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Arist.» 2les, Horacio, onginc 0301 92 TT A POETICA CLASSICA SUMARIO Tres MOMENTOS DA RETGRICA ANTIGA (Roberto de Oliveira Brandao) Aristoteles ARTE POETICA Hordcio ARTE POETICA Longino ou Dionisio DO SUBLIME TRES MOMENTOS DA POETICA ANTIGA' 1, A POBTICA DE ARISTOTELES: DA REFLEXAO A LEI 1.1. Como reflexéo sobre os problémas da arte em geral e em especial sobre a literatura, a Postica aristotélica ocupa hoje um lugar relevante. A trajetéria de sua importancia comega efetivamente no século XVI, pois mal conhecida durante a Idade Média, através de compilagées siriacas e drabes, s6 em 1498 sai a ptiblico a primeira edigao latina feita sobre o original grego cuja impressdo aparece ape- nas em 1503. A partir desse momento sua influéncia e seu poder estimulante serao cada vez maiores. Nas intimeras leituras — traducdes, comentarios, estudos — que até os nossos dias jd se fizeram de seu texto ou por sua inspiragao, os conceitos ali emitidos ora sao vistos globalmente como problemas a serem resolvidos e esclarecidos, dai o permanente trabalho exegé- tico a que tem sido submetido, com que se procura chegar ao sentido “exato”’ de suas palavras, ora tais conceitos séo encarados isolada- mente e aprofundados como formulagdes definidoras do especifico literdrio enquanto postura tedrica preocupada em explicar o funcio- namento da literatura, independente do contexto aristotélico original, ora sdo considerados, no extremo oposto, como solucées prdticas que devem orientar tanto a criagGo quanto a critica de obras concretas. Estas trés tendéncias na verdade nao sao estanques, mas inter- penetram-se freqiientemente. Aquilo que em Aristételes correspondia certamente a um trabalho de reflexao a partir de uma realidade histd- rico-artistico-cultural pode dar lugar, e isso de fato aconteceu, ou a um critério estratificado que se aplicava as formas artisticas, ou, no melhor caso, a um estimulo para reproduzir os atos de observacao e de refle- xae capazes de encontrar na novo a dindmica interna que permanece 1. Ver do Autor A Tradiga@o Sempre Nova. Sao Paulo, Atica, 1976. 1.2. Apesar disso, podemos dizer que a primeira tendéncia tem sua forma exemplar nos comentdrios realizados pelos humanistas ita- lianos do Renascimento. Foram eles que praticamente estabeleceram a doutrina aristotélica da literatura que se difundiu nos paises oci- dentais, traduzindo, comentando, interpretando, e, em muitos casos, recriando a Poética. De 1527, data em que Girolamo Vida publicou sua De arte poetica, até 1570, quando sai uma das mais importantes obras do renascimento italiano, a Poetica d’Aristotile vulgarizzata ¢ sposta de Castelvetro, a visio renascentista da teoria aristotélica da literatura jd apresenta seus contornos definitivos. Foram seus arti- fices, entre outros, Vida (1527), Robortello (1548), Segni (1549), Maggi (1550), Vettori (1560), Giraldi Cinthio (1554), Minturno (1559), Scaliger (1561), Trissino (1563), Castelvetro (1570). O papel deste ultimo foi decisivo no sentido de “recriar” a Poética aristotélica. René Bray diz que ele “nao se contenta em explicar seu texto, como haviam feito os Vettori e Robortello, ele deduz, acrescenta, modifica mesmo, e constr6i assim sobre as bases fragmentdrias da Poética toda uma poética pessoal”. ® Independentemente do maior ou menor significado de cada um daqueles estudiosos renascentistas, 0 que importa notar é a homo- geneidade de suas preocupacées: conhecer, explicar, difundir as for- mulagées aristotélicas. Nem destoam desse quadro as divergéncias, como a de Giraldi Cinthio que nos Discorsi (1554), procura legiti- mar uma forma poética para a quai Aristételes nao havia legislado, o romanzo, espécie herdica criada por Ariosto e Boiardo. Na mesma linha, Minturno em 1563 escreve uma Arte poetica em que coloca o romanzo ao lado da epopéia, além de buscar os exemplos nao mais nas literaturas grega e latina, mas na italiana de seu tempo. Fatos como esses, alids, mostram que os te6ricos renascentistas nem sempre obedeciam cegamente ao pensamento dos Antigos, mas, pelo contrd- rio, estavam atentos ao que se passava na produgdo viva de sua época. 1.3. A segunda tendéncia por mim referida, a de encarar iso- ladamente certos conceitos aristotélicos como fonte estimulante para novas observagées e novas reflexdes sobre o fendmeno artistico, pode ser localizada em nossos dias. Tomemos o conceito de verossimilhan- ¢a, que pertencia tanto ao arsenal poético quanto ao retérico. A ma- neira como o enunciou Aristételes na Poética, por sua conciséo e contundéncia, teve certamente papel decisivo na longa e rica trajeté- 2. Formation de la doctrine classique. Paris, Nizet, 1963, p. 39. ria desse conceito. No capitulo 1X, quando o fildésofo discute a dis- tingGo entre histdria e poesia, o problema central é exemplarmente colocado: “E claro, também, pelo que atras ficou dito, que a obra do poeta nao consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possiveis no ponto de vista da verossimilhanga ou da necessidade. Nao € em metrificar ou nao que diferem o historiador e o poeta; a obra de Herédoto podia ser metrificada; nao seria menos uma histéria com o metro do que sem ele; a diferenga esté em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevagio do que a Histéria; aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares.” (Poét., IX) Observa-se que, embora importante, a verossimilhanga é apenas um dos componentes da poesia, importante porque, ao situd-la na esfera do possivel, apréxima-a da filosofia (0 que nao admitia Platao) sem afastd-la da experiéncia comum de todo ser humano (no capitulo IV da Poética ele dird que o “imitar é natural ao homem”). Em outro lugar, ao tratar dos problemas criticos, ele relaciona o ato experimental que deve orientar a criagao da obra com a atitude do receptor: “Quando plausivel, o impossivel se deve preferir a um_possivel que ndo conyenca” (Ibid., XXIV). Formulagées sugestivas como essas, que colocam nado apenas 0 problema da relagao da literatura com a realidade, mas também o pro- blema da convencionalidade do real artistico, isto é, que sugerem um compromisso entre o processo de representacdo como fator construti- vo ea natureza da realidade representada como efeito de sentido, néo é de admirar que tenham sido objeto de longas e acaloradas discussdes durante o Renascimento italiano e 0 Neoclassicismo francés. Mas se nesses momentos histéricos 0 problema da verossimilhanga foi sempre abordado dentro do contexto da poética como um todo, nos nossos dias o conceito é retomado isoladamente como problema auténomo que tanto se aplica ao discurso literdrio como ao cinema, a publici- dade, a psicandlise, etc. Tal é o sentido dos estudos realizados pela 3 eeeneennneneeeeeeeee eee eeeeeEEEEeeeeeaeeeE—————— revista Communication 11 onde vérios autores estudam o conceito de verossimilhanca dentro do campo de suas especialidades e interesses. * 1.4. Finalmente, a tendéncia para ver na Poética (e ne Retdrica) um preceitudrio de solugdes prdticas que deviam orieniar a criagao e a avaliagéo das obras concretas foi representada pelos manuais de Ret6rica e Poética publicados durante o século XIX. Tributaries ndo apenas de Aristdteles, mas também de ouiros teéricos antigos, Hordcio, Cicero, Longino, Quintiliano, esses manuais sintetizam um momento do longo e lento processo de enrijecimento das primitivas reflexdes sobre a literatura. A crenga na possibilidede de disciplinar a forca criativa interior, isto é, 0 talento ou o engenho, através da habilidade técnica fornecida pela arte (conceito latino que traduz a palavra grega techne) estava na origem dos manuais ¢ repre- sentava, em principio, um esforgo da razao por encontrar expiicagdes Para a natureza e o funcionamento da obra literdria. Do ato de refle- xdo, que cria um conhecimento, @ transmissao deste em forma de pre- ceito ou de regra foi um passo que a escola se encarregou de dar. In- tegrados no processo escolar, aqueles manuais passaram por um traba- lho de simplificagdo e de diluigao dos antigos conceitos, transforman- do-os em leis rigidas e permanentes. Paul Valéry descreve a passagem do ato de reflexdo inicial, cal- cado na observagao dos procedimentos artisticos, para o estabeleci- mento da lei e da regra que devem ser obedecidas cegamente: “Mas, pouco a pouco, e em nome da autoridade de grandes homens, a idéia de uma espécie de legalidade foi introduzida ¢ substituiu as recomendagGes iniciais de origem empirica. Racio- cinou-se e 0 ‘rigor da regra se fez. Ela exprimiu-se em férmulas precisas; a critica armou-se; e entdo seguiu-se esta conseqiiéncia paradoxal: uma disciplina das artes, que opunha aos impulsos do poeta dificuldades racionais, conheceu um grande e durdvel prestigio devido A extrema facilidade que ela dava para julgar e classificar as obras, a partir da simples referéncia a um cédigo ou a um canon bem definido.” Tal fendmeno pode ser constatado nos numerosos manuais utili- zados nas escolas brasileiras do século passado, onde a observacio {Si glommunication 11 Recherches Sémiologiques — Le Vraisembludle Paris, Seuil, 1968, 4. Valéry, Paul. “Premigre Legon du C ique”. In Oeuvres I, Pats, Gallcceed i Premitre, Legon, du Cours de Podtique”. 1a Oeuvres 4 criadora dos Antigos se encontra petrificada na ideotogia paralisante dos valores eternos, como se observa nestas palavras de um manual usado no Colégio Pedro II do Rio de Janeiro: “Qs antigos e primeiros ordenadores das regras e preceitos tiveram a intuigéo da verdade; estudaram muito acuradamente as leis eternas e imutdveis da inteligéncia humana e por isso ird sempre muito seguro aquele que lhes for ao encalgo.” § Mas é necessdrio lembrar, mais uma vez, que esse estdgio nao surgiu jé acabado. Nem sempre os nossos autores iam diretamente as fontes antigas. Entre estas e aqueles se interpuseram outros autores que, a seu modo, jé vinham realizando 0 mesmo processo de dilui- ¢do, principalmente durante o século XVIII, entre eles: Lamy,® Gi- bert,7 Blair® e, jd no século XIX, os portugueses Freire de Carva- Tho® e Borges de Figueiredo, *° para citar apenas dois. Para nés, hoje, essas diferentes tendéncias de leitura e interpre- tacao da Poética aristotélica, bem como de outras obras antigas, assu- mem um significado didftico muito importante, pois mostram que, se por um lado, aquele texto goza de um grande poder sugestivo, por outro, revela que cada época vé e compreende o passado de acordo com suas prdéprias maneiras de pensar, e o significado histérico do texto resulta, em ultima instancia, da interagdo das diversas formas de leitura ocorridas. E, pois, nesse quadro que se insere a necessidade, sempre renovada, de voitarmos, diretamente, ao texto da Poética para que a constelagao de solucdes ja cristalizadas nado impeca o exercicio 5. Silva, Dr. José Maria Velho da. Licdes de Retérica. Rio, Serafim José Alves, editor, s/d. (1882). 6. Lamy, Bernard. La Rhétorique ou Art de parler. 6. éd., La Haye, 1737 (12 ed. 1699). 7. Gibert, Pe. Balthasar. Retdrica ou Regras da elogiténcia, Traduzida do francés. Porto, na oficina de Anténio Alvarez Ribeiro, 1789. 2 v. 8. Blair, Hughes. Cours de Rhétorique et de Belles Lettres. Gentwe, 1808 (12 ed. inglesa em 1782). 9. Carvalho, Francisco Freire de. Ligdes elementares de Elogiiéncia Nacional, 6." ed., Lisboa, Tip. Rolandiana, 1861 (12 ed. 1854). —_—, Ligoes elementares de poética nacional. 32° ed. Lisboa, Tip. Rolan- diana, 1860 (12° ed. 1840). 10. Figueiredo, A. Cardoso Borges de. Instituigdes Elementares de Retérica. 122 ed. Coimbra, Livraria Central de J. Diogo Pires, 1883 (1° ed. 1851 em latim) w da reflexao pessoal, o que constitui, certamente, a maior li¢éo deixada pelo estagirita. 2. A ARTE POETICA DE HORACIO: O TRABALHO E A DISCIPLINA COMO FATORES CRIATIVOS 2.1. A Epistola ad Pisones, mais conhecida pela designacao de Ars Poetica como lhe chamou Quintiliano (Inst. Or., VIII, 3), expres- Sa 0 pensamento literdrio maduro de Hordcio e historicamente exerceu importante papel na constituigao daquilo que se costuma entender pela expresso “teoria cldssica da literatura”. Ela foi escrita nos tltimos anos da vida do poeta, provavelmente entre 14-13 a.C. Antes da Arte Poética, Hordcio havia composto seis poemas onde tratava de problemas literdrios, trés sdtiras (I, 4; I, 10; II, 1) e trés epistolas (I, 19; II, 1; I, 2). Algumas das posigées ai assumidas serao depois retomadas e aprofundadas na Arte Poética, mas é de se notar que revelam jd certas direcées bdsicas de seu pensamento: a procura de perfeigao, a busca do equilibrio expressivo, a valorizagéo da poe- sia contempordnea, a limitagto da audiéncia como critério do gosto, etc. De um modo geral tais aspectos inserem-se no sentido pragmatico que foi sendo forjado pelo pensamento romano e se cristalizardo nas frases e expressdes de certa maneira emblemdticas contidas na Arte Poética. Muito da rigidez que marcard os manuais de Poética de ex- tragao cldssica posteriores esté certamente prefigurada nas formas lapi- dares com que a Arte Poética coloca os problemas literdrios. Mas é necessdrio observar que naquelas obras néo atingira ainda Hordcio a precisao e a sintese que o caracterizariam na Arte Poética Pelo contrdrio, nota-se Ié uma procura permanente da expressdo exata, procura que se traduz na reiteracdo de certos temas e no tom polé- mico com que os aborda, como se o critico néo tivesse encontrado ainda sua formulagao ideal. Alias, essa atitude mostra um aspecto particular do pensamento horaciano: a busca de perfeigao pelo traba- tho constante combina-se com a recusa as formas jé cristalizadas. Nesse sentido seu classicismo, ao acentuar 0 fator trabalho, opde-se a certas tendéncias posteriores de ver no classicismo nado a busca de perfeicao, mas a reprodugao das formas de perfeicao jé atingidas, Observa-se, portanto, nessas primeiras obras, um Hordcio anti- dogmdtico, recusando os valores preestabelecidos '' e preocupado em 11. Epistolas 11, 79-85. eS ———— ee centrar o mérito da obra em qualidades que lhe parecem inerentes, a economia, que impde eliminar o supérfluo que cansa o ouvido, 2 0 equilibrio, que leva a condenar tudo aquilo que vai além da justa expressao do pensamento, '* e a harmonia, que n&o admite transigir com a unidade do poema. ‘4 2.2. Tais preocupagées antecipam um dos pontos centrais do classicismo horaciano desenvolvido na Arte Poética: a obra é regida por leis que podem ser apreendidas e formuladas. O que certamente ndo suspeitava Hordcio é que a racionalidade antevista na organizacao da obra como qualidade objetiva estava em verdade comprometida com o projeto da arte representativa e com os valores de sua época. E sintomdtica a rejeig@o com que o critico inicia a Arte Poética, rela- tivamente a um suposto quadro sem unidade, que ele julga absurdo: “Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabesa humana um pescogo de cavalo, ajuntar membros de toda proce- déncia e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrados para er o quadro, meus amigos, vocés conteriam o riso? Creiam-me, PisGes, bem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem consisténcia, quais sonhos de enfermo, de mancira que o pé e a cabeca nao se combinassem num ser uno.” (Arte Poética, 1-9) Embora recuse aceitar esse quadro “fantdstico”, Hordcio tem consciéncia de que hé sempre uma Iédgica interna que comanda a composicao da obra, e que a unidade nasce da ordem dos componen- tes, 0 que implica, em tiltima instdncia, na selegdo dos aspectos a serem reunidos em funcao do efeito totalizante final, como ele mostra em outro lugar: “A forca e a graca da otdenacio, se néo me engano, esté em dizer logo o autor do poema anunciado o que se deve dizer logo, diferir muita coisa, silenciada por ora, dar preferéncia a isto, menosprezo aquilo.” (Ibid. 42-45; ver também 151-152). Essa percepeao do cardter construtivo da obra de arte estava bem viva entre os artistas e os pensadores antigos e constitui um dos fato- res de sua permanente atualidade. Mas, se neles as estruturas assumi- 12. Sdtiras 1, 10, 9-10. 13. Ibid., 1, 10, 67-70. 14. Epistolas I. 1, 73-75. ram seu modo particular de ver e sentir 0 mundo, isso decorreu do compromisso histérico entre forma e contetido, jato que nao perce- beram os repetidores e diluidores da poética cldssica, que tomaram o acidental (as solugdes dadas) pelo essencial (a busca de solugdes ade- quadas a novas necessidades). 2.3. Se a ordem e a unidade constituem os fatores estruturan- tes relativos @ obra acabada, a raz&o, o trabalho e a disciplina sdo os meios com que o poeta realiza seu objetivo. Embora para Horacio o principio da mediania, a aurea mediocritas, *° seja 0 idea! como pro- jeto de vida e possa ser aceitdével como qualificagao profissional, ao poeta tal atributo é absolutamente inadmissivel, como ele declara: “Recolha na meméria isto que lhe digo: é de justiga, em deter- minadas matérias, consentir com o mediano ¢ o tolerdvel; o jurisconsulto e o causidico mediocres esto longe do talento do elogiiente Messala ¢ nao sabem tanto quanto Aulo Cassélio; tém, nao obstante, o seu valor. Aos poetas, nem os homens, nem os deuses, nem as colunas das livrarias perdoam a mediocridade.” (Arte Poética, 367-373) E o poeta s6 atingird a perfeigdo se tiver pleno dominio do ma- terial criativo, 0 que nao sera possivel sendo através da razao, do trabalho e da disciplina, instancias diferentes de uma mesma ativi- dade de busca de perfeigao artistica. Essas trés instancias esto impli- citas no conceito de arte. Nesse sentido, a razdo representa o circulo mais amplo enquanto consciéncia das necessidades face aos meios a disposigao do poeta ou a serem criados. E ela que o aconselha a medir as proprias forgas: “Vocés, que escrevem, tomem um tema adequado a suas forgas; ponderem longamente o que seus ombros se recusem a carregar, © que agiientem. A quem domina o assunto escolhido nao faltara elogiiéncia, nem lticida ordenagao.” (Ibid., 38-41} Na realidade, o artista cldssico é inimigo da improvisagdo. A obra obtida esté sempre condicionada ao trabalho posto em acao, desde o plano esbogado no pensamento até a execugao concreta final. Mas Ho- racio toma cuidado em mostrar que o papel da “arte” é insepardvel da “natureza”, como fonte auténoma da inspiragao, mas que, no seu estado bruto, é informe, cadtica. Arte e engenho se completam como instdncias especificas, mas mutuamente compromissadas: 15 Odes, Il, 10, 5-8. Ver também Epistolas, 1, 18, 9. “Ja se perguntou se o que faz digno de Iouvor um poema é a natureza ou a arte. Eu por mim nao vejo o que adianta, sem uma veia rica, 0 esforco, nem, sem cultivo, o génio; assim, um pede ajuda ao outro, numa conspiragao amistosa. Muito suporta e faz desde a infancia, suando, sofrendo o frio, abstendo-se do amor e do vinho, quem almeja alcancar na pista a desejada meta; © flautista que toca no concurso pitico estudou antes e temeu o mestre.” (Ibid., 408-415) Observa-se que para Horacio o trabalho do poeta nio se restrin- ge ao momento singular da criagéo, mas representa o actimulo da experiéncia criativa,. entendida esta como disciplina interior e como dominio dos atos criativos. E essa atividade vai além, nao termina com a obra acabada, pois compreende ainda a necessidade de refazer o que jd foi feito, toda vez que a consciéncia artistica julgar con- veniente: “se vocé compuser versos, nunca o enganario os sentimentos ocultos sob a pele da raposa. Quando se recitava alguma coisa a Quintilio, ele dizia: “Por favor, corrige isto e também isto”; quando yocé,@apés duas ou trés tentativas frustradas, se dizia incapaz de fazer melhor, ele mandava desfazer os yersos mal torneados e repé-los na bigorna. Se, a modificar a falha, vocé preferia defendéla, nao dizia mais uma tnica palavra, nem se daya ao trabalho inttil de evitar que vocé amasse, sem rivais, a si mesmo e A sua obra.” (Ibid., 436-444). Esta ultima objegao — o fato de o poeta ficar restrito @ sua pré- pria subjetividade por nao aceitar criticas — mostra um dos aspectos mais importantes da concepgdo horaciana sobre a poesia: a atitude critica estd implicita no ato criativo. Por outro lado, esta autocons- ciéncia da poesia como capacidade de refletir sobre si mesma repre- senta uma resposta dada pelo Classicismo diante da triplice condena- ¢ao platénica: a inconsciéncia do poeta, ao ilusionismo da poesia e ao poder encantatério da medida, do ritmo e da harmonia enquanto componentes do poema. 2.4. Vé-se, pois, que a atitude do poeta prefigura o papel da audiéncia como fator implicito no poema. O destinatério de certa maneira passa a funcionar como co-produtor da obra no sentido em que sua expectativa determina as exigéncias estruturais que o poeta deve atender se quiser obter a aprovagao do publico: “Ouga voc8 o que desejo eu e comigo o povo, se quer que a platéia aplauda e cspere, sentada, a descida do pano, até o ator pedir “‘aplaudi”.” (Ibid., 153-155).

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