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30/06/2019 Lugar de fala não pode ser confundido com argumento de autoridade - 30/06/2019 - Jorge Coli - Folha

Jorge Coli (/colunas/jorge-coli/)

Lugar de fala não pode ser confundido com


argumento de autoridade
Expressão tornou-se instrumento cômodo para calar boca dos que estão em
desacordo

30.jun.2019 às 2h00

Outro dia recebi um e-mail perplexo de uma aluna minha. Oriento seu
doutorado sobre Alair Gomes (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/08/1911847-mostra-revela-
contrastes-entre-dois-mestres-da-fotografia-homoerotica.shtml), um fotógrafo fascinado pela beleza

masculina (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2017/09/1918977-mesmo-com-imagens-eroticas-mais-
cruas-na-internet-facebook-veta-seios.shtml). Sobretudo nos anos 1970 e 1980, a partir da

janela de seu apartamento, captava imagens de rapazes na praia de Ipanema.

Suas fotografias alimentam-se de fascínio homoerótico para transcendê-lo.


Paira nelas um apogeu harmônico que lembra os nus masculinos do
renascimento florentino.

Mas a questão é outra. Minha aluna entrou em contato com um ativista gay
norte-americano, hoje bastante idoso, que conheceu Alair Gomes na década
de 1970. Tiveram longa conversa por telefone, ao que parece não muito
tranquila. Ele enviou depois para ela uma mensagem enérgica.

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“Se realmente você é heterossexual, por que você, uma mulher hétero, está
fazendo seu PhD na obra majoritariamente gay de um homem gay?”. “Você
parece uma pessoa gentil, mas tenho a crença convicta de que o trabalho
sobre um homem gay (escritores, artistas, fotógrafos etc.) deve ser sempre
feito por alguém da mesma sexualidade. O que é também bom senso”. Clube
exclusivo, portanto: não entre.

Nada impede que um pesquisador gay faça um excelente trabalho sobre um


artista gay (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/05/em-tres-livros-edouard-louis-ja-arranjou-briga-com-
mae-e-politico.shtml).
E nada impede que ele também produza excelentes resultados
estudando artistas héteros —a história da arte tem exemplos numerosos de
casos assim.

Creio que minha aluna, mesmo sendo sensível à beleza masculina, pode ter
duas vantagens: a de não limitar suas análises ao campo erótico, deixando de
perceber o que esteja além, e a de não confinar a obra de Alair Gomes no
âmbito de uma militância. Está claro, um pesquisador homossexual pode
escapar a essas demarcações, mas estará cercado por um número maior de
armadilhas. 

Nada tenho em contrário a que se centrem estudos no específico erotismo e


ativismo. Porém, estes não devem impedir que a exploração tome outros
caminhos, ampliando o conhecimento e a percepção.

O episódio que assinalei traz um caso claro de “lugar de fala”


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/caso-fabiana-cozza-expoe-tensao-entre-liberdade-na-arte-e-disputa-

por-espaco.shtml),
expressão bastante empregada hoje em dia. O tema é delicado e
procuro tomar algumas precauções.

Existem minorias (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/03/esquerda-deve-tirar-foco-da-pauta-


identitaria-para-ser-eleita-diz-mark-lilla.shtml) que sofreram opressões ao longo da história e

que são oprimidas ainda hoje. Minorias cujas vozes foram, ou continuam
sendo, abafadas. Qualquer sentimento de dignidade humana, por menor que
seja, leva a apoiar todos os movimentos que lutem para que elas manifestem
suas expressões plenas e livres.

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Mas não se pode confundir direito à palavra com argumento de autoridade.


Precisamente, a expressão “lugar de fala” vem sendo usada nesse sentido
com muita frequência. Não discuto teoricamente essa noção; discuto o
emprego sumário e autoritário que leva muita gente a impor, sem discussão,
suas convicções. 

Tornou-se um instrumento cômodo para calar a boca dos que estiverem em


desacordo. Só eu posso falar de algo referente à minha minoria, porque
pertenço a ela.

Ora, pertencer a uma minoria confere autoridade narrativa e testemunhal


apenas. Porque o único lugar de fala admissível quando se trata de
conhecimento e reflexão é o da universalidade racional. Fora dele,
desabamos no campo inseguro das paixões. Ele garante que os lugares de fala
não interditem a própria fala.

O argumento de autoridade engendra um corolário sinistro: o do


preconceito. No caso de minha aluna, o preconceito chega a dizer que a
incapacidade a ela atribuída tem a evidência do bom senso.

O mesmo bom senso, a mesma evidência que parecem tão indiscutíveis, as


mesmas obviedades que nos dizem também que pobre não gosta de
trabalhar, que há raças superiores e inferiores, que as mulheres não são tão
inteligentes quanto os homens. O leitor poderá colaborar, se quiser,
ampliando essa lista de estigmas que são puro instrumento de opressão
cruel e burra.

Penso numa minoria na qual me incluo, não tão em destaque, mas que sofre
também preconceito: a minoria dos velhos. 

Em número cada vez maior, nós, os velhos, somos vistos como inúteis, como
não produtivos, pesamos na economia com nossas aposentadorias ou
dificilmente encontramos trabalho; somos insultados ou tratados com
ternura preconceituosa (“tadinho, aquele tiozinho está tão velhinho!”).

Eu era incapaz de sentir, quando jovem, o declínio das forças que sinto agora.
Nos meus 20 ou 30 anos, velhice era uma abstração. Seria absurdo, porém,

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reservar apenas para velhos os estudos sobre a velhice em todos os campos.

Dentro do domínio da razão, ninguém tem autoridade para impor sua


palavra e, muito menos, para emudecer a do outro.

Jorge Coli
Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.
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