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Afetividade, escrita e associações compulsórias de amizade

“...Desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus


seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor e amizade.”
Peter Sloterdijk

“Imaginei também uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai para


filho, à qual cada novo indivíduo adicionasse um capítulo ou nela
corrigisse com piedoso cuidado a página dos ascendentes”. Jorge Luis
Borges

Peter Sloterdijk inicia seu livro Regras para o Parque Humano com uma bela reflexão
sobre o papel da escrita e dos livros na fundação do humanismo e da civilização: “Livros,
observou certa vez o escritor Jean Paul, são cartas dirigidas a amigos, apenas mais
longas”. Essas cartas de amizade à distância são enviadas ao mundo muitas vezes sem
destinatários precisos e podem chegar até mesmo aos que ainda nem nasceram. O
remetente tem consciência de que o envio dessas missivas tem o poder de multiplicar
indeterminadamente oportunidades de estreitar amizade e essa relação entre escritor e
receptor representa um caso de amor à distância. “Isto exatamente no sentido de
Nietzsche, que sabia que a escrita é o poder de transformar o amor ao próximo ou ao que
está mais próximo no amor à vida desconhecida, distante, ainda vindoura”, finaliza
Sloterdijk.

Essa condição de incomensurabilidade qualifica também a Biblioteca de Babel, de Jorge


Luis Borges, uma biblioteca interminável, infinita, eterna, ilimitada e periódica. Nela não
há dois livros idênticos, apesar de todos trazerem alguns elementos iguais. Um dia, os
homens descobriram que a Biblioteca abarcava todos os livros e sentiram imensa
felicidade de possuírem um tesouro tão especial. Esperou-se que finalmente haveria o
esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade, que seriam a origem da Biblioteca
e do tempo. Após a euforia, abateu-se uma depressão excessiva. A constatação de que
sempre haveria algo inacessível, foi por demais penosa. Por fim, o autor declara: “talvez
me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana – a única – está

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por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente
imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”.

O encontro dessas passagens de Sloterdijk e Borges me clarifica não apenas o trabalho


de Marilá Dardot apresentado no Projeto Trajetórias 2005, sua Biblioteca de Babel,
formada por meio da generosidade e da afetividade, pois os volumes presentes devem
significar algo para quem os empresta, são mensagens que cada um considera
essenciais para serem partilhadas (antecedidas da própria intenção de quem as escreve),
mas os valores e o pensamento que conduzem esta artista. O apreço pela escrita,
Filosofia e afetividade está evidente ou subliminarmente na sutura de outras obras suas
para recobrar um outro tempo, de suspensão e de contemplação, incomensurável, que
recompõe uma dimensão humanista e afetiva da eternidade, mediada pela palavra e pelo
desapego, incitando para alguns ou para muitos uma nova relação com o mundo que nos
cerca.

Cristiana Tejo

Originalmente publicado como:


TEJO, Cristiana. “Afetividade, escrita e associações compulsórias de amizade”. Texto de
exposição. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2006.

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