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16/10/2017 Tocar à campainha aqui e na China

Crítica
15 de Julho de 2015 Lógica

Tocar à campainha aqui e na China


Júlio Sameiro

Se o leitor for europeu, se souber que fui eu que toquei à campainha e quiser mostrar que me
respeita, não demorará a abrir a porta. Porém, o meu amigo Fong, formado na velha cultura
chinesa, vai fazer-me esperar uns minutos... para mostrar que me respeita. Algumas pessoas
explicam diferenças surpreendentes deste tipo afirmando que europeus e chineses pensam
segundo “lógicas diferentes”. Esta explicação está errada e neste artigo mostrarei porquê.
Este erro não seria grave (e nem justificaria este artigo) se se tratasse apenas uma maneira
informal de dizer: “os chineses e os europeus pensam de maneira diferente sobre uma data
de coisas”. Infelizmente, pessoas pagas para pensar e para formar a opinião dos outros
(jornalistas, políticos, professores, intelectuais vários...) aceitam levianamente este erro e
nem percebem o que implica dizer que tal explicação é verdadeira.

Vou pedir ao leitor que justifique cuidadosamente, como se eu fosse um burro completo, a
sua decisão de não me fazer esperar. Pedirei também uma justificação ao Fong. Veremos
depois que a explicação das diferenças não reside na diferença das lógicas de cada um.

O leitor vai oferecer-me uma explicação semelhante a esta:

1. Se a pessoa esperar desnecessariamente à porta, então fica irritada ou ansiosa.


2. Se provoco irritação ou ansiedade, então mostro falta de respeito.
3. Logo, se faço a pessoa esperar à porta, então mostro falta de respeito.
4. Ora, não devo desrespeitar a pessoa que está à porta.
5. Logo, não devo fazer esperar, podendo evitá-lo, a pessoa que está à porta.

Antes de traduzir esta justificação ao Fong, expus-lhe a forma lógica do raciocínio e


perguntei-lhe o que achava da mesma:

1. Se A, então B. (ponto de partida)


2. Se B, então C. (ponto de partida)
3. Logo, se A então C. (subconclusão extraída de 1 e 2)
4. Ora, não devo C. (ponto de partida)
5. Logo, não devo A. (conclusão, extraída de 3 e 4)

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Fong replicou que a forma lógica deste raciocínio é impecável. Disse-me que a subconclusão
(3) e a conclusão (5) foram bem extraídas. E esclareceu: se a pessoa aceitar os pontos de
partida, isto é, as afirmações 1, 2 e 4, então deverá aceitar a conclusão. A menos que tenha o
estranho gosto de se contradizer — acrescentou.

Por sua vez, Fong apresentou-me a seguinte justificação.

1. Se abro imediatamente a porta, então a pessoa saberá que não senti a necessidade de me
afadigar algum tempo a arrumar e embelezar a casa.
2. Se não senti a necessidade de me afadigar em arrumar e embelezar a minha casa, então a pessoa
saberá que não considero a minha casa demasiado humilde para a receber.
3. Se não mostrar que considero a minha casa demasiado humilde para tão ilustre visitante, então
mostrarei falta de respeito.
4. Logo, se abro imediatamente a porta, então mostro falta de respeito.
5. Não devo desrespeitar a minha ilustre visita.
6. Logo, não devo abrir imediatamente a porta.

E foi a vez de o leitor me dizer o que pensava da forma lógica do raciocínio de Fong:

1. Se A, então não-B. (ponto de partida)


2. Se não-B, então não-C. (ponto de partida)
3. Se não-C, então D. (ponto de partida)
4. Logo, se A, então D. (subconclusão, extraída de 1, 2 e 3)
5. Não devo D. (ponto de partida)
6. Logo, não devo A. (conclusão)

E o leitor dirá, não tenho dúvidas, que este esquema de raciocínio está perfeito. Dirá mesmo:
as ideias de Fong estão solidamente encadeadas. Se uma pessoa, aceitar os pontos de partida,
isto é, as afirmações que correspondem a 1, 2, 3 e 5, não terá outro remédio senão aceitar a
subconclusão 4 e a conclusão 6.

E pronto! Está provado que, sobre lógica, o leitor e o Fong se entendem perfeitamente!

O que há de propriamente lógico nas decisões do leitor e de Fong? As conexões que


expusemos. Ora sobre as conexões entre as ideias não há qualquer divergência entre o leitor
e Fong. A divergência não está na estrutura da justificação e só esta diz respeito à lógica.

A lógica que usamos no dia-a-dia pode traduzir-se num conjunto de regras pelas quais
justificamos a verdade de uma afirmação a partir da verdade de outras. Por exemplo, o leitor
usou, na avaliação dos argumentos expostos, a seguinte regra:

Se forem dadas duas afirmações com o aspecto:

1. Se A é verdadeira, então B é verdadeira.


2. B é falsa

Conclui-se

3. A é falsa

Pode confirmar o uso que fez dessa simpática regra. No seu próprio argumento foi assim que
derivou 5 de 3 e 4; no argumento de Fong, foi o respeito por essa regra que o levou a
concluir 6 de 5 e 4. Sugiro que olhe para essas linhas tanto na versão do próprio argumento
como no seu esquema lógico. Se alguma coisa lhe parecer pouco clara na regra e no seu
funcionamento sugiro que a leia como se ela fosse um compromisso prático:

Se eu afirmar o seguinte:

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1. Comprometo-me no seguinte: se me provares que devo aceitar A, então também devo


aceitar B.
2. Provaste-me que não devo aceitar B.

Deverei afirmar:

3. Logo, não posso aceitar A (porque se aceitasse A, c'os diabos, teria de aceitar B como disse
em 1 e não aceitar B como disse em 2!)

Como se vê, “regras lógicas” é uma espécie de abreviatura de “regras para não metermos os
pés pelas mãos”.

Se as regras da lógica não explicam a diferença entre a conclusão de Fong e a do leitor, o que
a explica?

A diferença, como é óbvio, reside no facto de um aceitar algumas afirmações como


verdadeiras e relevantes para a decisão, enquanto para o outro elas são falsas ou irrelevantes.
Mas essa diferença não diz respeito à lógica. E isto é fácil de concluir: as formas do
raciocínio do leitor e do Fong podem aparecer em muitas circunstâncias e com conteúdos
muito diferentes: podem surgir numa ciência, num tribunal, numa discussão sobre as contas
do Benfica, e assim por diante. Ora, não é à lógica que compete apurar a verdade ou
falsidade de cada uma dessas afirmações: será às ciências, ao juiz ou aos contabilistas. A
lógica apenas dirá o que se pode concluir daquilo que já foi tomado como verdadeiro ou o
que se deverá aceitar a partir daquilo que já foi aceite.

E isto deveria ser o suficiente para concluirmos, sem mais conversa, que é simplesmente
leviano partir do exemplo dado para a conclusão de que o europeu e o chinês pensam
segundo “lógicas diferentes”.

Para percebermos tudo isto basta aquele conhecimento elementar que se encontra nas
primeiras páginas de qualquer manual actualizado de Lógica e que se pode adquirir com um
mínimo de estudo. No entanto os profissionais do pensamento e da opinião pública
continuam a repetir esse erro e a manifestar ignorância persistente sobre este assunto. A
ignorância em si não é crime, claro, mas a IM (Ignorância Militante) é inaceitável. Um sinal
da IM são as desculpas esfarrapadas: por exemplo, o jornalista ou o sociólogo que recusam o
estudo das noções básicas de lógica afirmando que essa não é a sua área. Nesse caso deviam
calar-se quanto à pergunta “há diferentes lógicas em diferentes culturas?”. Mas não se
calam!

Júlio Sameiro

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