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JOSÉ CARLOS FERNANDES

As guerras de Rosina Parchen


Durante 37 anos ela esteve ligada à defesa do patrimônio histórico, cultural e
ambiental. Mostrou-se hábil em desviar do atirador de facas

jcfernandes@gazetadopovo.com.br [17/02/2017] [00h01]

A arquiteta Rosina Coeli Alice Parchen faz parte da categoria cuja identidade se
mistura ao ofício que pratica. É provável que até o porteiro de seu prédio a conheça
como a “Rosina do Patrimônio”. Nada mais justo. Essa mulher delgada, ilustrada,
enérgica e talhada para uma boa briga soma 37 anos de serviços em prol dos
tesouros arquitetônicos e ambientais do Paraná. Nesse tempo, não brincou de
casinha. Enfrentou ringues, ameaças de bala e desaforos tão cabeludos que
abalariam o mais resistente dos maiorais.

Mês passado, ao assinar seu pedido de aposentadoria e limpar sua mesa, na Casa
Gomm, desfrutou de um privilégio digno de ruborizar aquela parcela da população
que não está nem aí para a Hora do Brasil. Ao olhar para trás, enxergou a Serra do
Mar, os centros históricos da Lapa e de Paranaguá, estudos sobre fazendas coloniais
dos Campos Gerais, ações no Norte Pioneiro, a paisagem passadista de casarões da
Rua Comendador Araújo, para citar alguns dos espaços que ajudou a preservar, não
raro com bravura, na companhia de homens e mulheres de boa vontade – sua
turma.

Em 20, 30 anos, quando um pesquisador se ocupar de responder como o Paraná


conseguiu preservar tanto – ou não –, vai se deparar com o nome de Rosina Parchen
em um sem-número de atas e processos. Há de conferir os dados mais de uma vez,
julgando estar diante de uma heroína às voltas com uma missão impossível, hábil
em desviar do atirador de facas. Vai confirmar que esse personagem existiu. O que
lhe renderá uma belíssima tese. Um romance. Ou um processo movido por algum
canalha.

Fazer da profissão uma razão de viver, evidente, não foi nenhum mar de rosas.
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo
Rosina está longe de ser uma unanimidade. Deve ter quem atravesse a calçada ao
vê-la. Em quase quatro décadas de serviços prestados, enfrentou barriguinhas
satisfeitas, donos de prédios históricos munidos de escopeta; advogados
ameaçadores, arrotando sandices sobre o direito incontestável de mudar fachadas de propriedade privada; superiores sem luz que lhe mandaram arquivar
projetos essenciais à memória. Sem falar na kafkiana proibição de pôr os pés em determinados pontos do mapa. O caso do ministro Geddel Vieira Lima –
que ano passado redundou na demissão do ministro da Cultura Marcelo Calero – é um aperitivo perto do que acontece nesses bastidores.

O caso do ministro Geddel Vieira Lima é um aperitivo perto do


que acontece nesses bastidores

Certa feita, na cidade em que Rosina fazia inventários, um motorista a seguiu e ameaçou atropelá-la. Ganhou uma banana em resposta. Passou a ir a
  acompanhada e a chamar testemunhas para ouvir conversas com autoridades e endinheirados, regadas a cafezinhos, mas sobretudo a achaques
campo
que os pulhas reservam às santas mãezinhas. Um político a apelidou de “tombete de plantão”, reduzindo-a à caricatura de uma periguete. No atacado e no
varejo ganhou desdém de muita gente que tinha por obrigação fazer coro com ela. Mas uma verdade deve ser dita – mesmo entre seus detratores, difícil
encontrar quem não lhe reconheça a firmeza de caráter.

É osso duro de roer. Bate na porta das cabeças coroadas. Se não lhe dão ouvidos, chuta-lhes a canela. No último ano à frente do Setor do Patrimônio da
Secretaria de Estado da Cultura, a arquiteta travou batalhas para mostrar que a Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, erguida no século 19, não suporta
mais transporte de carga. Para salvar a cidade de Castro de virar uma aberração. Fez parte da grita que defende a manutenção da Escarpa Devoniana,
debaixo do risco de virar um quintal dos gananciosos. Chamou às falas gente graúda, para que restaure e preserve os imóveis tombados que estão em seu
nome. Andava com as orelhas em brasa – é fato. O fim da carreira veio acompanhado de sucessivas chaves-de-braço, comprovando a máxima desiludida
do cubano Tomás Gutiérrez Alea, para quem o calor dos trópicos apodrece a cada tarde a flor e a fruta fresca da manhã.

A dizer: em pouco mais de um ano, viu o conselho do patrimônio, o Cepha – instituído por lei, em 1953, e formado por notáveis –, ser nocauteado pelo
Decreto Estadual 2.445, de 2015. Hoje, no Paraná, para um processo de tombamento ser aberto, precisa passar pela mesa do governador, que o envia para
o procurador-geral, para só depois chegar às mãos de representantes da sociedade aptos a julgá-lo. Não é preciso ser muito esperto para entender onde
pode chegar essa concentração de poder.

À época, parte do conselho pediu afastamento, em protesto contra a perda de autonomia. Rosina resistiu mais uma vez, até, plu玜�, perder a gestão do
Patrimônio. Dessa vez, não aceitou ir para a saleta do fundo e optou pela aposentadoria. Triste. Nossa conterrânea, que é membro do Icomos – órgão
internacional que congrega os melhores profissionais do mundo no setor –, alcançou a porta da rua em meio aos calores e preguiças de janeiro. Silêncio.
Mas não pensem que ela vai ficar no tricô e na novela.

Rosina Parchen não é dada a narrativas personalistas. Migra para o centro de cena apenas debaixo de insistências. Conta sem mais que a mãe Lenira Oliva
Alice, a dona Nina, dava aulas de admissão do ginásio para adultos no Colégio Estadual Professor Cleto. O pai, João Antônio, era representante de
produtos farmacêuticos. Uma das joias que fez circular nessas bandas foram nada menos do que os sabonetes Phebo, o que lhe faz merecedor de nossos
aplausos.

Difícil não relacionar a filha militante ao comerciante João. Ele viajava de Jeep pelos sertões do Paraná e de Santa Catarina. Registrava em cartas cada
uma de suas andanças, de modo que Nina recebia mensagens em envelopes timbrados, enviadas das centenas de hospedarias onde o marido pernoitava.
Quando chegava em casa, abastecia os seus de pequenas histórias sobre o país grande, belo e em construção que havia encontrado. Além dos relatos
minuciosos – da mobília, da paisagem e dos tipos humanos –, dava bônus de curiosidades. “Me emocionei quando estive no hotel que Manoel Ribas
mandou construir para si em Jacarezinho. Era exatamente como meu pai tinha descrito”, conta ela.

A culpa de Rosina ser quem é pode ser de seu João, mas também de dois de seus professores na UFPR – Key Imaguire e Ciro Lyra, que a despertaram para a
luta da preservação. Ou do artista plástico Fernando Velloso, que lhe abriu as portas da Secretaria de Estado da Cultura, à qual se vinculou em 1980. Ao
lado da também arquiteta Jussara Valentini, encontrou dois arquivos com quatro gavetas cada. O patrimônio estava reduzido a isso. Em pouco mais de
uma década, fez contas de multiplicar. O Paraná teria não só a originalidade de ostentar legislações patrimoniais pioneiras, dos anos 1940 e 1950, mas
também um setor moderno, com informações precisas sobre 200 bens tombados, defendidos à unha. Gestores públicos dos quatro cantos pediam para
copiar o modelo. Rosina e sua turma mostravam como é que se faz. Não deixa de ser um consolo.

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