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ARTIGO

Uma visão da Criminologia acerca do Homicídio Passional.

“Ó poderoso amor! Que por alguns respeitos transformas


um animal em homem e por alguns outros, tornas um
homem em animal”. (Shakespeare, Romeu e Julieta)

1. Ao se pensar o amor, e a força que ele tem sobre o


homem, há de se levar em conta que tal sentimento tem o dom de arrebatar a
razão e, não raramente, tem o poder de corromper aquela, levando o ser amado
a cometer os atos mais surpreendentes e trágicos.

“Tenho nos meus apontamentos um caso extremamente


curioso, que classifiquei sob o título: ‘o caso do pijama
malva’. É a história de um homem que um dia teve um
‘coup de foudre’, vendo uma mulher em pijama malva.
Nesse momento, como que sentiu um relâmpago passar-lhe
pelo cérebro e pela palidez extrema do seu rosto parecia
que ia desmaiar. A verdadeira obsessão do pijama que tinha
esse homem era resultado de que tivera, em tempos, uma
amante que adorava com toda a força do seu primeiro amor.
Mas ‘souvent femme...’ e foi assim que o nosso amoroso
recebeu um dia, pela manhã, um despejo definitivo da
amante. Nessa ocasião ela estava com um pijama malva. A
dor desse homem era indescritível, tentou, até, suicidar-se e
só um acaso lhe salvou a vida. Em seguida, procurou
consolar-se, mas logo que uma mulher lhe agradava e a
queria possuir, pedia-lhe para lhe aparecer em pijama
malva. Só um pijama que se assemelhasse ao da sua
primeira amante era capaz de lhe despertar o desejo”. L.
Rabinowicz - O crime Passional - Livraria Acadêmica São
Paulo .1.933
2. Mais do que nunca, se pode perceber essa força de
subversão do amor, quando analisamos o delito paSsional, forma ímpar de
destruição do sujeito interno, bem como do outro. O primeiro entendido como
o ser subjetivo que todos guardamos em nossa psique e, que Imanuel Kant
afirmava ser o nosso universo subjetivo. O segundo, é um outro ser que sofre,
a ação teleológica da vontade de destruir/imortalizar, tão típica do ser perdida-
mente apaixonado.

“Precedem a esses desenlaces sanguinolentos, que são os


crimes passionais, ou mais propriamente, os crimes por
amor, lutas, irresoluções, angústias, conselhos antagônicos,
hesitações da consciência. Mas, afinal, o homem
mentalmente são resolve: adota a deliberação definitiva. É
precisa-mente neste momento das deliberações decisivas,
em que o espírito humano se liberta ou se escraviza por
completo ao predomínio das paixões, que se manifesta a
responsabilidade dos criminosos passionais. Eles fazem,
afinal, o que, pelo menos, não previram, mas, deviam e
podiam prever, nesse momento em que eram árbitros do
próprio destino”.

Evaristo de Moraes - Criminalidade Passional - o Homem e


homicídio-suicídio por amor - Saraiva - São Paulo - 1.933

3. Isso porque, o delito passional é motivado não pelo


amor positivo, mas pelos seus aspectos mais impulsivos: a emoção, a paixão,
e os seus frutos mais perniciosos, o ciúme e o medo.

4. Os autores tentaram perceber esses elementos que, na


sua manifestação, violentam a força construtiva do amor e, que, como quer
Enrico Ferri, estão na base dos homicÍdios passionais, que arrebatam não
apenas o ser que é amado, mas, igualmente, aquele que ama.
“Assim, no tecido mesmo de sua obra, fixou Shakespeare
uma das verdades menos aparentes da vida criminal:
mostrou a idéia do assassinato, a má semente deitada,
cultivada e desenvolvida por um homem na alma de outro.
Ela cresce, atinge a energia impulsiva da idéia fixa, produz
enfim um ato violento, cuja gênese é afinal estranha à
consciência de seu autor; e este, apenas libertado do
pesadelo obcecante, pela explosão do acesso homicida, é
levado ao suicídio pela inexorável reação do senso moral.
O personagem de Otelo, temperamento fogoso e impulsivo,
em virtude da predominância do sentimento sobre a idéia,
corresponde, pois, exatamente aos dados da psicologia
criminal positiva”. Enrico Ferri - Os Criminosos na Arte e
na Literatura - Ricardo Lenz Editor - Porto Alegre 2001.

5. Para Epicuro, havia, na realidade, três tipos distintos de


paixão: o desejo, a alegria e a dor. O primei ro, é impulso egoísta, pois o ser
tomado desse tipo de paixão, ama apenas aquilo que lhe convém, sem se
preocupar muito com o outro. Segundo Myra y Lopes é, assim, o resultado das
alterações do corpo. Egocêntrico, o desejo tem relação com o sentimento de
propriedade sobre o outro.

“... ... a raiz tânica, ou seja, o obscuro impulso a retornar ao


não-ser primitivo, se expressa também fisicamente, de um
modo ativo, no desejo de dar a vida em holocausto ao ser
amado, isto é, de sofrer e de sacrificar-se por ele. Todas as
perversões masoquistas não representam mais que exageros
patológicos dessa misteriosa tendência auto-agressiva e
auto-anuladora, que aparece integrada com o amor e
representa, na realidade, o resíduo ou impacto que, em sua
gênese, deixaram seus dois gigantescos ascendentes: o
medo (mortal) e a Ira (destrutiva). Não são, pois, somente
os grandes místicos que desejam, quanto antes, desvanecer-
se (“morro porque não morro”, de Santa Teresa), senão
também muitas mentes vulgares (isto é, de escasso volume
psíquico), como prova o freqüente suicídio das mesmas
ante um suposto amor impossível...” Myra Y Lopez - Os
Quatro Gigantes da Alma - José Olympio Editor - Rio de
Janeiro - 2002.

6. E, ainda:

“As paixões representam, por conseguinte, uma duradoura


alteração da permuta normal entre o eu e o não eu, em
virtude da qual o indivíduo percepciona falsamente e de
modo unilateral tudo quanto se passa a sua volta.
Acrescente-se que as paixões perturbam profundamente a
personalidade ética, de modo que devemos buscar nelas
também a razão de voluntárias alterações da verdade
judicial: é que não só percepciona mal, mas se é levada a
afirmar ter percepcionado de modo não conforme à verdade
objetiva, pela orientação da nossa personalidade
psicoética”. Enrico Altavilla - Pscologia Judiciária -
Armênio Amado Editor - Coimbra - 1957.

6. O segundo, a alegria é paixão infantil, realizada na


forma que Altavilla chama de estado juvenil dos amantes. É desejo de estar,
sem ter, pois que é reconhecido naqueles inocentes amores platônicos. Há
desejo, mas solitário, não compartilhado e que satisfaz por ser impossível de
se consumar.

7. O terceiro tipo de paixão é força destrutiva, pois que


leva o ser tomado por esse sentimento ao sofrimento. Num primeiro momento,
sofre de forma altruísta, mas num segundo estágio, a dor é tão intensa que
apesar de amar o outro, deseja a sua destruição, pois que somente dessa forma,
acredita libertar-se daquilo que lhe causa o mal.

“O amor apresenta, como as idéias fixas, o fenômeno muito


evidente de obsessão e de impulsão: a obsessão implica
uma diminuição especial do campo da consciência, que
explica o exclusivismo que é caráter distintivo da paixão
amorosa. Os psicólogos têm discutido se a paixão amorosa
deve considerar-se um estado patológico... e,
verdadeiramente, o amor tem alguns aspectos patológicos.
Diz LINDER que ele ‘penetra em todos os círculos
representativos e domina todos os outros interesses, não
suportando junto de si nenhuma força superior na
consciência. E, efetivamente, no amor temos uma sucessão
ininterrupta de emoções agradáveis e dolorosas, de esperas
espasmódicas e de alegrias frenéticas, que se resolvem
numa concentração monoideísta e numa modificação da
personalidade ética”. Enrico Altavilla - Pscologia Judiciária
- Armênio Amado Editor - Coimbra - 1957.

8. Por sua vez, os Estóicos falavam em quatro tipos: o


desejo, a tristeza, a alegria e o medo. Os Cartesianos, por sua vez, elevaram
esse número para seis: o desejo, a alegria, a tristeza, a admiração, o próprio
amor e o ódio. Para eles, a causa profunda das paixões era a agitação que os
espíritos animais produzem no movimento da pequena glande que está no
meio do cérebro.

“... ... Delicado e forte, puro e perverso, terno e cruel, audaz


e tímido, sincero e teatral... não há contradição e antinomia
que não possa ser encontrada na história do amor. Mas o
grande paradoxo biológico deste máximo gigante da alma
deriva de outro motivo, que o distingue de seus três
congêneres, a saber: o fato de existir em forma bifásica,
determinando um constante fluxo e refluxo (efusão e
infusão)vital, em virtude do qual o ser enamorado se sente
simultaneamente mais exuberante e mais exausto, mais
cheio e mais vazio, mais vivo e mais amortecido”. Myra Y
Lopez - Os Quatro Gigantes da Alma - José Olympio
Editor - Rio de Janeiro - 2002.
9. Vemos, assim, que por uma parte se pode enumerar
paixões até ao infinito e por outra, podemos reduzí-la a uma só, qual seja, o
próprio amor. E que esse é, na sua forma complexa e contraditória, a base do
delito passional.

10. Mas esse elemento paixão, que se confunde com o


amor, tem uma enorme capacidade de destruição. Segundo Ferri, o ser amado,
que é tomado de paixão, tem em si um poder de dar e de tirar, precisando,
apenas ser empurrado para um fundo precipício em que o sentimento vai
derrotar a razão. Mira y Lopes já afirma, por seu turno, que o amor enamorado
e apaixonado é sem sentido, perdido e, em sendo assim, destrutivo.

“Até certo ponto, pode afirmar-se que a raiz agressiva do


amor tem também reminiscência da raiz metabólica. De
fato: um caso particular da nutrição celular é a chamada
‘fagocitose’, na qual a célula engloba as partículas mais
aptas para assegurar sua sobrevivência (antes de chegar a
fase de sua divisão), emitindo os característicos
pseudópodos, que passam a rodeá-las, aprisioná-las e,
finalmente, asseguram sua diluição e assimilação pelo
protoplasma. Pois bem: a pessoa amante, quando sua
conduta é regida pelo impulso agressivo, também fagocita,
aprisiona, engloba, anula e incorpora a seu próprio ser o
objeto amado (em um processo de absorção cuja
manifestação física mais ostensiva é o ‘beijo’ e o ‘abraço’.
Myra Y Lopez - Os Quatro Gigantes da Alma - José
Olympio Editor - Rio de Janeiro - 2002.

11. Já a emoção é a reação brusca dos nossos instintos


egoístas (medo, cólera e alegria) ou altruístas (piedade e ternura) feita,
sobretudo, dos movimentos e das sustações de movimentos, originados no
nosso inconsciente.
12. Os dois aspectos marcantes da emoção são, assim, a
intensidade e a brevidade. Pelo contrário, a paixão é uma emoção prolongada
e irascível, principalmente na sua forma patológica do amor.

13. A emoção é o estado agudo; a paixão, o estado crônico.


A paixão é sempre cortada por acessos de emoção. E a emoção é tomada de
sobressaltos que transformam o lado mais racional em puro instinto animal.

14. Por tudo isso, no homicida passional, se pode perceber a


transformação do amor em paixão. Quando isso ocorre, é uma emoção
crônica, obsessiva e destrutiva.

“As pessoas que se deixam levar por esse amor possessivo


passam a vida censurando e recriminando o objeto amado
por não as ‘amar bastante’; constantemente exigem ‘provas
de amor’ as quais deve sempre representar algum sacrifício,
alguma renúncia, alguma mutilação da personalidade
supostamente amada. E assim, esta passa a ser, na
realidade, vítima de quem, assegurando amá-la, consuma
um lento e dissimulado assassínio psíquico, procurando
justificá-lo, no pior dos casos, como um excesso de amor.
Excesso esse que leva, muitas vezes, ao chamado ‘crime
passional’ e à célebre e muito usada frase de canção: ‘matei
porque a queria’”. Myra Y Lopez - Os Quatro Gigantes da
Alma - José Olympio Editor - Rio de Janeiro - 2002.

15. O que acontece nos crimes passionais é, assim, em


muitos casos, devido à constituição fisiológica do apaixonado e a sua
contradição psíquico-cultural. Há os de diferentes gêneros. Há os homens
doces e brutais, tolerantes e fanáticos, alegres em demasia e tristes em
demasia, os sensuais e os frios, os perigosamente ardentes e os cativos na
moderação e, cada um deles, compondo a psique do homicida passional, vai
comportar-se de maneira diferente em presença do ser que é a fonte de sua
paixão.

“A onipotência súbita e a licença de matar – escreve Taine


– são um vinho muito forte para a natureza humana; a
vertigem aparece, o homem vê vermelho e o seu delírio
acaba pela ferocidade”. Sighele, Scipio. A multidão
criminosa - Organizações Simões - Rio de Janeiro - 1954

16. É possível que tenhamos a possibilidade de esperar um


ato mais desesperado e grave por parte desses homens apaixonados, mas não
há como não ficar apenas esperando o fato, o homicídio, para configurar a
transformação do amor, em amor paixão patológica, do amor em ódio/emoção.

17. Quer dizer, o fato de conhecermos um homem na sua


vida de todos os dias, não quer significar nenhuma certeza, pois que nada
podemos concluir acerca da sua vida passional. São coisas distintas,
antitéticas.

18. É, assim, que Evaristo de Moraes conta, em resumo, o


caso do alferes Almada, homem “honrado”, mas que cometeu um crime
passional:

Ele era um ‘bravo de Canudos’, no bom sentido da


expressão. Valente, destemido, tinha-se portado como os
melhores naquele meio de desequilíbrios nervosos
(ocasionados por toda a sorte de fatores deprimentes) tão
bem descritos por Euclídes da Cunha, nos Sertões. Quando
para lá partira já era casado com uma mocinha de distinta
família carioca. Voltou, trazendo, ao lado de tristes
recordações da lamentável campanha, o consolo de uma
homenagem dos colegas, expressa em documento que
encaixara e erguera em uma parede de sua modesta sala de
visitas. Ao que parece, na sua ausência, a mocinha
começara namoro com um adolescente da vizinhança,
rapaz imberbe, de quinze anos ou dezesseis anos. Verdade é
que, tempos depois, saía-lhe de casa a jovem esposa e ele ia
encontrá-la em uma espécie de rancho, no alto do morro de
São Carlos. Indícios seguros mostravam que ela não
estivera sozinha, ali... Tornaram os dois ao lar, e, em rápida
discussão, confessando o adultério (precisamente, diante do
quadro comemorativo das suas glórias militares) o
impetuoso alferes não se pode conter, matando a transviada
com um só golpe de faca”. Evaristo de Moraes -
Criminalidade Passional - o Homem e homicídio-suicídio
por amor - Saraiva - São Paulo - 1.933

19. Uma grande paixão cria no homem uma segunda


natureza, e como afirma Mira y Lopes, todas as leis da sua psicologia normal
perdem o valor. Arrebatado e, apanhado pelo turbilhão das contradições que o
assolam no seu todo mais íntimo, o ser apaixonado surpreende-se, em atos,
gestos e desejos que nunca antes manifestados, na verdade, ali dormitavam em
seu peito, esperando apenas o momento de todas as variáveis os libertarem.

20. Veja-se o que diz Ribot: “Os temperamentos impulsivos


e explosivos, sujeitos a emoções bruscas e violentas, não são os melhores para
se transformarem em verdadeiros apaixonados”. Mas, como se perceber o
temperamento impulsivo, se até mesmo no tradicional passivo pode estar
adormecido o vulcão do ímpeto do amor?
21. Na realidade, todos podem ser aqueles que ambicionam
destruir o ser amado, pois em seu universo íntimo fazem coexistir a figura de
Tanatos e Eros, personagens da mesma realidade. Amando e odiando,
construindo e explodindo, numa destruição que é na realidade, sua única fonte
de fuga para uma outra realidade que, de alguma forma, preserve o seu ego,
esse, amarrotado e soterrado por tanta dor de amor.

22. A comparação é impressionante e é, portanto, detrás dos


rostos calmos em aparência e exprimindo uma absoluta moderação, que
devemos procurar as grandes figuras apaixonadas.

23. O caminho para esses seres é direto e curto: amor,


ciúme, ódio, desejo de matar. Otelo, o grande personagem de Shakespeare não
disse assim, mas fê-lo. Os homens ciumentos, realmente, não valem mais que
as mulheres zelosas. É verdade que Otelo só foi levado ao crime graças aos
encantadores cuidados de Iago, esse, um apaixonado recalcado. Mas matou
em desespero, e em consciência de sua própria loucura, se suicidou.

“A que, no fundo de cada um de nós, dorme um Othelo,


que acorda ao menor pretexto. Sim, o ciúme nasce com o
amor, no mesmo instante. Dura tanto como ele e até ‘nem
sempre morre com ele, como diz La Rochefoucauld. Mas o
ciúme passa por diferentes fases. A posse do ser amado é o
momento em que ele se modifica. No fundo, o que é o
ciúme? É a dúvida, é o medo de perder o objeto para o
qual vão os nossos desejos. Assim compreendido, o ciúme
nasce com o clássico ‘coup de foudre’ que se encontra, é
certo, mais freqüentemente nos romances do que na vida,
ou então, no preciso momento em que a mulher nos seduz.
Por vezes até, o amor nasce do ciúme”. L. Rabinowicz - O
crime Passional - Livraria Acadêmica São Paulo .1.933
24. Diz-nos Myra Y Lopes sobre esse elemento particular e
tão pertencente ao amor:

“Essa incerteza do gozo anelado é já um gérmen do tóxico


com que o amor envenena suas vítimas: o ciúme. Pode-se
naturalmente objetar que a dúvida não pertence ao amor em
si, e sim quando se pensa no amor para si, mas o certo é
que não há amor completo que não tenha esse duplo
movimento de fluxo e refluxo, de efusão e infusão de uma
fase de expansão, cessão, transbordamento e entrega, e uma
contrafase de absorção, introjeção, captação e posse”. Myra
Y Lopez - Os Quatro Gigantes da Alma - José Olympio
Editor - Rio de Janeiro - 2002.

25. Mas o micróbio não prospera se não encontrar um


terreno propício. Otelo era maravilhosamente adequado ao seu
desenvolvimento. Assim como o são todos aqueles amantes que não
conseguem criar uma atmosfera de segurança para a sua emoção.

26. Otelo mata porque não acredita em seu próprio e


grande amor, e por não ter crença em seu sentimento, é afogado por ele de
forma tão intensa, que precisa subtraí-lo à vida. Matando Desdêmona, ele é
tomado da verdade de sua incapacidade, e assim, afogado em suas trágicas
contradições, só pode buscar o suicídio, não como intenção de redenção, mas
como forma de apagar a sua própria vergonha.

“Com toda a certeza, o apaixonado não é um ser normal. E


eis-nos, de novo, em face desse dilema da anormalidade...
O povo há muito compreendeu estar verdade dizendo a
respeito duma criatura que só viva pela paixão: loucamente
apaixonado, doido de amor. Há, com efeito, numerosas
semelhanças entre a loucura e o amor e Rhenda (Le
Passioni) chega até a identificá-las completamente,
clamando às paixões as psicopatias passionais. É com razão
que Ribot protesta contra esta opinião, fazendo notar que o
alienado não tem consciência do seu delírio, enquanto que
o apaixonado tem sempre consciência da sua paixão. Mas
Ribot acaba por confessar que se inclina bastante para a
tese patológica e diz: ‘paixão e loucura parecem-me
cortadas do mesmo tecido; o difícil é fixar-lhes os limites’.
Julgamos que o limite é completamente impossível de
traçar, porque tudo depende dos casos, isto é, do
temperamento particular do apaixonado, do grau de sua
dor, do estado de ânimo do seu ciúme, etc. Numa
representação do Otelo, uma rapariguinha, a meu lado,
murmurava de vez em quando: ‘pobre negro louco’. Ela
exprimia a opinião de todo o público sentimental”. L.
Rabinowicz - O crime Passional - Livraria Acadêmica São
Paulo .1.933

27. Por seu lado, Ferri sempre acreditou que o verdadeiro


homicida passional sempre tenta o suicídio, logo após matar o ser amado. Isso
é assim, porque eliminado a razão de todo o conflito, ato contínuo, o ser
transloucado é tomado de um vazio que lhe arrebata a vontade de continuar a
viver.

28. É este o raciocínio de todos os Otelos. Não basta


conhecer a verdadeira natureza de nossa paixão para se poder desembaraçar
dela. Pode se tentar entender racionalmente o ciúme, o sentimento de
abandono, mas nunca se poderá sentir da mesma forma que aquele que é
perturbado por ele.

29. Portanto, ainda que se examine a própria paixão e se


descubra a sua origem, e as suas causas, ainda que se estude ao microscópio
nos seus mínimos detalhes, isso não poderá servir de modelo para se traçar um
remédio ao desejo amar/matar. O tormento continua, indefinido nas almas
daqueles que sentem o medo, a dor, a alegria e o amor.
30. O apaixonado não é um ser normal. E mais uma vez se
defronta com o conceito de anormalidade, para se chegar à conclusão de que
faltam critérios seguros para a distinção entre o normal e o anormal.

31. O populacho há muito compreendeu essa verdade,


dizendo a respeito dum ser apaixonado que só viva pela paixão de que “em
seu amor, há loucura e perdido está para a razão”.

32. Há, com efeito, numerosas semelhanças entre a loucura


e o amor. Rhenda chega até a identificar esses dois sentimentos de forma
completa.

33. Ele chegar a chamar as paixões de psicopatias


passionais. E, é com razão que Ribot e Ferri, protestam contra essa opinião,
fazendo notar, o primeiro, que o alienado não tem consciência do seu delírio,
enquanto que o apaixonado tem sempre consciência da sua paixão.

34. Dessa forma, em tudo o homicida passional é um


exagerado. Ama intensamente, sofre intensamente, tem emoções intensas, age
de forma impulsiva intensamente, mata, com loucura intensa. Mas isso, não é
o caso do réu aqui.

35. Em primeiro lugar, a própria vítima afirma que ele em


nenhum momento agiu com violência. Não proferiu agressões verbais, não a
agrediu fisicamente, não ameaçou.
36. Ele foi ao encontro dela sem nenhuma intenção de
matar, na verdade, homem médio, queria apenas buscar a reconciliação, nada
mais. Em nenhum dos seus atos há qualquer manifestação do homicida
passional.

37. Ele deseja a volta da mulher, vai até ela quando, caso
fortuito, encontra uma bolsa com uma arma que, ao cair, mais tarde, quando se
aproximava da ex-mulher, dispara, pois estava engatilhada. Assustado,
amedrontado, ele foge, não para encobrir qualquer culpa, mas por medo, esse
outro gigante da alma que nos arrebata à razão.

38. E não é um medo por ter praticado alguma ação ilícita,


pois que ele não tinha dolo, mas reação ao evento que ocorre por sua culpa, já
que a arma dispara não por seu desejo, mas por mero acidente.

“... ... O medo exerce o seu domínio sobre tudo quanto


existe no âmbito psicoindividual. Qualquer dado, imagem,
idéia ou impressão vivencial pode converter-se (direta ou
indiretamente) em um estímulo servidor, ou objeto ou
agente. É assim que os homens geniais tem medo ante
coisas aparentemente tão inofensivas como uma maça
(Byron), uma colher (Strindberg) ou um laço de seda
(Flaubert). Tais medos costumam ser denominados
‘superstições’, e em alguns lugares se generalizam, dando
caráter terrorífico a uma infinidade de seres e
acontecimentos naturais inofensivos, mas que são
considerados como ‘maus presságios’”. Myra Y Lopez -
Os Quatro Gigantes da Alma - José Olympio Editor - Rio
de Janeiro - 2002.

39. Assim, ele foge porque é tomado de intenso pavor, já


que a cena que se desenrola em sua mente, de forma instintiva, o faz temer por
estar ali, no local em que agindo por culpa, ocorre o tiro. Natural, a sua reação
é a esperada, já que teme ser visto por aquilo que não pretendeu praticar.
“O temor às obscuras forças que são capazes de emergir em
nós, desde a profundidade do inconsciente, levando-nos a
excessos e dislates dos quais é sempre tarde para nos
arrependermos, pode constituir uma fonte de medrosa
tortura para muitos. Aqueles que sofrem desse medo estão
em constante sobressalto, não se atrevendo a ficar sós...”.
Myra Y Lopez - Os Quatro Gigantes da Alma - José
Olympio Editor - Rio de Janeiro - 2002.

40. É um medo reação, não a uma ação praticada, mas às


conseqüências da sua falta de cuidados para com a arma que estava junto com
a sacola que ele achara. Em sua mente, a soma de toda a situação resultou na
certeza de que o que havia acontecido, violentava toda a razão dele estar ali.
Tinha vindo para se reconciliar, mas acontecera um acidente. Nada mais justo
que ele fosse o culpado. Assim, tem um medo racional/sensato.

“Este medo previsor manifesta-se, geralmente, em forma de


tendência à fuga prévia. Sua fórmula é ‘não te arrisques’;
sua roupagem efônica é a atitude da prudência... ... Pelo
fato de ser pensado antes de ser sentido, o medo racional
dispõe de tempo para assegurar a marcha dos dispositivos
funcionais que permitem ao indivíduo evitar a apresentação
da anterior modalidade descrita, os seja, o medo-instintivo.
Surge nele, pois, primeiro, o que se chama a ‘intelecção
medrosa’ – em forma de idéia do possível dano – e é ela
que, desde as zonas de projeção do córtex cerebral, difunde
e irradia para todo o organismo, em um desenvolvimento
retroativo e descendente, os impulsos criadores do mal-
estar emocional e, por sua vez, das reações defensivas
prévias.” Myra Y Lopez - Os Quatro Gigantes da Alma -
José Olympio Editor - Rio de Janeiro - 2002.

41. Portanto, ele foge, não porque quer encobrir algum ato
ilícito que pretendeu realizar, mas não conseguiu. Foge, porque é tomado de
medo, pois tem a certeza certa de que será percebido como único responsável
pela tragédia acidental que ocorreu.

42. No caso em tela, em nenhum momento dos autos, se


pode perceber algum vestígio daquelas condições descritas acima e que
desenham a alma de um ser apaixonado. O réu, inclusive, é mais velho, já está
na fase em que as emoções são mais facilmente controladas e corrigidas. É,
assim, impossível acreditar na tese que afirma que ele pretendia matar a ex-
mulher, agindo, dessa forma, com dolo.

43. Não, ele não está tomado pela loucura da paixão, até
porque, nem todo o ser apaixonado é em potencial um criminoso. Nem sempre
o seu desejo, ainda que marcado pelo marco da forte paixão é à vontade de
eliminar o ser que é fruto de seu amor. Nesse sentido, afirmar Enrico Ferri:

“A paixão por si só, não leva um homem ao delito.


Certamente, em grande parte dos delitos passionais, ela
entra como impulso, manifesto ou íntimo e profundo, de
toda a estrutura orgânica ou psíquica; mas não basta para
fazer de um homem um delinqüente, assim como a loucura.
Do contrário, todos os alienados mentais seriam
criminosos.” Enrico Ferri - O delito Passional na
Civilização Contemporânea -

44. E, ainda:

Se todos os enamorados tivessem de vir a ser delinqüentes,


o mundo estaria povoado deles. Não basta, pois, a paixão
do amor para produzir o delito. O amor é, por certo, digno
da apoteose que teve através dos séculos. É a suprema e
eterna lei da conservação da espécie, dos instintos que se
atraem para reproduzir as gerações. É o grande inspirador
de todas as manifestações da vida. Não fosse a febre, a
centelha que, há milênios produz lampejos na alma
humana, a arte teria falido no campo do pensamento e do
sentimento. Mas, se o amor faz jus a mais completa, a mais
absoluta e mais entusiástica apoteose, quando leva à
criação e à conservação da espécie, tal apoteose não lhe
compete quando, aberração, conduz à destruição da vida”.
Enrico Ferri - O delito Passional na Civilização
Contemporânea -

45. Assim, senhores jurados, não há que se imputar dolo ao


réu e, em sendo assim, se faz imperativo reconhecer que é obrigatória a
desclassificação do delito que lhe é imputado. Não há dolo e, portanto,
equivoca-se o ministério público, o que é compreensível, já que o órgão
ministerial é tomado, seguidamente, pela senha acusatória, promovendo
verdadeira cruzada atrás do seu mero desejo condenatório.

46. Apaixonado, sim. Assassino, nunca! É verdade que a


civilidade pode ser uma casca sob a qual pode arder vivaz, no seu fogo
infernal, a paixão selvagem do homem, mas não em todo e qualquer homem.
O réu, vítima dos desígnios da fortuna, tem em si a força moral para sustentar,
sob o controle moderado da razão, as fúrias do seu amor, escrevendo, dessa
maneira, os próprios capítulos da sua paixão. Ele não se deixa iludir, ama,
sofre, mas resiste a tudo, sem se deixar conduzir pelos humores dos que amam
e que se perdem.

47. Muito Obrigado!

____________________
Gustavo Rocha Rodrigues - Advogado.
OAB/RS 53.120 OAB/SC 18.822 - A
Desde 22 de Novembro de 1999.
1999 - 2004. Todos Direitos Reservados.

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