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Resumo
O trabalho tem o objetivo de indicar elementos para a composição de um
conjunto de procedimentos metodológicos que possa ser útil no processo de
investigação dos gêneros no webjornalismo. Partindo do pressuposto de que, com a
necessidade de compreensão, apreensão, desenvolvimento e reprodução didática do
saber-fazer jornalístico praticado na web, o estudo dos gêneros torna-se cada vez mais
necessário, o texto propõe que os gêneros sejam entendidos como sistemas. Entre as
“vantagens” apresentadas por esse ponto de vista teórico-metodológico, são destacadas:
a visão de conjunto, podendo-se distinguir as propriedades essenciais e as específicas de
cada gênero e subgênero e viabilizando-se o conhecimento de suas identidades; a
visualização dos diferentes níveis sistêmicos, o que permite a diferenciação de
categorias, gêneros e subgêneros; e a possibilidade de observação da interdependência
entre os elementos que constituem cada gênero e da lógica interna determinada pelas
relações entre eles.
Palavras-chave: webjornalismo, gêneros digitais, metodologia
Introdução
Novos gêneros, novos formatos, gêneros híbridos, novas realidades discursivas,
novas formas de narrativa jornalística, novas categorias. Essas são algumas das
referências encontradas com freqüência em livros e artigos desde que o webjornalismo
passou a ser objeto de estudos acadêmico-científicos. Mais do que a afirmação de
certezas, constata-se a emergência da colocação em debate de observações, buscas,
aproximações, descrições ou indicações de tendências. A atitude de problematização,
em vez da tentativa de abordagem conclusiva, contudo, tem a sua razão de ser: a
definição dos gêneros jornalísticos – inclusive a dos chamados gêneros clássicos –
nunca conseguiu consenso entre os pesquisadores da área.
Com o desenvolvimento do webjornalismo, duas ordens de dificuldades no
tratamento do assunto se colocam. A primeira delas decorre do ímpeto de negação dos
gêneros que se expressa na falta de abertura para até mesmo pautar o tema. Em contato
com os argumentos de alguns pesquisadores, assim como de muitos profissionais, tem-
se a impressão de que, a exemplo da constatação de Todorov em relação à literatura,
“persistir em se ocupar dos gêneros pode parecer atualmente um passatempo ocioso,
quiçá anacrônico” (Todorov, 1980, p. 43). Nessa perspectiva, há quem vai além,
chamando os gêneros de “fraude teórica no estudo das formas discursivas” e
defendendo a necessidade de “romper, de vez, e urgentemente, com o velho paradigma
que divide o jornalismo em opinião e informação” (Chaparro, 2007).
Ao mesmo tempo, num outro nível, as dificuldades na discussão dos gêneros
dizem respeito ao fato de que, como constata Todorov (1980), os gêneros mantêm uma
relação direta com os aspectos constitutivos da sociedade a que pertencem. No caso dos
gêneros no webjornalismo, portanto, é preciso reconhecer que a sociedade tecnológica
1
Universidade Estadual de Ponta Grossa - Paraná
atual (cibersociedade, sociedade em rede, entre outras denominações), estando em
processo de constituição, ainda não se revelou em todos os seus elementos e
características. Para Todorov (Idem, p. 50), “o gênero é a codificação historicamente
atestada de propriedades discursivas”:
[...] Os gêneros são unidades que podemos descrever sob dois pontos de vista
diferentes, o da observação empírica e o da análise abstrata. Numa sociedade,
institucionaliza-se a recorrência de certas propriedades discursivas, e os textos
individuais são produzidos e percebidos em relação à norma que esta codificação
constitui. Um gênero, literário ou não, nada mais é do que essa codificação de
propriedades discursivas (Todorov, 1980, p. 48).
Sistema aberto
Para a indicação de um conjunto de procedimentos metodológicos que atenda as
necessidades tanto de quem queira pesquisar a fundo os gêneros no jornalismo quanto
de todos os que pretendem compreender minimamente a questão – e isto é fundamental,
pois, como ensina Lessing, conhecer o processo de produção e a composição final dos
enunciados é saber produzi-los,2 – um primeiro passo é entender o gênero como
sistema. Ou seja, o gênero não existe como um conjunto de regras exteriores às quais o
enunciado deve se conformar, mas como um conjunto de relações estruturais entre os
seus elementos constitutivos (Todorov, 1980, p. 34).
Analisando as concepções de Lessing, Todorov diz que há regras diferentes para
cada tipo de discurso. Regras que compõem um sistema internamente coerente – “a
lógica interna dos gêneros é absoluta, implacável”, diz o autor, explicando que
“qualquer que seja o ponto de partida, pode-se permanecer coerente consigo mesmo; e é
nisso que consiste o gênero: é a lógica das relações mútuas entre os elementos
constitutivos da obra” (Idem, p. 37). Identificar essa lógica é identificar o gênero, o que
requer um tempo suficiente de conhecimento e reconhecimento da recorrência
institucionalizada das propriedades discursivas na sociedade, como citado
anteriormente.
Conceber o gênero como sistema não é apenas mais uma alternativa de caráter
operatório; é atitude fundamental, porque possibilita o conhecimento da identidade de
cada gênero ao viabilizar a distinção entre suas “propriedades essenciais” e suas
“propriedades acidentais”. Nesse ponto, Todorov (op. cit, p. 34-35), ao discutir o
pensamento de Lessing sobre os gêneros literários, dá dicas importantes para a pesquisa
de gêneros em outras esferas da comunicação. Segundo ele, a dimensão temporal, por
exemplo, que é marca essencial de qualquer narrativa, tem caráter acidental (“inventado
pelos teóricos do classicismo”) no caso do drama.
2
Citado por Todorov, 1980, p. 39.
[...] E que dizer da presença de animais nas fábulas, seria esta uma de suas
“propriedades essenciais”? [...] O essencial não são os próprios animais, mas a função
que desempenham de maneira apropriada: a de constituir uma tipologia de caracteres
notórios e constantes. As verdadeiras regras não são uma ocupação de legislador, mas
decorrem da essência do gênero; é por isso que elas não se constituem numa simples
lista, mas formam um sistema no qual tudo se mantém. Uma regra implica uma outra:
por exemplo, como é preciso apenas uma moral por fábula, a brevidade se impõe (Idem,
p. 35, grifo meu).
3
Sobre a distinção entre categorias e gêneros, cf. Melo, 2003, p. 42.
Tratando dos gêneros do discurso, no seu Estética da criação verbal, Bakhtin
(1992, p. 279) explica que três elementos se fundem “indissoluvelmente no todo do
enunciado”: o conteúdo (temático), o estilo e a construção composicional. Dos três, o
estilo (decorrente da seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais) é o que pode ser considerado de maior importância na
definição do gênero. Apesar de os enunciados serem individuais, ou seja, refletirem a
individualidade de quem fala ou escreve, segundo Bakhtin, “na maioria dos gêneros do
discurso (com exceção dos gêneros artístico-literários), o estilo individual não entra na
intenção do enunciado, não serve exclusivamente às suas finalidades, sendo por assim
dizer, seu epifenômeno, seu produto complementar” (Idem, p. 283). De acordo com o
autor, o estilo está vinculado às unidades temáticas e às unidades composicionais, as
últimas determinadas pelo “tipo de estruturação e de conclusão de um todo”, assim
como pelo “tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal”
(Idem, p. 284). Para ele, esses três elementos são marcados pela especificidade de uma
esfera de comunicação, uma vez que, considerado isoladamente, qualquer enunciado é
individual, “mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciado, sendo isso que denominamos gêneros do discurso” (Idem, p.
279, grifos do autor).
Bakhtin explica que cada enunciado é um elo na cadeia de comunicação de uma
dada esfera. No seu conjunto, os enunciados se caracterizam mais pela interdependência
do que pela auto-suficiência:
[...] Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são auto-suficientes;
conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos
recíprocos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto de ecos e
lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera de
comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como
uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra “resposta” é
empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles,
supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles (Idem, p. 316).
Assim como os enunciados “não são indiferentes uns aos outros nem são auto-
suficientes”, pode-se dizer que, dentro de uma esfera de comunicação, os gêneros (tipos
de enunciados) também “conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente”. Assim
como um enunciado “deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a
enunciados anteriores dentro de uma dada esfera”, pode-se dizer que os gêneros
constituem réplicas e complementos uns dos outros, dando conta, no conjunto, da razão
de ser da esfera de comunicação a que pertencem (sistema maior, ou nível sistêmico
mais abrangente, por exemplo, no presente trabalho, o jornalismo como um todo). Dessa
forma, para apreender o caráter de um gênero, é preciso ver como ele dialoga com os
demais gêneros.
Com o mapeamento das propriedades essenciais e acidentais, opondo-se um
gênero a cada outro – por meio de oposições binárias e da composição de um amplo
quadro, como ensina Todorov (op. cit, p. 31-32) –, deve-se proceder também a
verificação do diálogo travado entre um gênero e outro(s) no interior de um sistema
maior. Por exemplo, no jornal, a crônica se constitui como contrapeso das chamadas
hard news – “para se fazer ouvir de modo diferente e merecer maior respeito do leitor,
que trata a notícia sem a menor cerimônia, a crônica antes de tudo tenta se diferenciar,
como se fosse uma visitante ilustre num país bruto, inculto e insensível” (Roncari, 1985,
p. 14). Igualmente no webjornalismo, as breaking news (seções de “últimas notícias”) se
viabilizam dando primazia absoluta à instantaneidade, com todas as limitações daí
decorrentes, porque “contam” com a presença na rede dos demais gêneros, que as
compensam e complementam.
Tomada a interdependência como elemento a ser observado nas pesquisas
teóricas e empíricas dos gêneros, dois outros aspectos devem ser considerados: o fato de
qualquer mudança numa parte do sistema ter como conseqüência a mudança no sistema
como um todo e, ao mesmo tempo, o fato de que a mudança desencadeadora da criação
de um novo gênero ou subgênero não faz desaparecer aqueles anteriormente existentes.
O primeiro aspecto é regra básica do funcionamento dos sistemas, cujas implicações, no
entanto, estendem-se sempre no sentido da produção de modificações no nível sistêmico
superior, com a alteração da relação entre os vários níveis sistêmicos, podendo ser
acrescentados novos subsistemas.
Ou seja, no caso do jornalismo, a introdução da interatividade e da
multimidialidade nas reportagens veiculadas pela web, por exemplo, não faz
desaparecer a reportagem – tradicionalmente entendida como um dos “gêneros
clássicos” do jornalismo – nem produz alterações neste gênero. Pode-se dizer que, com
os recursos trazidos pela web, ampliam-se e tornam-se mais complexas as formas de
expressão do gênero reportagem, havendo, portanto, a configuração de um novo
formato para a reportagem, o que se desdobra na criação de um subgênero, a web-
reportagem (que é hipertextual, interativa, multimídia ...), assim como, com a invenção
do rádio e da TV, a inserção de novos elementos já havia proporcionado novos formatos
para notícias e reportagens, levando ao estabelecimento de subgêneros.
Mas o que muda concretamente no gênero reportagem, ao mudar uma de suas
partes (introdução de novos elementos que, criando formatos diferenciados, estabelece
novos subgêneros)? Com isso, foram alteradas as propriedades essenciais da
reportagem? Quais são as propriedades essenciais da reportagem? A notícia, tal como
colocada no jornal impresso também circula na web, mas a notícia no webjornalismo é,
por natureza, hipertextual. O fato de ser hipertextual não muda as propriedades
essenciais do gênero notícia, ou muda? Com a web, mudou, por exemplo, a notícia
produzida para o impresso? O que é a notícia? Um novo formato pode constituir um
novo gênero?
Considerações finais
Nos últimos tempos, com a necessidade de compreensão, apreensão,
desenvolvimento e reprodução didática do saber-fazer jornalístico praticado na web,
crescem, em número e qualidade, os estudos sobre os gêneros. Isso é fundamental, pois
só assim se poderá: 1) passar a exigir de cada gênero apenas e tão somente o que ele
pode oferecer; 2) não ficar preso aos formatos assumidos pelos gêneros nos demais
suportes, viabilizando a exploração máxima das potencialidades oferecidas pela web; 3)
ter consciência de que, como explica Bakhtin, a escolha do gênero dirige todo o
processo discursivo:
[...] A idéia que temos da forma do nosso enunciado, isto é, de um gênero preciso do
discurso, dirige-nos em nosso processo discursivo. O intuito de nosso enunciado, em
seu todo, pode não necessitar, para sua realização, senão de uma oração, mas pode
também necessitar de um grande número delas, e o gênero escolhido dita-nos o seu tipo
com suas articulações composicionais (Bakhtin, 1992, p. 305).
Além disso, vale lembrar, com Lessing, que conhecer é saber produzir. E mais
que isso: é saber inventar – “... no interior de cada gênero numerosas variações são
possíveis (e, aliás, realizadas em parte). [...] A partir de uma única obra, variando os
elementos no quadro fixado pelas regras do gênero, pode-se obter milhares, milhões de
outras obras ...” (Todorov, 1980, p. 39-40).
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