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Tem legitimidade ad causam o Ministério Público para agir na proteção do

Patrimônio Cultural Imaterial e garantir os direitos das Comunidades Urbanas


Tradicionais?1

Luciano Rocha Santana


Primeiro Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Comarca de Salvador
Pós-graduado em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP

Thiago Pires Oliveira


Acadêmico de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Assessor Jurídico da Cururupeba Organização Sócio-Ambientalista
Membro do Grupo de Pesquisa e Atuação em Direito e Meio Ambiente da UFBA.

Sumário: 1- Introdução ao tema; 2- Evolução histórica da proteção ao patrimônio


cultural; 3- O ambiente cultural no ordenamento jurídico brasileiro: 3.1- Constituição
Federal. 3.2- Meios administrativos de proteção ao patrimônio cultural: 3.2.1-
Tombamento. 3.2.2- Demais formas de proteção. 3.3- Tutela penal do meio ambiente
cultural; 4- O interesse da comunidade urbana tradicional em face desta preservação: um
novo enfoque; 5- A legitimatio ad causam do Ministério Público na proteção ao meio
ambiente cultural; 6- Conclusão; 7- Bibliografia.

1- Introdução ao tema:

Qual a ligação entre cultura e meio ambiente? A primeira vista, surgiriam respostas
apontando mais para a ruptura entre os dois conceitos do que propriamente pela existência
de um vínculo entre a cultura, produção essencialmente humana, conforme a Antropologia
tradicional, e o meio ambiente, espaço edênico cuja única pústula que o conspurca seria o
ser humano.
Desse modo, haveria uma insuperável incompatibilidade entre a produção cultural e o
meio ambiente, pois a primeira seria um dos instrumentos pelos quais a civilização humana
“barbarizaria” com os ecossistemas, estes, intocados desde que Adão e Eva “descobriram”

1
Este artigo se originou do Inquérito Civil nº 005/2001, instaurado pelo Ministério Público do Estado da
Bahia, através da Primeira Promotoria de Justiça do Meio Ambiente de Salvador, para apurar e solucionar o
impasse gerado pelo processo de desapropriação do “Prédio dos Alfaiates”, com a motivação de preservação
deste monumento localizado no Centro Histórico de Salvador (BA), e conseqüente expulsão de seus
moradores.
Este artigo foi apresentado e publicado no Caderno de Teses do “II Congresso Nacional da Magistratura e
do Ministério Público para o Meio Ambiente: A Efetividade do Direito Ambiental Brasileiro: Ações e
Resultados”. Araxá, MG: ABRAMPA, 2004.
a humanidade, ou melhor, saíram de seu estado natural trocando a divina natureza pela
serpente civilizatória, cujo veneno debilita o organismo de nossa Terra.
A tormentosa travessia pelos desfiladeiros da incompatibilidade entre homem e
natureza não parece ser a melhor solução, pois o homem é integrante do meio ambiente,
ele é um animal mamífero da espécie homo sapiens sapiens, que apresenta um código
genético 99% igual ao de um primata chimpanzé e que depende do meio ambiente para
sobreviver.
Assim, se o homem é integrante da natureza, por que, então, a sua produção cultural
também não ser um aspecto do meio ambiente, sendo, portanto, um subproduto deste?
Hodiernamente, o conceito de meio ambiente supera a visão estreita de meio ambiente
como sinônimo de recursos naturais, ampliada essa noção de tal modo que ela abrange
elementos oriundos dos artifícios humanos, produzidos pelo “suor e cansaço” que pode
tanto gratificar como pode alienar o ser.
O meio ambiente, segundo Edis Milaré, pode ser conceituado de duas formas: numa
perspectiva mais estreita, abrangeria os recursos naturais e suas relações com os seres
vivos; em uma mais ampla, “toda a natureza original (natural) e artificial, bem como os
bens culturais correlatos”.2
Assim, cabe ao operador do Direito Ambiental tutelar, também, o patrimônio cultural
imaterial, pois o mesmo se encaixa na concepção de interesse difuso, tal qual sucede com o
meio ambiente natural, podendo, inclusive, o Ministério Público, assim, como quaisquer
outras entidades legitimadas pela Lei 7.347/85 impetrar com ação civil pública em defesa
de tal bem.
Apresentamos a importância de se reconhecer o patrimônio cultural imaterial das
comunidades urbanas tradicionais pela ciência jurídica, como parte integrante do meio
ambiente cultural.

2- Evolução histórica da proteção ao patrimônio cultural:

Ao longo da história, os povos, sempre que venciam uma guerra, costumavam apagar a
memória cultural dos vencidos, destruindo todo o patrimônio cultural que o povo vencido
havia produzido, seja vilipendiando obras artísticas, históricas e arquitetônicas, seja

2
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência e glossário. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2000. p. 53.

2
vedando as práticas e condutas consagradas naquela cultura. O rastro histórico da
destruição de patrimônios culturais, materiais ou não, tem inclusive como principal
referencial o notório destino das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, estas destruídas,
principalmente, por guerras e descaso dos governos em protegê-las. Além desse trágico
legado, o que dizer da paulatina destruição da cultura bizantina por invasões de “cruzados
europeus” e guerreiros turcos, ou a da decadência do Império Romano, com seu milenar
patrimônio cultural arrasado pelos povos germanos, ou, ainda, a quase extinção da cultura
dos povos ameríndios, como os astecas, incas e tupinambás pelos colonizadores ibéricos.
Desse modo, a proteção ao patrimônio cultural, entre os primórdios da civilização
humana até o crepúsculo da Idade Moderna sempre dependeu da iniciativa privada, ou
seja, da ação de pessoas que, agindo por amor à arte e cultura, ou, então, por mero interesse
comercial, patrocinavam artistas, acolhendo suas obras e preservando-as da degradação.
Essas pessoas eram os mecenas, como foi o caso da Igreja Católica e da família Médici, de
Florença (Itália).
A Igreja Católica daquele período havia se tornado a principal instituição responsável
pela proteção ao patrimônio cultural da Civilização Ocidental, ao conservar a maior parte
do legado cultural deixado pela Antiguidade Clássica.
Tal situação se altera, a partir do fortalecimento do Estado Nacional, durante a Idade
Moderna, quando o Poder Público atribui a responsabilidade para si de regular a vida dos
indivíduos, seus súditos. Porém, o marco inicial da atuação estatal em relação à defesa do
patrimônio cultural surge na França, no início do Século XIX, como resposta à depredação
e destruição de importantes bens artísticos e arquitetônicos, realizadas por revolucionários
mais radicais do movimento liberal-burguês de 1789, com o objetivo de lançar no limbo da
história todos os bens culturais que remetessem ao “Ancien Regime”.3
A princípio, a proteção aos bens culturais era incipiente e limitada, pois se partia de um
pressuposto extremamente estreito do que seria um bem cultural, este limitado aos bens
artísticos e arquitetônicos que tivessem um valor estético excepcional.
O conceito de “excepcionalidade” do bem cultural será a “pedra de toque” das ações
estatais em defesa do patrimônio cultural, entre o início das preocupações oficiais com o
patrimônio cultural no século XIX até a elaboração da Carta de Veneza em 1964, cujos

3
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. A evolução da proteção do patrimônio cultural - crimes contra o
ordenamento urbano e o patrimônio cultural. in Revista Advocacia Pública & Sociedade: Temas de
Direito Ambiental e Urbanístico. Coord. Guilherme José Purvin de Figueiredo. Ano II, n. 3. São Paulo:
Max Limonad, 1998. p. 201.

3
exemplos clássicos, no dito primeiro mundo civilizado e pólo da cultura humana, são a
destruição do casario medieval que rodeava a Catedral de Notre Dame, em Paris, ou a
demolição de vielas e cortiços parisienses, também medievais, para se criar largas avenidas
modernas, ambas ocorridas no final do século XIX. Segundo o conceito de
“excepcionalidade”, um certo bem somente integraria a categoria de patrimônio cultural, se
possuísse um elevado valor estético sob a ótica da Arquitetura e da Crítica de Arte.
Enquanto no século XIX as nações européias já esboçavam políticas de proteção ao
patrimônio cultural, o Brasil ainda desprezava essa questão, restando tentativas isoladas de
agentes públicos, como foi o caso de D. André de Melo e Castro, Conde de Galveias,
Vice-Rei da Colônia portuguesa do Brasil, em meados do século XVIII, que, preocupado
com a destinação que seria dada a alguns monumentos arquitetônicos deixados pelos
holandeses em Pernambuco, escreveu várias missivas para D. Luis Pereira Freire de
Andrade, governante local, defendendo a proteção daquele patrimônio, sendo, no final,
ignoradas pela Capitania de Pernambuco4. Ou, então, da frustrada tentativa de suscitar um
debate acerca da preservação do patrimônio cultural nacional promovida por Araújo Porto
Alegre, Diretor da Academia Imperial de Belas Artes, na Corte do Rio de Janeiro, sem
êxito5. E, ainda, a isolada iniciativa do Conselheiro Luiz Pedreira Couto Ferraz, ministro
do Império do Brasil, ordenando aos Presidentes das Províncias que recolhessem as
coleções epigráficas locais para serem preservadas na Biblioteca Nacional e expedindo
ordem ao Diretor das Obras Públicas da Corte, para que tivesse cuidado, durante a
reparação de monumentos, para não danificar as inscrições e outros dados que neles
estivessem gravados6.
Além dessas iniciativas administrativas fortuitas, percebe-se, no Brasil do século XIX
e começo do XX, um enorme vácuo normativo em disciplinar a matéria, não obtendo a
proteção ao patrimônio cultural nenhum respaldo pelo Direito daquela época, o qual não
admitia de forma alguma a restrição do direito de propriedade, fundamento basilar da
sociedade liberal-burguesa do período, conforme se observa da omissão da matéria nas
Constituições brasileiras de 1824 e 1891.

4
PINTO, Antônio Carlos Brasil. Turismo e Meio Ambiente: aspectos jurídicos. São Paulo: Papirus, 1998.
p. 15. E também com mais detalhes: PELLEGRINI FILHO, Américo. Ecologia, Cultura e Turismo. 2º ed.
Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 101-102.
5
RICHTER, Rui Arno. Meio Ambiente Cultural: Omissão do Estado e Tutela Judicial. Curitiba: Juruá,
1999. p. 9-10.
6
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 202.

4
Apesar da falta de interesse do Estado e da Sociedade da época em proteger o
patrimônio cultural, verificaram-se no Brasil, ainda sob os auspícios da República Velha,
projetos de lei disciplinando a matéria, como o foi o caso do projeto apresentado pelo
deputado federal pernambucano Luiz Cedro, em 1923, objetivando criar uma Inspetoria de
Monumentos Históricos; ou um projeto de lei de 1924, em que o deputado federal por
Minas Gerais Augusto de Lima visava vedar a saída de bens artísticos nacionais para o
exterior; ambos dissolvidos nas incertas correntezas do processo legislativo brasileiro7.
E quando surge, em 1930, um projeto de lei de autoria do parlamentar baiano José
Wanderley de Araújo Pinho, disciplinando toda a matéria do patrimônio cultural, vem a
revolução de 30, derrubando a República Velha e dissolvendo o Legislativo nacional, para
substituir o mesmo pelo hipertrofiado Executivo da Era Vargas, que só se atentará com a
proteção ao patrimônio cultural na metade da década de 30 do agitado século XX.
O final da década de 20 e início da década de 30 representará um marco na proteção ao
patrimônio cultural, visto que é a partir dessa época que terão êxito as primeiras iniciativas
normativas visando proteger os bens culturais, quando o Estado da Bahia, sob o governo
de Francisco de Góis Calmon, promulga as Leis Estaduais nº 2.031 e 2.032, de 8 de agosto
de 1927, criando uma autarquia estadual encarregada de preservar monumentos culturais,
o mesmo acontecendo com o Estado de Pernambuco que, através da Lei Estadual nº 1.998,
de 24 de agosto de 1928, criou uma instituição semelhante à baiana8.
No plano internacional, será elaborada, durante o Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna de 1933, a Carta de Atenas, que apesar de totalmente influenciada
pelo elemento “excepcionalidade” na conceituação de um bem cultural, será um dos
primeiros documentos que tratarão da importância de se proteger o patrimônio cultural9.
E, por fim, no plano nacional, o ordenamento jurídico brasileiro passaria a reconhecer
a necessidade de tutela do patrimônio cultural com a expedição, em 12 de julho de 1933,
do Decreto nº 22.928, que transformou a cidade mineira de Ouro Preto em Monumento
Nacional; com o Decreto-lei n° 25/37, e principalmente com o reconhecimento dessa
tutela pelas Constituições brasileiras de 1934 e 1937.
A Constituição de 1934 foi pioneira ao disciplinar em seu artigo 10, inciso III, a
competência concorrente entre a União e os Estados para proteger as belezas naturais e os

7
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 203.
8
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 203.
9
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 201-202.

5
monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte do
território nacional.
A Carta constitucional de 1937, apesar de limitada, quanto aos direitos políticos, inova
ao tratar mais amplamente da proteção ao patrimônio cultural em seu artigo 134, in verbis:
Art. 134. Os monumentos históricos artísticos e naturais, assim como as
paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da
proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos
Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos
cometidos contra o patrimônio nacional.
Desse modo, a proteção do patrimônio cultural passou a ser matéria de
responsabilidade também do Município, além de se inserir a tutela penal no contexto dessa
proteção, como ocorreu com a elaboração do Código Penal de 1940, o qual criminalizou
algumas condutas nocivas ao patrimônio cultural, conforme se depreende dos tipos penais
previstos nos artigos 165 e 166.
Porém, o principal instrumento jurídico de proteção ao patrimônio cultural oriundo
daquele período seria o Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que não só
regulamentava essa proteção, ao criar o instituto jurídico do tombamento, como também
definia a formação de um órgão responsável pelo tombamento: o SPHAN, Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; que, de tão importante, ainda hoje, é a norma
infraconstitucional em que está fundamentada a tutela do patrimônio cultural, apesar de
algumas poucas modificações.
O Decreto-lei nº 25/37, apesar de aplicado até os dias atuais, foi elaborado numa
época em que o valor “excepcionalidade” ainda definia a natureza de um bem cultural,
sendo por esse valor bastante influenciado, de acordo com o seu artigo 1º, in verbis:
Art. 1º Constituem o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto
dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de
interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da
história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico, bibliográfico ou artístico. (grifos nossos).
Segundo se compreende da conceituação normativa supracitada, um bem para que
fosse considerado uma espécie do patrimônio cultural teria de possuir elevado valor
histórico ou excepcional, visão essa que, se adaptada para a atualidade, excluiria os bens
de natureza imaterial que, apesar de sua importância sócio-antropológica, não receberam à
época a devida atenção do legislador. Como, por exemplo, é o caso de algumas habitações
de taipa localizadas no interior baiano, particularmente, na Chapada Diamantina, que,
construídas durante a época do garimpo, no final do século XIX e início do século XX,

6
nunca tiveram atenção do Estado quanto a sua conservação (cuja exceção encontra-se na
cidade de Lençóis), por não possuírem um tão elevado valor histórico, segundo os critérios
preconceituosos dos técnicos que cuidavam do tombamento, merecendo atenção apenas os
bens de origem colonial, conforme preleção de José Eduardo Ramos Rodrigues10.
Com o fim da Era Vargas, foi promulgada uma nova Constituição, a de 1946, sendo
bastante influenciada por princípios humanitários, em resposta aos horrores produzidos
durante a Segunda Guerra Mundial, como a destruição de bens culturais ímpares para
sempre ou, ainda, a degradação de ecossistemas de uma forma brutal, reduzindo a
dignidade humana ao zero absoluto, cujos exemplos clássicos foram as câmaras de gás
nazistas que buscaram exterminar a milenar cultura judaica e as bombas atômicas lançadas
sobre as cidades japonesas de Hiroxima e Nagasáqui, ambas invenções da racionalidade
humana.
No entanto, essa Carta constitucional representou um retrocesso diante da defesa dos
direitos culturais em relação à Lei Magna de 37, ao retirar a coercibilidade prevista no
artigo 134 da Constituição anterior, excluindo o trecho que previa que os atentados ao
patrimônio cultural seriam equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional; desse
modo, reduzindo o artigo 175 da Carta da República de 46 em mera norma programática.
Também havia uma lacuna legal referente à tutela do patrimônio arqueológico, pois o
instituto do tombamento não se mostrou o mais adequado para impedir qualquer
modificação na aparência do bem tombado, o que dificultou e, em alguns casos, até
mesmo inviabilizou a sua proteção, ao impedir que fossem feitos estudos arqueológicos
nos bens tombados. Tal omissão normativa só seria solucionada com a promulgação da
Lei Federal nº 3.924, de 26 de julho de 1961, tendo como principal defeito o fato de ser
bastante direcionada para a defesa dos sítios pré-históricos, destacando-se a preservação
dos sambaquis, que, no conceito do jus-ambientalista José Eduardo Ramos Rodrigues,
seriam “sítios formados por acúmulos de conchas, restos de cozinha, enterramentos de
mortos e outros artefatos amontoados por povos indígenas que habitavam o litoral em
épocas pré-cabralinas”11.
Enquanto o Brasil ainda tinha a preservação cultural sobre o parâmetro da
excepcionalidade, no plano global, as nações começavam a perceber a importância de se
mudar o referencial. Marco dessa mudança de mentalidade governamental foi a Carta de

10
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 205-206.
11
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 205.

7
Veneza, elaborada durante o II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos
Monumentos Históricos de 1964, cujas diretrizes rompem com antigos conceitos,
conforme se assimila da noção de patrimônio cultural expressa em seu art. 1º, in verbis:
Art. 1º. A noção de monumento histórico compreende a criação
arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá
testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa
ou de um acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes
criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o
tempo, uma significação cultural. (grifo nosso).
A alteração de paradigma na proteção dos bens culturais é perceptível com a Carta de
Veneza, que passou de uma proteção a um bem em razão de seu valor excepcional para
uma tutela com prevalência do valor histórico-documental, não se admitindo quaisquer
modificações não só do monumento principal, como também de todo o meio onde está
inserido. Desse modo, a destruição das edificações medievais que rodeavam a Catedral de
Notre Dame não seria admitida, devendo-se preservar todo o conjunto, visto que o mesmo
formava um contexto histórico-urbano peculiar, em que coexistia a monumental Notre
Dame e as simples, porém, antiqüíssimas habitações medievais que presenciaram todos os
fatos históricos mais relevantes da França, através de suas fachadas, como o massacre de
São Bartolomeu, o reinado de Luis XV, a Revolução Francesa, a ascensão política de
Napoleão Bonaparte, entre outros.
Todavia, o Brasil não acompanhou a mudança de referencial na tutela do patrimônio
cultural, com a elaboração de uma nova Constituição, em 1967, tratando em seu artigo 172
do dever do Estado de amparar a cultura, inclusive, tendo como única novidade em relação
ao dispositivo constitucional de 1946 o acréscimo das jazidas arqueológicas como um dos
bens a serem protegidos pelo Poder Público.
Analisando o ordenamento constitucional brasileiro anterior ao de 1988, percebe-se
que não havia uma conceituação sobre patrimônio cultural. Isto fez do enunciado presente
no caput do art. 1º do Decreto-lei nº 25/37, a única noção de patrimônio cultural que
norteava a atuação do Estado brasileiro, preservando quase exclusivamente os bens tidos
como excepcionais sob o ponto de vista estético-arquitetônico quando se tratasse de
edificações ou sob o referencial histórico-excepcional quando se tratasse de obras
documentais de “fatos memoráveis” da história brasileira.
A noção de patrimônio cultural sempre esteve atrelada a uma visão patrimonalista,
segundo a qual o patrimônio cultural seria uma espécie de propriedade coletiva e não um
modo de se exercitar direitos ou um componente da vida humana, um meio pelo qual a

8
vida se desenvolve. Porém, essa visão patrimonialista seria suplantada através da
Convenção Concernente à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 23 de
novembro de 1972, que, acompanhando a evolução do conceito de meio ambiente,
promove uma ruptura da visão tradicional histórico-excepcionalista do patrimônio
cultural, ao tratar este num patamar similar ao patrimônio natural, conforme se depreende
do seu título, promovendo o reconhecimento do meio ambiente cultural como um dos
aspectos do ambiente.
Como reflexo dos novos tempos, surge a iniciativa pioneira de se tombar os
ecossistemas da Serra do Mar e da Serra do Japi, pelo órgão do Estado de São Paulo
responsável pelos tombamentos culturais, o CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico), na época, chefiado pelo
renomado geógrafo Aziz Ab’Saber12.
Em seguida, veio a Lei de Ação Civil Pública, Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho de
1985, passando a possibilitar a preservação de bens e direitos de valor cultural pela via
judicial, ainda que não reconhecidos oficialmente pelo Poder Público.
Esse ano, também, será um marco para a proteção do ambiente cultural, com a
realização na Cidade do México da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais,
promovida pela ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), na qual se
reconheceram os valores culturais imateriais, como formas de expressão, modos de criar,
fazer e viver das coletividades humanas, através da Declaração do México, documento
elaborado durante esse Congresso e que se refletiu nas leis nacionais posteriores e na
Convenção Internacional de 17 de outubro de 2003.
Na órbita do ordenamento jurídico-cultural brasileiro contemporâneo, este tem sido o
mais amplo para que seja efetivada a proteção da diversidade cultural constituinte da
nação brasileira, cuja base se encontra na Constituição Federal de 1988, tendo uma tutela
penal do patrimônio cultural prevista pela Lei Federal n.º 9.605/98, e a proteção aos bens
culturais imateriais asseguradas no Decreto Federal n° 3.551/2000, que serão tratadas a
seguir.
Já na seara internacional, temos a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial, de 17 de outubro de 2003, que, aprovada pela 32ª Conferência Geral da
UNESCO, representa um dos principais e mais modernos diplomas normativos

12
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 206.

9
internacionais, ao reconhecer a necessidade de se proteger os bens culturais imateriais,
subsidiando as normas de Direito Interno das nações.
Desse modo, verifica-se a ocorrência de três fases históricas da proteção ao
patrimônio cultural:
A primeira fase, fase da excepcionalidade, em que se consideravam bens culturais
aqueles dotados de um considerável valor artístico e arquitetônico, tendo como paradigma
a Carta de Atenas de 1933; em seguida, viria a segunda fase, fase historicista, na qual se
passou a considerar o valor histórico e documental dos bens, mesmo quando estes não
apresentassem um valor artístico-arquitetônico tão relevante, tendo como marco inicial a
Carta de Veneza de 1964; e, por fim, veio a terceira fase da proteção ao patrimônio
cultural, fase da imaterialidade, quando se reconheceram os bens culturais imateriais. Esta
etapa surgiu a partir da Declaração do México de 1985 e vem norteando a proteção ao
meio ambiente cultural até os dias atuais.

3- O ambiente cultural no ordenamento jurídico brasileiro:

3.1- Constituição Federal:

A Constituição Federal de 1988 constitui, nos tempos hodiernos, o fundamento legal


da proteção ao patrimônio cultural, diferentemente de épocas passadas, ao abordar a
proteção aos bens culturais em diversos dispositivos, destacando-se a seção II, “Da
cultura”, presente no capítulo III do Título VIII, que é o trecho da Constituição que trata da
Ordem Social, a qual será exposta infra.
Porém, em virtude da organização estatal brasileira ser federativa, surge a necessidade
de se elencar o rol de competências de cada esfera da federação, para que se possa
compreender a complexidade da defesa do meio ambiente cultural que não raro possibilita
diversas antinomias jurídicas ou, até mesmo, ações declaratórias de inconstitucionalidade.
O artigo 23, inciso III, define que é competência comum da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico,
artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios
arqueológicos”. Desse modo, poderão atuar, administrativamente, na preservação e
conservação do patrimônio cultural, qualquer ente federativo. Por exemplo, mesmo se o
Governo do Estado da Bahia tivesse tombado uma edificação em Xique-Xique, cidade do

10
interior da Bahia, poderia também a Prefeitura Municipal de Xique-Xique tombar essa
edificação. Um ato administrativo não interfere no outro, pois a competência de atuação
governamental é comum.
Já o artigo 24, inciso VII, estabelece uma competência concorrente entre União,
Estados, Distrito Federal e Municípios para legislar sobre a proteção ao patrimônio
cultural, histórico, artístico, turístico e paisagístico. Assim, caberá à União elaborar normas
gerais visando essa proteção, devendo ser obedecidas pelos Estados, Distrito Federal e
Municípios, sendo que estes entes federativos poderão suplementar as normas gerais
federais. Os Estados-membros exercerão a competência legislativa plena, caso inexistam
normas federais tratando da matéria, para atender às peculiaridades regionais13.
E, ainda, deve-se frisar a competência municipal, prevista no artigo 30, inciso IX, da
Carta Constitucional, segundo a qual compete ao Município “promover a proteção do
patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e
estadual”. Essa competência visa aproximar a proteção do bem cultural a realidade local,
com o Poder Público municipal suplementando a norma geral federal, ao adequá-la a sua
realidade.
Considerando essa distribuição de competências, tanto para legislar quanto para atuar
na preservação do patrimônio cultural, observar-se-á que o ordenamento constitucional
pátrio será mais específico na disciplina da cultura e seu patrimônio, nos artigos 215 e 216,
integrantes da referida seção II. O artigo 215 enuncia a defesa da cultura de modo amplo e
genérico, citando a diversidade cultural como característica nacional e incentivando a
valorização e difusão, tanto das manifestações culturais quanto do exercício dos direitos
culturais.
Porém a visão constitucional acerca do patrimônio cultural se encontra conceituada no
artigo 216, in verbis:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I- as formas de expressão;
II- os modos de criar, fazer e viver;
III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;

13
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 210.

11
V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico
(...).
Da análise do caput do artigo 216, infere-se que o legislador constituinte inovou ao
apresentar um conceito de patrimônio cultural, ressaltando que a noção apresentada é
deveras ampliadíssima, o que demonstra uma certa atualização do constituinte da época
com as novas tendências doutrinárias sobre a tutela de bens culturais.
A norma constitucional supracitada possibilita que sejam tutelados os mais diversos
tipos de patrimônio cultural, incluindo entre eles os bens de natureza imaterial que são
aqueles não concretizados materialmente, como as práticas e os costumes, e que
necessitam de um instrumento para se manifestarem, sendo na maioria das vezes esse
veículo de manifestação cultural o próprio ser humano. Isso demonstra a nova era
constitucional que foi inaugurada, pois se rompeu com valor de excepcionalidade,
consagrado por valores estético-arquitetônicos, inserindo-se valores sócio-antropológicos
na formulação da noção de meio ambiente cultural, lembrando que essa inserção, não
representou o fim da proteção aos “monumentos” tradicionais, mas sim a expansão dos
objetos passíveis de tutela.
Consoante o pensamento exposto, assevera o jurista José Eduardo Ramos Rodrigues14,
um dos doutrinadores mais ativos acerca da proteção ao meio ambiente cultural, que:
Os dois primeiros e o terceiro inciso em parte consagram a preservação
dos valores imateriais, de conteúdo sociológico e antropológico. Trata-
se de um patrimônio em geral intangível, não tridimensional, mas
científico, de conhecimentos, de tecnologia, de todas as disciplinas,
erudito e popular (...).
Apesar de a Constituição Federal ter um expansivo conceito de patrimônio cultural,
isso não significa que o mesmo tenha se esgotado, pois a própria Lei Magna possibilita que
sejam inseridos na seara da tutela jurídica do ambiente cultural novos elementos, frutos do
dinamismo cultural que aflora na sociedade. Desse modo se expressa a cerca do tema,
Ramos Rodrigues15:
Outra questão fundamental referente aos incisos do artigo 216, é que
estes formam uma lista exemplificativa, de tal forma que o legislador
constitucional, não pretendendo esgotar uma rica e dinâmica realidade,
deixou em aberto a possibilidade de construção de novos tipos de bens
culturais. Assim, qualquer bem pode vir a integrar o patrimônio cultural
brasileiro, desde que seja portador de referência à identidade, à ação, à

14
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 209.
15
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Ob. Cit. p. 209.

12
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos
termos do “caput” do artigo 216. (grifo nosso).

3.2- Meios administrativos de proteção do patrimônio cultural:

Ainda em conformidade com o supramencionado dispositivo constitucional, o Estado


protegerá o meio ambiente cultural através de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, além de outras formas de acautelamento e preservação.

3.2.1- Tombamento:

O tombamento é um dos principais instrumentos de conservação do patrimônio


cultural; de acordo com Diogo de Figueiredo Moreira Neto16, seria uma intervenção
concreta do Estado na propriedade privada, ao limitar o exercício de direitos de uso e
disposição gratuita, permanente e intransferível, destinada à preservação ou conservação,
de forma cautelosa, dos bens culturais.
O tombamento ocorre quando se inscreve um bem em um dos livros do “tombo”,
existentes no IPHAN, ou nas repartições estaduais e municipais que atuem na preservação
cultural. Os livros existentes, previstos no artigo 4º do Decreto-lei nº 25/37, são: Livro do
Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do
Tombo das Belas Artes; e Livro do Tombo das Artes Aplicadas.
O bem tombado pode ser quanto a sua propriedade, privado ou público. Existem
diversas teorias acerca da natureza jurídica do bem tombado de domínio particular:
limitação ao direito de propriedade, posição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro; servidão
administrativa, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello; domínio eminente do
Estado, conforme Hely Lopes Meirelles; bem cultural como bem imaterial, sustentada por
Massimo Severo Giannini; propriedade com função social; e por fim, bem de interesse
público, defendida por José Afonso da Silva e Paulo Affonso Leme Machado17.
O tombamento pode atingir bem de pessoa física ou jurídica. Caso seja de pessoa
privada, ou física, poderá o tombamento ser de duas espécies: voluntário ou compulsório.
A primeira situação se aplica quando há consentimento do proprietário ou, então, este

16
Apud MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 8º ed. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 799-800.
17
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ob. Cit. p. 818-821.

13
solicita a ação de tombamento. Poderá ocorrer a segunda hipótese, segundo o artigo 9º do
Decreto-lei nº 25/37, de duas maneiras: o proprietário é notificado e não anui ou deixa de
impugnar dentro do prazo o processo legal; ou, então, o proprietário impugna
tempestivamente18.
Fazendo uma hermenêutica extensiva ao artigo 216, § 3º, infere-se que o Estado, ao
tombar um bem, assume, do mesmo modo, o ônus de arcar com a manutenção do
patrimônio tombado, auxiliando o seu proprietário ou quem o habitava anteriormente ao
tombamento, de elementos instrumentais técnicos e custos financeiros.
O tombamento está previsto em diversas Constituições Estaduais, como a do Acre, art.
202, § 1º; do Amazonas, art. 207; do Maranhão, art. 228, 1º; do Rio de Janeiro, art. 321; do
Rio Grande do Sul, art. 222; de Sergipe, art. 226, § 1º; dentre outros Estados.
Também, nas Constituições Estaduais, há vários dispositivos que prevêem a formação
de órgãos competentes para a atuação em prol do meio ambiente cultural. São alguns
exemplos: no Amazonas cujo Conselho Estadual de Cultura deverá, na forma da lei,
“fiscalizar a distribuição e a aplicação de verbas destinadas às entidades culturais do
Estado, assim como tutelar a ética dentre as atividades por elas desenvolvidas”, segundo a
redação do art. 202, § 2º; na Bahia, seu Conselho Estadual de Cultura deverá formular a
política estadual de cultura, sendo assegurada a representação majoritária da sociedade
civil, conforme o art. 272, e também gerenciar mecanismos de financiamento de atividades
artísticas e culturais, segundo o art. 273; e em São Paulo, o CONDEPHAAT, será o
responsável pela pesquisa, identificação, proteção e valorização do patrimônio cultural
paulista, na forma que a lei definir, de acordo com o imperativo do art. 261 da Constituição
paulista19.

3.2.2- Demais formas de proteção:

Os inventários e as vigilâncias ainda não foram regulamentados por lei, o que dificulta
a aplicação do preceito constitucional.
O Decreto Federal nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o registro de bens
culturais imateriais, definindo, em seu art. 1º, § 1º, quatro livros de registro dos bens: Livro

18
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ob. Cit. p. 818-821.
19
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ob. Cit. p. 805-806.

14
de Registro dos Saberes; dos Lugares; das Celebrações; e das Formas de Expressão; além
de estabelecer o processo de registro e a legitimidade para propô-lo.
Por fim, dentre as “outras formas de acautelamento e preservação” se tem,
principalmente, a lei específica, a decisão judicial e o compromisso de ajustamento de
conduta promovido pelo Ministério Público, dentre outros órgãos públicos co-
legitiminados, de acordo com o art. 5º, § 6º da Lei de Ação Civil Pública.
Vale frisar a seguinte observação de Luiz Régis Prado acerca da proteção judicial do
patrimônio cultural, mediante ações coletivas, ou por meio de lei específica, o seguinte:
A doutrina reconhece que o tombamento instituído por via legislativa é
mais vantajoso que aquele feito pelo Executivo, visto que apenas poderá
ser eventualmente suprimido também por via legislativa; o tombamento
realizado pelo Poder Judiciário, porém, é ainda mais seguro (...)20.

3.3- Tutela penal do meio ambiente cultural:

A tutela penal do patrimônio cultural no ordenamento jurídico brasileiro era


disciplinada de modo confuso, visto que não havia um tipo penal adequado, tendo o
ordenamento jurídico do período equiparado, inicialmente, o injusto penal contra o
patrimônio cultural como crime contra o patrimônio nacional, reservando esta tutela
àqueles bens culturais dotados de um caráter excepcional, conforme se infere do artigo 5º
da Lei Federal nº 3.924/61.
A tutela penal do patrimônio cultural21 passou a ser abrangida pelos artigos 163, 164,
165, 166 e 167 do Código Penal, conforme a lição de Ivete Senise Ferreira, a qual salienta
quanto ao artigo 163 que:
Essa figura funciona como subsidiária de todas as outras, sendo
aplicável somente se a conduta não se enquadrar em nenhuma das
outras previstas para casos específicos22.
Dessa forma, o artigo 163 teria a função de contemplar, fragilmente, os bens culturais
que não fossem tombados como coisas “de valor artístico, arqueológico ou histórico”, ou

20
PRADO, Luiz Régis. Crimes contra o ambiente. 1ª ed., 2ª tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p.
189, nota de rodapé.
21
FERREIRA, Ivete Senise. Tutela Penal do Patrimônio Cultural. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
p. 111-114.
22
FERREIRA, Ivete Senise. Ob. Cit. p. 111.

15
os locais, mesmo dotados de relevante valor cultural, contudo não fossem “especialmente
protegidos” e, ainda, aqueles bens patrimoniais que fossem afetados sem dolo do infrator.
Estas condições tornavam a defesa do patrimônio cultural algo difícil para o operador do
Direito, em virtude do amplo leque de lacunas que o legislador oferecia.
Tal mudança de paradigma advém com a Lei Federal nº 9.605/98, Lei de Crimes
Ambientais (LCA), que, revogando tacitamente os tipos penais previstos nos artigos 165 e
166, irá permitir uma melhor proteção do meio ambiente cultural e não somente dos bens
materiais, como definia o diploma penal, conforme os artigos 62, 63, 64 e 65 da LCA.
A norma penal, descrita no artigo 62, trata da proteção aos bens documentais como
arquivo, registro, museu e bibliotecas. Interessa notar que a destruição, inutilização ou
deterioração dos “registros culturais” interferem, diretamente, nas comunidades
tradicionais, pois as manifestações culturais destas devem ser protegidas por meio do
registro, como bens culturais imateriais, de acordo com o Decreto Federal nº 3.551/2000,
do IPHAN. A pena para a conduta tipificada é reclusão de 1 a 3 anos e multa, quando
doloso, e na modalidade culposa sendo prevista uma pena de 6 meses a 1 ano de detenção,
acrescida de multa.

4- O interesse da comunidade urbana tradicional em face desta preservação – um


novo enfoque:

Desde a ascensão dos movimentos de defesa do meio ambiente e do patrimônio


cultural, sempre houve um “nó cego” que atrelou ambos, esse nó foi a incompatibilidade
entre o homem e os patrimônios cultural e natural, onde um representava a negação do
outro, constituindo o que seria, parafraseando Antonio Carlos Diegues, o “mito moderno
da natureza intocada”.
Na realidade, tal dicotomia é um falso conflito, principalmente, quando tratamos da
relação comunidades tradicionais e meio ambiente cultural.
O antropólogo Raul Di Sergi Baylão e a ecóloga Nurit Bensusan conceituam as
comunidades tradicionais como:
(...) grupos populacionais existentes, presentemente, em alguns Estados
nacionais, que se caracterizam por possuir um modo de produção
diferente do modo de produção capitalista, dominante nas sociedades
modernas. Tais grupos participam, de forma marginal, de um sistema

16
econômico mais amplo, seja ele local ou nacional (...). Parte expressiva
de sua produção destina-se a seu autoconsumo ou, em outras palavras,
destina-se a sua subsistência23.
Tradicionalmente, as Ciências Sociais as dividiam em dois grupos: povos indígenas e
comunidades camponesas. Contudo, entendendo estar essa concepção suplantada pela
própria sociedade, meio dinâmico por excelência, cremos na existência de um terceiro
grupo: as comunidades urbanas tradicionais.
As comunidades urbanas tradicionais envolveriam certas populações de médias e
grandes cidades que teriam elementos culturais em comum, estando concentradas suas
moradias em um lugar determinado, produzindo um modus vivendi peculiar ao estilo de
vida comum da cidade com práticas, costumes e, até, manifestações culturais próprias,
quando não, possui um modo de produção próprio, destoante do sistema capitalista, que, às
vezes, chega à auto-suficiência.
Quase sempre os integrantes dessas comunidades tradicionais vivem em “guetos”
urbanos, sendo marginalizados e discriminados pelo homem médio e, também, pelas
autoridades oficiais ao serem associados à criminalidade e a condutas e práticas que são
“reprovados” pela moral dominante24.
São exemplos de comunidades urbanas tradicionais, entre outros, os antigos guetos
judeus presentes nas cidades do Leste Europeu até a primeira metade do século XX, alguns
bairros de comunidades ciganas existentes em cidades do interior do Estado da Bahia e,
particularmente à realidade soteropolitana, as populações habitantes do Centro Histórico de
Salvador, tombado pela UNESCO como patrimônio mundial da humanidade e conhecido

23
BAYLÃO, Raul Di Sergi & BENSUSAN, Nurit R. Conservação da Biodiversidade e Populações
Tradicionais: um falso conflito. in Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios. Ano 8, V. 16. jul./dez. Brasília, 2000. p. 162-163.
24
O discurso oficial do Governo do Estado da Bahia, ainda reproduz uma lógica elitista, principalmente,
quando se trata da defesa do patrimônio cultural, segundo se analisa do documento “Manifestação do
governador Paulo Souto na Ação de Inconstitucionalidade nº 38148-7/2002, de 24 de abril de 2003”, cujos
trechos foram publicados no jornal A Tarde, de 28 de janeiro de 2004, a seguir: “Realmente queremos
manter, convenientemente, essas pessoas como personagens para turistas, ou, como diz a inicial da
Ação Civil Pública, como personagens de Jorge Amado? Nossos “sacis” (meninos viciados em crack)
não seriam a versão moderna dos “capitães de areia”; ou ainda “Nossas meninas, as novas velhas
Tietas, atrações do turismo sexual. Que espetáculo a vida entre brigas com peixeiras modernas, os
lavadores de carros protegendo nossos bens (...) Os moradores não se vestem de forma típica, de
baianas ou pais-de-santo. Vestem-se com roupas que conseguem, a maior parte de andrajos.
Tampouco criaram dialeto, mas falam simplesmente errado, arremedo de uma língua que
desconhecem”.

17
como Pelourinho; tais populações tinham um modo tão popular de viver que foram
imortalizados na literatura através da obra do saudoso escritor baiano Jorge Amado25.

5- A legitimatio ad causam do Ministério Público na proteção ao meio ambiente


cultural:

A Constituição Federal concebeu o Ministério Público como sendo uma instituição


de caráter permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
missão de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e
individuais indisponíveis (artigo 127, caput). Portanto, foi conferida àquela instituição a
defesa dos interesses que, de tamanha importância para a própria existência da sociedade,
não podem ser renunciados ao alvitre do particular, por transcender à sua esfera de
disposição.
Da rápida análise dos artigos 216 e 225, caput, da Lei Maior, o meio ambiente,
incluindo o cultural, na qualidade de bem de uso comum do povo, enquadra-se neste
conceito, já que se trata de interesse indisponível. Trata-se de interesse difuso, já que as
pessoas atingidas são indeterminadas e indetermináveis, mas ligadas por alguma
circunstância fática que, de alguma forma, as une, conforme conceito geralmente aceito
pela doutrina. Hugo Nigro Mazzili afirma que se trata de um interesse tão abrangente que
coincide com um interesse público26.
Portanto, a defesa do meio ambiente natural, artificial e cultural está inserida entre as
atribuições do Ministério Público, nos termos dos citados artigos 127 e 225 da Constituição
Federal, cabendo ao seu órgão, como Curador ambiental, a instauração do inquérito civil e
da ação civil pública, da ação penal, ou de qualquer outro procedimento administrativo
cabível, sempre que tiver ciência de alguma conduta que implique em destruição do
patrimônio cultural, buscando a responsabilização civil e penal do infrator.
Assim, ao tutelar o patrimônio cultural oriundo das comunidades urbanas tradicionais,
estaria o Ministério Público protegendo não, somente, um interesse coletivo à moradia,

25
É tema corrente na literatura de Amado, conforme observamos de personagens seus como o “malandro”
Quincas Berro D’água, o “capitão de areia” Pedro Bala, o capoeirista Baldo, o babalorixá Pai Jubiabá, e
tantos outros que formaram um painel social que retratava os moradores daquela comunidade, cujos traços
culturais, de tão marcantes, chegaram a ser confundidos com a própria cultura baiana, principalmente fora do
Estado da Bahia, visto o fato de muitos turistas virem para a Bahia em busca de seus “capitães de areia”,
malandros, marinheiros, alfaiates e “putas” – as prostitutas no linguajar de Jorge Amado – para quem a
palavra prostituta era um verdadeiro insulto.
26
MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 5.

18
mas sim o interesse difuso de proteção ao patrimônio cultural imaterial daquela
comunidade, ansiosa em manter seus hábitos, costumes e manifestações culturais; apesar
da repugnância que a Moral dominante demonstre.
Também cremos não haver conflito entre se proteger os bens culturais materiais e o
patrimônio cultural imaterial decorrente de populações urbanas tradicionais27, visto que
essas comunidades também integram o meio ambiente cultural, seriam considerados
elementos integrantes da paisagem e não indivíduos que somente estariam ocupando a
posse de bens imóveis dotados de valor histórico-arquitetônico; devendo o Poder Público
não promover uma assepsia social nessas áreas, mas sim fazer a restauração do imóvel e
tentar preservar a presença dos integrantes da comunidade urbana tradicional no local.

6- Conclusão:

1- Verificamos a existência de três fases históricas da proteção ao patrimônio cultural:


a) fase da excepcionalidade: nesta somente eram apreciados como bens
culturais aqueles dotados de um considerável valor artístico e arquitetônico, tendo
como paradigma a Carta de Atenas de 33;
b) fase historicista, na qual se passou a considerar o valor histórico e
documental dos bens, mesmo quando estes não apresentassem um valor artístico-
arquitetônico tão relevante, tendo como marco inicial a Carta de Veneza de 1964;
c) fase da imaterialidade, quando se reconheceram os bens culturais imateriais.
Esta etapa surgiu a partir da Declaração do México de 1985 e vem norteando a
proteção ao meio ambiente cultural até os dias atuais.

2- Constatamos que o Direito Brasileiro reconheceu, ao longo de sua evolução


histórica, a necessidade de preservação do patrimônio cultural imaterial, principalmente
com o advento da Carta Constitucional de 1988, especificamente o seu artigo 216, o que

27
Vale frisar a solução negociada pelo MP do conflito entre o Estado da Bahia e a comunidade tradicional de
alfaiates, residente em um casario, denominado como “Prédio dos Alfaiates”, integrante do patrimônio
cultural do Centro Histórico de Salvador, tombado pelo IPHAN, e pela UNESCO como patrimônio cultural
da humanidade. Assim, conseguiu-se que os alfaiates continuassem a exercer sua atividade, já
estabelecida há quase cinqüenta anos naquele lugar, e concomitantemente, que se restaurasse o prédio
em ruínas com a celebração de um compromisso de ajustamento de conduta, constituindo-se um dos
raros casos em que se conseguiu que não se efetivasse a expulsão das famílias residentes. Desse modo,
conciliou-se o interesse da preservação do patrimônio histórico-arquitetônico e o respeito a esta comunidade
urbana tradicional.

19
abriu uma brecha para que as políticas públicas culturais tenham de valorizar também os
bens culturais originários das comunidades tradicionais, tanto rurais e indígenas, quanto as
urbanas.
3- Em face da Carta da República e da legislação infraconstitucional que a
regulamenta, tem o Ministério Público legitimatio ad causam para agir na proteção do
patrimônio cultural imaterial e dos direitos das comunidades urbanas tradicionais.

4- Merece destaque o papel do Ministério Público e da sociedade civil organizada em


defesa do meio ambiente cultural, principalmente dos bens e valores constitutivos do
patrimônio cultural imaterial, notadamente, da preservação da integridade das
comunidades tradicionais.

7- Bibliografia:

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