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Embora sejam inegáveis as conquistas Although the civilizing conquests of
civilizatórias dos direitos humanos, seu human rights are undeniable, their
reconhecimento e sua operacionalização recognition and enactment have required,
têm demandado, além de lutas históricas, in addition to increasingly intense historic
de modo cada vez mais intenso, a interpela- struggles, the involvement of the Judicial
ção do Poder Judiciário. O fenômeno da Branch. The judicial treatment of social
judicialização da questão social ocorre em issues overlaps the responsibilities of the
uma superposição de responsabilidades do Judiciary with other public institutions.
Judiciário às demais instâncias da esfera Access to justice takes place, as a rule,
pública. Esta forma de acesso à justiça se individually and by a select group of
dá, via de regra, de forma individual e por subjects – those who know how to   
um segmento seletivo de sujeitos – os que access this legal channel. But the effective
conhecem ou conseguem acessar este canal enactment of rights depends on other
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jurídico. Mas a efetivação dos direitos factors that include not only its
dependerá de outros fatores que não so- recognition, but the capacity to attend to Doutora em Serviço Social pela PUCRS.
mente o seu reconhecimento, como a capa- and finance the demand presented. Given Bacharel em Direito.
cidade de atendimento e de financiamento this situation, this paper discusses the
à demanda apresentada. Diante deste process of the effective enactment of Professora e Coordenadora do Núcleo de
quadro, discute-se este processo de rights, which by increasingly emphasi- Pesquisas e Estudos em Ética e Direitos
efetivação de direitos que, ao privilegiar cada zing judicial channels, leads to a reduced Humanos, Faculdade de Serviço Social
vez mais a via judicial, rebate no descom- commitment of the State as a whole, to da PUCRS.
prometimento do Estado com o enfrenta- face social issues and toward the depoli- Assistente Social do Poder Judiciário do
mento da questão social e na despolitização ticization of the public sphere. This Rio Grande do Sul.
da esfera pública. Esta conjuntura adversa adverse situation challenges social
desafia os assistentes sociais a fazerem assistants to take an ethical-political
sentido ético-político em suas respostas direction in their professional responses
profissionais às demandas de judicialização to the demands of judicialization of the
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da questão social que se apresentam social question that is presented daily to
cotidianamente ao Poder Judiciário. the Judicial Branch. Assistente Social.

Palavras-chave: questão social, direitos, Key words: social question, rights, public Doutoranda em Serviço Social na PUCRS.
políticas públicas, judicialização. policies, judicial involvement. Professora do Curso de Graduação em
Serviço Social da UNISINOS.


 

 




 



 
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que traduzem as diferentes gerações de direitos, desde os
direitos civis, reconhecidos no século XVIII, passando pelos

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direitos políticos, instituídos no século XIX, pelos direitos
ste artigo tem como objetivo discutir a judi- econômicos e sociais, datados do início do século XX e
cialização da questão social como uma ten- culminando com os direitos de solidariedade, que surgem
dência, hoje em tela, na construção social no final da primeira metade do século XX (RITT, 2002).
de respostas às desigualdades sociais e à efetivação de Cabe ressaltar que o ano de 1988 constitui um impor-
direitos humanos que reconhece, no Poder Judiciário, a tante marco na afirmação dos direitos humanos para a
institucionalidade privilegiada, não raro em detrimento de sociedade brasileira. Naquele ano ocorre a promulgação
um compromisso mais efetivo do Estado e da esfera públi- da atual Constituição Federal, considerada, pelo seu pro-
ca, em seu sentido mais amplo, para com as demandas de cesso de construção, assim como pelos seus avanços no
direitos da população. Para tanto, em um primeiro momen- campo dos direitos humanos, como Constituição Cidadã.
to contextualiza-se o processo contraditório de afirmação Entretanto, no ano seguinte à promulgação desta Cons-
dos direitos na sociedade brasileira e, no momento seguin- tituição, é eleito presidente do Brasil Fernando Collor de
te, discute-se as diferentes posições acerca da supervalo- Melo, candidatura esta forjada pelos interesses do grande
rização do Poder Judiciário no trato dos desdobramentos capital, tendo, a partir do Consenso de Washington, a in-
da questão social. Finalizando, são tematizadas as mudan- cumbência de introduzir no país o ideário neoliberal.
ças processadas, por conta da Constituição Federal de 1988, Assim fazendo, a partir de 1990, Collor coloca o Esta-
na esfera judiciária. São questionadas as repercussões da do a serviço das reformas ditadas pelo reordenamento do
centralidade desta instância estatal, carregada, muitas ve- capital internacional, subvertendo e negando a lógica cons-
zes, de autocracia e moralismo na gestão de conflitos e nas titucional de defesa de direitos, alterando, inclusive, o seu
mediações com a realidade concreta, analisando o quanto conteúdo, sob o argumento de inscrever o Brasil na moder-
suas respostas individuais e focalizadas, a demandas que nidade e no primeiro mundo, mesmo que sob o preço da
são coletivas e estruturais, reverberam em um imaginário fragilização e desproteção social de sua população, advin-
coletivo de concepção do Sistema de Justiça quanto à idéia das dos processos de desregulamentação, flexibilização e
de acesso à justiça em seu sentido mais amplo. Este quadro privatização (NETTO, 1999).
é analisado em suas repercussões enquanto desafios con- Neste sentido, as políticas sociais são operadas de for-
cretos à competência das respostas profissionais dos assis- ma fragmentada, focalizada e com níveis de financiamen-
tentes sociais que atuam junto ao Poder Judiciário. to que impedem a sua efetivação, tal como concebido no
processo constituinte e na própria Carta Magna.
Mesmo após o impeachement de Collor, a população
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     brasileira, sobretudo os segmentos mais vulnerabilizados
   do ponto de vista socioeconômico, não logrou ver suas
demandas enfrentadas pelo Estado. Ao contrário, o go-
A luta pela conquista de direitos no Brasil tem seu marco verno seguinte, de Fernando Henrique Cardoso, ao longo
no próprio movimento de ocupação deste solo por euro- de seus oito anos de mandato, procedeu à viabilização
peus e no processo de resistência dos índios que aqui vivi- operacional das recomendações do Consenso de Washing-
am e, mais tarde, dos negros trazidos como escravos do ton, alargando as bases do modelo neoliberal e globalizante.
continente africano. Conforme destaca NETTO (1999, p.79-80), “a invia-
Neste sentido, reflete Couto (2004, p.76): bilização da alternativa constitucional da construção de
um Estado com amplas responsabilidades sociais, garan-
Os 500 anos de Brasil foram marcados por inú- tidor de direitos sociais universalizados, foi conduzida por
meras transformações no que se refere tanto à FHC simultaneamente à implementação do projeto políti-
formação do Estado brasileiro como à constitui- co do grande capital” e acrescenta que
ção da sociedade civil. Com características pecu-
liares e permeadas de fatores que conformaram a [...] um projeto desta envergadura e significa-
sociedade brasileira, os direitos [...] foram se cons- ção, colidindo com a ordem constitucional e com
tituindo a partir de uma realidade histórica parti- as aspirações da massa trabalhadora [...] só se-
cular, na qual transcorreram os períodos coloni- ria viável se pensado num lapso temporal mais
al, imperial, chegando ao republicano. largo que o de um só mandato presidencial [...].
Por isto mesmo, a questão da reeleição foi, no
Com o advento das constituições brasileiras, a partir plano político, uma questão crucial: somente a
de 1824, o Estado de Direito vai sendo conformado, in- segurança de poder disputar um segundo man-
corporando, ainda, as grandes convenções internacionais dato poderia garantir a consecução do projeto.


 

 




 



 
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Findo o governo de Fernando Henrique Cardoso, tem- de que, muitas das vezes, é a própria atividade
se a eleição de um candidato que se apresentava como governamental realizada pelo executivo que
representante dos interesses da maioria da população bra- impede a consolidação dos direitos sociais, a
sileira, embora o conjunto de alianças forjadas, tendo em sociedade passa a incumbir o judiciário na ta-
vista a conquista do poder, denunciasse a ausência de uma refa de possibilitar a efetividade dos direitos
maior coerência com a base de onde partiu tal candidatura. sociais e realização da cidadania social.
Na atual conjuntura, no governo Lula, renovam-se os
desafios pela afirmação de direitos já que, sob a batuta do O autor antes citado defende ainda, utilizando Garapon
capital internacional, um sem fim de concessões são fei- (1999, p. 227-228), que “se no século XIX, da ordem liberal,
tas a favor da reprodução infinita dos interesses de acu- houvera uma preponderância do legislativo, e no século XX,
mulação, em detrimento da garantia de condições de vida sob a égide da providência, foi a vez do executivo, o século
digna à maioria da população brasileira. XXI caminha para ser o da supremacia do judiciário”.
A própria Declaração de Viena, datada de 1993, em
seu art. 27, determina que
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        Qualquer Estado deverá dispor de um quadro
  efetivo de soluções para reparar injustiças ou
violações dos direitos humanos. A administra-
Tendo por um lado a ampliação dos direitos positivados ção da justiça, incluindo departamentos polici-
na Constituição Federal de 1988, mas por outro, sua nega- ais e de promoção penal e, nomeadamente, a inde-
ção pelo Estado em dife- pendência do poder ju-
rentes instâncias adminis- dicial e estatuto das
trativas, um novo fenô- )))  
*   +  profissões forenses em
meno aparece na esfera total conformidade com
pública – aqui concebida , 
*        as normas aplicáveis
como campo de disputa contidas em instrumen-
de diferentes interesses  -     tos internacionais de di-
sociais, demandando no- reitos humanos, são es-
vos padrões de relação 
   . senciais para a concre-
entre o Estado e a socie- tização plena e não dis-
dade civil – denominado     . 
) criminatória dos direi-
por juristas como “judi- tos do homem [...].
cialização dos conflitos
sociais” ou, ainda, “judicialização da política” (VIANNA et Piovesan (2003, p. 149, 157), afirma que “é funda-
al., 1999; SORJ, 2000; ESTEVES, 2005; MELO, 2005). Este fenô- mental adotar medidas para assegurar maior
meno caracteriza-se pela transferência, para o Poder Judi- justiciabilidade e exigibilidade aos direitos econômicos,
ciário, da responsabilidade de promover o enfrentamento à sociais e culturais” e que a efetivação destes direitos
questão social, na perspectiva de efetivação dos direitos “não é apenas uma obrigação moral dos Estados, mas
humanos. uma obrigação jurídica, que tem por fundamento os tra-
Vianna et al. (1999, p. 42) refere que a sociedade ci- tados internacionais de proteção”, justificando sua de-
vil, especialmente os setores mais pobres e desprotegidos, fesa de que a pobreza constitui-se em uma violação
“depois da deslegitimação do Estado como instituição de dos direitos humanos.
proteção social, vêm procurando encontrar no judiciário Reforçando esta tese, Lima Júnior (2002, p. 658-659)
um lugar substitutivo, como nas ações públicas e nos afirma que:
Juizados Especiais, para as suas expectativas de direitos
e de aquisição de cidadania”. [...] a exigibilidade (inclusive enquanto
Nesta mesma direção, Esteves (2005, p.16), coloca justiciabilidade – a possibilidade de exigir di-
que: reitos face ao Poder Judiciário) é, hoje, um
imperativo na teoria e na prática dos direitos
Enfraquecidas as formas de reivindicação so- humanos. Afinal, as declarações de direitos,
cial através do diálogo parlamentar possibili- as Constituições e as leis de um modo geral
tado pela cidadania política, através do qual deixam de possuir qualquer significação prá-
se reconheceram direitos que foram positivados tica se não tiverem a possibilidade de efetiva
mas não adquiriram eficácia, e da constatação aplicação.


 

 




 



 
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Entretanto, este autor (p.663) defende que “o cami- A judicialização do país traz um enorme preju-
nho legal não esgota as possibilidades de realização de ízo à sociedade e enriquecimento da classe ju-
direitos” e que há outra forma que se impõe à efetivação rídica em face de conflitos infindáveis que po-
dos direitos humanos, que é dada pelas políticas públi- deriam ser resolvidos de outra forma. É óbvio
cas. E falar em políticas públicas é falar em um movi- que há o aspecto cultural, onde se confunde
mento maior àquele operado pelos três poderes que com- Judiciário com Justiça, mas esta não pode ser
põem o Estado. Pressupõe falar em sociedade civil or- monopólio de um grupo, todos podem fazer jus-
ganizada, em atores sociopolíticos, que, na condição de tiça, principalmente a conciliatória. O Executi-
sujeitos históricos, buscam, através de um processo de vo faz justiça quando emprega bem as verbas,
luta, a construção de uma nova história, de uma nova o Legislativo faz justiça quando faz boas leis, o
sociedade, com justiça. Ministério Público também faz justiça quando
Reconhecendo a importância do Poder Judiciário para fiscaliza e não é omisso, a igreja faz justiça, a
a garantia dos direitos individuais e coletivos, a discussão escola faz justiça. E o Judiciário faz injustiça
que ora é proposta refere-se à responsabilidade do Esta- também, quando realiza concursos sem critéri-
do em responder as demandas colocadas pela questão os de correção publicamente definidos, quan-
social, sem que haja um privilegiamento do Poder Judiciá- do promove os que agradam a cúpula, quando
rio, em detrimento da responsabilização inicial dos Pode- não participa da vida dos pobres, quando im-
res Legislativo e Executivo, instâncias fundamentais para pede a fiscalização da sociedade [...].
a normatização, definição e execução das políticas públi-
cas, que são os instrumentos de reconhecimento e O referido autor adverte que, para efetivar o mono-
viabilização dos direitos. Mais ainda, sem colisão ou pólio do judiciário, a sociedade é impelida a crer que “o
desconsideração com os mecanismos históricos de con- acesso à Justiça é apenas acesso ao Judiciário. Mas
trole social e de participação da sociedade organizada na acesso à justiça não é apenas ‘entrar’ é também ‘sair’
garantia de direitos. com a solução definitiva”. Assim, segundo ele, “o que se
Sempre que houver o desrespeito aos direitos veda ao cidadão é o exercício violento do seu direito”
positivados, o Poder Judiciário tem, não somente a atri- (MELO, 2005, p. 2).
buição legal, mas a obrigação ética de interpelar a institui- Outro aspecto desta judicialização, segundo este autor
ção que for, para que a lei seja cumprida. Entendemos, (p. 2-3), refere-se à administração do país por instituições
entretanto, que este ente estatal teria uma ação infinita- jurídicas autocráticas e sem respaldo popular e acrescen-
mente mais impactante e transformadora nas relações ta:
sociais se agisse na prevenção dos conflitos sociais, de-
tendo-se mais ao interesse coletivo do que ao despacho [...] em geral decidem individualmente de acor-
de ações ingressadas, via de regra de forma individual e do com interesses pessoais e dizem estar fazen-
por um reduzido segmento da população que conhece os do justiça social, a melhor justiça social é a
seus direitos e possui condições de acessar o Sistema de preventiva e feita com a participação do povo.
Justiça. Se, por um lado, comemora-se o ingresso de ações A maioria dos ‘juristas’ não sabe como obter
judiciais que exigem a garantia de direitos, por outro, tem- um auxílio reclusão, ou pensão por morte ou
se a realidade do esgotamento da capacidade de resposta uma assistência social junto ao INSS, pois so-
a estas ações que tendem a ser, em larga escala, coinci- mente conhecem o processo judicial (MELO, 2005,
dentes, pelo Sistema de Justiça. p. 2-3).
Esta, inclusive, é a preocupação de Esteves (2005, p.14)
quando considera que “ou os magistrados assumem o pa- Nesta linha de argumentação, de que justiça não se
pel de guardiões da Constituição e garantidores da cida- vincula diretamente ou necessariamente ao Poder Judici-
dania, ou no futuro, talvez próximo, o judiciário seja colo- ário, Melo (2005, p. 5) também afirma que
cado no rol das instituições desacreditadas pela socieda-
de e termine como peça de retórica e legitimadora da de- [...] justiça não pode ser monopólio dos juris-
sigualdade social”. Cabe questionar, todavia, se a forma tas, principalmente dos ‘práticos judicialistas’.
de assim fazê-lo não poderia ser outra, aproximando-se Justiça é democracia, e onde houver democra-
dos demais poderes, comprometendo-os em sua respon- cia haverá justiça, mas esta não é romântica,
sabilidade, participando de diferentes fóruns de constru- pois democracia é confronto [...]. Na verdade a
ção e deliberação de políticas públicas. reforma jurídica será feita por bem ou por mal,
Neste sentido e posicionando-se de forma contrária à é melhor que seja por bem e que a classe jurídi-
defesa da judicialização dos conflitos sociais, Melo (2005, ca participe deste momento, deixando o com-
p.1) coloca que portamento de apenas interpretar as leis e pas-


 

 




 



 
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sar a influenciar o legislativo para fazer boas vés de seu Código de Ética Profissional, tendo a edição de
leis, a função do jurista é muito mais nobre, não 1993 reafirmado, de forma veemente, esse compromisso.
é mero despachante judicial [...]. Conforme Paiva e Sales (1996, p.178),

E é exatamente esta a concepção de Justiça Social O Código de Ética de 1993, como o foi também o
que defendemos, apoiando-nos, ainda, em Aguiar (1995) de 1986, não se pretende somente corporativo, mas
que toma como pressuposto o fato de a regra fundamen- tenciona assegurar vínculos com as prioridades da
tal ser o conflito e a har- sociedade. Dessa manei-
monia, ou seja, a exceção. ra, o atual Código se pro-
Emergindo, assim, a ne- !       põe a estabelecer nexos
cessidade da justiça ser com essas prioridades,
concebida como um de-   1
     as quais vão estar bem
ver-ser respaldado no expressas por meio de
compromisso com a cons-    2  princípios e valores. A
trução de “uma ordem so- perspectiva é, então, bus-
cial que garanta a cada um 0.
0   - .3 car fortalecer uma clara
o direito que lhe é devido” identidade profissional
(AGUIAR, 1995, p. 44),   ,(  4   ))) articulada com um pro-
lastreado, segundo este jeto de sociedade mais
autor, na parcialidade. justa e democrática.
A construção da justiça, nesta perspectiva, e na de
qualquer segmento com ela comprometido, exige a Desta forma, o Código de Ética Profissional do Assis-
formatação de um processo qualificado, que passa, ne- tente Social, expressa em seu artigo segundo, a “defesa
cessariamente, pelo aprofundamento do conhecimento intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e
acerca da realidade, em uma perspectiva de totalidade. do autoritarismo”.
Tal desvelamento levará, possivelmente, à tomada de cons- Para tanto, torna-se fundamental o entendimento de di-
ciência do fenômeno ora, ou ainda, em curso, que se refe- reitos humanos como universais, indivisíveis, interdepen-
re ao agravamento da questão social entendida por dentes e inter-relacionados (consoante art. 5º da Declara-
Iamamoto (1999, p. 27), como ção de Viena1 , 1993). Implica reconhecê-los como um con-
junto de direitos – civis, políticos, econômicos, sociais, cul-
[...] o conjunto das expressões das desigualda- turais, incluindo também os direitos à solidariedade, à paz,
des da sociedade capitalista madura, que tem ao desenvolvimento e a um ambiente sadio.
uma raiz comum: a produção social é cada vez Convém ressaltar que a busca pela efetivação destes
mais coletiva, o trabalho torna-se mais ampla- direitos implica em um processo de enfrentamento de in-
mente social, enquanto a apropriação dos seus teresses divergentes, fundamentalmente econômicos, que
frutos mantém-se privada, monopolizada por se processam nos âmbitos nacional e internacional.
uma parte da sociedade. Já o quinto princípio do Código de Ética Profissional
do Assistente Social expressa o “posicionamento em fa-
Nesta perspectiva, conforme, com propriedade, coloca Melo vor da eqüidade e justiça social, que assegure universali-
(2005, p. 5-6), “precisamos encontrar soluções e não apenas dade de acesso aos bens e serviços relativos aos progra-
identificar problemas, sendo que a questão não é apenas ju- mas e políticas, bem como sua gestão democrática”.
rídica, mas também política e social”, e transferir para o Po- Paiva e Sales (1996, p.190), ao comentarem este prin-
der Judiciário a atribuição de responder aos desdobramen- cípio, mais especificamente a questão da justiça social,
tos da questão social pode ser positivo na medida em que a expressam que esta
força da lei será aplicada, entretanto, se esta prática for ma-
ciça será, possivelmente, ineficaz e injusta, pois privará do [...] fala da necessidade imperiosa de se atri-
direito àqueles que não recorrerem a esta esfera estatal. buir a cada um o que é seu, no sentido do res-
peito à igualdade de direitos e aos indivíduos.
Ela tenta corrigir as insuficiências e problemas
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0         decorrentes do modo de os homens se organi-
    1
   zarem e produzirem a sua própria vida. Logo,
numa sociedade como a capitalista, a justiça
A defesa de direitos humanos e de justiça social tem sido figura sempre como um ideal a ser perseguido,
historicamente construída pelo Serviço Social e expressa atra- cuja objetividade se assenta, de um lado, sobre


 

 




 



 
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a legalidade, com todo o seu signo controver- um modo de ser construído a partir das necessidades so-
so, e, de outro, sobre a igualdade. ciais e das demandas postas historicamente à profissão e
nas respostas ético-morais dadas por ela nas várias di-
Portanto, justiça constitui-se em um “devir” e um cam- mensões que compõe a ética profissional”.
po, por excelência, para trabalhar a sua construção refe- Finalmente, pode-se considerar que o potencial de
re-se à luta por direitos humanos, uma luta que, necessa- materialização do Projeto Ético-Político Profissional dos
riamente se trava na esfera pública e em uma dimensão assistentes sociais, no exercício profissional junto ao Po-
maior que aquela expressa pelo Sistema de Justiça. Já der Judiciário, guarda direta relação com o reconheci-
para Aristóteles, “havia diferença entre o justo e o legal mento das particularidades desta referência institucional
(lei escrita). A lei do eqüitativo era superior, pois poderia como um espaço de lutas de interesses distintos, subme-
corrigir a própria lei escrita” (CAOVILLA, 2003, p.21). tido a critérios de legitimação que dizem de uma disputa
É fundamental ter clareza de que o legal nem sempre das formas de se dizer (ou não dizer) tanto o Direito,
se associa ao justo e nem tampouco que o justo alcança- quanto a sociedade. E o que está em luta neste campo
se meramente pela via legal. A ausência de um Estado tem “no ideal liberal da sociedade capitalista contemporâ-
que enfrente as desigualdades e a exclusão social não nea o hegemônico. Os mecanismos de legitimação deste
terá resposta “milagrosa” junto ao Poder Judiciário. Nes- ideário são ideológicos e se materializam nas práticas jurí-
te sentido, Fávero, Melão e Jorge (2005, p.33) afirmam: dicas por diferentes critérios, dentre eles critérios morais”
( AGUINSKY, 2003, p.
Em alguns espa- 270). O critério do agir
ços do Poder Ju- 4       moral que letigima o ide-
diciário, [...] fun- al liberal na institucio-
ções sociais se       nalidade do Poder Judi-
expressam mais ciário é o da “legalidade
nitidamente,  1      da moral” (FLICKINGER,
como aqueles 1995).
nos quais trami- 1 
5 
tam as ações re- Esse critério tem uma
lativas à infân-  . ) dupla face perversa:
cia, juventude, ao restringir a racio-
família e crimi- nalidade do Direito (li-
nais. Nessa rea- beral) a uma posição
lidade, expressões da ausência, insuficiência ou meramente organizadora do terreno do agir
ineficiência do poder Executivo na implementação social por parâmetros legais, constrói uma apa-
de políticas sociais redistributivas e rente igualdade para a efetivação de interesses
universalizantes se escancaram, na medida em que, subjetivos [...]; mas isso se dá à base da abstra-
além de litígios e demandas que requerem a inter- ção das desigualdades dos interesses em luta, e
venção judicial, como regulamentação de guarda que dizem da mediação material-econômica da
de filhos, violência doméstica, adoção etc., cada vida social”(AGUINSKY, 2003, p.271).
vez mais se acentua uma ´demanda fora de lugar’
ou uma ´judicialização’ da pobreza, que busca Se o próprio da ótica da legalidade da moral é um ethos
no judiciário solução para situações que, embo- moralizador da vida social pelo qual o Direito regula as
ra se expressem particularmente, decorrem das ex- relações sociais através de uma homogeneidade lógica
tremas condições de desigualdades sociais. nos conflitos e contradições, o que resulta é que este ethos
reproduz a vida social como particularidade em disjunção
Neste sentido, cabe ao profissional de Serviço Social a possíveis mediações ao que, da questão social, o direito
procurar desvelar o cenário em que está inserido e o con- liberal não diz, antes, abstrai (AGUINSKY, 2003).
junto de projetos societários que estão em jogo, desenvol- O que as práticas jurídicas convencionais fazem movi-
vendo uma postura e uma práxis que supere a tendência, mentar em repressão à contradição e ao conflito submeti-
resultado do acúmulo de demandas, da adoção de um do à decisão do Poder Judiciário, através da legalidade da
“tarefismo” burocrático, moralizante e que não enfrenta moral, joga dialeticamente para inscrever a história como
as condições que originam os processos judiciais. Proces- possibilidade do que falha nas práticas jurídicas. É no co-
sos esses que, em grande medida, expressam particulari- ração desta falha que os assistentes sociais inscrevem
dades da questão social, necessitando, conforme, Barro- seu exercício profissional no campo jurídico. No centro
co (2001, p.69), “compreender o ethos profissional como dessa “tensão dialética é que se desenham as possibilida-


 

 




 



 
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des do assistente social tecer subversões no instituído des- vés do acesso ao Poder Judiciário. Tal acesso não garan-
sas práticas por gestos de interpretação da contradição, te necessariamente a resolução do problema, uma vez que
pondo-se a agir ao participar da interface do discurso jurí- há entraves que independem da boa vontade de operado-
dico” (AGUINSKY, 2003, p. 275) com uma perspectiva res de justiça e que dizem respeito ao papel do Estado e
ampliada de acesso e garantia de direitos. do seu atrelamento aos interesses ditados pelo capital. No
Dentre os desafios que se apresentam aos assistentes anverso deste acesso, não havendo o enfrentamento des-
sociais, através de uma leitura atenta desta realidade, que te status quo, reproduz-se, em verdade, a injustiça social.
se apresenta no cotidiano de seu exercício profissional no Isto porque a justiça social se constrói coletivamente, no
Poder Judiciário, destaca-se a necessidade de investimento interior da esfera pública, em um movimento contraditório
no desenvolvimento de competências em resposta à onde se encontram presentes diferentes interesses em
judicialização da questão social. Argumenta-se a favor de disputa pela direção da sociedade.
uma competência para o desenvolvimento de um trabalho Finalizando, não se trata de negar a importância ao
interdisciplinar, que se comprometa com a viabilização de acesso à justiça em seu sentido estrito. Entretanto, impor-
direitos sociais invisíveis à jurisdição pela ótica da legalida- ta reconhecer que esta via não poderá dar conta, sozinha,
de da moral. Vale dizer, competências capazes de articular do enfrentamento à questão social, que é histórica e es-
as “demandas dos usuários dos serviços jurídicos às políti- trutural, demandando um movimento maior que possui, junto
cas públicas e à universalização de direitos em oposição ao à esfera pública, seu palco privilegiado de disputa. Desta
que a reprodução do cotidiano como particularidade tende forma, há que se empreender uma práxis de acesso à
a transformar em problemas morais, defeitos individuais ou justiça em seu sentido amplo, sem uma análise reducionista
‘casos de boa vontade [...]’”(AGUINSKY, 2003, p.275). Tais e ingênua de que a justiça será outorgada pelo Estado,
competências são mediações de sentido ao trabalho dos como um ator neutro e comprometido com o bem comum.
assistentes sociais ao se colocarem intencionalmente em Este compromisso pertence à sociedade, ou à sua maio-
um movimento de resistência à injunção potencialmente ria. E os assistentes sociais que realizam seu processo de
violadora e opressiva dos mecanismos do direito, levada a trabalho junto ao Poder Judiciário, além de leitura atenta
efeito através do monopólio da coerção pelo Estado. desta realidade, são desafiados a contribuir com o que, da
esfera pública, é abstraído nas formas de operar e de res-
ponder às práticas jurídicas convencionais.
, 
* 
Recebido em 19.10.2005.
O Poder Judiciário vive hoje um momento diferencia- Aprovado em 08.12.2005.
do daquele que historicamente lhe foi atribuído. Se até há
pouco menos de duas décadas, seu papel era eminente-
mente controlador e coercitivo, a partir da Constituição 67
Federal de 1988, com o avanço, por um lado, no plano da
AGUIAR, R. A. R. de. O que é justiça: uma abordagem dialética.
conquista de direitos humanos e, por outro, com a
São Paulo: Alfa-Omega, 1995.
responsabilização do Ministério Público em garantir a de-
fesa dos direitos de cidadania, o judiciário passa a ser cha- AGUINSKY, B.G. Eticidades discursivas do Serviço Social no
mado para responder a um conjunto de demandas sobre campo jurídico: gestos de leitura do cotidiano no claro-escuro
da legalidade da moral. 2003. Tese (Doutorado em Serviço
as quais não possuía uma maior aproximação ou mesmo
Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-
vinculação, excetuando-se casos em que havia a opção PUCRS, 2003.
pessoal de determinados juristas.
No entanto, a tendência em curso de judicialização da BARROCO, M. L. S. Ética e Serviço Social. São Paulo: Cortez,
questão social, ao transferir para um poder estatal, no caso 2001.
o Judiciário, a responsabilidade de atendimento, via de regra CAOVILLA, M. A. L. Acesso à justiça e cidadania. Chapecó:
individual, das demandas populares – coletivas e estrutu- Argos, 2003.
rais, nas quais se refratam as mudanças do mundo do COUTO, B. R. O direito social e a assistência social na
trabalho e as expressões do agravamento da questão so- sociedade brasileira: uma equação possível? São Paulo: Cortez,
cial – ao invés de fortalecer a perspectiva de garantia de 2004.
direitos positivados, pode contribuir para a desresponsabi- ESTEVES, J. L. Cidadania e judicialização dos conflitos sociais.
lização do Estado, sobretudo dos Poderes Legislativo e Disponível em: <http://www.uel.br/cesa/direito/doc/estado/
Executivo, com a efetivação destes direitos, através das artigos/constitucional/cidadania>. Acesso em 30 maio 2005.
políticas públicas.
FÁVERO, E. T.; MELÃO, M. J. R.; JORGE, M. R. T. (Orgs). O
Assim procedendo, cabe questionar se o que se está
Serviço Social e a psicologia no judiciário. São Paulo: Cortez,
construindo é a justiça social em seu sentido amplo, atra- 2005.


 

 




 



 
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8 
1 A Declaração de Viena está disponível em: <http://
www.dhnet.org.br>.

Beatriz Gershenson Aguinsky


aguinsky@pucrs.br
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS
Faculdade de Serviço Social, prédio 15
Campus Universitário Central
Av. Ipiranga, 6681 – Partenon
Porto Alegre – Rio Grande do sul
CEP: 90619-900


 

 




 



 

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