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A história bíblica: um panorama

Quando os autores eram meninos, recebendo a criação típica de um lar cristão, uma das
maneiras em que nós — e nossos amigos — recebíamos ensino bíblico era a leitura diária de um
algum texto da Bíblia extraído da Caixinha de Promessas, que nunca deixava, na hora do
devocional, de ser depositada sobre a mesa da cozinha. Além disso, muitos crentes da nossa
geração — e de várias gerações anteriores — tinham aprendido um tipo de leitura bíblica devocional
que enfatizava a leitura de apenas determinadas passagens bíblicas, nas quais se buscava uma
“palavra para o dia”.
Embora a ideia por trás dessas abordagens da Bíblia fosse muito salutar (uma exposição
constante às promessas seguras da Palavra de Deus), também tinha os seus pontos fracos, pois
ensinava a ler textos de maneira isolada da grande história da Bíblia.
O propósito e o interesse deste livro são ajudar você a ler a Bíblia como um todo, e mesmo
quando esse “todo” se restringir a “livros inteiros”, é importante ter consciência do papel que o livro
desempenha na história mais ampla da Bíblia (acerca desse assunto, v. Entendes o que lês?, p.
111-2). Mas para fazer isso, você precisa antes ter uma ideia do que é, afinal, essa grande história.
Em primeiro lugar, sejamos claros: a Bíblia não é um mero guia divino, nem uma mina de
proposições a serem cridas ou uma longa lista de ordens a serem cumpridas. É verdade, recebemos
dela uma abundância
de orientações, e ela de fato contém muitas proposições verdadeiras e ordens divinas. Mas a
Bíblia é infinitamente mais do que isso.
Não é por acaso que a Bíblia vem a nós principalmente por meio da narrativa — mas não uma
narrativa qualquer. Aqui temos a narrativa mais sublime de todas — a própria história de Deus. Isto
é, ela não se propõe ser apenas mais uma história da busca da humanidade por Deus. Não, essa é
a história de Deus, o relato da busca dele por nós, uma história contada essencialmente em quatro
capítulos: Criação, Queda, Redenção e Consumação. Nessa história, Deus é o protagonista divino,
Satanás é o antagonista, e o povo de Deus, os agonistas (embora muitas vezes, também, os
antagonistas), em que a redenção e a reconciliação formam a resolução da trama. (V. definição de
“antagonista” “agonista” no glossário.)
CRIAÇÃO
Como essa é a história de Deus, ela não começa, como no caso de todas as outras histórias
semelhantes, com um Deus escondido, que as pessoas estão buscando e a quem Jesus,
finalmente, as conduz. Ao contrário, a narrativa bíblica começa com Deus como o Criador de tudo o
que há. Ela nos conta que “no princípio Deus...”: que Deus é antes de todas as coisas, que ele é a
causa de todas as coisas, que ele portanto está acima de todas as coisas e que ele é o alvo de
todas as coisas. Ele está na origem de todas as coisas como a causa única de todo o universo, em
toda a sua vastidão e complexidade. E toda a Criação — toda a própria história humana — tem o
Deus eterno, por meio de Cristo, como o seu propósito e consumação finais.
Lemos, ainda, que a humanidade é a glória e a coroa da obra do Criador — seres feitos à
imagem do próprio Deus, com quem ele poderia ter comunhão, e em quem poderia ter satisfação;
seres que conheceríam o puro prazer da sua presença, amor e favor. Criada à imagem de Deus, a
humanidade, dessa maneira, desfrutou de forma singular da visão de Deus, e viveu em comunhão
com Deus. Mesmo assim, somos seres criados e destinados a ser dependentes do Criador no
tocante à vida e existência no mundo. Essa parte da história é narrada em Gênesis 1—2, mas é
repetida e repercute de muitas maneiras diferentes ao longo de toda a narrativa.
QUEDA
O segundo capítulo na história bíblica é longo e trágico. Começa em Gênesis 3, e essa linha
sombria da narrativa percorre toda a história bíblica, quase até o fim do último capítulo (Ap
22.11,15). Esse “capítulo” nos conta que o homem e a mulher desejaram e cobiçaram um estado de
divindade, e que num momento terrível da história do nosso planeta, eles escolheram esse estado
em vez de se contentarem com o seu estado de mera criatura, com a posição de dependência que
ele implica. Eles escolheram ser zwdcpendentes em relação ao seu Criador. Mas não fomos
projetados para viver assim, e o resultado dessa escolha foi uma queda — uma queda colossal. (Na
verdade, essa não é uma parte muito popular da história hoje, mas essa rejeição contemporânea faz
parte da própria Queda, e é esse o início de todas as falsas teologias.)
Feitos para desfrutar de Deus e ser dependentes dele, e para encontrar o nosso significado
basicamente na nossa própria condição de criatura, agora caímos debaixo da ira de Deus, e assim
passamos a experimentar as terríveis consequências da nossa rebeldia. A calamidade da nossa
condição caída é tríplice.
Em primeiro lugar, perdemos a nossa visão de Deus com respeito à sua natureza e caráter.
Sendo nós mesmos culpados e hostis, projetamos essa culpa e hostilidade sobre Deus. Deus deve
ser culpado: “Por que tu me fizeste assim?”, “Por que tu és tão cruel?” são os lamentos queixosos
que percorrem toda a história da nossa raça. Dessa forma, tornamo-nos idólatras, criando, agora,
deuses à nossa própria imagem; toda e qualquer expressão grotesca da nossa condição caída foi
reconstruída em algum deus. Paulo formulou isso desta forma: “Dizendo-se sábios, tornaram-se
loucos e substituíram a glória do Deus incorruptível por imagens semelhantes ao homem corruptível,
às aves, aos quadrúpedes e aos répteis [...] pois substituíram a verdade de Deus pela mentira e
adoraram e serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito eternamente” (Rm 1.22,23,25).
Ao substituirmos a verdade a respeito de Deus por uma mentira, passamos a ver Deus como
alguém cheio de caprichos, contradições, hostilidade, cobiça e vingança (tudo isso sendo projeções
do nosso eu caído). Mas Deus não se assemelha às nossas idolatrias grotescas.
Na verdade, se ele está escondido, diz Paulo, é porque nós tínhamos nos tornado escravos do
deus deste mundo, que cegou a nossa mente, de modo que estamos sempre buscando, mas nunca
conseguimos encontrá-lo (v. 2Co 4.4).
Em segundo lugar, a Queda também nos levou a distorcer — e embaralhar — a imagem divina
em nós mesmos, rolando-a na lama, por assim dizer. Em vez de sermos amorosos, generosos,
altruístas, atenciosos, misericordiosos — como Deus é —, nós nos tornamos avarentos, egoístas,
desamorosos, rancorosos, odiosos. Criados para refletir e, assim, representar Deus em tudo o que
somos e fazemos, aprendemos, em vez disso, a levar a imagem do Maligno, o inimigo implacável de
Deus.
A terceira consequência da Queda foi a nossa perda da presença divina, e, com isso, do nosso
relacionamento — nossa comunhão — com Deus. No lugar da comunhão com o Criador, tendo nós
um propósito na criação dele, nós nos tornamos rebeldes, ficamos perdidos e jogados à deriva,
criaturas que violaram as leis de Deus, abusaram da sua criação e sofreram as terríveis
consequências da condição caída na nossa destruição, alienação, solidão e sofrimento.
Debaixo da tirania do nosso pecado — na verdade, somos escravos dele, diz Paulo, e somos
culpados —, descobrimos que não estamos dispostos, e nem somos capazes, de voltar ao Deus
vivo na busca de vida e restauração. Além disso, passamos adiante a nossa condição destruída sob
a forma de todo tipo de relacionamentos destruídos entre nós (isso é ressaltado em letras garrafais
em Gênesis 4—11).
A Bíblia nos diz que estamos caídos, que há uma distância tremenda entre nós e Deus, e que
somos como ovelhas que estão se perdendo (Is 53.6; lPe 2.25), ou como um filho rebelde e sabe-
tudo, que vive numa terra distante entre os porcos, querendo comer a comida deles (Lc 15.11-32).
Nos nossos momentos de maior lucidez, sabemos que essa é a verdade, uma verdade que não se
aplica apenas ao assassino, ao estuprador ou àquele que abusa de crianças, mas que também se
aplica a nós — egoístas, avarentos e orgulhosos. Não admira que as pessoas vejam Deus como
nosso inimigo; nos nossos momentos de maior lucidez, sabemos que merecemos a sua ira pelo tipo
de pessoas repulsivas que na verdade somos.
REDENÇÃO
A Bíblia também nos diz que o santo e justo Deus, cuja perfeição moral se inflama contra o
pecado e a rebeldia das criaturas, é, ao mesmo tempo, um Deus cheio de misericórdia e amor — e
de fidelidade. A realidade é que Deus amou e se compadeceu dessas criaturas cuja rebeldia e
rejeição da sua condição de dependência as levaram a uma queda tão vil, e portanto a experimentar
a dor, a culpa e a alienação em que consiste sua condição de pecado.
Mas como nos alcançar, como nos resgatar de nós mesmos, com todas as nossas percepções
erradas de Deus, e com o desespero da nossa trágica condição caída? Como nos levar a ver que
Deus é por nós, e não contra nós (cf. Rm 8.31)? Como levar o rebelde não só a erguer a bandeira
branca da rendição, mas a espontaneamente mudar de lado e, assim, descobrir novamente a alegria
e o sentido da vida? É disso que trata o capítulo 3 da história.
E esse é o capítulo mais longo, um capítulo que conta como Deus se propôs redimir e restaurar
essas suas criaturas caídas, para que ele pudesse restaurar em nós a visão perdida de Deus,
renovar em nós a imagem divina e restabelecer o nosso relacionamento com ele. Mas também,
entremeado em todo esse capítulo, está o outro tema — o tema da nossa resistência constante.
Lemos, assim, que Deus veio a um homem, Abraão, e fez com ele uma aliança — para abençoá-
lo e, por meio dele, abençoar as nações (Gn 12—50) — e com sua descendência, Israel, que havia
se tornado um povo escravo (Exodo). Por meio do primeiro dos seus profetas, Moisés, Deus (agora
conhecido pelo seu nome Yahweh^vcvé) os libertou da sua escravidão e fez uma aliança com eles
no monte Sinai — segundo a qual ele, que os tinha libertado, seria o seu Salvador e Protetor para
sempre, que estaria singularmente presente entre eles, ao contrário de todos os demais povos do
mundo. Mas eles também teriam de manter essa aliança com ele, ao permitirem ser forjados à
semelhança dele. Assim, ele lhes deu a Lei como seu presente, tanto para lhes revelar como ele era,
quanto para protegê-los uns dos outros durante esse processo de se tornarem semelhantes a ele
(Levítico-Números-Deuteronômio).
Mas a história nos conta que eles se rebelaram repetidas vezes, e viram esse presente da Lei
como uma maneira de privá-los da sua liberdade. Como pastores que estavam sendo levados para
uma terra agrícola (Josué), eles não tinham certeza de que o seu Deus — um Deus de pastores,
como eles supunham — também lhes daria prosperidade nas colheitas, voltando-se, portanto, aos
deuses da fertilidade agrícola (Baal e Astarote) dos povos que viviam à volta deles.
Dessa forma, passaram por vários ciclos de opressão e livramento (Juizes), mesmo que, em
meio a tudo isso, algumas pessoas de fato tenham se revestido do caráter de Deus (Rute).
Finalmente, Deus lhes enviou mais um grande profeta (Samuel), que ungiu para eles o rei ideal
(Davi), com quem Deus fez uma nova aliança, especificando que um de seus descendentes reinaria
sobre o seu povo para sempre (l-2Samuel). Mas, infelizmente, o caldo entorna de novo (l-2Reis; l-
2Crônicas), e Deus, em seu amor, novamente lhes envia profetas (Isaías-Malaquias), cantores
(Salmos) e sábios (Jó; Provérbios; Eclesiastes). No fim, a infidelidade constante do povo acaba
sendo demais, e Deus o julga com as maldições prometidas em Levítico 26 e Deuteronômio 28. Mas
mesmo aqui (v. Dt 30) há uma promessa para o futuro (v., p. ex., Is 40—55; Jr 30—32; Ez 36—37),
segundo a qual viria um novo “filho de Davi” e um derramamento do Espírito de Deus no coração do
seu povo, de forma que eles seriam vivificados e transformados à semelhança de Deus. Essa
bênção final também incluiría pessoas de todas as nações (“os gentios”).
Finalmente, imediatamente antes da última cena, com seu final e epílogo, lemos sobre o maior
evento de todos — o fato de que o grande e último “filho de Davi” não é ninguém menos que o
próprio Deus, o Criador de toda a grandeza e majestade do universo, que entrou no palco humano,
como um de nós e à nossa semelhança. Nascido como filho de uma moça camponesa, no aprisco
de um povo oprimido, Jesus, o filho de Deus, viveu e ensinou entre eles. E finalmente, com uma
morte horrível, seguida de uma ressurreição que derrotou a morte, ele lutou com os “deuses” —
todos os poderes que nos foram hostis — e os venceu, ele próprio carregando todo o peso da culpa
e da punição pela rebelião das criaturas.
Aqui está a essência da história: um Deus amoroso e redentor, na sua encarnação, restaurou a
nossa visão perdida de Deus (tirou a venda dos nossos olhos, por assim dizer, para que
pudéssemos ver claramente o que Deus é de fato), e pela sua crucificação e ressurreição tornou
possível a nossa restauração à imagem de Deus (v. Rm 8.29; 2Co 3.18), e por meio da dádiva do
Espírito se tornou presente conosco em uma comunhão constante. Essa é uma revelação, uma
redenção, maravilhosa, quase inacreditável.
O aspecto extraordinário da história bíblica está no que ela nos conta sobre o próprio Deus: um
Deus que se sacrifica a si próprio na morte por amor pelos seus inimigos; um Deus que prefere
sofrer a morte que nós merecemos a ficar afastado das pessoas que criou para a sua satisfação; um
Deus que assumiu ele próprio a nossa semelhança, experimentou a nossa condição de criatura e
carregou os nossos pecados, para que dessa forma pudesse prover perdão e reconciliação; um
Deus que não nos abandonaria, mas nos perseguiría — a todos nós, mesmo os piores entre nós —
para poder nos restaurar à comunhão alegre com ele próprio; um Deus que, em Cristo Jesus, de tal
forma se identificou para sempre com suas criaturas amadas que veio a ser conhecido e louvado
como “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (lPe 1.3).
Essa é a história de Deus, a história do seu amor e graça, da sua misericórdia e perdão
insondáveis — e é assim que ela também veio a se tornar a nossa história. Essa história nos conta
que nós não merecemos nada, e no entanto recebemos tudo; que merecemos o inferno, mas re-
cebemos o céu; que merecemos ser eliminados, apagados da memória, mas recebemos o seu
abraço carinhoso; que merecemos a rejeição e o juízo, mas recebemos, de presente, a filiação
divina, para levarmos em nós a sua semelhança, para podermos chamá-lo de Pai. Essa é a história
da Bíblia, a história de Deus, e que ao mesmo tempo é, também, a nossa história. Na verdade, ele
permitiu, inclusive, que suas criaturas humanas tivessem uma parte na sua composição!
CONSUMAÇÃO
Como a história ainda não terminou, o último capítulo ainda está sendo escrito — mesmo que
saibamos, com base no que foi escrito até aqui, como será o fim do último capítulo. O que Deus já
pôs em movimento, assim lemos, por meio da encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo, e
pela dádiva do Espírito Santo, será finalmente consumado de forma plena.
Assim, o que torna essa história tão diferente de todas as outras histórias do gênero é que a
nossa história está repleta de esperança. Existe um Fim — uma conclusão gloriosa para essa
história presente. É Jesus, parado diante do túmulo do seu amigo Lázaro, dizendo a Marta, irmã de
Lázaro, que ele próprio, Jesus, era a sua esperança para a vida, tanto no agora quanto no porvir:
“Eu sou a ressurreição e a vida”, ele lhe disse, “quem crê em mim, mesmo que morra, viverá” —
porque Jesus é a própria ressurreição. E como ele é, também, a vida, ele prossegue: “e todo aquele
que vive, e crê em mim, jamais morrerá” (Jo 11.25,26). E então ele foi adiante e validou o que havia
dito, ressuscitando Lázaro do túmulo.
O próprio Jesus se tornou a confirmação final dessas palavras com a sua própria ressurreição.
Os perversos e os religiosos o mataram. Não suportavam a sua presença entre eles, porque ele se
opunha a todas as suas formas mesquinhas de religião e autoridade, baseadas na própria condição
caída deles — e então ele ainda teve a audácia de lhes dizer que ele era o único caminho para o Pai
(v. Jo 14.6). Assim, mataram-no. Mas como ele mesmo era a Vida — e o autor da vida para todos os
outros —, o túmulo não pôde retê-lo. E sua ressurreição não só confirmou as suas próprias
reivindicações e vindicou a sua própria vida no nosso planeta, mas também ditou o começo do fim
da própria morte, e se tornou uma garantia para aqueles que são seus — tanto agora quanto para
sempre.
È disso que trata o episódio final (o Apocalipse) — a conclusão que Deus dá à história, quando a
sua justiça põe fim ao grande Antagonista e a todos os que continuam a levar a imagem dele (v. Ap
20), e quando Deus em amor restaura a Criação (Éden) como um novo céu e uma nova terra (v. Ap
21—22).
Essa é, então, a metanarrativa, a grande história, de que os diversos livros da Bíblia são, cada
um, uma parte. Ainda que busquemos, vez após vez, indicar a maneira como cada livro se encaixa
no todo, enquanto você os ler poderá perceber por si mesmo como eles se encaixam nessa
narrativa. Esperamos, também, que você se pergunte como você mesmo se encaixa nessa história.

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