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xx
Eugénio de Andrade
António Gedeão
João de Melo
► Poesia cristalina, que valoriza a palavra, quer no seu valor imagético-simbólico, quer rítmico,
sendo a musicalidade um dos aspetos mais marcantes.
► Poesia que apela sempre para o alto e para a luz.
► Poesia com uma linguagem simples e concreta, franca, mas insinuante, revestida com imagens
e metáforas elementares.
► Poesia onde a simbologia dos quatro elementos primordiais - fogo, terra, água e ar - é uma
constante.
► Uma poesia cujo tema favorito é o amor, sobretudo nas suas vertentes de plenitude.
► Uma poesia que dá voz aos mais desfavorecidos e que implica a sociedade, sem deixar,
contudo, de ser alegre e positiva.
► Uma poesia onde, na relação Homem/Natureza, o poeta procura a unidade original, a pureza
essencial.
► Uma poesia onde a terra, o campo e a natureza surgem como lugares de harmonia, de
encontro, enquanto a cidade é apresentada como o lugar de opressão, de conflito, de morte,
contra os quais se levanta a escrita combativa do poeta.
Poema “A mãe”
“O Adeus”
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
António de Gedeão
Um ano depois de ter acabado o Liceu entrou na Universidade do Porto e apesar da literatura o
ter acompanhado durante toda a sua vida optou por se licenciar na área das Ciências Físico-
Químicas.
Nos anos seguintes dedicou-se por inteiro á investigação publicando imensos livros, tanto de
divulgação científica como da história da ciência. Também Gedeão continuou a escrever os seus
originalíssimos poemas, “Poemas Póstumos” em 1984.
Sete anos depois de se ter tornado sócio da Academia de Ciências, em 1990, Rómulo de
Carvalho assumiu a direção do Museu Maynense, desempenhando este cargo até ao fim da sua
vida.
A 19 de Fevereiro de 1997, Rómulo faleceu deixando uma enorme saudade a todos que
conheciam a ele e às suas obras.
Poema “Lágrima de preta”
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
João de Melo
Vida e obra
Madrid.
crónicas. Foi através do romance Gente feliz com lágrimas que mais
Namora, atribuído pela Antena 1). Recentemente foi editado pela Dom
» Crónicas
1994 - Dicionário de paixões
fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra
negra.
em botinas ou luvas
de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem. Como às vezes
Sabia da lama passa com os cães,
como de uma mucosa. parecia o rio estagnar-
Devia saber dos pol- se.
Suas águas fluíam
vos.
Sabia seguramente então
da mulher febril que mais densas e mor-
nas;
habita as ostras.
fluíam com as ondas
Aquele rio densas e mornas
jamais se abre aos de uma cobra.
peixes,
Ele tinha algo, então,
ao brilho,
O cão sem plumas à inquietação de faca da estagnação de um
(Paisagem do Capiba- que há nos peixes. louco.
ribe) Algo da estagnação
Jamais se abre em
A cidade é passada peixes. do hospital, da peni-
pelo rio tenciária, dos asilos,
como uma rua Abre-se em flores da vida suja e abafada
é passada por um pobres e negras (de roupa suja e aba-
cachorro; como negros. fada)
uma fruta Abre-se numa flora por onde se veio
por uma espada. suja e mais mendiga arrastando.
como são os mendi-
O Rio ora lembrava gos negros. Algo da estagnação
a língua mansa de um Abre-se em mangues dos palácios cariados,
cão, comidos
de folhas duras e
ora o ventre triste de de mofo e erva-de-
crespos
um cão, como um negro. passarinho.
ora o outro rio Algo da estagnação
de aquoso pano sujo Liso como o ventre das árvores obesas
dos olhos de um cão. de uma cadela fecun- pingando os mil açú-
da, cares
Aquele rio o rio cresce das salas de jantar
era como um cão sem sem nunca explodir. pernambucanas,
plumas. Tem, o rio, por onde se veio
Nada sabia da chuva um parto fluente e arrastando.
azul, invertebrado
da fonte cor-de-rosa, (É nelas,
como o de uma cade-
da água do copo de mas de costas para o
la.
água, rio,
da água de cântaro, E jamais o vi ferver que “as grandes famí-
dos peixes de água, (como ferve lias espirituais” da
da brisa na água. o pão que fermenta). cidade
Em silêncio, chocam os ovos gor-
o rio carrega sua dos
de sua prosa. é mais de sua caliça extrema;
Na paz redonda das que um cão saqueado; ainda mais além
cozinhas, é mais de sua palha;
ei-las a revolver vicio- que um cão assassi- mais além
samente nado. da palha de seu cha-
seus caldeirões péu;
de preguiça viscosa.) Um cão sem plumas mais além
é quando uma árvore até
Seria a água daquele sem voz. da camisa que não
rio É quando de um pás- têm;
fruta de alguma árvo- saro muito mais além do
re? suas raízes no ar. nome
Por que parecia aque- É quando a alguma mesmo escrito na
la coisa folha
uma água madura? roem tão fundo do papel mais seco.
Por que sobre ela, até o que não tem).
sempre, Porque é na água do
como que iam pousar O rio sabia rio
moscas? daqueles homens sem que eles se perdem
plumas. (lentamente
Aquele rio Sabia e sem dente).
saltou alegre em de suas barbas expos- Ali se perdem
alguma parte? tas, (como uma agulha não
Foi canção ou fonte de seu doloroso cabe- se perde).
em alguma parte? lo Ali se perdem
Por que então seus de camarão e estopa. (como um relógio não
olhos se quebra).
vinham pintados de Ele sabia também
azul dos grandes galpões Ali se perdem
nos mapas? da beira do cais como um espelho não
(onde tudo se quebra.
II é uma imensa porta Ali se perdem
sem portas) como se perde a água
(Paisagem do Capiba- escancarados derramada:
ribe) aos horizontes que sem o dente seco
Entre a paisagem cheiram a gasolina. com que de repente
o rio fluía num homem se rompe
como uma espada de E sabia o fio de homem.
líquido espesso. da magra cidade de
como um cão rolha, Na água do rio,
humilde e espesso. onde homens ossu- lentamente,
dos, se vão perdendo
Entre a paisagem onde pontes, sobrados em lama; numa lama
(fluía) ossudos que pouco a pouco
de homens plantados (vão todos também não pode
na lama; vestidos de brim) falar:
de casas de lama secam que pouco a pouco
plantadas em ilhas até sua mais funda ganha os gestos
coaguladas na lama; caliça. defuntos
paisagem de anfíbios da lama;
de lama e lama. Mas ele conhecia o sangue de goma,
melhor o olho paralítico
Como o rio os homens sem plu- da lama.
aqueles homens ma.
são como cães sem Estes Na paisagem do rio
plumas secam difícil é saber
(um cão sem plumas ainda mais além onde começa o rio;
onde a lama bandeira Fecha o mar ao rio
começa do rio; azul e branca seus brancos lençóis.
onde a terra desdobrada O mar se fecha
começa da lama; no extremo do curso a tudo o que no rio
onde o homem, – ou do mastro – do são flores de terra,
onde a pele rio. imagem de cão ou
começa da lama; mendigo.
onde começa o Uma bandeira
homem que tivesse dentes: Depois,
naquele homem. que o mar está sem- o mar invade o rio.
pre Quer
Difícil é saber com seus dentes e o mar
se aquele homem seu sabão destruir no rio
já não está roendo suas praias. suas flores de terra
mais aquém do inchada,
homem; Uma bandeira tudo o que nessa terra
mais aquém do que tivesse dentes: pode crescer e explo-
homem como um poeta puro dir,
ao menos capaz de polindo esqueletos, como uma ilha,
roer como um roedor puro, uma fruta.
os ossos do ofício; um polícia puro
capaz de sangrar elaborando esquele- Mas antes de ir ao mar
na praça; tos, o rio se detém
capaz de gritar o mar, em mangues de água
se a moenda lhe mas- com afã, parada.
tiga o braço; está sempre outra vez Junta-se o rio
capaz lavando a outros rios
de ter a vida mastiga- seu puro esqueleto de numa laguna, em pân-
da areia. tanos
e não apenas onde, fria, a vida ferve.
dissolvida O mar e seu incenso,
(naquela água macia o mar e seus ácidos, Junta-se o rio
que amolece seus o mar e a boca de a outros rios.
ossos seus ácidos, Juntos,
como amoleceu as o mar e seu estômago todos os rios
pedras). que come e se come, preparam sua luta
o mar e sua carne de água parada,
III vidrada, de estátua, sua luta
seu silêncio, alcança- de fruta parada.
(Fábula do Capibaribe) do
A cidade é fecundada à custa de sempre (Como o rio era um
por aquela espada dizer cachorro,
que se derrama, a mesma coisa, como o mar era uma
por aquela o mar e seu tão puro bandeira,
húmida gengiva de professor de geome- aqueles mangues
espada. tria.) são uma enorme fruta: