobrados
e Mucambos’), Sérgio Buarque tratou de diversos temas e, entre eles, das
características do urbanismo colonial português, em contraposição ao espanhol.312

Essa bipolaridade relativa ao urbanismo, expressa principalmente no capítulo “O semeador e


o ladrilhador” seria, no entanto, criticada por Reis Filho, que discorda da perspectiva segundo
a qual “o urbanismo luso-brasileiro não era visto como um campo de estudo autônomo mas
como um campo dependente de comparações com a ação espanhola na América”.313 Todavia,
a posição de Holanda não implicaria numa condenação ao urbanismo português, a exemplo da
“opinião altamente negativa” de Robert Smith.
Uma alternativa a esta dicotomia equivocada segundo o ponto de vista de Reis Filho
(que já havia encontrado plantas de cidades coloniais planejadas) foram as contribuições da
Geografia Urbana com suas análises centradas no conceito de “rede urbana”, que seria

309
SZMERECZANYI. Op. cit., 2005, p. 132. Segundo a autora, além de Freyre, nesse posicionamento
metodológico de Reis Filho influíram a antropofagia do modernismo paulista e “a apologia do método
dialético feita por Fernando Henrique Cardoso na introdução de sua tese sobre a escravidão no sul do país,
defendida nesses mesmos anos”.
310
Como em REIS FILHO. Quadro da arquitetura..., p. 146.
311
SZMERECZANYI. Op. cit., 2005, p. 130-131.
312
REIS FILHO. Notas sobre..., op. cit., p. 19.
313
Ibid., p. 20.
148

substituído, segundo o arquiteto, pelo conceito de “sistema urbano”. Reis Filho cita autores
como Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig, sendo que “a presença de professores franceses
na Universidade de São Paulo mas também na Universidade do Brasil e na Universidade do
Distrito Federal (de curta duração), levou a uma consolidação progressiva dessa linha de
estudos”.314 No que se refere ainda a este tipo de abordagem, Reis filho também menciona o
nome de Aroldo de Azevedo, sobretudo no que se refere ao trabalho “Vilas e Cidades do
Brasil Colonial”, publicado em 1955, “que se tornou um clássico, ao qual todos nos
reportávamos”.315
No entanto, essas últimas abordagens não se desvinculavam de todo do “ceticismo”
iniciado por Sérgio Buarque. Assim, a iconografia e a cartografia foram fundamentais para o
esforço empreendido por Reis Filho para uma tentativa de superação dessa perspectiva
relativa a uma história do urbanismo no Brasil, campo de estudo este até então não delineado
de forma autônoma. Suas fontes iconográficas foram as pesquisas realizadas pelo embaixador
Joaquim de Souza-Leão Filho, de quem conta ter se tornado amigo, Gilberto Ferrez, Isa
Adonias, além de Robert Smith. Contudo, foi o próprio Reis Filho um importante pesquisador
nessa área, tendo publicado, já em 1964, um trabalho do tipo dos que serviram de base para
suas reflexões posteriores.316
É importante mencionar também o papel dos historiadores europeus da arquitetura
moderna, sobretudo do italiano Leonardo Benevolo, que irão possibilitar a Reis Filho pensar
de forma diferenciada a evolução arquitetônica nacional. Esses historiadores, segundo relata,
“vão buscar o racionalismo no século 18, o que também fizemos”. 317 Reis Filho parece ter se
inspirado em Benevolo (mencionado em alguns trechos de seu Quadro da arquitetura no
Brasil) ao notar a impossibilidade de se analisar a arquitetura separadamente da cidade.
Tratam-se, para ambos os autores, de dois processos (o arquitetônico e o urbano) interligados,
descompassados e diretamente relacionados às configurações econômicas e sociais de um
dado momento histórico.
No entanto, a correspondência entre sociedade e economia, por um lado, e arquitetura
e urbanismo, por outro, também não seria imediata. A industrialização europeia (para
Benevolo) e sua repercussão no Brasil (para Reis Filho) apareceriam como momentos
privilegiados para a compreensão dos ritmos específicos destes processos interconectados mas
particulares. A industrialização possibilitaria a criação de novas técnicas e materiais, mas
314
Ibid., p. 20.
315
Ibid., p. 21.
316
REIS FILHO. Catálogo de iconografia das vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: FAU-USP, 1964.
317
Entrevista disponível em <http://www.arcoweb.com.br/entrevista/entrevista52.asp> (último acesso em
14.05.2010).
149

também engendraria novas configurações sociais e relacionamentos entre grupos. A


arquitetura de fato “evoluiria”, alcançando possibilidades técnicas condizentes com as novas
condições de existência. O desenvolvimento arquitetônico levaria os teóricos a pensarem em
formas mais amplas (urbanas) de reconfiguração dos espaços de vida – as “cidades modernas”
de Benevolo. No entanto, interesses políticos e econômicos – a exemplo dos industriais e
imobiliários e, no caso específico do Brasil, agrícolas – emperrariam uma transformação
possível no nível técnico mas impensável no nível administrativo ou burocrático. Assim,
permaneceriam traçados urbanos tradicionais, desenvolvidos para outros momentos
históricos, o que impossibilitaria o desenvolvimento e a criação de formas urbanas mais
favoráveis à vida contemporânea.

4.3 QUADRO DA ARQUITETURA NO BRASIL

É possível encontrar no livro Quadro da arquitetura no Brasil uma noção já


diferenciada de evolução da arquitetura brasileira, mais diretamente atrelada à evolução
urbana. Essa nova postura foi fundamental para a orientação das práticas preservacionistas
paulistas num novo contexto e para a definição das identidades dos grupos que, a partir de
então, disputariam a autoridade de se narrar a história da arquitetura nacional (este último
ponto ficará mais claro no momento em que forem expostas as estratégias dos acadêmicos
ligados à FAU-USP para a ocupação do espaço deixado pelo IPHAN paulista). Faz-se
necessário, portanto, investigar quais os aspectos metódicos que auferiram à produção
historiográfica de Nestor Goulart Reis Filho um considerável grau de eficácia.
A escolha desse livro, não obstante seja a mais propícia para os fins deste trabalho,
apresenta algumas dificuldades. Em face do objeto aqui analisado – ou seja, algumas das
alterações semasiológicas e onomasiológicas pelas quais o conceito de evolução da
arquitetura passou (além de como isso ocorreu) –, o livro Quadro da arquitetura no Brasil é o
que oferece, dentro da obra de Reis Filho, as indicações mais precisas acerca de sua
perspectiva sobre a arquitetura nacional e sua evolução, bem como a maneira como tal
entendimento vem a influir nas práticas preservacionistas paulistas e nacionais. No entanto,
trata-se de um conjunto de textos que o próprio autor considerou “ensaísticos”, o que
obscureceria um dos pontos mais importantes a serem analisados para a delineação da noção
de “evolução urbana” e da possibilidade de sua aplicação concreta no âmbito preservacionista,
150

ou seja, os métodos de validação científica aos quais o arquiteto procura submeter seu
trabalho, encontráveis, isso sim, em outros trabalhos seus.
Todavia, Quadro da arquitetura no Brasil é um desenvolvimento de uma série de
proposições teóricas e metodológicas apresentadas em Evolução urbana do Brasil: 1500-
1720. Por isso, creio ser necessário voltar a elas a fim de compreender como foram elaboradas
as ideias apresentadas em Quadro da arquitetura no Brasil, até para que a qualificação
“ensaística” não sirva, erroneamente, para desqualificar o esforço científico do qual
emanaram.

4.3.1 Evolução urbana do Brasil: 1500/1720318

Logo no início da introdução desse livro, Reis Filho explicitou a preocupação em


“demonstrar que as formações urbanas brasileiras devem ser objeto de interesse científico;
que não constituem um conjunto de dados aleatórios mas são parte de uma estrutura dinâmica
– a rede urbana – que deve ser compreendida, quando se almeja o conhecimento daquelas”.319
Nota-se, portanto, desde o princípio, a orientação pelo rigor científico pregado pela segunda
geração de sociólogos da USP, e o emprego do conceito de “rede urbana”, buscado, como
vimos, na Geografia Urbana de extração francesa. Tratam-se de premissas básicas de uma
análise que, não obstante voltada, neste livro, para as políticas urbanizadoras do período
colonial (em clara contradição com o “desleixo” apontado por Sérgio Buarque de Holanda e
seguidores), procura “determinar os mecanismos das mudanças ocorridas nesse processo, ou
seja, contribuir para o conhecimento dos mecanismos da Evolução Urbana do Brasil”.320
O conceito de rede urbana refere-se, na verdade, a um dos níveis em que são tratados
os “fatos urbanos” ou os “processos de urbanização”. A “rede” é então concebida como
“conjunto ordenado dos elementos espaciais” num nível mais amplo. Refere-se, portanto, a
um “sistema social”, a uma “política urbanizadora” (no caso, aquela prevista pela Coroa para
sua Colônia) e ao conjunto de cidades como “produto da ordem social”. O outro nível, mais
restrito, é o que se refere aos núcleos, entendido como “parcela ordenada e unidade daquele

318
Uma análise mais detalhada sobre esta obra pode ser encontrada em SZMERECSANYI. Op. cit., 2005.
319
REIS FILHO, Nestor Goulart. Introdução. In: Evolução urbana do Brasil 1500/1720. 2ª ed. - São Paulo:
Editora Pini Ltda., 2000. Disponível em <http://www.usp.br/fau/dephistoria/lap/puevourb.html> Acesso em
20.02.2010. [Itálicos meus].
320
Ibid. Como no texto disponibilizado na internet não se faz menção a número de páginas, suprimirei as
referências relativas a essa obra nesta subseção.
151

conjunto”. É nesse nível que se dará a análise da arquitetura, a exemplo da que será
empreendida em Quadro da arquitetura no Brasil, ou seja, de acordo com a maneira segundo
a qual ela se “insere no quadro social e espacial dos centros urbanos”.
Embora essa análise de níveis assemelhe-se a uma análise estrutural, Reis Filho
procura afastar-se do funcionalismo, ou, ao menos, relativizá-lo. Isso é feito mediante a
utilização de uma perspectiva processual, mais afeita à análise dialética, para a qual o que é
típico é o que muda, o que está em formação.321 Assim como Luís Saia, Reis Filho proporá a
análise da arquitetura em sua instância histórica, processual, evolutiva, sendo a arquitetura um
processo em conexão a outros processos mais amplos, como o urbano, o econômico, o social,
o político e mesmo o cultural.
Um exemplo de como tradições sociológicas se mesclam na interpretação de Reis
Filho é a apropriação processual que faz, de acordo com o que ele próprio afirma, do método
compreensivo weberiano. Reis Filho toma então como mais eficaz a teoria de Weber sobre a
origem das cidades, pois ela procuraria “demonstrar a origem social do fato urbano, como um
todo organizado, em termos de comunidade, incluindo necessariamente aspectos econômicos,
sociais, político-administrativos, militares, demográficos, psicológicos, etc., em configurações
peculiares”. Segundo Reis Filho, Weber baseou-se largamente na Cidade-Estado para
estabelecer as “condições básicas para a existência do centro urbano”. No entanto, o arquiteto
considera necessário introduzir algumas alterações nesta teoria (ou “tipo ideal”), como, por
exemplo, considerar a urbanização como um processo social. Segundo ele, “seu
desenvolvimento provoca o aparecimento e a transformação de núcleos, como consequência
das interações humanas em que implica”. Além disso, Weber focalizaria o fenômeno urbano
em sua escala local, não o considerando enquanto constituinte de uma “rede” mais ampla.
Para o período estudado por Reis Filho, esse elemento tornar-se-ia fundamental, pois “o
processo de urbanização, em escala nacional, corresponde não ao centro urbano, mas a um
nível organizatório mais complexo, que é a rede urbana. Desse modo, são enfrentadas todas as
formas de aglomeração urbana em um país, como um conjunto, ao nível do processo”.
Outro exemplo dessa confluência de tradições, agora inspirada diretamente em
Florestan Fernandes, é o emprego do conceito de “função urbana”, “indispensável no
321
Num outro trabalho, Reis Filho afirma que “essa discussão pode nos levar diretamente a um paralelo com os
debates que se travaram há algumas décadas, sobre as diferenças entre o que é típico em sociologia, para a
corrente funcionalista, que estuda as sociedades em equilíbrio, e a corrente dialética, que tende a considerar
como típico o que muda. Liga-se também à busca de uma perspectiva histórica, na qual se procura
estabelecer uma visão de conjunto da urbanização como um processo, sem lacunas e cortes abruptos, sem
descontinuidades absolutas, ainda que se tenha em vista que o processo se caracteriza exatamente pela
mudança, considerando sempre que as mudanças devem ser explicadas no quadro do processo”. REIS
FILHO. Notas sobre..., op. cit., p. 51-52.
152

conhecimento dos centros urbanos e do processo de urbanização em uma região”. Reis Filho
evita a “conotação biológica” oferecida pela geografia urbana, preferindo a definição de seu
professor, na qual o conceito assume claramente o significado de “função social”. 322 Tal
ferramenta permite então que o arquiteto analise os núcleos urbanos e a arquitetura neles
implantada em relação com as redes urbanas mais amplas. Assim, “o processo de urbanização
é encarado a partir de sua origem, ou seja, do processo de urbanização da Europa medieval-
renascentista e as ligações entre ambos como constituídas pela política de colonização e,
como parte desta, pela política de urbanização de Portugal no Brasil”.
É importante ainda destacar que, nessa introdução ao livro Evolução urbana no Brasil,
Reis Filho se preocupa em detalhar o método de análise das fontes, tanto “primárias” quanto
“secundárias”, algo que não fará em Quadro da arquitetura no Brasil. No entanto, entendo
que o exposto capítulo introdutório ora analisado forneceu a esse último livro as premissas
necessárias para sua realização. Os referenciais teóricos, os aportes metodológicos e o trato
com as fontes apresentados serviram de base para a análise do nível mais restrito que
compreende os núcleos urbanos e seus edifícios. Passemos então à análise de Quadro da
arquitetura no Brasil, nos moldes do que foi realizado no capítulo anterior.

4.3.2 A estrutura de Quadro da arquitetura no Brasil

Como já foi dito, esse livro é uma reunião de ensaios produzidos a partir de 1962,
publicados entre 1963 e 1969, primeiramente no Suplemento Literário de O Estado de S.
Paulo e, em seguida, na revista Acrópole. Segundo Reis Filho, tratavam-se de textos “com os
quais procurávamos delinear um quadro de referências básicas para o estudo da arquitetura no
Brasil, revelando um esquema, a partir do qual vínhamos desenvolvendo nossas pesquisas na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo”.323 A publicação do conjunto de ensaios contou, mais
uma vez, com a rede intelectual estabelecida na USP, uma vez que “a generosidade de Aracy
322
Fernandes define o conceito da seguinte forma: “é a conexão que se estabelece quando unidades do sistema
social concorrem, com sua atividade, para manter ou alterar as adaptações, os ajustamentos e os controles
sociais de que dependam a integração e a continuidade do sistema social, em seus componentes nucleares ou
como um todo. Por unidade do sistema social deve-se entender todo e qualquer elemento (ação, relação,
posição, personalidade, grupo, instituição, camada, etc.), que possa fazer parte de conjuntos interdependentes
de fenômenos sociais e desempenhar dentro deles, independentemente de sua própria constituição ou
complexidade, uma influência característica”. FERNANDES, Florestan. Fundamentos Empíricos da
Explicação Sociológica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p. 268, apud REIS FILHO. Op. cit.,
2000.
323
Ibid., p. 9.
153

Amaral e dos demais críticos e artistas, que compõem o Conselho Editorial da Coleção
'Debates', conseguiu encontrar interesse em reuni-los sob a forma de um livro”, dada a “linha
comum de desenvolvimento” que apresentavam.324 Desnecessário mencionar novamente o
apoio de Lourival Gomes Machado quando da publicação desses textos no Suplemento
Literário do jornal O Estado de S. Paulo.
Muito embora saliente ao final de sua “Nota prévia” (uma espécie de introdução a seu
livro) o caráter de ensaios dos textos apresentados, “mais do que de obras com tratamento
metodológico sistemático”325 (o que visava, segundo o arquiteto, atender o interesse dos não
especialistas), Reis Filho deixa claro também que esses textos surgiram das pesquisas de
cunho científico produzidas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Infelizmente
não tece maiores detalhes acerca dos aspectos metodológicos dessas pesquisas, resumindo-se
a apenas especificar aqueles de cunho teórico desta análise mais voltada para a arquitetura. A
única menção que faz a essas pesquisas é a seguinte:

Tentando encarar os fenômenos arquitetônicos com a objetividade de uma


abordagem científica, tínhamos necessidade de superar os limites das análises de
problemas puramente formais, para relacionar a arquitetura com um quadro mais
amplo, especialmente com as estruturas urbanas e com as condições de evolução
social e cultural do Brasil, isto é, tínhamos necessidade de deixar de encará-la como
simples transposição de arquitetura europeia, para reconhecer a evolução de suas
condições de produção e uso no país.326

Não obstante a falta de rigor de Quadro da arquitetura no Brasil, o relacionamento da


arquitetura “com um quadro mais amplo”, ou seja, com as “estruturas urbanas” e com as
“condições de evolução social e cultural do Brasil”, torna esse conjunto de textos um
prolongamento ou um desenrolar do trabalho iniciado em Evolução urbana do Brasil, no qual
pode ser encontrado uma maior rigor metódico ou científico.
Quadro da arquitetura no Brasil foi divido em três partes (“Lote urbano e arquitetura
no Brasil”, “Arquitetura brasileira no século XIX” e “Sobre o patrimônio de cultura”).
Tentarei descrever cada uma delas, no intuito de tornar mais claras as proposições de Reis
Filho e, em seguida, analisá-las de modo a ressaltar os aspectos que mais interessam a este
trabalho.

324
Ibid., p. 10.
325
Ibid., p. 11-12.
326
Ibid., p. 9.
154

4.3.2.1 A arquitetura e o lote

Na primeira parte, Reis Filho relacionou os “modelos de arquitetura” utilizados no


Brasil, desde o período colonial até a década de 1960, com as estruturas urbanas nas quais
estão inseridas, isso é, nos tipos característicos de lotes onde os edifícios foram implantados.
O arquiteto o fez “indicando simultaneamente as diretrizes seguidas pela evolução, no tempo,
desse conjunto de reações e as formas que atingem na atualidade, bem como suas perspectivas
de desenvolvimento”.327
No capítulo “Lote urbano e arquitetura”, Reis Filho fez uma espécie de exposição
teórica sobre o que foi escrito posteriormente. O arquiteto tratou da interdependência entre a
arquitetura e o lote no qual ela está implantada. Desta forma, defendeu o modo pelo qual um
processo “puxa” o outro, ao mesmo tempo em que tratou de como a resposta do âmbito
urbano em relação às mudanças técnicas no campo da arquitetura se dá de forma defasada.
Este capítulo é de suma importância para a compreensão de como o “sentido” é construído
nesse trabalho.
Os demais capítulos desta parte tratam das formas de relacionamento entre arquitetura
e lote urbano para cada momento do processo sócio-econômico e cultural do país. Com
relação ao período colonial, abordado no primeiro desses capítulos, o tipo de lote urbano
brasileiro guardaria características medievais portuguesas, no qual se baseariam casas
construídas também de modo uniforme, sobre o alinhamento das ruas e com as paredes
laterais nos limites dos terrenos. Além das imposições das Cartas Régias referentes às
dimensões e números de abertura das casas, essa padronização aparentemente agradaria aos
proprietários. O primitivismo das técnicas construtivas espelharia uma mão-de-obra assentada
no trabalho escravo. O fornecimento de água, o serviço de esgoto e o abastecimento ficariam
assim por conta dos cativos, dispensando então inovações tecnológicas relativas ao
funcionamento das habitações e das cidades. A vida urbana seria intermitente, pois os
sobrados urbanos dos núcleos intermediários seriam habitados apenas em dias de festa,
girando todo o restante do tempo em torno do mundo rural, do qual dependia as cidades. Os
tipos de habitação refletiriam a posição dos moradores (os sobrados para os ricos e as casas
térreas para os pobres) e as cidades brasileiras seriam, desse modo, uma transplantação das
cidades portuguesas com algumas adaptações.
O próximo capítulo trata do relacionamento entre arquitetura e lote urbano vigente no
327
Ibid., p. 10.
155

século XIX. Esse século assistiria a novos esquemas de implantação da arquitetura urbana,
num esforço de adaptação aos padrões europeus agora tão ansiados pela jovem nação.
Enquanto durou o esquema escravista, teriam persistido os velhos padrões de arquitetura e
implantação (segundo Reis Filho, continuaria a vigorar a marcante “monotonia” da
arquitetura tradicional). As primeiras tentativas de mudança, visando “civilizar” a ex-colônia,
apareceriam no Rio de Janeiro, com a presença da Missão Cultural Francesa. Contudo, a
persistência do trabalho escravo e a dependência de material e mão-de-obra estrangeiros
fariam com que, até o início da segunda metade do século XIX, essas mudanças se
processassem de forma lenta.
Teria sido a partir da segunda metade do século XIX, com a progressiva substituição
do trabalho escravo pela mão-de-obra imigrante, com a facilidade dos transportes e com a
expansão industrial, que as modificações no cenário urbano passariam a ser sentidas com mais
vigor. O desejo de imitação dos hábitos europeus somado à disponibilidade de mão-de-obra
conhecedora de suas técnicas tornaria predominante o gosto pelo ecletismo, que faria com que
as casas recuassem nos lotes, distanciando-se das ruas, algo que se tornava cada vez mais
comum. Com o afastamento inicialmente lateral dos lotes (as casas passavam a conhecer
corredores e jardins laterais) e, posteriormente, frontais, as habitações puderam contar com
novas soluções de arejamento e contato com o mundo exterior. Aperfeiçoavam-se também os
hábitos higiênicos com a instalação, por exemplo, dos primeiros banheiros com água corrente,
substituindo assim os velhos “tigres”328 transportados por escravos. No entanto, essas
alterações, ainda discretas, dar-se-iam apenas no nível das relações entre o edifício e o lote no
qual se implantava, persistindo as soluções urbanísticas tradicionais. As cidades cresciam com
o aparecimento de novos bairros, mas o sistema viário, por exemplo, mantinha-se o mesmo.
Os lotes sofreriam alterações, mas apenas em suas dimensões, não correspondendo, portanto,
a verdadeiras inovações urbanísticas.
Neste ponto é necessário relativizar a linearidade do esquema proposto por Reis Filho.
Os mesmos fatores que teriam desencadeado esses diversos aperfeiçoamentos no campo da
arquitetura gerariam contradições sociais e problemas urbanísticos que só agravariam a difícil
relação entre cidade tradicional e vida moderna. Se no mundo colonial a diversidade sócio-
econômica se expressava, no domínio da arquitetura urbana, na diferença entre sobrado (dos
ricos) e casa térrea, de chão batido (dos pobres), sendo que apenas o tamanho das residências
variaria, não tanto os esquemas, a partir do século XIX as contradições se tornariam gritantes.
As massas egressas do campo ou adensariam o tecido urbano tradicional, ocupando
328
Grandes vasos nos quais os escravos transportavam os excrementos da família de seu senhor.
156

precariamente os antigos sobrados (os “cortiços”), ou acorreriam às favelas, vivendo em


habitações e em condições de higiene precárias. Tais problemas se agravariam
crescentemente, tendo em vista a forma negligente pela qual teriam sido tratados, por parte
das autoridades, esses problemas urbanos, deixados de lado em favor de interesses
capitalistas, principalmente imobiliários.
O próximo capítulo trata da implantação da arquitetura no século XX. No início desse
século, surgiriam algumas soluções urbanas diferenciadas, sobretudo nos bairros das classes
mais abastadas, a exemplo de Higienópolis e Campos Elísios em São Paulo, e nos bairros da
Zona Sul do Rio de Janeiro. As soluções arquitetônicas, então mais complexas, demandariam
amplos jardins, para os quais se transfeririam “os antigos preconceitos da fachada e hierarquia
dos espaços, da arquitetura tradicional”.329 Algumas diferenças far-se-iam notar também nos
conjuntos populares (a exemplo das “vilas”) e nos prédios que passaram a ser destinados
exclusivamente à atividade comercial.
Todavia, maiores alterações seriam conhecidas no período entre-guerras. O
desenvolvimento industrial e a ampliação da mecanização atingiriam a arquitetura,
favorecendo o transporte vertical e, por conseguinte, a construção dos primeiros arranha-céus.
A ampliação da indústria e da mão-de-obra assalariada significaria o abandono definitivo das
técnicas construtivas tradicionais. No entanto, no nível urbanístico, seriam ainda aproveitados
os velhos esquemas tradicionais, numa procura apenas por adaptação aos novos edifícios, sem
uma resposta eficaz às necessidades contemporâneas. Apenas os ricos conheceriam a
novidade dos “bairros jardins”, de larga aceitação por conciliar os antigos sobrados com as
possibilidades das chácaras. A arquitetura surgida nesses bairros ricos mostra visíveis
avanços, no entanto permaneceriam os hábitos tradicionais de segregação social dos espaços.
Por outro lado, o êxodo rural observado no período faria com que crescessem
desmesuradamente os bairros periféricos, que atingiriam uma grande densidade de
construções, sobretudo em função dos interesses imobiliários. O aproveitamento extremo dos
lotes tradicionais, despreparados para tal carga populacional, somado às parcas condições
financeiras de uma parcela cada vez maior da população urbana, favoreceria o surgimento de
tipos precários de habitação, conformando assim as “malocas, invasões, mocambos ou
favelas”.
O próximo período, compreendido entre os anos de 1940 e 1960, corresponderia a um

329
Ibid., p. 58. O autor se refere à diferenciação, encontrável na arquitetura tradicional de todo território
nacional, entre os espaços destinados ao contato com o mundo exterior e aquele reservado à família e à
intimidade do lar, como a divisão entre “faixa fronteira” e “zona da família” encontrada nas casas
bandeiristas.
157

vertiginoso desenvolvimento industrial, com o consequente avanço na área arquitetônica. Os


avanços técnicos, a exemplo do concreto armado, permitiriam aos arquitetos modernos
“explorar amplamente as possibilidades de acomodação ao terreno, em que pese à exiguidade
dos lotes em geral”.330 A “planta livre” se mostra então superior à orientação “frente-fundos”,
predominante por todo o período precedente.
Todavia, somente Brasília representaria um esforço sério de resolver conjuntamente os
problemas de arquitetura e planejamento urbano, o que foi abordado por Reis Filho em
capítulo específico. Ter-se-ia enfim superado, pelo planejamento de Lucio Costa, a velha
noção de arquitetura como algo separado do lote urbano. A funcionalidade é posta em
primeiro plano na construção dos edifícios (o que já vinha sendo demonstrado desde a
construção, em 1936, do prédio do Ministério da Educação e Saúde Pública); contudo, Reis
Filho critica a omissão do paisagismo para a conformação de uma paisagem urbana naquela
cidade, igualmente importante segundo sua ótica.
A exposição de Reis Filho sobre a evolução da arquitetura brasileira pensada como
interconexão de dois processos distintos, porém inseparáveis, ou seja, o arquitetônico e o
urbanístico, é fechada com o capítulo intitulado “Uma nova perspectiva”. Trata-se, afinal, da
defesa de um urbanismo racionalista (tema tratado aprofundadamente em seu livro
Urbanização e teoria331), que, segundo o arquiteto, “pode ser visto como a última etapa de um
longo processo para libertar as estruturas urbanas contemporâneas dos modelos herdados de
outras épocas, que dificultam a sua adaptação às exigências da sociedade industrial”.332

4.3.2.2 A arquitetura novecentista

A segunda parte do livro trata especificamente da arquitetura do século XIX, numa


tentativa de superar uma lacuna deixada, segundo Reis Filho, pela tradição do SPHAN, mas
também de dotar a história da arquitetura nacional de um novo significado, para o qual São
Paulo surge como principal manifestação.
Na primeira metade do século XIX, os grandes centros do litoral, cujas vidas
encontravam-se ligadas mais diretamente ao mundo europeu, conheceriam o aparecimento do
neoclássico. No primeiro capítulo dessa parte, Reis Filho distinguiu os dois tipos de
330
Ibid., p. 88.
331
REIS FILHO. Urbanização e teoria. Op. cit.
332
REIS FILHO. Quadro da arquitetura..., op. cit., p. 106.
158

arquitetura urbana nesses centros: o das classes mais abastadas, no qual se poderia verificar
um nível mais complexo de arte e arquitetura, integrando-se de fato aos padrões de correção
formal europeus; e uma arquitetura mais modesta, que conservaria os mesmos traços da
arquitetura colonial. Não obstante já estivessem surgindo casas com porão alto (uma forma de
desviar o olhar do desconhecido, bem como de alojar os escravos e a criadagem) e jardim
lateral, com preceitos plásticos neoclássicos, as formas de implantação seguiriam ainda o
modelo tradicional.
Em seguida, Reis Filho se dedicou a mostrar a apropriação dessa nova linguagem
arquitetônica nas províncias. Tratar-se-ia de uma cópia imperfeita da arquitetura dos grandes
centros, pois os proprietários mais abastados dessas províncias, ocupando cargos na
administração pública central, ao retornarem às suas terras trariam consigo novas ideias
arquitetônicas, fator importante de diferenciação social. No entanto, essas pessoas não
disporiam nem de mão-de-obra qualificada nem dos materiais necessários, o que acarretaria
apenas numa apropriação superficial do neoclássico. Persistiriam, assim, as soluções
tradicionais condicionadas pelo esquema escravista.
Em “Interpretação do neoclássico”, Reis Filho relacionou esse quadro de difusão do
neoclássico a uma estrutura política mais ampla. A adoção desse estilo arquitetônico possuiria
uma significação política, vez que demonstraria uma espécie de “grau de civilidade” de seus
moradores, os representantes políticos de cada localidade. O crescente “aburguesamento” das
elites cumpriria uma espécie de função simbólica, indicando quais indivíduos seriam,
portanto, dignos da ocupação dos principais cargos políticos por sua proximidade daquilo que
era considerado padrão de civilização, tomado em comparação à sociedade europeia.
Em seguida, Reis Filho tratou das modificações pelas quais a arquitetura da segunda
metade do século XIX teria passado, relacionando-as com as novas condições sócio-
econômicas e tecnológicas de então. No entanto, a arquitetura não foi tomada como sendo
consequência dessas condições, mas como parte integrante ou parcela importante dessas
transformações. Tratar-se-ia não só da expansão da oferta de novos materiais, do transporte e
da modificação do tipo de mão-de-obra, mas também de uma nova mentalidade empresarial
recém surgida. Com a crescente formação de mestre-de-obras, oficiais mecânicos e artífices
no Brasil, o setor da construção civil teria se tornado menos dependente da mão-de-obra e dos
materiais importados, favorecendo a expansão da arquitetura europeia no Brasil. Além disso,
os agentes sociais responsáveis por essa transformação na vida brasileira, influenciados
principalmente pelo pensamento evolucionista e positivista, empenhar-se-iam em romper com
a tradição escravista republicana, ao mesmo tempo que se tornariam entusiastas de uma
159

arquitetura cada vez mais atualizada e tecnicamente elaborada. Esses fatores, somados à
migração do campo para as cidades, teriam favorecido um grande desenvolvimento urbano,
com a ampliação do número de bairros nos entornos das cidades, o que, como já foi
mencionado, acarretaria também uma série de problemas. A vida citadina passaria a ter mais
importância que a rural, e a arquitetura do campo se tornaria cada vez mais semelhante à das
cidades.
O próximo capítulo trata do nível então atingido pelas técnicas construtivas,
oferecendo um verdadeiro rol de materiais e técnicas disponíveis com as facilidades de
importação e transporte. Em seguida, Reis Filho mostra como essas alterações impuseram
mudanças à composição arquitetônica. Dessa forma, a estética pregada pelo ecletismo teria
possibilitado a realização de novas experiências espaciais, como as alterações nos esquemas
de circulação, os novos problemas de relação entre o interior e o exterior em função do
aparecimento dos jardins, a redução da altura dos porões com o afastamento da rua etc.
No último capítulo da segunda parte tem-se uma reflexão sobre os motivos da difusão
do ecletismo no Brasil, de forma semelhante ao que foi apresentado em relação ao
neoclássico. Primeiramente, conclui-se que o ecletismo representou um acordo entre diversas
correntes arquitetônicas, de forma semelhante a uma espécie de conciliação filosófica,
político-social e estética ocorrida tanto na França como no Brasil, conforme leitura que Reis
Filho fez da obra do historiador das ideias João Cruz Costa (também de origem uspiana). Por
outro lado, o arquiteto paulista procurou mostrar que o caráter de imitação do Ecletismo tinha
sua razão de ser. A cópia exata do que se produzia na Europa cumpria uma função social já
assinalada anteriormente, ou seja, a demonstração simbólica de uma posição política. Assim, a
arquitetura deixa então de ser compreendida como “consequência direta das condições
sociais”. Pelo contrário, a arquitetura seria então

uma forma de viver, de ir ao encontro da realidade, procurando transformá-la


segundo os alvos sociais dos agentes. Pode, portanto, adquirir significados
contraditórios, segundo os grupos sociais pelos quais é utilizada. Mas sempre e
necessariamente, se não é o caso particular, isto é, se é utilizada por grupos sociais e
tem generalidade, é porque adquiriu significado social para o grupo.333

333
Ibid., p. 186.
160

4.3.2.3 O “patrimônio de cultura”

A última parte do livro é dedicada ao que Reis Filho chama de “patrimônio de


cultura”. Neste ponto o tom ensaístico de fato predomina, haja vista que os escritos baseiam-
se no “trato com os problemas da arquitetura brasileira”, o que lhe teria trazido “uma certa
familiaridade com as questões relativas à preservação de seus exemplos mais
significativos”.334 São essas impressões que lhe serviram como base empírica para o
tratamento da questão, levando-o a tecer uma série de considerações que se coadunavam bem
com os anseios preservacionistas de sua época.
Dois aspectos se mostram centrais nessa sua reflexão: a utilização do patrimônio já
preservado como uma espécie de referência para a vida cultural no presente (adiantando assim
as discussões travadas a partir de 1974 no curso de Conservação e Restauro oferecido na
FAU-USP em parceria com o IPHAN e CONDEPHAAT e, a partir de 1975, no Centro
Nacional de Referência Cultural) e como fonte de recursos financeiros para a área cultural.
Essa carência financeira é citada inclusive como motivo de uma concentração da atuação do
IPHAN em áreas como Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Não se trata, portanto, de um
ataque ao IPHAN, como se verá adiante com Carlos Lemos e seus epígonos na USP, mas da
tentativa de modificação dos usos do patrimônio já (“heroicamente”) preservado, bem como
da inclusão de bens que até então teriam despertado pouco interesse do órgão federal de
preservação (sobretudo os edifícios e a malha urbana erigidos no século XIX, abundantes em
São Paulo e em vias de desaparecimento, à época, em função da intensa expansão urbana e da
consequente ação imobiliária depredatória). Manifestações culturais como as surgidas à época
do café e com o início da industrialização, por exemplo (cujo centro foi São Paulo), tornam-se
relevantes num nível nacional.
Outro aspecto interessante é que o patrimônio cultural também é pensado numa escala
urbana. São Paulo, na condição de metrópole, deveria criar condições de uso dos bens
culturais para toda sua região de influência cultural. A intensa vida urbana paulistana estaria
destruindo um rico caldo cultural rural, cada vez mais desorganizado pelo contato com o meio
metropolitano, sendo então substituído por “elementos mal coordenados de cultura de massa,
fornecidos com objetivos comerciais de menor alcance”.335 O poder público local
(especialmente o metropolitano) teria a obrigação de organizar e possibilitar uma

334
Ibid., p. 192.
335
Ibid., p. 199.
161

programação cultural, ligada à disseminação do patrimônio preservado e à proteção daquilo


de significativo ainda não protegido, que permitisse a integração da população metropolitana,
egressa principalmente do campo. Esse patrimônio, por sua vez, não é pensado na escala
restrita do edifício, mas em sua expressão urbana, ou seja, como fenômeno social constituído
processualmente, sendo que tal processo pode ser compreendido pelos vestígios materiais que
dele ainda restam, a saber: os núcleos urbanos construídos em outras épocas e ainda
preservados.

4.3.3 As fontes

É em Evolução urbana do Brasil que se encontra, mais uma vez, uma sistematização
satisfatória do trato relativo às fontes. No entanto, tem-se a possibilidade de observar, no livro
Quadro da arquitetura no Brasil, como essas fontes são utilizadas.
Os “dados coletados” foram divididos por Reis Filho em duas categorias: fontes
primárias e secundárias. Com relação à primeira, o arquiteto se valeu, principalmente, de
fontes cartográficas, iconográficas e documentais. Utilizo aqui o termo “fonte documental”
num sentido estrito, relativo a documentos oficiais disponibilizados em arquivos públicos ou
publicações, haja vista que, conforme o sugerido por Jacques Le Goff em seu
Documento/Monumento, o termo “documento” adquire então uma significação ampliada.336
Quando Reis Filho se deu conta do potencial das fontes iconográficas e cartográficas
para a análise da arquitetura e da evolução urbana, percebeu também a escassez de estudos na
área. Segundo seu relato, não havia mais publicações além daquelas que já foram
mencionadas neste trabalho, em subseção anterior, e, dessa forma, teve ele mesmo que se
lançar à pesquisa dessas fontes. Fruto dessas investigações foi o já mencionado Catálogo de
iconografia das vilas e cidades do Brasil colonial, que, no entanto, está recortado entre os
anos de 1500-1720.337 Nesse trabalho Reis Filho selecionou desenhos que pudessem servir ao
estudo dos núcleos urbanos, demonstrando especial preocupação em “verificar com maior
cuidado as datas originais de cada informação ou evento” e “procurar determinar, com

336
LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: Enciclopédias Einaudi. Vol. 1. Memória-História. Lisboa:
Impressa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 95-106. Com este comentário, pretendo apenas lembrar que a
partir desse trabalho houve uma fixação semântica bem sucedida, ampliando, portanto, a significação do
termo “documento” em relação àquele empregado pela tradição à qual os historiadores dos Annales
pretendem se opor.
337
REIS FILHO. Catálogo de iconografia... Op. cit.
162

clareza, os núcleos urbanos aos quais se referiam, pois os resultados poderiam sofrer
diferenciações, segundo as regiões e as épocas consideradas”.338 Além disso, Reis Filho tomou
o cuidado de proceder a uma “análise interna” das fontes a fim de garantir a originalidade dos
desenhos com os quais trabalha, isso porque “quase todas as reproduções que ilustram obras
de História e mesmo de especialistas em cartografia, são constituídas dessas cópias e sua
utilização pode conduzir a enganos de datação de edifícios ou etapas de crescimento, que, em
certos casos, chegam a atingir a um século”.339
Com relação às fontes “documentais”, embora já tenha afirmado nunca ter sido
“historiador de arquivo”, diferenciando assim a prática de pesquisa relativa a documentos
escritos e a documentos iconográficos e cartográficos, Reis Filho afirma ter utilizado em seu
Evolução urbana do Brasil crônicas e documentos publicados pelos arquivos públicos, como
as Cartas Régias, “mas principalmente as Atas das Câmaras, que abrigam as mais úteis
informações”.340 A escolha dessas fontes obrigou o arquiteto a cuidar de uma limitação: tais
atas foram publicadas, na época em que escreveu o livro supracitado, somente em relação às
cidades de São Paulo, Salvador e Ouro Preto. Reis Filho se preocupa com o fato de que a
utilização de fontes restritas a localidades específicas poderiam introduzir “distorções nos
resultados da investigação”. Contudo, o objetivo de sua pesquisa minimizaria o problema:

como o objetivo é a captação dos mecanismos da evolução do processo, nos seus


aspectos gerais, a probabilidade de que isso ocorra é pequena e, mesmo, a
diversidade de informações enquadradas atua mais como uma verificação do
esquema explicativo do que como ameaça ao mesmo; o risco inverso, de haver
influência das características homogêneas pareceu-nos extremamente remoto, dada
a diversidade de condições de formação e evolução de cada um desses centros.341

Desse modo, pode-se concluir que, diferentemente de Luís Saia, Reis Filho se
preocupa em esboçar um método de tratamento das fontes “primárias”. Os dados
iconográficos e cartográficos são analisados e criticados diretamente. Com relação às fontes
escritas, o cuidado é um pouco menor, não só pelo fato de o arquiteto confessadamente não
dominar a leitura paleográfica, mas porque elas se prestam principalmente, como se pode
depreender, ao cruzamento de dados. Essa análise cruzada tem dois objetivos primordiais: um
deles é testar a veracidade dos desenhos e mapas; o outro se refere ao relacionamento de
certas constâncias formais às políticas urbanizadoras portuguesas, amparando portanto suas

338
Idem. Evolução urbana..., Op. cit.
339
Idem. Catálogo de iconografia... Op. cit.
340
Ibid.
341
Itálicos meus, Ibid.
163

hipóteses, contrárias, por exemplo, às de Sérgio Buarque e Robert Smith, em sólida


documentação primária.
Em Quadro da arquitetura no Brasil, essas pesquisas são apresentadas apenas como
resultados, sem indicação às investigações que conduziram a tais conclusões. Dessa forma,
por exemplo, a “monotonia” da arquitetura colonial urbana é primeiramente relacionada às
imposições formais da corte, sendo que “dimensões e número de aberturas, altura dos
pavimentos e alinhamentos com as edificações vizinhas foram exigências correntes no século
XVIII. Revelam uma preocupação de caráter formal, cuja finalidade era garantir para as vilas
e cidades brasileiras uma aparência portuguesa”.342
Todavia, as “políticas de urbanização” portuguesas, por si só, não explicariam, por
exemplo, o caráter dessa etapa da evolução arquitetônica e urbana brasileira, assim como não
dariam conta dos motivos que teriam levado ao surgimento de novos modos de habitar e
conviver. Com o intuito de desvendar essas outras variantes, Reis Filho lança mão daquilo que
chama de “fontes secundárias”. Elas servem tanto para tratar diretamente dos traçados
urbanos, como no caso específico de Evolução urbana do Brasil, quanto para o fornecimento
de dados de caráter mais geral.
Desse modo, dados sócio-econômicos, culturais, políticos e tecnológicos são buscados
nas obras de diversos autores. Para “alguns trabalhos de caráter histórico sobre determinados
centros urbanos”,343 Reis Filho utiliza historiadores tradicionais como Afonso de Taunay sobre
São Paulo, Thales de Azevedo sobre Salvador, Pizarro e Vieira Fazenda sobre o Rio de
Janeiro, dentre outros. Em relação aos relatos de viajantes, expõe a dificuldade de encontrá-
los, pois, a partir do século XVII são impedidos de entrar no Brasil. No entanto, para o século
XIX, são conhecidos os relatos de Saint-Hilaire, Von Martius e L. L. Vauthier, por exemplo,
que lhe fornecem importantes dados não só sobre as cidades e a arquitetura, mas sobre os
hábitos de seus habitantes.
São ainda arrolados vários autores, mais recentes, que tratam de aspectos urbanísticos,
tanto nacionais quanto portugueses (dado importante para a compreensão que Reis Filho
propõe a respeito dos fenômenos urbanísticos coloniais brasileiros, estritamente dependentes,
segundo ele, da tradição medieval portuguesa e das políticas urbanizadoras daquela nação),
em cuja descrição pormenorizada não irei me ater. Cabe destacar, no entanto, o apoio na
historiografia pós-década de 1930 (sobretudo Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio
Buarque de Holanda), utilizada no intuito de compreender os fatores sócio-econômicos e

342
Idem. Quadro da arquitetura, op. cit., p. 24.
343
Idem. Evolução urbana..., Op. cit.
164

culturais relevantes aos fenômenos urbanísticos, a exemplo do papel fundamental do regime


escravista para as soluções tecnicamente primitivas adotadas para a arquitetura e cidades
coloniais, da função das habitações urbanas num mundo predominantemente rural (as casas
adquirindo assim um papel significativo para o âmbito político), das inter-relações entre
arquitetura/cidade e sociedade etc.
Assim, observa-se aqui uma velha divisão entre fontes “primárias” e “secundárias”.
Por um lado, isso significa um avanço no tratamento e crítica das fontes “materiais”, no caso
iconográficas e cartográficas, sobre as quais recaem e aprimoram-se métodos de crítica e
verificação. Por outro, subestima-se o caráter das “fontes secundárias”, que, na verdade,
deixam de ser tratadas propriamente como “fontes” para serem reificadas como informações
objetivas. Quando tais fontes são criticadas, isso se dá, quando muito, em função da
inexatidão referente à interpretação da realidade urbanística, possibilitada pela correta
compreensão daquelas fontes “primárias”. Assim, os textos não são encarados eles próprios
como “fontes”, ou seja, suas condições de produção não são questionadas ou criticadas.
Embora tenhamos que levar em consideração que esse não foi o objeto de análise do
arquiteto, essa divisão entre fontes “primárias” e “secundárias” apenas empobrece a
potencialidade das fontes escritas, que são ações individuais efetuadas em realidades sociais
específicas e, nessa condição, muito têm a dizer, inclusive sobre aspectos como a arquitetura e
a cidade.
Por fim, deve ser destacado que a explicitação dos métodos de abordagem das fontes
adquire um caráter fundamental dentro da produção historiográfica de Reis Filho, mesmo que
isso não esteja explicitado em Quadro da arquitetura no Brasil. Os critérios de legitimidade
ligados à produção historiográfica já haviam passado por uma mudança fundamental: se à
época de Luís Saia o que importava era apenas a reconhecida erudição, ou seja, o extenso
conhecimento das fontes e não necessariamente sua crítica, esta última passou a ser
primordial dentro dos critérios de cientificidade que, a partir das décadas de 1950 e 1960
passaram a vigorar. Pode-se imputar essas alterações a um quadro mais amplo, relacionado às
novas configurações institucionalizadas no campo da produção historiográfica. O intuito de
explicitar os “mecanismos da evolução do processo, nos seus aspectos gerais”, deveria
obedecer, a partir de então, ao trato mais rigoroso com as fontes.
165

4.3.4 A relação com os valores

Para Reis Filho se mostra muito importante, como vimos, contribuir para o que
considera o “conhecimento dos mecanismos da Evolução Urbana do Brasil”. Essa escolha
influenciou a seleção das fontes “primárias” e nasceu de um claro objetivo: demonstrar a
relevância de São Paulo para a formação nacional. Embora isso já pudesse ser tido como
óbvio para a historiografia em geral (pelo lugar de destaque ocupado pelo estado na economia
do país após a segunda metade do século XIX), no campo restrito da história da arquitetura
essa posição precisava ainda ser conquistada. A pouca relevância a que era relegado o estado
de São Paulo na história da arquitetura trazia, por sua vez, consequências no âmbito das
políticas culturais. Essas ficavam cada vez mais a cargo do IPHAN, que, como é sabido, foi
montado predominantemente por arquitetos. Assim, São Paulo acabava ficando de fora de boa
parcela das políticas culturais federais, enquanto que, segundo notou Reis Filho, o rico acervo
cultural do estado acabava por se perder por falta de recursos e interesse.344
“Faria sentido” então investir em políticas preservacionistas para São Paulo, tão
“pobre” no que diz respeito à arte e à arquitetura colonial, de acordo com o que foi notado
pelo próprio Mário de Andrade?345 Luís Saia já havia respondido satisfatoriamente a essa
pergunta, mas, com a crescente metropolização de São Paulo, a restrita atuação do IPHAN
suscitava novas questões. Outro tipo de arquitetura (a neocolonial e a eclética) começava a
desaparecer em decorrência do surto industrial e econômico paulista, os velhos espaços
passavam a ser pressionados pelo desenvolvimento urbano, a ânsia por progresso ameaçava
então as já velhas construções do século XIX.
Para a geração de Reis Filho, a relação com a arquitetura pretérita possuía certamente
um outro significado. Nas décadas de 1930 e 1940 o ecletismo era ainda um fenômeno
recente (senão contemporâneo), representando um obstáculo, no que tange à atuação dos
arquitetos modernos, para a construção de uma estética original brasileira, para a qual seria
necessário o rompimento com os laços de dependência cultural em relação à Europa. Na
década de 1950 essas disputas já haviam sido superadas e a hegemonia do discurso
arquitetônico moderno (em suas variadas concepções) já era clara. Assim, a arquitetura
eclética surgiu, pela primeira vez, como “coisa do passado” e, como tal, passava a pedir
explicações ou interpretações. Passou-se a questionar por que aquela arquitetura estava ali e,
344
Principalmente no capítulo “Sobre o patrimônio de cultura”, em Idem. Quadro da arquitetura... op. cit.,
1983.
345
Cf. Capítulo 2.
166

além disso, se ela deveria continuar ali.


Reis Filho foi um dos primeiros a se lançar nessa empreitada. Para tanto, seguiu os
passos indicados por Luís Saia, ou seja, encarou a arquitetura como resultado de um processo
ligado a outros, sobretudo o urbano, o econômico, o social e o cultural. Saia já havia alertado
para o valor da arquitetura eclética, desde que pensada como conjunto, haja vista que,
individualmente, seu caráter de cópia faria dela objeto desinteressante. Imbuído então dos
questionamentos da geração das décadas de 1950 e 1960, Reis Filho percorreu exatamente os
caminhos apontados por Saia, mas, no entanto, chegou a uma conclusão bastante diversa: a
arquitetura eclética não seria inferior à colonial. O desenvolvimento da arquitetura estaria
atrelado a um desenvolvimento tecnológico, possibilitado no século XIX pela nova posição
brasileira no mercado internacional. Além disso, a arquitetura neoclássica (relacionada mais
diretamente ao início da cafeicultura no estado) e a arquitetura eclética (ligada ao período
áureo do café e à industrialização) representaria o momento em que São Paulo se tornou um
dos principais centros econômicos do país (ainda ao lado do Rio de Janeiro), adquirindo assim
valor ou significado histórico.
Todavia, esse significado necessitaria ser historiograficamente construído. Uma das
primeiras tarefas a que se lança então Reis Filho é a de dotar a arquitetura novecentista de
importância histórica. A observação da sucessão dos traçados urbanos no tempo apontava para
o surgimento progressivo de novas soluções. Encontrados esses “mecanismos” de
desenvolvimento, seria possível analisar de que forma as mudanças urbanísticas influíam na
arquitetura. Por outro lado, esses dois processos, em conjunto, passaram a ser tratados como
partes de processos sócio-culturais e econômicos mais amplos. Assim, por exemplo, o regime
escravista explicaria as opções técnicas e tecnológicas (“primitivas”, segundo Reis Filho)
vigentes no período colonial (e mesmo durante o Império, ou seja, enquanto persistiu o
regime), ao mesmo tempo em que as facilidades oferecidas aos grupos dominantes por esta
situação social (os modos e espaços de morar e conviver como fator importante),
contribuiriam para a persistência do mesmo regime. Esse modelo interpretativo poderia ser
estendido aos períodos posteriores, num inter-relacionamento íntimo entre arquitetura, cidade,
tecnologia, sociedade, economia e cultura.
Dessa forma, a arquitetura do século XIX, bem como o tecido urbano no qual se
implantou, passaram a ser objetos de estudo da história da arquitetura e do urbanismo e, como
tal, alvos das políticas culturais, para as quais a casa sempre foi um tipo de bem material
privilegiado. Essa arquitetura não apenas representaria as alterações sócio-culturais e
tecnológicas daquele século, mas também ajudaria a explicá-lo. O desejo de alguns de
167

demonstrarem simbolicamente uma posição social e política encontraria sua principal forma
de expressão nas residências, que procurariam ao máximo imitar a arquitetura europeia como
símbolo de “cultura” ou “civilização”. Esse desejo de imitação, por sua vez, demandaria
novas técnicas e materiais, bem como mão-de-obra qualificada. Esse quadro ajudaria a
explicar (ainda que não explicasse por completo), a expansão das importações de objetos
manufaturados de outros centros, a exemplo da Inglaterra e França, a crescente substituição da
mão-de-obra escrava pela assalariada, o desejo pela industrialização etc. Posteriormente
seriam a abolição da escravidão, a substituição das importações por uma indústria local e a
criação de cursos de formação técnica (a exemplo do Liceu de Artes e Ofícios, criado por
Ramos de Azevedo346) que corroborariam essa tese. A mesma, no entanto, não deve ser mal
compreendida: não se trata de uma espécie de determinismo, no qual a arquitetura seria o
principal elemento na explicação desses fenômenos; ela apenas contribuiria para o sucesso
dessas alterações mais amplas, ao mesmo tempo em que seria profundamente influenciada por
elas. Seria desnecessário dizer que para a questão da escravidão, do desenvolvimento
industrial, técnico e educacional e da nova posição brasileira confluíram outros fatores de
muito maior importância. No entanto, a arquitetura surge como um desses fatores, talvez até
com uma vantagem sobre eles: trata-se de um vestígio material cuja utilização como “lugar de
memória” seria perfeitamente possível: a grandeza conquistada por São Paulo pelo café e pela
industrialização serviria, ao lado da história bandeirante, como instrumento de construção de
memória e identidade não apenas local, mas também nacional.
Ao lado da re-significação que adquire a arquitetura novecentista, outro fator ainda
conferiu importância ao trabalho de Reis Filho: a questão urbana. A década de 1960 foi
marcada por novas discussões no âmbito das políticas culturais e preservacionistas, com
ênfase nos problemas relacionados aos conjuntos arquitetônicos, ao potencial turístico e
econômico do patrimônio cultural e à adoção de critérios de conservação e restauração
diferentes daqueles pregados pela Carta de Atenas. Num nível internacional, estes problemas
foram tratados, principalmente, nas Normas de Quito e na Carta de Veneza, e suas
recomendações passaram a ser observadas por um número cada vez maior de países. No
Brasil, a gestão de Rodrigo Soeiro à frente da DPHAN (1967-1979), que se ampliou
tornando-se então Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, refletiu essas
discussões, o que se expressou na criação do Programa Cidades Históricas (PCH) e nos
Compromissos de Brasília e Salvador. Tais ações significaram tanto uma aceitação das
recomendações da Unesco quanto uma resposta às novas configurações urbanas e sociais
346
A este respeito cf. FICHER. Op. cit.
168

brasileiras. Com a súbita industrialização observada nas décadas de 1950 e 1960 e a expansão
urbana principalmente das capitais, além da crescente percepção da dependência econômica
brasileira, as políticas preservacionistas passam a voltar seus olhos para os conjuntos urbanos
e para o potencial turístico do patrimônio preservado para o desenvolvimento econômico e
social. As discussões em torno do patrimônio histórico e artístico passaram a transcender
assim o âmbito de estudo ao qual tradicionalmente se restringiam (salvo exceções) os
arquitetos: o estudo de edifícios isolados. A posição deste grupo profissional no âmbito das
práticas preservacionistas se vê, portanto, ameaçada.
Reis Filho então ofereceu uma resposta consistente a essas novas imposições
históricas, atrelando evolução urbana à arquitetônica e devolvendo rapidamente a autoridade
relativa aos assuntos patrimoniais aos arquitetos. A arquitetura não poderia mais ser pensada
desvinculadamente do lote urbano e vice-versa. As práticas preservacionistas necessitariam
extrair sentido de um novo campo da historiografia: a história do urbanismo, que, no Brasil,
começava a ser desenvolvida e estabelecida metodologicamente nos trabalhos de Reis Filho.
Não foi este autor o único nem o primeiro a tratar desses problemas, no entanto, a
preocupação relativa a um trato “científico” de seu material conferiu a seu trabalho a
consistência necessária para tornar Quadro da arquitetura no Brasil uma obra importante, que
chega hoje à sua oitava edição e serviu (e tem servido) como referência a diversos
tombamentos em São Paulo e no Brasil.

4.3.5 O sentido

A noção de “evolução urbana” surgiu desse modo como instrumento a partir do qual se
buscou investir de sentido as práticas preservacionistas paulistas e nacionais (uma vez que se
pretendeu elaborar um modelo interpretativo amplo), contribuindo para devolver aos
arquitetos uma autoridade ameaçada no que diz respeito à interpretação e gestão do passado
material nacional, seus usos no presente e as modificações a serem produzidas no futuro por
meio dele. Operou-se, portanto, uma organização historiográfica da consciência histórica
mediante uma noção, mais uma vez, processual.
Possuindo origens medievais portuguesas, o urbanismo brasileiro teria evoluído até
alcançar as condições de aplicar um urbanismo ideal, o “urbanismo racionalista”, que “pode
ser visto como a última etapa de um longo processo para libertar as estruturas urbanas
169

contemporâneas dos modelos herdados de outras épocas, que dificultam a sua adaptação às
exigências da sociedade industrial”.347 Trata-se, portanto, de uma concepção teleológica de
evolução, o que não pressupõe, todavia, uma simples sucessão de etapas. Existiriam na
verdade processos paralelos, interdependentes e possuidores de temporalidades particulares, o
que acarretaria na defasagem de um processo em relação ao outro. Este descompasso faria
com que o desenvolvimento de um processo forçasse o outro a alterações e assim
sucessivamente, até que surgissem novas condições de acomodação ou equilíbrio, não
necessariamente naturais. Isso pode ser claramente verificado nas diferentes relações entre
processo arquitetônico, urbano, econômico, social e cultural estabelecidas em cada período da
história brasileira, conforme elaborado na primeira parte de Quadro da arquitetura no Brasil e
descrito aqui na subseção sobre a estrutura do mesmo livro.
O desvendamento dos processos de urbanização brasileira tornou-se então o objeto da
“história do urbanismo brasileiro”, disciplina até então não explorada seriamente e que
começou a se institucionalizar, da mesma forma que a história da arquitetura, nos escritórios e
departamentos de arquitetura. Segundo o próprio Reis Filho, em suas Notas sobre a evolução
de História da Urbanização e do Urbanismo no Brasil,348 a história do urbanismo nacional
apenas irá se consolidar como disciplina científica após os trabalhos realizados na FAU-USP,
ou seja, por arquitetos. Se as cidades brasileiras já haviam sido objeto de estudos isolados,
isso teria ocorrido no seio de áreas como a historiografia preocupada com a formação
nacional ou a Geografia Urbana, mas nunca antes como disciplina específica. O
estabelecimento de um “sentido”, via noção de “evolução”, para o urbanismo e, por
conseguinte, para a arquitetura brasileira, passou a ser o próprio objetivo da “história da
urbanização e do urbanismo”, que trataria de estabelecer métodos específicos, desejosamente
científicos, para a análise da urbanização, compreendida como um “processo social”.
No intuito de fundar uma nova disciplina no Brasil, Reis Filho teve que se posicionar
em relação à tradição anterior relativa à história da arquitetura. O que estava fazendo era
realmente diferente do que já havia sido feito no SPHAN? Se diferente, em que medida? A
leitura das primeiras obras de Reis Filho deixa clara a influência dos trabalhos desenvolvidos
naquele órgão federal. Mas, ao mesmo tempo, procura romper com ele em alguns pontos
fundamentais.
No artigo intitulado “Algumas raízes”, o arquiteto procura esclarecer esse problema,
posicionando-se em relação à “tradição do Patrimônio”. Por um lado, Reis Filho se reconhece

347
REIS FILHO. Quadro da arquitetura..., op. cit., p. 106.
348
Idem. Notas sobre..., op. cit., 1999.
170

devedor dos arquitetos modernos. Segundo esse arquiteto, eles “não conseguiram encontrar
um modo de ensinar e sobretudo de pensar Arquitetura e Urbanismo, fora da História”. 349 Eles
também haveriam percebido que “a arquitetura certamente tinha bases sociais e sua
compreensão dependia de um estudo mais aprofundado das condições de desenvolvimento da
sociedade brasileira”.350 No intuito de difundir suas ideias modernistas, Lucio Costa e seus
seguidores teriam se apoderado do SPHAN e lá desenvolvido estudos sistemáticos, de base
empírica e nunca antes realizados pela academia, no intuito de determinar quais seriam as
reais contribuições da arquitetura colonial nacional, que estes profissionais defenderiam e na
qual se inspirariam para elevar a arquitetura contemporânea brasileira ao lugar de destaque
que ocupou no cenário mundial. Esses “estudos sistemáticos de base empírica” realizados no
SPHAN influenciaram muito mais a geração de 1950-1960, à qual pertenceu Reis Filho, do
que aquilo que os cursos de arquitetura então ofereciam.
Todavia, Reis Filho se distanciou desses profissionais pelas limitações que segundo ele
estariam presentes em suas concepções de “História”. Na verdade, segundo Reis Filho, esses
arquitetos des-historicizariam a arquitetura por não a considerarem um “processo”, mas uma
“sucessão de estágios independentes entre si”.351 Isso permitiria, por exemplo, que a
arquitetura do século XIX e início do século XX fosse percebida como um bloco homogêneo
e assim descartada, dada a suposta falta de talento dos arquitetos daquele período. Os
arquitetos modernos passariam assim ao largo de importantes obras levadas a efeito naquele
período, a exemplo da de Victor Dubugras, segundo Reis Filho o verdadeiro introdutor da
arquitetura moderna no Brasil. Além disso, a arquitetura moderna ou modernista brasileira
deixaria de ser percebida como fruto de um processo de amadurecimento iniciado no século
XIX: sua origem passaria então a ser narrada, pelos seus próprios atores, como fruto de uma
alteração súbita, possibilitada pela aparição de uma grande personalidade, que iluminaria os
caminhos da “verdade” e da “razão”, seguidos a partir de então pelos arquitetos modernos.
Segundo Reis Filho, “torna-se claro que a presença de Le Corbusier foi utilizada na época
como um recurso político, para assegurar um respaldo publicitário externo para as novas
posições dos grupos brasileiros, cujas ideias já vinham amadurecendo nos anos anteriores,
para não dizer nas décadas anteriores”.352
Essa necessidade de posicionamento e identificação acaba criando, no entanto, alguns
problemas, para os quais Reis Filho não encontrou uma resolução clara. O movimento
349
Idem. Algumas raízes. In: Notas sobre a História da Arquitetura e aparência das vilas e cidades. São Paulo:
FAU-USP, 1997, p. 6 (Cadernos de Pesquisa do LAP nº 20).
350
Ibid., p. 10.
351
Ibid., p. 8.
352
Ibid.
171

moderno de arquitetura é alcunhado pelo arquiteto, como um todo, de “tradição do


Patrimônio”. Todavia, o próprio movimento moderno traz em seu seio especificidades que não
permitem a redução de toda a produção intelectual dos arquitetos ditos “modernos”, realizada
entre as décadas de 1930 e 1950, em um único grupo. Dessa forma, Reis Filho dirige as
críticas acima elencadas ao que denomina “grupo do Rio” (classificação essa já bastante
conhecida), enquanto que arquitetos como os paulistas Vilanova Artigas e Luís Saia e o
mineiro Sylvio de Vasconcellos, são considerados à parte. Fica claro que, para Reis Filho,
Artigas já “procurava expor um esquema de continuidade”,353 mas com relação a Vasconcellos
e Saia a impressão que fica é que os mesmos, embora possuíssem uma orientação mais
“democrática” e uma concepção mais “antropológica” de cultura, padeceriam também do mal
da “a-historicidade” relativa ao rompimento com o século XIX. Ora, foi mostrado
anteriormente que, embora Saia rejeitasse de fato a arquitetura do século XIX, tal rejeição se
dava apenas no nível plástico, e esse período foi sim contemplado pelo arquiteto, e
contemplado dentro de uma concepção “dialética” de processo histórico.
Novamente se referindo à “tradição do Patrimônio”, Reis Filho encontra nela a fusão
de duas tendências:

de um lado, uma busca nacionalista, de afirmação das raízes culturais do Brasil. Do


outro, uma tendência de fundo esquerdista, de acreditar que a cultura popular,
devidamente decantada, criaria soluções plásticas de grande valor, que deveriam ser
os pressupostos da arquitetura modernista.354

No entanto, esta “tendência esquerdista” seria a mesma para todos os arquitetos modernos? O
comunismo (de “carteirinha” ou não) de Artigas, Saia e Vasconcellos guardaria alguma
relação com o posicionamento ideológico de Lucio Costa, Ayrton de Carvalho e outros?
Mesmo entre Saia e Artigas perceberíamos diferenças teóricas e filosóficas fundamentais, que
implicariam em formas de atribuição de sentido divergentes ou até contraditórias.
Assim, em alguns momentos parece conveniente abarcar tudo na confortável
denominação “tradição do Patrimônio”, enquanto que em outros, quando necessita reconhecer
a dívida ou mesmo se “filiar” à corrente de pensamento, as coisas são mais ou menos
destrinchadas. Essa dificuldade em distinguir claramente o “igual” e o “diferente” acaba
criando problemas na definição da disciplina da qual o arquiteto se pretende o fundador. Se
essa comparação com a “tradição do Patrimônio” se pretendeu um instrumento metodológico
de definição das fronteiras de uma “nova história urbana e do urbanismo”, é necessário dizer

353
Ibid., p. 7.
354
Ibid., p. 9.
172

então que esses limites não ficaram claros. Se entender o fenômeno urbano como “fato social”
e, por conseguinte, como “processo” (fusão de tradições sociológicas certamente influenciada
pelo grupo de Florestan Fernandes) é fundamental na definição da nova disciplina, como
pretende, essa noção de processo deveria ter sido melhor explicitada, ou seja: é igual ou
diferente à de Saia, por exemplo? Isso, no entanto, não fica claro.
Apesar disso, interessa notar que o “sentido”, entendido como um “processo”, é
fundamental tanto para a compreensão da urbanização e da arquitetura nacionais, quanto para
uma ação efetiva visando a melhoria das condições de vida da população urbana. O esforço
“científico” a partir do qual se almejou “desvendar os mecanismos da Evolução Urbana do
Brasil” teve (e continua tendo) o intuito de conduzir a um correto desenvolvimento urbano
que, para ser “funcional”, deve estar assentado nos reais aspectos da coletividade a que
servirá. Para tanto, é necessário compreender em que sentido os processos sociais, culturais,
econômicos e políticos têm se desenvolvido e tendem a se desenvolver, a fim de que sejam
encontradas as melhores soluções. O modo de garantir esse correto desenvolvimento seria
coletar e preservar as evidências de um real processo de evolução urbana, de modo a fornecer
as referências culturais e identitárias necessárias a um correto planejamento urbano e à
inserção de toda a população na vida da cidade. É por esse sentido que a atuação direta de
Reis Filho se orienta no campo das práticas preservacionistas, conforme é possível depreender
de uma análise que contemple sua produção historiográfica.

4.4 AS PRÁTICAS PRESERVACIONISTAS

Embora tenha atuado, mais recentemente, no nível federal, participando, na década de


1980, de atividades orientadoras da ação de órgãos financeiros e planejadores, como o Banco
Nacional de Habitação e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, além de compor,
principalmente no início deste século, o Conselho Consultivo do IPHAN, a atuação no âmbito
das práticas preservacionistas por parte de Nestor Goulart Reis Filho restringiu-se
principalmente ao âmbito paulista, sobretudo no recorte temporal abarcado por este trabalho.
Sua ação pautou-se, principalmente, pela estadualização da proteção dos bens culturais e pela
ampliação desta proteção aos edifícios do século XIX e aos conjuntos urbanos de forma geral.
Embora não tenha sido o único responsável por estas alterações, creio que o papel deste
arquiteto foi fundamental nesse sentido, tendo em vista que sua produção adquiriu a
173

consistência e força necessária para a orientação das ações que então passaram a ser
realizadas, em grande parte ainda tolhidas pelas limitações institucionais consolidadas em
mais de trinta anos. Ver-se-á que a noção de “evolução urbana” cumpriu um papel
fundamental para a orientação dessas novas práticas e para a legitimação dos grupos, agora
mais identificados com a FAU que com o IPHAN, que passaram a ocupar o espaço de atuação
antes dominado pelos agentes inseridos neste último órgão.

4.4.1. O contexto

Tentei mostrar no capítulo anterior que Luís Saia consolidou, em São Paulo, o trabalho
iniciado por Mário de Andrade à frente do SPHAN. As práticas preservacionistas paulistas
passaram então a gravitar, a partir de 1945, em torno da polêmica figura de Saia, que, por
intermédio de sua produção historiográfica, conseguiu orientar todos os esforços de proteção
do patrimônio considerado de relevância nacional na ampla área jurisdicional da “6ª região”.
Contudo, a atuação da regional paulista do SPHAN era limitada pela escassez de
verbas e de recursos humanos. A atuação desse órgão se restringia, necessariamente, aos bens
mais antigos e de preservação mais urgente. Era impossível, do mesmo modo, dar conta de
conjuntos urbanos, ficando a ação preservacionista reduzida aos edifícios isolados, que por si
só demandavam muito trabalho e dinheiro. A partir das décadas de 1950 e 1960, com a
expansão industrial e urbana encabeçada por São Paulo, os bens culturais tanto da capital
como de outros locais do estado passam a ser ameaçados num grau muito mais ampliado. Os
bairros expandiam-se desordenadamente, sem o mínimo de respeito às condições tanto
culturais quanto do solo, causando assim problemas sociais cada vez mais graves. Parcelas
cada vez maiores da intelectualidade paulista percebiam que São Paulo se tornava uma cidade
crescentemente industrial e capitalista, estilhaçando uma rica tradição cultural peculiar
constituída ao longo dos séculos de sua formação.
Aos poucos o setor intelectual foi tomando consciência de que boa parte desses
problemas poderia ser solucionado a partir de intervenções no tecido urbano e de ações
políticas no âmbito cultural. No entanto, o governo federal ainda não oferecia instrumentos
eficazes de intervenção urbana, e seu principal órgão cultural, o IPHAN, concentrava sua
atuação principalmente em outros estados da federação, não possuindo condições de (ou
interesse em) arcar com o grosso dos problemas paulistas. Por outro lado, havia muito
174

dinheiro circulando em São Paulo, como efeito da expansão do setor industrial, mas não havia
interesse por parte desse grupo, a não ser em casos isolados, em investir na área da cultura.
São Paulo era considerada por essas pessoas (e pelo poder público em geral, por conseguinte)
uma cidade industrial, destituída de atrativos turísticos, motivo pelo qual esse tipo de
investimento seria mais propício a cidades como Rio de Janeiro e Salvador. Reis Filho narra
como esse tipo de mentalidade se impôs como empecilho às atividades que propunham.355 As
ações culturais ficavam na dependência, portanto, do capital advindo do mecenato de alguns
industriais, como Ciccilo Matarazzo ou Franco Zampari.
Por outro lado, com o início da gestão de Renato Soeiro no IPHAN, como já foi
mencionado anteriormente, se não houve propriamente uma “revolução” dentro do órgão,
como defende Paulo Ormindo de Azevedo,356 abriu-se a possibilidade de expandir e
descentralizar as práticas preservacionistas nacionais com o apoio do governo federal.
Iniciou-se então uma “nova política de tombamentos, dirigida mais para a preservação de
conjuntos”.357 A preservação dos “valores tradicionais” foi aliada ao desenvolvimento
econômico das regiões, e o potencial turístico do patrimônio passou a ser explorado.
Mas, se por um lado, a crescente atividade turística possibilitava ganhos à
municipalidade, por outro esse quadro, aliado à expansão das indústrias, trazia sérios
problemas à proteção dos bens culturais nacionais. Em função disso, estreitou-se o contato
com órgãos internacionais como a UNESCO e ICOM (Conselho Internacional de
Monumentos), que trataram de enviar técnicos estrangeiros a fim de aparelhar os nossos
profissionais para esse novo uso do patrimônio: o turismo. A gestão de Renato Soeiro
possibilitou um maior contato com as discussões internacionais na área da conservação e
preservação de bens culturais. Esse arquiteto participou, além disso, da preparação de
importantes documentos internacionais, sendo, inclusive, um dos signatários das Normas de
Quito da OEA, de 1967.
Assim, logo tomou-se conhecimento por aqui, por exemplo, das recomendações da
Carta de Veneza, elaborada em 1964 a fim de orientar, em nível internacional, as obras de
conservação e restauração de sítios e monumentos históricos. Além da apresentação de novos
critérios para a conservação e restauração de monumentos arquitetônicos, artísticos,
arqueológicos e documentais, esse documento trouxe logo em seu primeiro artigo o seguinte

355
Idem. “Sobre patrimônio de cultura”. Quadro da arquitetura..., op. cit.
356
AZEVEDO, Paulo Ormindo de. Homenagem do Conselho Consultivo do IPHAN a Renato Soeiro.
Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=363> Acesso em 04.04.10.
357
BRASIL. Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. Brasília: Ministério da
Educação e Cultura; Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Fundação Nacional Pró-
Memória, 1980, p. 32.
175

texto:

Artigo 1º – A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica


isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização
particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico.
Estende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham
adquirido, com o tempo, uma significação cultural.358

Amplia-se, portanto, em nível internacional, a noção de monumento histórico, que passa a


abranger os edifícios isolados e os conjuntos, as obras de vulto e as criações populares. Já as
Normas de Quito, de 1967, orientavam a “conciliação” entre desenvolvimento econômico e
industrial e conservação de monumentos históricos. Esses monumentos passaram então a ser
vistos como fonte de riquezas, e sua correta utilização acarretaria no progresso econômico de
regiões pouco “desenvolvidas”. Declarou-se como pressuposto que

os monumentos de interesse arqueológico, histórico e artístico constituem também


recursos econômicos da mesma forma que as riquezas naturais do país.
Consequentemente, as medidas que levam a sua preservação e adequada utilização
não só guardam relação com os planos de desenvolvimento, mas fazem ou devem
fazer parte dele.359

Nesse mesmo período foram organizados no Brasil encontros semelhantes a esses, nos
quais procurou-se estabelecer as diretrizes nacionais relativas à proteção do patrimônio do
país. Os Compromissos de Brasília (1970) e de Salvador (1971, este sendo um complemento
do primeiro) recomendaram, dentre uma série de outros pontos: uma maior participação de
estados e municípios nas ações preservacionistas; a criação de órgãos descentralizados nestes
níveis administrativos; a preservação de bens naturais; a organização de cursos de formação
nas áreas de interesse para essas políticas culturais; a colaboração entre IPHAN e
universidades; a proteção mais eficiente dos “conjuntos”; a colaboração de órgãos
financiadores e a criação de fundos; a adoção de medidas que permitissem a utilização dos
bens culturais como fonte de renda por meio do turismo etc. Na verdade, todos esses aspectos
já vinham sendo pensados anteriormente, em maior ou menor grau, de forma isolada. As
recomendações estabelecidas nesses encontros representaram um maior respaldo político e
institucional para as tímidas iniciativas que aos poucos procuravam adaptar as práticas
preservacionistas às novas necessidades, como ocorreu no estado de São Paulo.

358
Carta de Veneza, 1964. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=236> Acesso
em 04.03.10.
359
Normas de Quito, 1967, p. 4. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=238>
Acesso em 04.03.10.
176

4.4.2. A criação de um órgão estadual e o CONDEPHAAT

A partir da década de 1950 ficam cada vez mais nítidas as limitações encontradas pela
DPHAN no que diz respeito à proteção dos bens paulistas. Essa situação torna-se ainda mais
evidente quando os edifícios do século XIX, os conjuntos urbanos e as paisagens naturais
tornam-se interessantes para os atores envolvidos nas práticas preservacionistas do estado.
Tem-se, ao lado dessa ampliação de objetos a serem preservados, a urgência de sua proteção,
tendo em vista a rápida expansão urbana e imobiliária possibilitada pela industrialização.
Como vimos, o próprio Luís Saia já havia atentado para essa necessidade, propondo a
criação de um órgão estadual, subordinado ao federal, na década de 1950. No entanto, esse
projeto foi “engavetado” e, em 1963, foi a vez de Reis Filho trabalhar em torno da criação de
um órgão estadual, mas com outro caráter. Essa proposta ocasionou, segundo narra o próprio
Reis Filho, uma “troca de desaforos” entre ele e Saia, e também não foi implementada. Seria
somente em 1969 que os dois arquitetos voltariam a trabalhar juntos, em função de
acontecimentos alheios cujo desfecho foi a criação do CONDEPHAAT.

4.4.2.1 Os primeiros anos no CONDEPHAAT (1969-1975)

Reis Filho relata que via inicialmente com desconfiança o papel que poderia ser
desempenhado pelo CONDEPHAAT. Esse órgão foi criado por iniciativa de Lúcia
Falkenberg, membra do Instituto Histórico e Geográfico de Guarujá-Bertioga e, segundo Reis
Filho, amiga da esposa do então governador do Estado, Roberto de Abreu Sodré. Dessa
forma, uma “dama da sociedade” conseguira fazer aquilo que os arquitetos e intelectuais
paulistas não tiveram êxito em realizar, ou seja, a construção de um órgão estadual de
preservação patrimonial, o primeiro do país, antecedendo as discussões que se dariam no
âmbito nacional. Uma linha “tradicionalista”, imprimida pelos representantes dos “IHGs” do
estado (além de Lucia Falkenberg, havia o representante do IHGSP, Aureliano Leite, e ainda
um representante da Curia Metropolitana de São Paulo, Arnaldo D’A. Florence), possuía
inicialmente bastante força dentro do órgão. Eram comuns, dessa forma, pedidos de
tombamentos de túmulos pertencentes a famílias tradicionais paulistas, o que a presença de
nomes como o próprio Reis Filho, Luís Saia e Paulo Duarte (representante do Instituto do Pré-
177

História) por sorte não permitiu que ocorresse. É Reis Filho quem conta uma anedota,
segundo a qual esses intelectuais ficavam desconfiados em relação a um órgão que começava
com “conde” e falava sobre “patrimônio turístico”. Mas o órgão estava montado e eles
precisavam então ocupar o único espaço disponível para a preservação daquele patrimônio
regional que cada vez mais se via ameaçado.
Nestor Goulart Reis Filho atuou no CONDEPHAAT de sua criação até 1980, tendo
ocupado papel destacado nesse órgão. Vimos no capítulo anterior que, até 1975, a experiência
do trabalho da DPHAN foi aproveitada nos tombamentos estaduais. A partir dessa data o
arquiteto assumiu a presidência do órgão e algumas mudanças puderam ser então verificadas.
É mais uma vez o detalhado trabalho de Marly Rodrigues, único sobre o assunto,360 que
fornecerá os dados sobre a atuação desse arquiteto no CONDEPHAAT.
Membro do Conselho Deliberativo desde sua criação, Reis Filho compôs, ao lado de
Eurípedes Simões de Paula (que, como vimos, indicara Reis Filho à cadeira do Conselho
destinada à FFCL da USP) e Carlos Lemos, em 1971, a Comissão Técnica de Estudos e
Tombamentos. Na tentativa de definir o campo de atuação dessa comissão, esses conselheiros
elaboraram um documento no qual hierarquizava-se os tombamentos por sua relevância
regional ou municipal, estadual e nacional (o que seria mais recentemente criticado pelo
próprio Reis Filho em entrevista cedida pessoalmente), e estabelecia-se que o
CONDEPHAAT deveria prestar auxílio técnico às prefeituras e tombar ex-officio os bens
tombados pela DPHAN. O CONDEPHAAT deveria concentrar-se nos bens de interesse
estadual, com ênfase ao relacionamento destes com a história sócio-econômica paulista.
Embora criticado por Rodrigues, esse ponto merece destaque pelo fato de permitir, a partir de
então, a consideração de objetos pertencentes aos “ciclos” cafezista e industrial paulistas (a
autora critica o próprio conceito de “ciclo”, o que já foi debatido no capítulo anterior). A
concepção “processual” da arquitetura, da forma como a compreendeu Reis Filho, passava a
ser abrigada agora pelo CONDEPHAAT. No entanto, a falta de recursos e pessoal faria com
que as análises e fiscalizações que ficariam a cargo da Comissão ficassem prejudicadas, da
mesma forma que a realização de um inventário dos documentos históricos, iconográficos e
das fontes para a história da arte no Brasil e catalogação de arquivos oficiais e particulares.
Embora para o período ora enfocado Rodrigues critique também a atuação do
CONDEPHAAT no que se refere à proteção dos conjuntos urbanos, visto que a instituição
utilizaria ainda “procedimentos anacrônicos”,361 Reis Filho nos expressa uma opinião diversa,

360
RODRIGUES, Marly. Op. cit.
361
Ibid., p. 66.
178

talvez pelo entusiasmo e contribuição relativos ao estudo e proteção dos núcleos urbanos.
Segundo ele,362 o fato de estarem protegidos automaticamente 300 metros de entorno dos bens
tombados pelo CONDEPHAAT teria garantido que a quase totalidade dos bairros antigos de
São Paulo ficasse sob a proteção desse órgão.

4.4.2.2 O Curso de Conservação e Restauro (1974)

Antes de assumir a presidência do Conselho, Reis Filho ainda foi, ao lado de Luís Saia
e Ulpiano Bezerra de Menezes, um dos coordenadores do Curso de Conservação e Restauro,
organizado em 1974, numa parceria entre IPHAN, CONDEPHAAT e USP. Os trabalhos que
se referem a esse curso o apresentam como uma espécie de “divisor de águas” dentro das
práticas preservacionistas paulistas.363 Isso teria sido possibilitado pela noção mais abrangente
de patrimônio proposta por Hugues de Varine-Boham, consultor da Unesco, na qual são
contemplados o meio ambiente, o conhecimento e todos os “bens culturais”, compreendidos
como sendo “tudo que o homem fabricou”.364 Assim, Varine-Boham teria apresentado,
segundo Rodrigues, uma “definição antropológica” de patrimônio. Além disso, os cursos
ministrados por Benedito Lima de Toledo e Augusto da Silva Teles teriam apontado as falhas
das práticas de restauro e conservação aplicadas até então, trazendo à tona os preceitos ainda
não aplicados da Carta de Veneza.
Por um lado, a realização desse curso atendia às recomendações dos compromissos de
Brasília e Salvador, que mencionavam a realização de cursos de especialização na área de
preservação e conservação e a realização de parcerias entre o IPHAN e as universidades. Por
outro, preparava a FAU para a implantação de cursos de pós-graduação em arquitetura e
urbanismo, inexistentes à época no país. Contudo, a principal consequência trazida por esse
curso talvez não tenha sido prevista por seus organizadores (principalmente por Luís Saia), e
para que seja possível compreender essa afirmação é necessário levantar alguns
questionamentos à literatura que trata do assunto.
Não restam dúvidas de que esse curso foi de fato marcante no campo das práticas
preservacionistas paulistas, e talvez até mesmo nacionais (vez que antecede em um ano a

362
Na entrevista que me foi concedida.
363
Pode-se citar, por exemplo, RODRIGUES. Op. cit., ANDRADE. Op. cit., LEMOS; MORI; ALAMBERT.
Op. cit. e LEMOS, Carlos A. C. O que é Patrimônio Histórico? 5ª ed. - São Paulo: Brasiliense, 1987.
364
Ibid., p. 73.
179

grande reviravolta ocorrida no IPHAN com a criação do Centro Nacional de Referência


Cultural – o CNRC –, liderado por Aloísio Magalhães). Personagens importantes desse
território, a exemplo do próprio Nestor Goulart Reis Filho, Carlos Lemos e Antônio Luiz Dias
de Andrade em vários momentos lembraram como esse curso foi importante em suas
respectivas trajetórias individuais e para o “Patrimônio” em São Paulo, em geral. Todavia, em
que pese a real alteração nos quadros preservacionistas paulistas, seria interessante analisar
em que medida essa mudança se deve, de fato, a renovações conceituais. Isso não
representaria muito mais à entrada da USP, sobretudo da FAU, na disputa por este espaço de
atuação tão caro à atividade profissional do arquiteto? Não seria esse “discurso da mudança”,
isso sim, uma estratégia narrativa a fim de consolidar a hegemonia da FAU (representada,
além dos três arquitetos que citei logo acima, por Silva Teles e Lima de Toledo, entre outros),
num campo extremamente representativo para a institucionalização do ensino de arquitetura,
ou seja, o domínio sobre a história da arquitetura? Há razões para acreditar que sim, sobretudo
se estivermos de acordo em relação ao fato precedente de que a própria Arquitetura Moderna
Brasileira se consolidou através do espaço conquistado por Lucio Costa no SPHAN.
A partir de então, a USP, sobretudo a sua Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, passa
a se colocar como alternativa à história da arquitetura produzida no âmbito do IPHAN. Os
“novos trabalhos” defendem um maior rigor metodológico em oposição aos trabalhos
supostamente mais amadorísticos e inexperientes do IPHAN, sobretudo os de Luís Saia.
Carlos Lemos seria o fundador dessa postura, adotando uma definição mais “antropológica”
de cultura e baseando-se na leitura de documentação “primária”. Seus “epígonos” tratariam de
reafirmar a “invenção dessa nova tradição”, conformando assim uma estratégia de legitimação
e institucionalização de um locus de autoridade discursiva. Assim o fizeram, por exemplo,
Antônio Luiz Dias de Andrade, Lia Mayumi, Marly Rodrigues e Cristiane Gonçalves,
reforçando a eficácia da estratégia discursiva.
No entanto, essa suposta superioridade da produção da FAU em relação à do IPHAN
não pode ser sustentada, a não ser, talvez, do ponto de vista quantitativo. Em relação à questão
do trato com as fontes, logo será publicado o artigo de Jaelson Bitran Trindade, intitulado “A
investigação histórica no IPHAN em São Paulo, uma abordagem territorial”,365 no qual o autor
desfaz todos esses mitos relativos ao suposto desconhecimento, por parte de Luís Saia, acerca
de documentação primária sobre o patrimônio cultural paulista.
O outro ponto no qual se apoia Carlos Lemos (e toda a “nova história” da arquitetura
da FAU), ou seja, a novidade de um enfoque “antropológico”, também não consegue
365
TRINDADE, op. cit.
180

permanecer de pé. Segundo o arquiteto, “o que nos interessa mesmo é saber ‘como’ esse
programa é ou foi satisfeito, a partir das condições ou das disponibilidades locais em
determinada época. Essa é uma abordagem da competência da antropologia cultural”.366 O
autor utiliza, de fato, trabalhos de autores como Gilberto Freyre e Ernani Silva Bruno. No
entanto, as demais referências relativas a antropólogos são muito mais raras que no caso do
próprio Luís Saia, que tem a seu favor a densa formação em etnologia e folclore adquirida
com Dina Lévi-Strauss e o convívio com intelectuais como Roger Bastide, Claude Lévi-
Strauss, Mário de Andrade etc.367 Desnecessário relembrar aqui o que já foi visto
pormenorizadamente no capítulo anterior, ou seja, a preocupação de Saia com a cultura
popular, com a investigação de campo, com o ancoramento das interpretações relativas ao
processo de interpretação arquitetônica na realidade social e cultural etc.
Assim, mais que uma real superação da contribuição de Luís Saia e do IPHAN para a
história da arquitetura paulista, trata-se de uma estratégia de legitimação da produção uspiana
a partir do eclipsamento do trabalho desse arquiteto. Esse argumento foi, desse modo, a partir
de então, reafirmado por todos aqueles que pretenderam retirar autoridade dessa posição
aparentemente “vencedora”. O próprio Reis Filho mostra partilhar, em entrevista pessoal,
dessa perspectiva. Embora ele próprio se mostre devedor dos trabalhos teóricos desenvolvidos
no IPHAN, numa postura menos agressiva que a de Lemos, por exemplo, acaba reificando os
argumentos desse arquiteto, apontando o maior rigor metodológico dos trabalhos
desenvolvidos na USP contra a inexperiência dos trabalhos precursores daquela instituição
federal, além da falta de recursos e possibilidades com as quais ela sempre sofreu na proteção
dos bens culturais do Estado de São Paulo. Dessa forma, é possível afirmar que esse curso, do
qual Reis Filho foi um dos organizadores, acabou contribuindo para uma mudança
fundamental nas práticas preservacionistas paulistas: a progressiva ocupação de um espaço
disponível nesse campo pela FAU, espaço estratégico quando o que importa é a autoridade na
produção e no ensino da história da arquitetura.

366
LEMOS. Casa paulista, op. cit., p. 20.
367
Não me parece concebível acreditar que Lemos desconhecesse a formação de Luís Saia. Conforme mostra
em Viagem pela carne, Lemos recorreu a Saia já nos seus tempos de estudante, a fim de conferir legitimidade
a um trabalho da faculdade reprovado por seu tradicionalista professor de história da arquitetura. Com a
ajuda de Saia, o trabalho foi imediatamente reconsiderado. Lemos conviveu com Saia também nos tempos do
CONDEPHAAT, tendo trabalhado como técnico nesse órgão e no curso ministrado em 1974 na FAU. Assim,
Lemos dá a impressão, pela análise de seus escritos, de omitir alguns dados a fim de tornar mais consistente
sua argumentação, que se torna cada vez mais explicitamente estratégica.
181

4.4.2.3 A presidência do CONDEPHAAT (1975-1980)

Em 1975, portanto, Reis Filho passou a presidir o Conselho Deliberativo do


CONDEPHAAT, cargo que ocupou até 1980. A partir de então, uma série de mudanças
passaram a ser observadas nas práticas desse órgão, tanto em função da nova presidência (não
mais nas mãos dos IHGs paulistas) quanto do novo cenário nacional. Percebe-se também a
ampliação das discussões em torno do tema do patrimônio, com a participação de atores
advindos de diversas áreas de formação.
No âmbito nacional, destacaram-se a criação do Centro Nacional de Referência
Cultural (CNRC) e do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas (PRCH).
O primeiro representou uma abertura para a ampliação do conceito de patrimônio, agora
englobando toda a atividade cultural, produzida historicamente, com importância para o
desenvolvimento presente, seja ele social, econômico ou cultural. O segundo criou a
possibilidade de financiamentos voltados para projetos de reconstrução e desenvolvimento de
áreas urbanas detentoras de acervo histórico e cultural. Além disso, a sociedade brasileira em
geral passava a perceber de forma crescente o potencial do patrimônio como objeto para
expressão da cidadania, o que, num contexto de recente cerceamento de boa parcela da
liberdade individual e coletiva, constituía-se como uma forma consistente de luta contra a
ditadura militar, consolidando uma abertura política e social que a partir de então podia ser
aos poucos verificada.
No âmbito regional, um novo grupo tomou a dianteira das ações preservacionistas
paulistas. Com a morte de Luís Saia em 1975, o grupo egresso do Curso de Conservação e
Restauração realizado na FAU-USP se constituiu como a nova vanguarda responsável pela
preservação do patrimônio cultural do Estado. Antônio Luiz Dias de Andrade, que iniciou sua
carreira no campo do patrimônio cultural como estagiário de Luís Saia, se tornou professor da
FAU e, carregando essa nova rede de relações acadêmicas, profissionais e afetivas, ocupou a
direção do IPHAN paulista, após substituição interina do arquiteto Armando Rebolo. Os
demais arquitetos desse grupo da USP passaram a ocupar outros cargos da administração
pública municipal e estadual, como a Coordenadoria Geral de Planejamento (Cogep), a
Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S/A (Emplasa) e a Empresa Municipal de
Urbanização (Emurb). O CONDEPHAAT acabou se tornando uma espécie de centro de
convergência desses atores, adquirindo uma maior força política por acabar se
responsabilizando pela elaboração dos critérios relativos à intervenção urbana que viesse a
182

envolver o patrimônio cultural do estado.


Como corretamente aponta Rodrigues, “o CONDEPHAAT adotaria novos objetos de
proteção”, sendo que “o tombamento passou a ser adotado como medida de proteção ao meio
ambiente e, por essa vertente, o patrimônio passaria a ser entendido em sua dimensão urbana,
tornando-se instrumento de elevação da qualidade de vida”.368 A autora considera que essas
mudanças devam ser atribuídas à conjunção de fatores externos expressa na posição
intelectual de alguns dos membros do Conselho, a exemplo de Ulpiano Menezes, Aziz
Ab’Saber e Carlos Lemos, e aponta como central para este período a adoção do conceito
“patrimônio ambiental urbano”, que passará a nortear as ações do órgão estadual.
Todavia, Rodrigues dá pouco destaque à figura de Nestor Goulart Reis Filho nas
alterações gerais sofridas pelo órgão no período. Toda a obra de Lemos é voltada para a
compreensão da evolução arquitetônica a partir da análise de suas funções internas, ou seja,
de como ela seria utilizada com base em informações acerca dos hábitos e costumes de seus
moradores, hábitos estes adquiridos com base na cultura produzida pela sociedade na qual se
inseria a família habitante. Há, portanto, pouco destaque para o fator urbano, ainda que não
esteja de todo ausente, em clara oposição ao trabalho de Reis Filho, por exemplo. Com
certeza o adjetivo “ambiental” é, em grande medida, devido ao eminente geógrafo Ab’Saber,
reconhecido internacionalmente na área da geomorfologia mas igualmente importante por
diversos outros estudos ecológicos. Não que “ecologia” e “ambiente” não incluam o fator
humano, muito pelo contrário, mas a ênfase da atuação desse intelectual recaiu mais para as
paisagens e conjuntos naturais e sua relação com a expansão (depredatória) urbana. A
Menezes poderia ser imputado o destaque ao “urbano”, no entanto, esse historiador e
arqueólogo concentrou suas pesquisas, como indica a própria Rodrigues, nos valores
simbólicos da cidade e nas suas diferentes representações sociais,369 o que não chegou a ser
exatamente aplicado pelo órgão, ao menos no período ora enfocado.
Não pretendo assim negar a contribuição individual desses atores, o que significaria
contradizer os próprios métodos de análise empregados neste trabalho. Não obstante ela tenha
sido concreta, não é possível negar (ou menosprezar) a efetividade da produção
historiográfica de Reis Filho na orientação das ações levadas a cabo, ao menos no período de
sua presidência, no âmbito do CONDEPHAAT e, consequentemente, das práticas
preservacionistas paulistas de forma geral. Sua concepção processual do urbanismo,
considerado um “fato social”, ligada ainda à “tradição do Patrimônio” (ou seja, do IPHAN),

368
RODRIGUES. Op. cit., p. 80.
369
Ibid., p. 90-91.
183

mas modificada sobretudo com base no arcabouço teórico constituído pelo grupo de cientistas
sociais da USP, pode ser claramente observada nas realizações levadas a cabo pelo
CONDEPHAAT de então, sobretudo se as compararmos com as concepções de Reis Filho
conforme foram decodificadas, em termos “patrimoniais”, no capítulo “Sobre o patrimônio de
cultura”.
A mudança das formas de atuação do CONDEPHAAT foram expressas em dois
documentos elaborados logo no início da gestão de Reis Filho, em 1976. O primeiro deles,
intitulado Proposta e roteiro para a atuação do novo Conselho Deliberativo do
CONDEPHAAT, “previa a definição de programas a curto e a médio prazos, constituídos por
arrolamentos, atividades de obras e serviços, projetos de reabilitação urbana”, além da
“proteção e valorização do patrimônio ambiental”.370 Outros pontos dessa proposta ainda são
destacados por Rodrigues: no âmbito das obras e serviços, passam a ser privilegiados os
“projetos de reabilitação urbana” e de “proteção e valorização do patrimônio histórico,
arqueológico e artístico no contexto do patrimônio ambiental”; desejou-se também a
divulgação das ações do CONDEPHAAT por intermédio de exposições, seminários, jornais,
publicações, rádio e televisão.
Muito embora as novas metas do CONDEPHAAT tenham esbarrado numa verdadeira
“barreira política”, Rodrigues reconhece que, “apesar das limitações institucionais, o
CONDEPHAAT experimentava um relativo avanço em sua prática preservacionista,
especialmente no que se refere a alguns aspectos urbanísticos”.371 A autora menciona a
aproximação com empresas de planejamento para preservação de áreas urbanas, a realização
de estudos para a preservação de “ambientes urbanos como o Parque da Independência” e
conciliação da preservação com a melhoria das “condições funcionais das regiões mais
deterioradas de bairros centrais da capital”, não obstante tenha se mantido, segundo a autora, a
“ortodoxia” no tratamento das questões arquitetônicas.372
Com relação aos tombamentos realizados, algumas alterações, ainda que sutis (visto
que muda a presidência, não a composição, de forma geral, do Conselho), podem ser
verificadas.373 Nos tombamentos de residências urbanas, por exemplo, verifica-se mais uma
mudança qualitativa que quantitativa. Se no período anterior as residências urbanas eram

370
Ibid., p. 93-94. O último aspecto, ou seja, o relativo ao patrimônio natural, foi tratado detalhadamente,
segundo Rodrigues, no documento Diretrizes para uma política de preservação de reservas naturais no
Estado de São Paulo, elaborado por Aziz Ab’Saber.
371
Ibid., p. 96 (itálicos meus).
372
Ibid. p. 96-97.
373
O meImo livro de Rodrigues traz um levantamento completo dos bens tombados e pedidos de estudo de
tombamento arquivados entre 1969 e 1987.
184

tombadas pela ligação que possuíam com ícones da elite econômica, política e artística
paulista, a partir da gestão de Reis Filho passaram a ser alvo de proteção vilas e residências
cujo significado se liga mais à história urbana e da arquitetura que à história tradicional,
preocupada com as “grandes personalidades”. Se não há tombamentos de conjuntos é porque
eles passaram a ser protegidos por órgãos de planejamento urbano municipais e estaduais, sob
a orientação do CONDEPHAAT.
Reis Filho permaneceu no Conselho Deliberativo do CONDEPHAAT até janeiro de
1980, quando foi substituído por Eduardo Corona na cadeira destinada ao Departamento de
História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAU-USP (vaga implantada desde 1976,
durante a gestão de Reis Filho, e ocupada inicialmente por Benedito Lima de Toledo).
Rodrigues aponta que, a partir de 1979, o Conselho Deliberativo do CONDEPHAAT passa a
ter uma nova composição, para a qual o mais importante seria a construção de uma imagem
de eficácia administrativa, evitando os constrangimentos entre as esferas estadual e federal de
governo. Esse fato acabou criando posteriormente algumas dificuldades às mudanças que se
desejou implementar, realocando a discussão teórica, que foi um grande ganho da gestão de
Reis Filho, para um segundo plano.
Além disso, a disputa de interesses em torno de alguns tombamentos demonstrou que
o órgão estava ainda longe de gozar da efetividade que dele esperavam seus idealizadores. O
sítio arqueológico do Pátio do Colégio, em São Paulo, por exemplo, que possuía vestígios do
início da ocupação do território paulista, foi destruído pelos jesuítas, após contenda política e
judicial envolvendo a Sociedade Brasileira de Educação, para dar lugar à construção de uma
réplica da igreja construída em 1671, a terceira erguida pela ordem naquele local. O
tombamento da Estação da Luz, efetivado apenas em 1982, também seria inicialmente sustado
em função de interesses diversos, sobretudo o econômico, de acordo com os quais se
pretendia levar a cabo uma obra de metrô sem considerar os vestígios históricos daquele local.
Mas o caso emblemático foi o ocorrido na Avenida Paulista. Ainda em 1979 cogitou-se a
proteção de uma série de edifícios antigos situados nesse logradouro, e, antes mesmo de
serem abertos os processos de tombamento, os proprietários daqueles edifícios realizaram a
demolição em massa dos mesmos, sem que o poder público pudesse tomar qualquer atitude.
Isso demonstrou a fragilidade do órgão, cujo Conselho pediu demissão coletiva em 1982.374

374
O CONDEPHAAT ficou inativo entre setembro e novembro de 1982, quando voltou a funcionar sob a
presidência de Aziz Ab’Saber.
185

4.4.2.4 Instituições alternativas

Reis Filho deixa o Conselho Consultivo do CONDEPHAAT, portanto, num momento


em que as práticas preservacionistas passam por mudanças quantitativas e qualitativas
significativas. O governo militar promoveu políticas econômicas e habitacionais que
proporcionaram uma enorme e desordenada expansão urbana e imobiliária. Ao lado disso,
expandiu-se a noção de “patrimônio”, que, passando a abranger um maior número de bens
materiais e imateriais, tornou-se objeto de disputa de um número maior de grupos e começou
a ser encarada como ferramenta de desenvolvimento econômico e social.
Por mais que alguns atores individuais tenham tentado coordenar ações no sentido de
aparelhar os órgãos preservacionistas estatais para essas novas demandas, as políticas
culturais quedariam ainda num segundo plano. As políticas públicas nessa área continuariam
sendo consideradas supérfluas, ou no máximo secundárias, e a quantidade de investimentos
seria ainda insuficiente para dar conta da demanda relativa à proteção do patrimônio cultural,
sobretudo aquele de relevância regional e local. A percepção desse problema levou a uma
crescente pulverização das práticas preservacionistas, seja por intermédio das associações de
classe, das universidades ou das autarquias públicas.
Reis Filho destacou-se nesse movimento, tendo ocupado o posto de vice-presidente da
Empresa Municipal de Urbanização (EMURB) entre os anos de 1975 e 1978, até tornar-se
presidente dessa empresa no ano seguinte. A EMURB é uma empresa pública municipal
criada em 1971, com o objetivo de replanejar e intervir no espaço urbano. Dessa forma, com a
importante participação de arquitetos como Reis Filho, Jorge Wilheim e Carlos Lemos, a
preservação de sítios históricos passou a integrar as políticas urbanas da capital paulista no
que se refere a seu planejamento, algo que certamente não teria condições de ocorrer somente
por intermédio do CONDEPHAAT ou do IPHAN.
Entre 1986 e 1987, Reis Filho torna-se também membro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Urbano. No entanto, esse arquiteto já havia elaborado, em 1984, dois textos
para um convênio entre a FAU-USP e esse Conselho, cujo objetivo era avaliar o Programa
Nacional de Cidades Médias e que foram publicados, posteriormente, no 11º número dos
Cadernos de Pesquisa do LAP.375 Segundo Reis Filho,

375
REIS FILHO, Nestor Goulart. Urbanização e planejamento... Op. cit. (Introdução disponível em
<http://www.usp.br/fau/dephistoria/lap/cad1120.html> Acesso em 13.03.2010).
186

naquele momento estávamos preocupados em demonstrar que, no seu conjunto, o


processo de urbanização no Brasil estava assumindo proporções extraordinárias, de
caráter explosivo. Não se tratava mais da expansão de uma ou de algumas
metrópoles mas da urbanização em massa de um país populoso. As medidas
adotadas pelo governo federal, alguns anos antes, com relação à Previdência Social
no setor rural, haviam promovido imediata expulsão dos que habitavam nas
fazendas e sua transformação em boias-frias ou migrantes. Os fluxos migratórios
em direção às cidades e em direção às metrópoles assumiram proporções incomuns
mas eram - e continuam a ser interpretados como consequência de uma explosão
demográfica, quando na verdade eram muito mais a consequência de uma forma
autoritária de planejamento.376

Antes disso, em 1978, Reis Filho escreveu um texto no qual pretendia sugerir linhas de
ação para o Banco Nacional de Habitação (BNH). Num momento em que o arquiteto
terminava um trabalho de inventariamento e recuperação de escolas e estações ferroviárias
paulistas, pareceu-lhe urgente mostrar a necessidade de aliar a preservação cultural ao desejo
de rentabilidade de grandes empresas públicas e privadas. É, portanto, a partir de órgãos que
nada tinham a ver com a área cultural que surgiriam as melhores oportunidades de intervir na
preservação do patrimônio cultural, para o qual o estudo e a defesa do espaço urbano passam
a ser, de fato, um dos principais alvos. Ainda segundo Reis Filho, tratando do CNDU, “pela
primeira vez, tínhamos reunidos sob uma só autoridade política um órgão de orientação, uma
agência financeira e um órgão executivo da administração federal, para o desenvolvimento de
nosso campo de trabalho”.377
Ainda em 1986 Reis Filho cria, junto com o então reitor da USP, José Goldemberg, a
Comissão de Patrimônio Cultural da USP. Reis Filho foi nomeado coordenador da Comissão,
que contava ainda com Ulpiano Menezes, Léa Goldenstein, Walter Zanini e Lúcio Marcos
Gonçalves Prado. Inicialmente a Comissão fixaria diretrizes relativas à destinação do
patrimônio da USP. Reis Filho relata que prédios antigos e importantes obras escritas estavam
se perdendo por mero descaso: ele nos conta o divertido caso em que as bibliotecárias de uma
das bibliotecas da USP, ao notarem que de alguns livros antigos começavam a surgir larvas,
teriam ficado com nojo e jogado aquelas raridades no lixo. O clima de crescente
conscientização da necessidade de proteção de objetos culturais antigos, causado
principalmente pela rápida expansão urbana e consequentes efeitos sobre monumentos e
documentos antigos, teria favorecido a criação dessa Comissão, que se tornou, em 2002,
Centro de Patrimônio Cultural da USP.

376
Ibid.
377
Ibid.
187

4.5 CONCLUSÃO

Assim como Luís Saia, Reis Filho se viu impelido a conferir sentido às práticas
relacionadas aos bens culturais pertencentes à nação ou a recortes identitários mais restritos.
Interessante notar que, num espaço tão curto de tempo e numa mesma realidade espacial, a
noção de evolução arquitetônica passou por re-significações nada desprezíveis, sendo que as
que foram vistas aqui são apenas alguns dos exemplos mais importantes. Poderia estender
essa análise a outros autores paulistas, como Carlos Lemos, Ulpiano Bezerra de Menezes,
Antônio Augusto Arantes, ou mesmo extrapolar os limites estaduais e pensar na ação de
indivíduos como Gilberto Freyre, Sylvio de Vasconcelos, Paulo Tedim Barreto etc. Contudo, o
caso de cada um dos arquitetos cujas obras foram analisadas basta para indicar a existência de
uma pluralidade de sentidos presentes nas práticas preservacionistas nacionais e a forma pela
qual a ação individual pode influir em suas mudanças mais significativas.
Antes de lidar com o patrimônio cultural nacional e paulista, Reis Filho refletiu sobre a
arquitetura colonial, depois sobre a moderna, em seguida sobre a eclética. Encontrou nesses
objetos, aparentemente naturalizados por uma tradição discursiva suficientemente cristalizada,
alguns problemas possibilitados pelo confronto direto com a realidade na qual estava inserido.
Essa atividade reflexiva lhe mostrou que alguns desses enunciados legitimados e
naturalizados sobre a arquitetura e o passado nacional careciam já de sentido, que devia ser
novamente perseguido a partir dos significados de seu presente.
Mais uma vez a produção historiográfica se mostrou a ferramenta mais eficaz para a
ação de produção de sentido cujos alvos foram as práticas dos órgãos públicos responsáveis
pela proteção dos bens culturais coletivos. Mas as condições para essa produção já não eram
as mesmas que à época de Luís Saia. Os novos critérios encabeçados pelas ciências sociais
traziam consigo, por exemplo, a exigência de um maior rigor conceitual, e a posição de Reis
Filho, no seio da Escola Sociológica paulista, foi para isso estratégica. Por outro lado, este
arquiteto pôde adentrar com facilidade num campo antes dominado pelos arquitetos
modernos, dada a proximidade e afinidade que guardava com a produção clássica sobre a
arquitetura tradicional brasileira.
O sentido historiograficamente produzido por Reis Filho passou a exigir, todavia, uma
carga maior de responsabilidade que aquela com a qual poderia arcar o IPHAN, soberano até
então no que diz respeito à proteção dos bens culturais nacionais. A própria esfera federal já se
dava conta desse movimento (alertado não só por Reis Filho), sugerindo a criação de órgãos
188

preservacionistas estaduais. O CONDEPHAAT significou um primeiro passo para a


pulverização que seria vista nas políticas culturais, e Reis Filho foi um dos principais atores
dessas mudanças, principalmente no âmbito estadual.
O novo (embora não radicalmente diverso) sentido que propôs para a arquitetura
nacional acabou mostrando a importância da compreensão dos processos de urbanização para
a interpretação da própria arquitetura. Não que Saia não houvesse dito isso. Contudo, a
reformulação da noção de evolução arquitetônica operada por Reis Filho mostrava que a
arquitetura do XIX fazia parte de um mesmo processo evolutivo, que se relacionaria
diretamente com os processos urbano, social, econômico e cultural. Desse modo, essa
arquitetura não seria, como pensava Saia e quase toda a intelectualidade modernista egressa
da década de 1930, uma inserção alienígena no seio nacional, ou seja, uma espécie de “ideia
fora do lugar”. Demonstrado isso historiograficamente, as arquiteturas neoclássica e eclética
passam também a interessar às políticas preservacionistas, e os instrumentos então oferecidos
pelo IPHAN se mostram insuficientes para essa nova geração de “preservadores”.
189

5 CONCLUSÃO

Desde o início deste trabalho procurei deixar claro o seu recorte. Essa delimitação
implica também em escolhas que marcam o grau de distanciamento ou proximidade do
pesquisador em relação ao seu objeto de pesquisa. No caso desta dissertação, dirigiu-se o
olhar para o planalto paulista do alto das montanhas mineiras, como uma ave de rapina que,
procurando observar de cima, com a maior acuidade possível, algo que lhe interesse no solo,
às vezes deixa escapar uma de suas presas num de seus rasantes. Se, por um lado, tem-se
assim uma melhor visão de conjunto, por outro uma maior imersão no objeto pode fazer com
que um ou outro detalhe passe despercebido. No entanto, esse posicionamento é algo que está
além de nossas vontades.
Todavia, procurei não apenas ficar sobrevoando o objeto de pesquisa. No decorrer
desta investigação tive a oportunidade de conhecer de perto o ambiente de trabalho outrora
percorrido com paixão por Luís Saia. Lá fui recebido de coração aberto pelos atuais
funcionários da 9ª Superintendência Regional do IPHAN, que não esconderam a satisfação de
verem seu velho mestre ser alvo do interesse de jovens pesquisadores. Pude perceber também
uma certa vontade de que minha presença fosse a objetivação de uma esperança por eles
guardada, ou seja, de que algumas injustiças sistematicamente produzidas a respeito daquele
arquiteto fossem notadas por alguém ainda não contaminado pelas disputas locais. Assim,
pude me emocionar diante das anotações produzidas pelos punhos de um indivíduo cuja
biografia ia se descortinando diante de meus olhos, mostrando um homem extremamente
erudito e empenhado em combater certas injustiças sociais através de uma séria atuação em
diversos órgãos públicos.
Embora essa experiência tenha sido de fato muito enriquecedora, abrindo-me os olhos
para uma série de dados que não havia conseguido até então enxergar à distância, apenas por
intermédio de textos, não poderia deixar que se perdesse aquilo que deveria ser a marca deste
trabalho: o “olhar de fora”. Desse modo, arrisquei-me ainda mais conferindo o mesmo espaço
ao outro representante da historiografia que pretendi apresentar neste trabalho. Fui então ao
belo prédio da FAU-USP, projetado por Vilanova Artigas e situado no campus do Butantã, a
fim de entrevistar pessoalmente Nestor Goulart Reis Filho. Pela seriedade de seus escritos não
poderia imaginar o quão amistosa e descontraída seria aquela figura, que desde o primeiro
contato se mostrou muito acessível e, quando da entrevista cedida, discorreu durante horas
sobre o tema que tanto me interessava. Mais uma vez me via diante de uma série de novos
190

dados e de uma grande proximidade em relação ao objeto de pesquisa.


Mas, voltando à alegoria proposta no início dessas páginas conclusivas, não poderia
deixar que essa relação afetiva com objeto afetasse a meta de “devorar as presas”. Fez-se
então necessário um maior cuidado com a explicitação dos métodos de análise, que
mereceram capítulo específico nesta dissertação. Assim, desejei utilizar as informações
obtidas nesses “voos rasantes” de modo que pudessem responder às questões colocadas no
início deste trabalho, relativas aos papéis da produção historiográfica e das ações individuais
no âmbito das práticas preservacionistas. A admiração provocada pelo objeto de pesquisa
contribuiu desse modo apenas para aumentar o prazer pelo trabalho.
No primeiro capítulo foi possível apresentar dois esforços que talvez possam emergir
como contribuições a este campo de investigações. Na sua primeira parte fez-se uma das
primeiras revisões historiográficas ou análises do “estado da arte” dos estudos relativos às
práticas preservacionistas nacionais. Como salientei naquele capítulo, não se tratou de uma
análise exaustiva dessa produção, que mereceria, inclusive, um estudo a parte. Não obstante,
essa breve investigação permitiu situar tais estudos em relação à própria dinâmica
institucional do IPHAN e, assim, lançar luz tanto em suas reais contribuições quanto em suas
limitações.
O segundo esforço desse primeiro capítulo foi pensar numa estruturação metodológica
que permitisse abordar o tema de uma nova perspectiva. Recorri então a alguns pressupostos
que considero importantes para a análise das ações individuais, da linguagem e da produção
historiográfica, três níveis distintos cuja análise é imprescindível, a meu ver, para a
compreensão das inovações operadas no contexto específico das políticas públicas de
preservação patrimonial.
O capítulo sobre Luís Saia permitiu argumentar a favor de uma nova percepção das
práticas preservacionistas durante a “fase heroica” do IPHAN, que se mostrou então menos
coesa do que se imaginava. O caso paulista demonstra que a coerção do discurso central
produzido pelo corpo dirigente do SPHAN no Rio de Janeiro não foi assim tão eficaz,
oferecendo um considerável espaço para inovações, além de estar destituído da força
necessária para limitar completamente ações motivadas por interesses diversos ante a
autoridade individual de seus agentes. Mostrou-se necessário o “acordo entre dissensos”, de
modo que a elite intelectual paulista, em vários momentos perseguida por Vargas, pôde deixar
a marca da “paulistanidade” no rol dos monumentos nacionais tombados.
O capítulo sobre Reis Filho possibilitou, por sua vez, enfatizar a importância do
período que, normalmente, é considerado como sendo meramente de “transição”. Mostrou
191

também como as discussões em torno do urbanismo provocaram alterações nas práticas


preservacionistas paulistas e nacionais, somadas às novas demandas sociais, políticas e
econômicas. Além disso, restou demonstrado que, para a efetivação dessas mudanças, foram
de suma importância os debates historiográficos desenvolvidos em torno da noção de
evolução arquitetônica, seja ela tomada a partir de seu viés regional ou urbano.
Dessa forma, pretendi oferecer uma nova perspectiva para o estudo das práticas
preservacionistas nacionais. Ao longo desses dois últimos capítulos, que trataram das ações de
Saia e Reis Filho no âmbito dessas práticas, procurei mostrar que, mais importante do que se
definir como as instituições preservacionistas se estruturaram em torno de discursos
predominantes, seja no âmbito federal, regional ou local, faz-se necessário compreender como
esses discursos emergem da ação individual ou em que grau eles orientam ou coagem a
conduta dos seus agentes. Assim, é possível concluir que, mesmo em se tratando de um
recorte específico, como é o caso do estado de São Paulo, as práticas que giram em torno de
um consenso minimamente estabelecido são constantemente questionadas e modificadas por
ações individuais motivadas por sentidos e significados subjetivos e, portanto, diversos. Pode-
se afirmar, portanto, que, em se tratando das redes institucionais que conformam o IPHAN,
suas práticas não foram apenas constituídas de “cima para baixo”, mas, também, de “baixo
para cima”.
O enfoque deste trabalho permitiu perceber como a ação individual de dois arquitetos,
cujas perspectivas em muitos pontos mostraram discordantes, orientaram as práticas
preservacionistas paulistas de formas diferenciadas em períodos diversos de tempo. Dentre os
vários pontos de dissenso dignos de nota, a presente dissertação permite perceber ao menos
três deles: a definição de um “sujeito histórico”, os autores com quem dialogam e o locus a
partir do qual se estruturam as suas análises.
Com relação à eleição de um “ator” do processo histórico, ficou claro que para Saia
tratou-se do paulista, enquanto que para Reis Filho o sujeito histórico foi principalmente o
Estado.
Para o primeiro, as formas típicas de relacionamento do homem com o espaço, no
território paulista, teriam se definido pelos sucessivos modos de vida engendrados pela
exploração econômica e consequente configuração sócio-cultural que marcaram a “saga” de
seu “povo”. Desse modo, a morada paulista e as formas de ocupação territorial no estado
seriam fruto da atividade de um conjunto de sujeitos cujas feições se delinearam em função
dos contatos culturais (sobretudo entre portugueses e índios) e de atividades econômicas
caracterizadas principalmente pelo isolamento em relação à Coroa, preocupada com
192

atividades mais rentáveis como a exportação de cana-de-açúcar e a atividade mineradora.


Reis Filho, por sua vez, não discorda de que os contextos sócio-econômicos e culturais
foram importantes para as formas residencial e urbana adotadas ao longo da história nacional
(sobretudo no que diz respeito ao tipo de trabalho predominante, ou seja, escravo ou livre).
No entanto, ele põe em relevo o Estado como agente urbanizador. As vilas e cidades coloniais,
por exemplo, não se conformariam exclusivamente ao sabor dos colonos, moldadas como que
automaticamente por suas atividades ou por suas “inteligências coletivas”, mas por um
confronto entre esses aspectos e as imposições reais. Antes mesmo do século XIX, quando
notadamente é possível observar o poder público ocupando os espaços antes dominados
exclusivamente pelo poder privado, seria possível afirmar, segundo Reis Filho, que o Estado,
representado pela Coroa Portuguesa, teria um papel importante na ordenação dos espaços
urbanos, contrariando teses como as de autores como Sérgio Buarque de Holanda e Robert
Smith.
Um segundo ponto que diferencia a atuação de Saia e Reis Filho é o contexto
intelectual e de produção do conhecimento dos quais emergiram, não obstante possamos
afirmar que ambos percorreram caminhos formativos bastante particulares. Tais características
implicam em modos diferenciados de constituição narrativa de sentido, ação esta em grande
medida responsável, como foi visto, pela orientação das práticas preservacionistas paulistas.
Além das leituras marxistas, a formação intelectual de Saia foi marcada pela leitura de
autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Entre os anos de 1930 e 1950, o
conhecimento sobre a história nacional ainda se apresentava num formato bem mais próximo
do ensaísmo, o que não se relaciona a meu ver, necessariamente, com ausência de método.
Saia se aproximou bastante desses autores em seu modo de apresentar historiograficamente os
resultados de suas pesquisas. Isso não significa ausência de pesquisas sistemáticas, mas um
“formato” de texto menos preocupado em expor disciplinadamente esses métodos. Tal aspecto
se prende, portanto, àquilo que se poderia chamar de “exigências de validação do
conhecimento” da época em que Saia se formou intelectualmente e começou a produzir seus
textos.
Reis Filho pertence a um contexto posterior. Sua formação, fortemente marcada pela
influência da “Escola Sociológica Paulista”, deu-se em meio a novos critérios de validão do
conhecimento. Alteraram-se os “critérios de cientificidade” do conhecimento produzido
academicamente, cobrando-se então um maior rigor relativo à exposição das fontes, dos
métodos, das definições dos conceitos empregados e dos autores a que se faz referência. A
pretensa superioridade desse novo modo de apresentação historiográfica (o que pode ser
193

também observado em outros campos do conhecimento) fez inclusive que alguns de seus
defensores passassem a desprezar a produção precedente, classificada como “ensaística”,
simplesmente por sua forma, sem levar em conta suas verdadeiras contribuições. O próprio
Saia, como foi mostrado, foi alvo por várias vezes dessa estratégia discursiva.
Por fim, tem-se o “lugar de autoridade” a partir do qual os atores enfocados
produziram seus respectivos trabalhos e orientaram as práticas preservacionistas no estado de
São Paulo. Este aspecto marca profundamente o significado da ação desses arquitetos.
Saia atuou no âmbito daquilo que podemos chamar, seguindo a proposta já
mencionada de Marize Santos, de “Academia do SPHAN”. Isso não significa que ele tenha se
submetido docilmente à autoridade de Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lucio Costa. Seria
mais acertado dizer que foi necessariamente a partir das imposições desses indivíduos que
Saia iniciou uma disputa pelo reconhecimento do “valor” dos bens paulistas. Desse modo,
esse arquiteto se viu obrigado a se aproveitar da autoridade auferida pelo status de “assistente
técnico do SPHAN”. Todavia, foi este também o espaço que lhe possibilitou a orientação e
produção de uma série de práticas em alguma medida contrárias às pregadas pelo núcleo da
instituição, ou, em outras palavras, foi a partir do SPHAN que Saia introduziu uma série de
práticas orientadas por valores individuais e regionais à despeito do próprio SPHAN. Isso não
significa que a direção central do órgão não tenha aceitado as condutas emanadas da regional
paulista (do contrário, Saia não teria permanecido lá até o fim de sua vida); significa, isso sim,
que o SPHAN teve que acatar a diversidade de perspectivas de seus técnicos regionais e, além
disso, constituir-se a partir dessa diversidade.
A análise de Reis Filho estruturou-se, principalmente, com foi visto, a partir da FAU-
USP. Além de contribuir decisivamente com a consolidação da área de história da arquitetura
e urbanismo dessa faculdade, esse arquiteto também foi responsável pelo estabelecimento da
rede intelectual que se constituiu em oposição direta às práticas estabelecidas na regional
paulista do SPHAN. Desde sua fundação, em 1937, o SPHAN se mostrou um espaço
privilegiado para a construção e validação de uma história da arquitetura nacional e, por
conseguinte, de legitimação da atuação dos arquitetos modernos. Se no estado Rio de Janeiro
isso foi especialmente verdadeiro, em São Paulo a situação foi um pouco diversa, tendo em
vista a figura predominante e praticamente exclusiva de Saia no SPHAN. Os arquitetos
modernos paulistas tiveram que buscar outros espaços institucionais a fim de consolidar suas
práticas e legitimar suas posições. Estando o SPHAN “indisponível”, foi necessário então
criar um outro espaço que pudesse fornecer-lhes a autoridade necessária para a construção de
suas carreiras individuais. Desse modo, a FAU tornou-se, principalmente após o falecimento
194

de Luís Saia, o principal locus de produção de conhecimento sobre a arquitetura pretérita e de


orientação de condutas preservacionistas do estado de São Paulo, tendo como um de seus
principais representantes a figura de Reis Filho.
Os resultados alcançados neste trabalho me permitem tecer, por fim, algumas
considerações mais gerais sobre os métodos empregados para a análise de aspectos como os
que foram aqui abordados. A produção historiográfica foi analisada como um tipo específico
de ação individual e de linguagem escrita, capaz de orientar condutas e delimitar identidades.
Trata-se de uma ação racional que, como se sabe, não necessariamente produz os efeitos
pretendidos, pois depende de um contexto que envolve interesses alheios, individuais e
coletivos. As inovações produzidas a partir de motivações individuais podem, no entanto,
efetivar-se, desde que haja uma convergência entre as partes envolvidas ou, não sendo isso
possível, que a parte inovadora seja mais poderosa que a que se lhe opõe. É óbvio que isso
ocorre de formas distintas de acordo com o campo que se investiga. Se no âmbito das práticas
preservacionistas, por exemplo, isso pode ser claramente observado e se dá de forma mais
“rápida”, no da linguagem, por seu turno, as mudanças são no geral mais lentas e dependem
de fatores diversos, embora possamos notar, como no caso da noção de “evolução
arquitetônica”, inovações semasiológicas e onomasiológicas ocorridas num espaço
relativamente curto de tempo. O mesmo poderia ser dito em relação ao conceito de
“patrimônio”. No entanto, cabe ressaltar que “inovação” não significa aniquilação da parte
momentaneamente vencida, sendo perfeitamente possível a coexistência de sentidos e
significados contrastantes, que ora ou outra entram em conflito em função de conjunturas
específicas.
Ainda assim, um novo significado assim estabelecido pode ou não conformar o caldo
da “tradição” disponível às gerações subsequentes e, desse modo, tomar posteriormente
formas imprevisíveis. Se as ações de Luís Saia (analisadas sobretudo a partir de sua produção
historiográfica) alcançaram algumas de suas metas, as mesmas sofreram alterações
significativas com as gerações posteriores. Isso adveio principalmente da necessidade de
ocupar um “posto” vago sem com isso abrir mão da autoridade de seu antigo ocupante. A
“nova” história da arquitetura e do urbanismo em São Paulo não poderia ser a mesma que a de
Saia, no entanto não poderia também abandonar aqueles elementos que fizeram e que
continuavam fazendo dela uma história “legítima”. Não se tratava então de abandonar a
ferramenta, mas de torná-la “mais eficaz” a fim de dar conta das novas “normas” do jogo.
Deste modo, não obstante o recorte específico do trabalho, foi possível mostrar que a
produção historiográfica ocupa uma posição central no conjunto das práticas
195

preservacionistas, sendo, ela própria, uma forma de ação. Além disso, pude sugerir, através da
análise das ações individuais de dois arquitetos/historiadores, que o IPHAN e outros órgãos
preservacionistas somente puderam se sustentar com base nos acordos entre vozes em muitos
pontos discordantes, impossibilitadas de abrir mão dos espaços previamente
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