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FORMAS DE INTERPRETAR ‘MITO’ EM PLATÃO

E NA CONTEMPORANEIDADE

Marcus Reis Pinheiro*

A presente comunicação contém três partes. Em primeiro lugar irá


apresentar uma noção geral do conceito de mito, especialmente aquela
noção formulada pela escola ritualista. Em seguida irá apresentar os modos
principais por onde um mito era transmitido na Grécia Clássica para então,
a partir de trechos da obra de Platão, apresentar uma interpretação da
função dos mitos nos diálogos.
É bem difícil definir com suficiente precisão o termo ‘mito’. A grande
maioria de suas características e de suas funções em um texto ou em uma
sociedade se mistura com as características de outros estilos ou gêneros
literários (se é que podemos dizer que ‘mito’ é um estilo literário). Para um
estudo frutífero dos mitos é necessário certa flexibilidade nos seus
conceitos primários. Tentar circunscrever esses conceitos primários de

*
Doutorando da PUC-Rio.

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Marcus Reis Pinheiro

forma fechada e cabal talvez seja improdutivo. G. S. Kirk tem razão quando
diz o seguinte:

“O que eu tentei chamar atenção sobre algumas dessas áreas


modernas de estudos não é, com certeza, um erro de observação,
mas sim a aplicação persistente e enganosa de uma falsa pre-
concepção, a saber, que ‘mito’ é uma categoria fechada com as
mesmas características em culturas diferentes. Uma vez que se
veja que mito como um conceito geral é completamente vago, que ele
implica em si mesmo não mais que uma estória tradicional, então
ficará claro que suas restrições a tipos definidos de contos, ‘sagrados’
ou aqueles associados aos rituais, são pouco seguros e desvirtuantes
[...] ‘Teorias Gerais’ de mito não são coisas simples.1

Podemos dizer que mitos são uma sub-classe da classe dos contos.
A restrição que Kirk tenta é bastante interessante, a saber, que os mitos
são contos tradicionais. Walter Burkert tenta uma definição em sua obra
Structure and History in Greek Mythology and Ritual de 1979: “Mito é um
conto tradicional com secundária, parcial referência a algo de importância
coletiva”. A grande dificuldade de se definir mito é que nem seus aspectos
formais nem os de conteúdo o destinguem de outros tipos de contos. O que
tanto Kirk quanto Burkert estão tentando fazer é limitar o conceito através
de seu uso na sociedade. Essa delimitação, apesar de parecer ser a melhor
dos estudos contemporâneos, dificilmente pode ser aplicada aos mitos de
Platão, já que estes não são de forma alguma tradicionais, apesar de haver
elementos tradicionais neles. O que quero fazer aqui é apenas apresentar
uma corrente de pensamento sobre mitos, a escola ritualística para que a

1
G. S. Kirk. Myth: its meaning and its funcitons in ancient and other cultures. O negrito é meu.
p. 28.

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tenhamos como pano de fundo ao pensarmos os mitos em Platão. Isto se


mostra importante pois estamos lidando com uma noção recente, mitos, que
não vem diretamente dos textos de Platão. Assim, temos que ter um mínimo
de diálogo com a tradição deste conceito para podermos pensá-lo em Platão.
A escola ritualísta é representada principalmente pela escola de
Cambridge, fortemente influenciada por Frazer e Durkheim. Seus mais
proeminentes expositores são Jane Harrison, A. B. Cook, Francis Cornford
e Gilbert Murray. A pedra de base dessa escola consiste em traçar uma
relação necessária entre mitos e ritos. De acordo com Jane Harisson, por
exemplo, os mitos são formas destorcidas de se explicar um rito. Os ritos
seriam primários nas sociedades antigas, já que eles são uma reação
anterior ao mito frente a natureza: os ritos são uma tentativa de domar e
controlar o mundo natural. Frente ao incomensurável e espantoso mundo
ao seu redor, o homem cria ritos, com poderes mágicos, para assim
domesticá-lo. Depois do rito institucionalizado, procura-se então um
fundamento e explicação para a sua função na sociedade. O mito nasceria
desta tentativa de explicação do rito. Como diz Harrison, “Minha crença é
que em muitos, até mesmo na grande maioria dos casos, a má
compreenção da prática do ritual explica a elaboração do mito”2
No linguajar de Harrison, o central para se compreender a vida
religiosa em geral, e especialmente grega, é a distinção entre dromena,
coisas realizadas, e legomena, coisas ditas. O mito, o legomena, é a
contraparte linguística do dromena, das coisas realizadas. O verdadeiro
sentido e orientação do mito deve ser encontrado no ritual que é corresponde
e de onde aquele foi haurido.
2
HARRISON, J. Mythology and Monuments of ancient Athens. Apud. VERSNEL, H.S. “What’s
souce for the goose is souce for the gander: myth and ritual, old and new” in EDMUNDS, L. ed.
Approaches to greek myth. Johns Hopkins University Press: Baltimore, 1990

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Apoiando-se na sociologia de Durkheim onde a forte emoção das


relações sociais é a origem da experiência religiosa, a escola ritualista vê o
daimon, o divino, nascendo da personificação do ritual. Através da forte
experiência ritualístca, sempre em grupo, o homem vai criando um mundo
mítico que explica e fundamenta as emoções dessa experiência em sociedade.
O ritual modelar e seu consequente mito para exemplificar essa teoria é o ritual
do rei que morre e renasce, com o mito do deus que também morre e renasce.
Toda essa concepção de mito foi muito criticada no decorrer do
século XX. G.S. Kirk3 junto com Fontenrose4 talvez sejam os mais ferrenhos
críticos. As principais críticas à teoria ritualista nascem de constatações
empíricas, onde apresenta-se um mito que não há indício algum de um
ritual equivalente e também um rito onde não se encontra um mito relativo
que o explique. Kirk vai mais além dizendo que certos aspectos essenciais
para a compreensão dos mitos e de sua função na sociedade antiga são
obscurecidos pela enfase na relação dos mitos com os ritos: certos mitos
apresentam aspectos lúdicos e narrativos que não precisam de um
equivalente prático ou cerimonial. Há ainda aspectos reflexivos nos mitos
que não são conectados a rituais. Enfim, mitos, de acordo com Kirk, não
podem ser restritos nem à noção de sagrado. Mesmo em sociedade
antigas, há no mito a função de sancionar, como um alvará, costumes e
crenças. Isto vai muito além da simples explicação de um ritual.
No entanto, certos traços da teoria ritualística dos mitos têm ainda
hoje valor para a sua correta compreensão. O que acredito ser de extrema
importância nessa visão dos mitos é a característica dos mitos terem
3
Op. cit.
4
The ritual theory of myth. Folklore Studies 18, Berkeley: University of California Press, 1966.
Ver também outros críticos dessa escola em Clyde Kluckhohn “Myths and Rituals: A general
Theory”, Harvard Theological Review 35 (1942); 45-49; William Bacom, “The myth-ritual
Theory,” Journal of American Folklore 70 (1957): 103-114.

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sempre uma contraparte prática, um lado de encenação que qualifica e


confere sentido a esse mito. Pensar na relação intrínseca entre mitos e ritos
nos leva a ter em mente o lado performático do relato mítico. O ato de contar
se torna então de extrema importância se pensarmos nele como algo que
acontece qualitativamente, isto é, em um determinado momento histórico
individual e pertecente à grande ou pequena sociedade que o escuta. Se
levarmos em conta na noção de mito certas idéias que qualificam a tragédia
grega, essa como um exemplo de um ritual grego, podemos pensar melhor o
modo de recepção do relato mítico. Os ouvintes de uma tragédia participam
da realização da tragédia: o ato de assistir à uma encenação trágica não é
passivo, mas ativo, isto é, a platéia tem uma função no desenrolar do drama.
Deste modo eles são chamados de ‘theoroi’, os espectadores.
Assim, a teoria ritualista nos lembra da prioridade da enunciação dos
mitos frente ao seu conteúdo. Desta forma, é importante termos em mente
o lugar concreto, na Grécia Clássica, onde esses mitos eram transmitidos. É
difícil ter certeza de todas as situações onde os gregos relatavam seus
mitos, no entanto, podemos salientar seis ocasiões: 1) recitações na
aristocracia antiga grega, 2) nos festivais, 3) nos rituais dos cultos de
mistério, 4) em recitações familiares, 5) nos simpósios, como no diálogo de
Platão, 6) em assuntos públicos, como na corte, durante julgamentos e
reuniões deliberativas. Vou detalhar melhor cada uma delas.
1) Podemos encontrar um exemplo dessas declamações de poesias
na aristocracia da grécia arcaica nas descrições da Odisséia onde
Demódoco ‘canta’em um banquete aristocrático5.
5
Odysséia, 8, 470ss, trad. Carlos Alberto Nunnes.
“Postas arautos já cortam, assim como o vinho misturam.
Por outro araauto trazido, o divino cantor já chegava,
que tanto o povo acatava, Demódoco. Fazem-no logo,
junto de uma alta coluna asssentar-se, no meio do hóspedes.”

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2) Nos festivais havia competições entre ‘cantores-poetas’ onde era


decidido qual seria o melhor a recitar Homero e os textos homéricos.
Nessas ocasiões, uma grande audiência estava presente e uma importante
interação entre os ‘cantores’ e os ‘theoroi’ (espectadores) se dava.
3) Descrever com cuidado os cultos de mistério foge do escopo do
presente trabalho, mas alguns pontos principais podem ser apresentados.
Normalmente, havia três parte nos rituais de iniciação: algumas coisas eram
encenadas, outras eram mostradas e ainda outras era declamadas. Muito
provavelmente esses ‘hieroi logoi’, essas palavras sagradas apresentadas
não eram escritas, mas sim transmitidas oralmente Após aqueles sendo
iniciados praticarem ações definidas, que alimentavam certas emoções e
estados psicológicos específicos, os iniciandos ouviam esses ‘hieroi logoi’. Os
mitos eram recitados para pessoas em estados psicológicos específicos para
que então as palavras pudessem ser experimentadas no modo mais radical.
4) Platão6 mesmo expressa que as mulheres contavam mitos e
estórias sobre os deuses para as crianças em sua primeira infância.
Descrever como ocorriam esses momentos é muito difícil, mas podemos
supor que as histórias eram recitadas de memória.
5) No Banquete de Platão nós temos um idéia muito boa de como
deveria ser um típico encontro da alta sociedade grega. Esses encontros podem
ter seus antecedentes nos banquetes aristocráticos exemplificados na Odisséia.
6) Edmund7 resume bem em um exemplo de como mitos eram
usados em situações públicas ou jurídicas: “No livro 2 deste trabalho
(Retórica de Aristóteles) ele analisa as várias formas de argumento retórico.
Um deles é o exemplo, que ele divide em duas variedades: pralelos

6
Timeus 26b2-7; República II 381e1-6; Leis X 887d2-3, etc.
7
Cf. EDMUND, Lowell (editor and introduction). Approaches to Greek myth, “introduction”, p. 8.

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históricos e estórias ou contos (lógoi), que ele especifica como de Esopo ou


da Líbia.”8 É importante termos em mente que os oradores usavam mitos
como suporte de seus argumentos em discussões públicas. Isso nos lembra
a função dos mitos de sanção legal.
É importante salientar a preponderância do discurso oral na Grécia.
Os mitos eram recitados e isso significa que todas as características do
discurso oral devem ser levadas em conta quando quremos descobrir o
valor dos mitos na Grécia Clássica.
Antes de entrar para a terceira parte desta apresentação, isto é, falar
sobre os mitos em Platão mesmo, queria apenas comentar certo emaranhado
de questões que não estou levantando e que seria importante para dar
clareza ao assunto. Falar de ‘mito em Platão’ não é algo tão simples como se
pensa. Em primeiro lugar, por Platão mesmo ter uma relação muito ambígua
com esse termo, certas coisas que ele chamaría com a sua palavra ‘mythos’,
nós não qualificariamos com o nosso termo mito: esses dois termos, ‘mythos’
e ‘mito’ não são sinônimos. ‘Mythos’ em Platão pode ser qualquer história, até
mesmo um sistema supostamente racional para descrever um acontecimento
físico ou biológico, como Platão descreve o ato de olhar no Teeteto. Qualificar
exatamente a noção de ‘mythos’ para Platão nos demandaria certo tempo
desnecessário para a presente comunicação. No entanto, é bem claro que
em alguns diálogos, ‘mythos’ aparece contraposta à noção de ‘logos’. No
entanto, para a análise que segue, basta ter em mente uma noção intuitiva,
quase que inconsciente da palavra mito: contar uma história para explicar ou
apresentar determinada realidade.
Em Platão, eu quero apresentar certas passagens da República onde
ele trata do poder de persuasão que têm os mitos. O meu interesse é achar
8
Edmund, introdução, p. 10.

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em Platão aquilo que me descreva a situação emocional e existencial da


pessoa que ouve o relato. Quero apresentar para vocês o efeito que os
mitos têm no momento de sua transmissão.
Uma das passagens mais marcantes sobre mitos e seu efeito no
ouvinte é quando Platão apresenta a educação primária dos guardiões da
República (especialmente a parte da ‘música’ , II 376e – III 412b.) Vou
situar a passagem. Procurando pela justiça no homem, Sócrates resolve
procurá-la em algo maior, no cidade, sendo esta da mesma forma que o
homem é. Apesar de a verdadeira cidade ser aquela que ele constrói
primeiro, ele abandona essa e continua a descrever a cidadde luxuosa. Ele
chega ao ponto onde a cidade irá precisar de guardiães. Ele primeiro
descreve o temperamento destes guardiães e então prossegue a descrever
qual deveria ser a educação perfeita para eles. Socrates começa9 dizendo
que eles (Socrates e Adeimantos), como fazendo estórias (en mythôi
mythologountes), irão descrever em discursos (lógos) qual é a educação
que os guardiães irão ter. Aqui temos o exemplo de como a palavra
‘mythos’ tem em Platão um poder de autoridade e de validade como
discurso sobre as coisas, apesar de também conferir um certo tom de
distanciamento de um rigor ‘epistêmico’.
Sócrates então prescreve para os guardiães a educação tradicional
na grécia clássica. Ela era composta por ginástica para o corpo e ‘musiké’
para a alma. A educação deveria começar com ‘mousiké’ e então ir para
ginástica. Sócrates então vai tratar das duas separadamente tentando
precisar ainda mais que tipo de educação o guardião precisa. Seria errôneo
dizer que o sentido de ‘mousiké’ é bem traduzido pela nossa palavra
‘música’. A palavra ‘mousiké’, falando estritamente, é qualquer arte sobre a

9
376d9-10

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qual a Musa presidir, especialmente música junto com poesia lírica.


Dependendo do contexto, pode querer dizer tocar a lira, música, poesia,
letras, cultura e até mesmo filosofia. A idéia de ‘mousiké’nesta passagem é a
mais vasta, incluindo poesia necessariamente, pois imediatamente depois ele
estabelece que em ‘mousiké’ sempre há ‘lógos’ (‘mythos’ incluído nesse
‘lógos’). Ao falar que a ‘mousiké’ é importante para a educação dos
guardiães, que serão o grupo da onde nascerão os filósofos, ele está falando
eminentemente sobre as histórias que se cantam nessa ‘mousiké’, mas
também se refere ao rítimo e a melodia que acompanham esses “mythoi”.
Descrevendo, então, que tipo de ‘lógos’ é esse da ‘mousiké’,
Sócrates diz que existem dois tipos de ‘lógos’: um verdadeiro e o outro
falso. Os falsos são os ‘mitos’ que ‘... como um todo são falsos, mas há
alguma verdade neles também.”10 Acredito que aqui temos uma importante
passagem sobre o que são mitos para Platão. Qual é exatamente o sentido
dessa passagem? Sócrates mesmo nos explica onde está a falsidade e
onde a verdade das histórias na ‘mousiké’. Podemos afirmar que os mitos
moldam as almas de tal forma que elas produzem um bom comportamento.
Apesar do conteúdo expresso pelos mitos não apresentar a realidade, o
produto de sua enunciação é benéfico para aquele que o ouve11, e desta
forma pode-se dizer que eles contém alguma verdade. A noção de verdade
aqui não pode ser uma de correlação entre linguagem e realidade, mas sim
de funcionalidade. Ao falar que mitos têm alguma verdade, Sócrates quer
mostrar que através de mitos nós podemos alcançar resultados corretos, e
se esses resultados forem a intenção primeira de os ter produzido, então os

10
377a5-6.
11
Ver sobre o uso dos discursos falsos como remédios, as ‘mentiras boas’: República 382d,
389b, 414c, 415a.

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mitos seriam ‘corretos’ ou ‘verdadeiros’. Isso nos lembra a função de


sancionar legalmente, como em um alvará, função que já tratamos um
pouco. Como os mitos são o modo através do qual se valida um
determinado hábito ou costume, é muito natural esperar que Platão também
os use para validar o comportamento que ele pensa ser o correto. Que os
mitos têm essa tarefa de implantar um comportamento é claro na
República12 mas eu gostaria de sublinhar a forma que eles fazem isto. O
ponto que trataremos agora é exatamente sobre o modo como o relato
mítico coloca a alma em determinada condição.
Continuando a passagem sobre a primeira educação dos guardiães,
Sócrates continua, “Você não sabe que o princípio de toda obra é o mais
importante, especialmente para alguém jovem e gentil? Pois é então que
mais ainda um tipo (typos) é moldado e colocado sobre ele, qualquer tipo
que se queira imprimir em cada jovem.”13 Aqui temos então a imgam que
me interessa: a imagem da impressão de moldes, de esculpir formas, que
se torna um lugar comum como descrevendo a aquisição do
14
conhecimento . O que Sócrates descreve aqui é que um ‘typos’ específico
é moldado na alma através de ouvir mitos quando se é pequeno. O sentido
primeiro desta palavra, ‘typos’, é de um golpe para produzir uma impressão
específica, exatamente como em uma máquina tipográfica ao se imprimir
jornais. A palavra para ‘moldar’, ‘platto’, também está relacionada com a
imagem de escultura, pois ela descreve exatamente a ação de se forjar ou

12
Acredito que o tratamento que Platão dá a ‘boa mentira’ em 414c ff. exemplifica que mitos
(nesta passagem trata-se do ‘homem de metal’) são um importante meio de se garantir um
comportamento.
13
377b,


14
Teeteto, 191d, e o uso estóico da ‘impressão na alma’.

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esculpir uma forma em algo15. Mais a frente, Sócrates continua: “E nós


persuadiremos as mães e as amas-seca a contar para as crianças e a
moldar (plattein) as almas delas com mitos muito mais do que seus corpos
com as mãos.” Então os mitos têm essa habilidade de esculpir uma forma
em uma alma. Ele também usa o verbo ‘enduo’ que tem o sentido de
colocar sobre, vestir roupa, como para cobrí-lo com pano ou vestimenta. E
por fim ele usa o verbo ‘ensemaino’ que designa o ato de colocar um selo
ou uma marca em algo, derivando a noção de ‘dar notícia’ de algo. Este
ultimo verbo, ‘ensemaino’, é formado pelo prefixo ‘en’ que quer dizer ‘em’ e
pelo verbo ‘semaino’ que quer dizer ‘indicar’, ‘significar’, ‘dar um signo’.
Sócrates está aqui assumindo que a alma é algo que pode ter
diferentes formas, e que tem uma habilidade plástica de se moldar a si
mesma através de influências, e especialmente quando ela é jovem. A
persuasão de ‘mythos’ é uma que afeta a ‘forma’ da alma e esta ‘forma’ é a
causa principal de suas ações. A idéia aqui é que a alma age de acordo
com o ‘typos’ ou forma na qual ela foi posta desde sua infância. Então
poderiamos interpretar a verdade que há no mito como o poder de moldar a
alma no modo correto.
Assim, acredito que delineamos uma forma bastante clara de
entender a função dos mitos nos diálogos platônicos: eles têm a função de
moldar a alma de quem os lê ou ouve, para que a correta forma ou ‘typos’
seja impressa em sua alma e assim ajam apropriadamente.

15
Desta palavra, ‘platto’, temos o nosso ‘plástico’ indicando a capacidade de se moldar em
algo.

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