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tamis PARRON

O Altar & o Trono:


Dinâmica do Poder
em O Alienista,
de Ivan Teixeira,
São Paulo, Ateliê
Editorial, 2010, 432 p.

TAMIS PARRON
é mestre em História
Social pela FFLCH-
USP e organizador
de Cartas a Favor da
Escravidão (Hedra).
rário específico – O Uraguai, de Basílio
da Gama – com as práticas e os discursos
culturais do reinado de D. José I (1750-77).
uma crônica de 10 de Por trás da coerência metodológica, um fio
janeiro de 1884, Ma- temático ainda une Mecenato Pombalino e
chado de Assis contou a O Altar & o Trono, e eis que é o conflito
história de um camarista entre o Estado e a Igreja na longa duração
de D. João VI, o conde que marcou a passagem do Antigo Regime
de Parati, punido com para o mundo contemporâneo. Quem já
o uso de um hábito da conhece o primeiro estudo de Teixeira não
igreja católica por ser deixará de notar sua escolha por textos que
maçônico, e comentou: “De certo modo, preconizam a autonomia do Estado em face
foi uma antecipação do conflito que mais da igreja romana ou de suas instituições,
tarde levou dois bispos aos tribunais, com a como o fariam o poema épico de Gama e
diferença que aquilo que o Conde de Parati a novela de Machado. Mas não se trata de
só pôde fazer obrigado foi justamente o preferências. O Altar & o Trono parece,
que a maçonaria queria fazer por vontade antes, o ponto de chegada de uma trajetória
própria: – andar de hábito. Não penso nisto intelectual coerente, fundada em métodos
que me não lembre do nome que em geral e temas bem delimitados.
teve esse famoso conflito […]. Lembra-se
o leitor? Questão epíscopo-maçônica”1.
O trecho, que indicia a presença viva da
Questão Religiosa, ocorrida dez anos antes, POÉTICA CULTURAL E OS EIXOS
no espaço público do Segundo Reinado
nos anos 1880, reforça o argumento geral NARRATIVOS DE O ALIENISTA
de O Altar & o Trono, de Ivan Teixeira,
o mais recente estudo sobre O Alienista Segundo Ivan Teixeira, a narrativa sobre
(1881-82). Até agora, a narrativa vinha as experiências de Simão Bacamarte na
sendo entendida como encenação de uma pequena Itaguaí seria a encenação alegórica
crítica impiedosa à ciência quando dotada de uma disputa pelo poder, na qual estariam
do poder absoluto de conceituar as patolo- envolvidos o Estado e a Igreja, como dito
gias e realizar sua terapêutica. De hoje em acima, mas também a ciência e o binômio
diante, é provável que não seja lida senão política-povo. Em sua perspectiva teórica,
como alegoria da disputa mais ampla pelo sintetizada no primeiro capítulo do livro
poder, sobretudo entre o Estado e a Igreja, (“Teatro do Mundo & Pressupostos da
durante o processo de formação de uma Encenação”), tais categorias não devem
cidade. Uma alegoria motivada justamente ser apreendidas como absolutas nem trans-
pela Questão Religiosa. -históricas, pois adquirem sentido apenas
Apenas comprovada, a hipótese já daria em um quadro de referências culturalmente
ao livro merecidos títulos. Mas o autor ainda definido. Por “Povo” e seu correlato “rebe-
acresceu estudos que vão muito além da lei- lião popular”, por exemplo, não se imagina
tura intrínseca de O Alienista, relacionando o estouro libertário dos oprimidos contra a
a obra com diversas questões pungentes do estrutura social que os explora – primeiro
tempo e com a revista A Estação, na qual sentido que ocorre à mente do pesquisador
a novela foi publicada pela primeira vez e atual –, mas sim o significado de “rebelião
em que Machado de Assis atuou por quase popular” no horizonte de expectativas dos
duas décadas (1879-98). Procedeu, assim, agentes discursivos da época. Dir-se-ia
a uma análise cultural que dá continuidade o mesmo para Estado, Igreja e Ciência,
1 Machado de Assis, Obra à sua outra pesquisa de fôlego, Mecenato conceitos cujo conteúdo só um esforço
Completa, Rio de Janeiro,
José Aguilar, 1962, vol. III, p.
Pombalino e Poesia Neoclássica (Edusp, de arqueologia de textos a eles correlatos
427. 1999), em que relacionara um texto lite- poderia fixar. Nesse tipo de análise, a que

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o autor vem chamando de “poética cultu- convencendo-o, habilmente, de que o ob-
ral” em ensaios publicados desde 2003, as jeto da ciência devia recair sobre o próprio
obras literárias são componentes de uma sujeito do conhecimento. Colocado nesse
estrutura discursiva mais vasta e geradora círculo de giz, Bacamarte se interna na
de sentido, que o tempo rói à medida mesma Casa Verde para um cerrado exame de si
que o cânone, para preservá-las, vincula-as mesmo, mirrando, em estudos infindáveis,
a um télos ora nacional, ora modernista, ora até a morte. Ao final, o narrador anuncia
revolucionário, quando não tudo isso ao que, possivelmente ventilado pelo padre
mesmo tempo. Daí resulta que o cânone, Lopes, correu o boato entre os moradores
por respeitável que seja, não figura senão de que nunca houvera outro louco por ali
uma galeria fantasmagórica de ruínas dis- além do próprio médico. Conquanto apareça
cursivas, cuja compreensão adequada exige pouco na novela, o prelado seria, assim,
a restauração dos monumentos de que, em crucial na construção do desenlace e na
algum ponto do passado, fizeram parte. fixação de um conceito de loucura contra
Assim, nos capítulos VI (“O Altar & o o próprio Bacamarte.
Trono”), VII (“Racionalidade & Poder”) e Sem prestar a devida atenção no papel
VIII (“Desrazão & Poder”), que compõem do religioso, a fortuna crítica de O Alienista
o núcleo do livro, Ivan Teixeira relaciona o tem incorporado essa visão condenatória do
entrecho de O Alienista com três fenôme- cientista, ignorando que é um parti pris de
nos discursivos do repertório cultural do Lopes, também enredado nas disputas pelo
Segundo Reinado que o teriam motivado: a poder na cidade. Para o autor de O Altar &
dissidência em torno da soberania entre um o Trono, a voz narrativa não apenas repele
Estado constitucional e uma Igreja romana a ação do clérigo, mas simpatiza com a
internacionalista, nos termos da Questão posição de Bacamarte, que protagoniza a
Religiosa (1872-75); a consolidação da experiência radical de conferir teor ético
medicina psiquiátrica no Brasil a partir da aos critérios de loucura originalmente psí-
criação do Hospício de Pedro Segundo; e quicos. Essa experiência, feita em nome da
a ameaça à unidade territorial do país, tal razão moral, alçaria as reclusões do cientista
como fora experimentada durante a Regên- à condição de “atitudes regeneradoras em
cia (1831-40). A fim de aquilatar o peso tempos de domínio da desrazão generaliza-
desses fenômenos no processo de criação e da” (p. 238). Coerente com suas premissas
significação do texto literário, o autor perfez teóricas, Teixeira ligou tal organização do
uma análise de poética cultural do período, enredo – em que o polo negativo passa à
recobrando a rede de textos que delineou Igreja e o positivo, à racionalidade ética – à
os sentidos das referidas questões para os Questão Religiosa, assunto que inundou a
atores históricos do Segundo Reinado. consciência dos contemporâneos e chegou a
Conforme Teixeira, o núcleo narrativo ser qualificado como um dos vetores da que-
de O Alienista, aquele que conduz as ações da do Império na historiografia factualista da
até determinar seu desfecho, seria a relação primeira metade do século XX. Nas últimas
entre Simão Bacamarte e o padre Lopes. décadas, o problema andava esquecido dos
Como se sabe, o incansável médico superou modelos explicativos dos historiadores, que
a tudo e a todos para fundar o Hospício da refinaram seus instrumentos de análise de
Casa Verde, internar os monômanos da vila processos sociais. Mas nada impedia que
de Itaguaí e alhures, ampliar os critérios outra mirada teórica – como a da poética
de loucura até confinar quatro quintos da cultural – voltasse a dar-lhe importância,
população local, enfrentar a fúria do povo no campo dos estudos literários.
e dos vereadores, inverter os critérios A Questão Religiosa derivara da bula
iniciais de insânia e, finalmente, substituir Quanta Cura e de seu anexo Syllabus de
os alienados pelos que, até então, tinham Erros (1864), que o Papa Pio IX, engolfado
gozado a liberdade. Dos opositores, apenas nos conflitos da unificação italiana, editou
o padre Lopes lograria domar o cientista, para combater o processo de secularização

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progressiva a que o liberalismo vinha sub- de levantamento e análise documental, tais
metendo a economia, a política e a vida civil. discursos – visuais e verbais – pintam o
No limite, pregou a retomada do controle Estado como o polo da razão e das Luzes,
eclesiástico sobre esferas cada vez mais re- enquanto a intervenção eclesiástica como
guladas pelo Estado. Como, na Constituição o do obscurantismo e das trevas. Em 1875,
brasileira, a validade de tais textos pendia o governo concederia anistia aos bispos,
da aprovação do Executivo, a Quanta Cura motivando novo ciclo de charges alegóricas,
e o Syllabus, por motivos óbvios, foram nas quais a Igreja ressurgia como o domínio
recusados. Sem embargo, alguns bispos os irracional do poder sobre a racionalidade do
acataram, excomungando dos quadros da mundo contemporâneo. Para Ivan Teixeira, O
Igreja membros da maçonaria, o que levou Alienista, publicado em 1881-82, seria uma
o governo a prendê-los por desobediência variante literária do discurso das caricaturas
legal. O imbróglio suscitou uma série de antirromanas publicadas na imprensa brasi-
caricaturas na imprensa da Corte, como leira. Até mesmo a reviravolta dos episódios
a Revista Ilustrada e O Mosquito, e de – a prisão dos bispos (triunfo do Estado) e
artigos de Joaquim Saldanha Marinho no sua soltura (vitória da Igreja) – teria sido
Jornal do Commercio, depois recolhidos mimetizada na reclusão de Lopes (vitória
no livro A Egreja e o Estado (1874). Como do Estado, das Luzes) e na internação de
mostrou Teixeira num formidável esforço Bacamarte (triunfo da Igreja, da ignorância).
Reprodução

Desenho de
Ângelo Agostini
publicado
na Revista
Ilustrada, 1876

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Proposta assim, essa leitura teria seus de Janeiro, sua Historia, Monumentos,
limites. Afinal, as caricaturas plasmam a Homens Notaveis, Usos e Curiosidades
Igreja nas trevas, mas o padre Lopes é en- (Moreira de Azevedo, 1878) –, o autor traça
carcerado só quando Bacamarte – crente no uma série de paralelos entre os lugares-
princípio de que a doença é a exceção e a -comuns científicos ou históricos e o enredo
sanidade, a regra – define como alienáveis ficcional, como a descrição pormenorizada
os homens de boa conduta ética, casos ra- dos loucos, a lotação do hospício logo após
ríssimos e, portanto, desviantes da norma. sua abertura, a oposição obscurantista dos
Por outro lado, Bacamarte não partilha a habitantes, a proveniência local e nacional
pureza conceitual que as caricaturas dão dos alienados, o consórcio entre ciência e
à noção de Estado, pois, suposto atinja política na direção da cidade e assim por
a glória moral na prisão dos aéticos, seu diante. Mais uma vez, o fim não é “colar”
apego desinteressado à ciência também o o texto machadiano em tais discursos, mas
leva à inconstância, ao paradoxo, à frieza ver como o primeiro reorganiza os dados
desumanizadora e ao ridículo. Acerca da do segundo. Como diz o autor, a “ironia
primeira objeção, seria sempre possível cética da razão ficcional” faz a autoridade
notar que a presumida correção moral do científica, vetor da ordem, mudar-se em
prelado comprova apenas a sutileza de sua “origem da desordem”, mostrando como
dissimulação, que embrulha o mais atilado é convencional a loucura que a ciência
observador da cidade, como o é Bacamarte. pretendia naturalizar. Afinal, à medida que
Há uma resposta, contudo, de corte mais Bacamarte altera os princípios da insanidade
teórico para desfazer em conjunto as duas e ordena a reclusão involuntária dos alie-
ressalvas. Graças à mistura dos polos con- náveis, a fonte das atitudes regeneradoras
ceituais que a imprensa da Corte apartava torna-se, ela mesma, degenerada.
de modo maniqueísta (noção de Estado Na disputa pela direção da cidade, o
perfeito vs. noção de Igreja degenerada), último elemento de O Alienista seria o
O Alienista não se permite enquadrar como conceito de levante popular, protagonizado
alegoria integral de outros discursos sociais. pela rebelião dos canjicas. Para restaurar o
Segundo a análise de Ivan Teixeira, sua seu significado cultural, Teixeira analisou a
dimensão alegórica resulta parcial porque, Memória Histórica da Revolução da Pro-
na ficção, operam as lentes deformadoras víncia do Maranhão desde 1838 até 1840
da sátira menipeia – lentes que distorcem, (Gonçalves de Magalhães, 1848), donde
mas não cegam as proposições morais da extraiu a noção de inconsistência moral
novela. É uma colocação oposta à tradição e doutrinária das rebeliões, em oposição
crítica segundo a qual a sátira machadiana a um centro puro do poder, o imperador.
faz terra devastada das distinções morais. Em abono de sua própria hipótese, o autor
O segundo móvel da dinâmica de O poderia ter analisado o panfleto Ação,
Alienista seria o conceito de loucura, ponto Reação e Transação (1855), do jornalista,
bem frequentado pelos comentadores. A professor do Colégio Pedro II e deputado
novidade que Teixeira traz ao leitor está conservador Justiniano José da Rocha, dada
na reconstituição de um discurso histórico a sua importância para as narrativas pro-
sobre o Hospício de Pedro Segundo, que duzidas entre 1870 e 1900 no Brasil, entre
teria fornecido referências culturais para elas Um Estadista do Império (Joaquim
a composição da novela. Com base nos Nabuco, 1897-99). Nesse opúsculo, Rocha
textos analisados – “Reflexões Acerca do conceitua, com ares de teoria, as revoltas
Trânsito Livre dos Doidos pelas Ruas da eclodidas no Brasil, principalmente as do
Cidade do Rio de Janeiro” (José Francisco período regencial, tachando-as de “anár-
Sigaud, 1835), “Importância e Necessidade quicas” e centrífugas, isto é, ameaçadoras
da Criação de hum Manicômio ou Estabe- da unidade nacional, salva a tempo pelo
lecimento Especial para o Tratamento dos Segundo Reinado. Tal abordagem apenas
Alienados” (De-Simoni, 1839) e O Rio reforçaria a leitura de Teixeira, segundo a

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qual a ação dos canjicas, em O Alienista, da última abordagem – constituída por
reitera o ridículo e o infame da ação dos textos de críticos como Afonso Romano
populares na historiografia. Ao contrário de Sant’Anna, Abel Barros Baptista e João
dos casos anteriores, a sátira de Machado Adolfo Hansen –, O Altar & o Trono não
e os discursos extraliterários coincidem se reduz a ela, pois sugere que o repertório
mais nesse ponto, pois, no lugar da inversão cultural do tempo contribuía para a determi-
semântica, haveria só acréscimo de humor. nação do conteúdo da ficção de Machado.
Em suma, essas três linhas narrativas Em contrapartida, o diálogo com a
– sobre a Igreja, a ciência e a política – primeira abordagem parece mais direto
parecem figurar um exercício alternado de e, por isso, pode ser mais bem desenvol-
poder sobre o destino da cidade, em que vido. Visando as práticas discursivas que
não se elege nenhuma como desejável. Pelo encerram o texto de Machado, Teixeira
contrário, O Alienista seria um discurso procedeu a um estudo amplo das páginas
satírico sobre a falência da ética – ou sobre de A Estação – Jornal Ilustrado para a
a forma como os princípios morais são Família, em que foi publicado pela primeira
reduzidos ao valor de troca na economia vez O Alienista. Nesse veículo, dedicado
do poder. Enquanto os lugares-comuns à moda parisiense, aos faits divers e ao
institucionais unem Igreja e sinceridade, entretenimento literário, o mais radical e
ciência e verdade, política e honestidade, aparentemente menos ideológico escritor
a narrativa troca os últimos termos por brasileiro do século XIX trabalhou por
hipocrisia, convencionalismo e interesse dezenove anos consecutivos – fidelidade
particular. Nas palavras de Teixeira, pare- empresarial sem correspondência em seu
ce insinuar “que coerência e poder sejam currículo. Acontece que esse ofício vinha
categorias excludentes” (p. 317). sendo entendido, desde a leitura de Lúcia
Miguel Pereira na década de 1940, como
um expediente pragmático de necessidade
financeira. Forçado a publicar ali seus
UMA TERCEIRA VIA PARA OS textos, o autor compensaria esse motivo
rasteiro com uma estética sobranceira, que
ESTUDOS MACHADIANOS desprezava seus leitores imediatos. Segundo
Ivan Teixeira, porém, sua relação com o
Como se vê, O Altar & o Trono não periódico não seria pragmática, mas sim
se entronca em nenhuma das duas linhas programática.
teórico-metodológicas que têm ditado a Lendo os números da revista na Biblio-
agenda de pesquisa da ficção machadiana – e teca Guita e José Mindlin (São Paulo), no
que podem ser chamadas de “alegórica” e Arquivo Edgar Leuenroth (Campinas) e
“estruturalista”, embora esses termos não na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro),
as traduzam com perfeição. Essas linhas se Teixeira encontrou um perfil editorial
distinguem uma da outra na medida em que avançado para os padrões da época em
dão à ficção de Machado estatutos mutu- questões como papel social da mulher,
amente excludentes, definindo-a ou como escravidão negra, consumo, linguagem,
“caixa de ressonância” ou como “máquina práticas de higiene conforme a ciência,
retórica”. No primeiro caso, a força da prosa etc. Daí o autor identificou dois tipos de
machadiana derivaria de sua capacidade de relação de O Alienista com o periódico,
reapresentar, na organização do entrecho e um temático e direto, outro funcional e
no estilo da frase, a dinâmica de um quadro indireto. Por um lado, alguns daqueles
social superior; no segundo, de sua habilida- valores ocorreriam em tom normativo no
de para esvaziar discursos extraliterários e corpo da novela, como a prevenção contra
criar indeterminações corrosivas de sentido, o luxo excessivo ou contra a linguagem
cuja fixação dependeria do ato autônomo e hiperbólica, identificáveis no consumis-
extrínseco da leitura. Embora não discorde mo vaidoso de D. Evarista, esposa de

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Bacamarte, e na retórica seiscentista de Também é possível notar um diálogo
Martim Brito, orador de ocasião. Por ou- de Teixeira com Roberto Schwarz, ainda
tro, o estudioso teve o cuidado de pontuar que não esteja explicitado em O Altar &
que, se A Estação pode ser “interpretada o Trono. Como é sabido, Schwarz vem
como vitória de um conjunto conhecido propondo, há décadas, uma leitura de
de valores, O Alienista propõe uma alter- Machado que desenvolve o método da
nativa sarcástica contra a rigidez dessas “redução estrutural”, formalizado por An-
mesmas certezas” (p. 65), tal como se tonio Candido num conhecido estudo das
nota na exploração da incompatibilidade Memórias de um Sargento de Milícias. Esse
entre coerência e poder. Por radical que método, que supõe uma relação dialética
fosse, uma advertência moral dessa natu- entre expressão artística e processo social,
reza também cumpria a função editorial consiste em decifrar como princípios orde-
e social, partilhada por outros textos do nadores do mundo social são transpostos
periódico, de ilustrar e instruir o público, para o plano formal da obra literária. Em-
que a aceitava sem julgá-la hostil. Poder- bora unisse história e literatura, Candido
-se-ia dizer que, se para alguns críticos, jamais formulara um modelo explicativo
as leitoras de A Estação não entenderam daquela dinâmica histórica que sofreria a
Machado de Assis, O Altar & o Trono “transposição estética” – no limite, o autor
mostra que os mesmos críticos não en- identificava as linhas do enredo ficcional
tenderam as leitoras de A Estação. e as projetava para uma suposta dinâmica
Teixeira formulou ainda a hipótese, ali- social. Diante do desajuste, Schwarz tentou
ás bem fundamentada, de que o periódico calibrar os termos da equação adotando um
influiu na evolução da imagem artística de método sistemático de leitura da história do
Machado. Em textos anônimos, mas talvez Brasil – o proposto pelo Grupo do Capital,
do próprio punho do escritor, o veículo o núcleo original da informalmente chamada
ergueu aos poucos à condição de maior “Escola Sociológica de São Paulo”. Assim,
prosador brasileiro da época. No início da afiançava com segurança o intercurso entre
parceria, em 1880, um artigo lhe deu “um o social e o ficcional. Enquanto esse modelo
lugar bem alto, o imediato a Alencar” (p. de história vigorou (c. 1970 a c. 2000), a lei-
118); em 1884, outro já o colocava em pé de tura de Schwarz se impôs como verossímil.
igualdade com o criador de Iracema (p. 128). Basicamente, as premissas desse modelo
Dois anos depois, seu amigo Arthur Azevedo, de leitura da história diziam que havia uma
também colaborador do órgão, o içou ao divisão internacional do trabalho; que essa
posto de “figura mais saliente da literatura divisão separava o centro do capitalismo con-
brasileira contemporânea” (p. 130). Quando, temporâneo e as periferias, entre elas o Brasil;
em 1888, Machado recebeu a comenda da que o centro era o mundo do liberalismo, en-
“Ordem da Rosa”, o editor de A Estação, quanto a periferia brasileira, o da escravidão
Henrique Lombaerts, coroou a jornada negra; e que, por fim, tais mundos, embora
rumo à glória invertendo a hierarquia entre se influenciassem reciprocamente, eram
patrono e protegido, sem deixar de lado a incompatíveis do ponto de vista material,
autopropaganda, é claro: “Congratulamo-nos simbólico e ideológico. Por causa da incom-
com o Governo Imperial por esse ato, que o patibilidade entre liberalismo e escravidão,
honra ainda mais do que ao fino inexcedível as instituições e as ideias desenvolvidas na
prosador e poeta, cujo nome há tanto tempo Europa, quando adotadas no meio brasileiro,
enobrece o suplemento literário da Estação” resultavam postiças, mal-ajustadas ou, para
(p. 131). Nessa escalada, o brilhante destino usar a expressão célebre, “fora do lugar”.
histórico do nome Machado de Assis não A ficção de Machado seria eficaz porque,
pode ser apartado de seu ponto de partida, incorporando essa tensão estrutural no plano
por mais terra a terra que, à primeira vista, do enredo (Capitu encarnaria o Iluminismo,
sejam uma revista de moda e um punhado por exemplo) e do estilo (a “volubilidade”
de leitoras da Corte. dos narradores), acabava por torná-la visível

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e ridícula ao juízo imperdoável da sátira. A de um novo tipo de modernidade no Brasil
leitura de Schwarz abalou-se, porém, quan- (essa, sim, entendida como um liberalismo
do ruiu o modelo interpretativo da história antiescravista), dividindo-se em dualidades
que lhe dava suporte, e a incompatibilidade facilmente baralháveis – monarquismo
entre liberalismo e escravidão passou a ser vs. republicanismo, cativeiro vs. abolição,
entendida não como intrínseca à história, latifúndio vs. democracia rural, voto cen-
mas como resultado de uma reformulação sitário vs. voto universal, catolicismo vs.
do conceito de liberalismo no final do século positivismo, centralização vs. federação,
XIX. Tornou-se, então, evidente a todos que Estado laico vs. Estado religioso, etc. Todos
o estudioso inserira no processo histórico eles – dos monarquistas aos republicanos –
brasileiro e no texto machadiano ideias contribuíram de certo modo para a derrocada
anacrônicas, formuladas por pesquisadores do Segundo Reinado, pois suas propostas
do século XX. A questão não seria se o minaram os compromissos históricos trava-
liberalismo estava “fora do lugar”, mas se dos entre o Estado e a sociedade brasileira na
sua noção de liberalismo não estava “fora primeira metade do século XIX. Como disse
do tempo”. um desolado Nabuco em Minha Formação
Como alternativa a essa agenda de pes- (1900), as “antigas gerações […] criaram
quisa, um estudo como O Altar & o Trono e fundaram o regime liberal que a nossa
recoloca o texto de Machado de Assis em deixou destruir…”2.
contato direto com outros discursos con- Visto em perspectiva ampla, O Alie-
temporâneos, afastando-o das correntes nista seria, portanto, apenas um entre os
intelectuais do século XX que tornaram vários textos compostos naquela quadra
incaracterístico seu conteúdo próprio. Mais que tornou a transformação do presente
do que isso, contribui também para loca- incontornável justamente porque era fac-
lizar Machado em um determinado lugar tível. Poucas vezes na história brasileira as
social do discurso que, longe de torná-lo à bandeiras políticas sacudiram tão próximas
frente de seu tempo, o integra num grupo do horizonte da utopia. Imantado pela
de letrados e políticos atuantes desde 1860 Questão Religiosa, O Alienista não era só
até o início da Primeira República. Nas uma advertência contra o ultramontanismo;
palavras de Teixeira, “O Alienista poderá alertava contra os abusos intrínsecos à
também ser entendido como intervenção de prática do poder, independentemente da
apoio à renovação institucional do país” em verdade que entusiasmava os agentes his-
favor “de princípios que facultariam ao país tóricos envolvidos na construção do porvir.
uma ordenação jurídica, social e econômica Longe de ser relativista ou indiferente, o
identificada com o que então se entendia por texto, portador de uma energia política
moderno e renovador” (pp. 226 e 235). De ainda desconhecida dos estudiosos, parece
fato, a Questão Religiosa, por exemplo, seria antes um corretivo ao entusiasmo. Nesse
fenômeno de uma grande crise que abalou o sentido, a expressão “dinâmica do poder”,
Império do Brasil desde os anos 1860. Por presente no subtítulo de O Altar & o Tro-
causa de uma série complexa de eventos, no em referência a O Alienista, pode ser
cujos efeitos no Brasil ainda precisam ser coextensiva às disputas mais amplas que
mais bem entendidos, como a Primavera marcaram o ocaso do Segundo Reinado e
dos Povos (1848), a subsequente reforma que devem ter motivado outras importantes
dos regimes representativos (de 1850 em obras de Machado. O que Ivan Teixeira
diante), a Guerra de Secessão nos EUA afirmou sobre a narrativa – “[…] é possível
(1861-65) e a Guerra do Paraguai (1864- imaginar que O Alienista talvez seja o texto
71), o governo imperial iniciou reformas mais densamente político de Machado de
que iam desde a escravidão negra até as Assis” (p. 24) – está correto por ora. Mas
eleições e a natureza do Poder Executivo. é uma verdade que pesquisas futuras, se
2 Joaquim Nabuco, Minha
Formação, Rio de Janeiro, H.
Assim, os letrados da última geração investirem em métodos semelhantes ao
Garnier, 1900, p. 301. imperial discutiram a fundo a construção seu, podem tornar superada.

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