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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA ............................................................................................. 03

AGRADECIMENTO....................................................................................... 04

APRESENTAÇÃO........................................................................................... 05

A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO INFERNO...................................... 06

ESTÉTICA........................................................................................................ 26

OS DOIS UNIVERSOS DE HELENA........................................................... 27

A DESDITOSA VENTURA DO JOVEM ARISTEU................................... 30

A DIVINA COMÉDIA LITERÁRIA............................................................. 38

UMA CARTA DE AMOR............................................................................... 49

POEMAS E AFORISMOS.............................................................................. 52

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DEDICATÓRIA

Dedico esta singela coletânea de textos a todas as pessoas que me têm lido

e comentado. Mas dedico, sobretudo, à presença de minha mãe muito

querida e bem amada.

Também a sempre querida Sabrine, fonte inesgotável de inspiração, por sua

lindeza e delicadeza.

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AGRADECIMENTO

Agradeço a Deus pela vida e, em nome dele, a todas as pessoas que me

inspiram, incentivam e simplesmente leem.

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APRESENTAÇÃO

Esta é uma coletânea de contos, poemas e aforismos. Os textos foram

escolhidos por mim entre as composições que tenho feito ao longo dos anos. Percebi

que tenho mais textos do que imaginava, ou um dia sonhei.

O título “A Nova Aurora” refere-se a uma das muitas composições que

perdi nas informáticas da vida...

Os contos são apenas quatro “O menino de gelo”, “A Divina Comédia

Literária”, “A Desditosa Loucura do Jovem Aristeu”, e “A República Democrática do

Inferno”. Este último mencionado pode levar ao leitor, pelo nome, a pensar em algo que

profana o templo de Deus, mas não é assim. Trata-se apenas de uma crítica aos sistemas

políticos que ainda prevalecem a nos destituir em nosso coração.

A ordem das composições foi feita aleatoriamente, de acordo com o que me

vinha em mente. Lembrando que me impressionou a grande quantidade de pessoas que

leem e se dizem encantadas com o meus textos: essa é a razão de ser deste pequeno

livro.

Sem mais delongas, apresente-se a obra ela mesma.

...e desde já agradeço a todos os meus amigos.

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A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO

INFERNO

Certa tarde, dia 28 de novembro de 2001, um grande amigo de minha

família e também amigo meu, chamado José Silvério Fonseca Tavares – cultíssimo

senhor, amante da teologia e da filosofia, mas pouco amigo da política – já sentindo o

peso da idade, naqueles que seriam os últimos de seus dias, contou-me um sonho que

tivera, acerca de um peculiar sistema democrático emergido no Reino dos Infernos.

Sonhara, em verdade, havia alguns dias, que percorrera a vereda da morte. Um anjo belo

a prevenir, apaziguar, mas também apressar-lhe o coração, viera ter com ele em sonho.

Em sonho, ao deixar o espírito ao corpo, percorrera extensa estrada e

achegou-se ao cimo de um monte muito alto, de onde podia-se avistar a fronteira entre o

Céu e o Inferno, bem como os enormes portões doirados que davam passagem para cada

um dos dois destinos certos, conforme a sorte de cada mortal.

No alto monte, não se havia sozinho o seu José, uma vez que aquele

caminho seria necessário e único para todo ser munido de alma. Ali, podiam-se

distinguir mulheres e homens, crianças e idosos, posto não se distinguissem as causas de

estarem lá, conforme a sentença promulgada no Tribunal Sagrado do Senhor Deus. Não

era dado a seu José o conhecimento acerca de quais seriam os bons e os maus, e a

sentença que definira aonde logo jazeriam. Havia também guardiões alados muito

imponentes, aos quais os murmúrios da multidão denominavam anjos.

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Ao que me ocorreu, conforme a fala de meu bom e velho amigo, esses

distintos anjos haviam-se no local para conduzir aqueles que logo ou estariam no

Inferno, ou no Céu, conforme sentença do Senhor Deus. Todos, dentro em pouco,

seriam conduzidos cada qual a seu respectivo destino eterno, mas sem que pudessem

valer-se do gosto para decidirem-se aonde ir, pois eram mortas de corpo e também de

arbítrio, diferentemente de como outrora se encontravam na Terra dos Viventes.

Aos pés do portão celeste, conforme se via ao longe, havia algumas almas,

em pequeno número, se comparadas às dispostas defronte a entrada do Inferno. Isso

despertou assombro em seu José, que se questionou a si: são tantas as pessoas más, que

erraram sobre a Terra a dedicar suas vidas ao pecado e à perdição? Desistira do perdão e

da misericórdia o Senhor Deus?

Então, de maneira inefável à razão, assim como é mesmo o sonhar, um anjo

achegou-se imperceptível por trás e tocou o ombro de seu José, que se virou de assusto.

Esse anjo, apresentando-se por arcanjo Miguel, saudou-o com um “salve” e, como lesse

os pensamentos, disse a meu amado amigo que a misericórdia divina é larga quão o é o

infinito por Ele criado, mas o arbítrio humano, enquanto ser vivente, é sobremaneira

livre para escolher trilhar pela vereda direita ou não, e é, amiúde, incondizente com a

vida ditada pelo sistema político do Céu. Nem todos adaptam suas causas ideológicas a

um sistema totalitário como o dos Céus e, quando o Inferno tornou-se uma república

democrática e se propagou vastamente as liberdades civis, aumentou substancialmente a

quantidade de pessoas que desejavam ir para lá, enquanto ainda viviam, conforme o

senso de cada livre arbítrio. Em seus novos templos, dedicados ao Anjo da Luz, as

pessoas corroboram, em seus peitos, os preceitos da democracia infernal, aos quais

prestam culto.

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Ao que parecia, no contexto do sonho, propagou-se a ideia de que,

conjuntamente à democracia, emergir-se-ia, no Inferno, um Estado de bem-estar social,

ou Welfare State, como queriam os mais requintados.

Se houvesse bem-estar social no Reino dos Infernos, o lugar se

descaracterizaria, não seria mais o ambiente apropriado para punir eternamente os

pecadores: resumiu o arcanjo Miguel a seu José o pensamento que correu os Céus

quando, surpreendentemente, instaurou-se uma república democrática no Reino dos

Infernos. Qual seria o sentido dessa revolução democrática? – perguntava-se pasmo o

Senhor Deus, também os anjos e os santos dispostos a sua destra.

Lúcifer, que até então era príncipe, legislador e juiz supremo, permitiu a

divisão dos poderes em três, Executivo, Legislativo e Judiciário; e, mais excêntrico

ainda, não ocupou a direção de nenhum deles. Pela primeira vez, viu-se, no Reino dos

Infernos, eleições diretas e democráticas para presidente da república, cinco

governadores e centenas de deputados e senadores.

O Primeiro, o Segundo, o Terceiro, o Quarto e o Quinto dos Infernos foram

transformados em estados independentes, cada qual com seu governador e seus

deputados, eleitos através de eleições diretas, aos moldes de uma confederação, de

conforme como regia a Constituição Federativa Democrática do Inferno.

Tudo prometia uma aurora nova e doirada, a anunciar consigo a fina flor da

esperança nos jardins e fortalezas daquele lugar outrora ausente de liberdades civis e de

bem-estar social.

O impacto da notícia provocou tamanha comoção que, por muito pouco, a

Bolsa de Valores Celestial, cujos títulos mais valorosos eram as virtudes divinas, em

especial o amor, não sofreu um crack, devido à queda de cotação dos imóveis celestiais,

que perderam quase setenta por cento de seu valor. A maior parte dos religiosos da

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Terra dos Viventes passaram a apostar na valorização dos terrenos nos Infernos, e, em

sendo assim, cresceu o número de seitas anti-cristãs e insurgiu vigorosa deturpação das

leis divinas nos templos, por meio dos falsos profetas, que são, em verdade,

marqueteiros perversos.

Uma vez que o Inferno tendia a se constituir um Estado transcendente de

bem-estar social, aos moldes da social-democracia, não mais se encontrara sentido em

submeter-se às regras bastante restritivas impostas para o ingresso no Reino dos Céus,

pesadas sobretudo no pós-morte, defronte ao Senhor Deus, em Seu Tribunal Sagrado.

Entrar no Inferno sempre foi mais fácil e, agora que corre a notícia acerca da

democracia, tornou-se desejável, ao menos na perspectiva dos mais incautos.

Os crentes investidores, dotados de sabedoria secular, entendem necessária

muita cautela, porque o sistema político infernal sempre foi instável, de maneira tal que

não convinha deixar de súbito a moderação situada nas custosas virtudes divinas,

aquelas ditadas pelo próprio Senhor Deus. As virtudes eram os títulos imobiliários mais

encarecidos, mas agora vêm perdendo o valor. Conforme muitos dos teólogos

especuladores, tais títulos ainda seriam o investimento mais seguro, se se deseja boa

morada no porvir, quando o anjo da morte ceifar as almas da Terra dos Viventes.

Não sem assombro eu ouvia seu José narrar essa história com tanta

veemência e convicção, como acreditasse no sonho sendo a mais vivaz realidade.

Confesso ter duvidado de sua sanidade. Mas, se tudo aquilo não fosse mais que a

narrativa de um sonho, certamente enganei-me quanto à lucidez de meu melhor amigo,

afinal, se a história parecia louca é porque somos todos loucos em sonho... e seu José

era a mais sóbria das pessoas a quem conheci... e...

Em algum instante, seu José deve ter-me pego a divagar sobre essas

questões, pois chamou de mim novamente a atenção para o caso, sem deixar de lembrar,

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de vez em quando, de quem lhe dissera aquelas coisas: um anjo em sonho,

autodenominado Arcanjo Miguel.

Dizia meu saudoso seu José: Os Céus e os Infernos tinham em comum o que

pode ser chamado de sistema político: ambos, até os anos finais do século XX,

edificavam-se, desde o amanhecer dos tempos, por regimes políticos totalitários e

centralizados. O Céu, como é de sabedoria comum, é ditado pelo Senhor Deus, que

exige, para entrada em Seus jardins e fortificações, O amarem acima de todas as coisas,

como reza o primeiro mandamento enviado a Terra dos Viventes. O segundo

mandamento é também bastante estratégico: ama a teu semelhante como amas a ti

mesmo. O amor evita que povos, ao entrarem no Reino dos Céus, empunhem suas

espadas e apontem seus fuzis e cachões contra outros povos e, especialmente, contra o

chamado povo do Senhor Deus, o mais fortemente armado dos Céus e o que ocupa os

cargos mais importantes, à destra de seu Senhor, como santos.

O sistema totalitário celestial se mantém estável desde a primeira e

derradeira revolução, ocorrida na aurora dos seres, quando Lúcifer e um terço dos anjos

decaídos, derrotados pela milícia liderada pelo intrépido arcanjo Miguel, foram habitar

o Inferno. Depois de dizer que preferia ser príncipe no Inferno a ser servo no Céu,

Lúcifer não gozou de paz e lhe acompanhou uma eterna cefaléia provocada por

infernais antagonismos políticos.

O Céu ainda sustenta bem seu sistema totalitário, embasado na lei do amor.

Nos anos finais do século XX, entretanto, o totalitarismo deixou de existir no Inferno,

mas não sob a égide de uma legítima revolução e guerra civil, com levantes populares e

derramamento de sangue, mas sim sob a concessão pacífica de Lúcifer. Isso causou o

espanto geral. Por quê? Perguntaram-se todos, por todo canto, do Céu ao próprio

Inferno.

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No Reino dos Infernos a revolução não acontecera, de fato, ora graças à

habilidade diplomática do Anjo da Luz, ora ao seu sobrenatural poder coativo e

repressivo – mas esteve prestes, em meados do século XX.

Logo após a Segunda Guerra Mundial da Terra, um grande líder carismático

foi pisar nos terrenos do Inferno. Seu discurso era efusivo e cativante, detinha o poder

de inflamar as massas, mais até que as próprias flamas infernais. Esse homem chama-se

Adolf Hitler, a quem maior parcela do povo elegeu para seguir a frente do movimento

denominado, mais tarde, Neoinfernonazista. Ao que se pode lembrar, desde Ivã, o

Terrível, Czar na antiga Rússia, não houve ninguém que tenha ameaçado tanto o reinado

de Lúcifer.

A guerra, aos moldes da Blitzkrieg – tática bélica implantada na Segunda

Grande Guerra Mundial, que quase abateu a Terra dos Viventes – houve-se infrutífera,

graças aos socialistas, que em honra da própria revolução, sabotaram os planos de

Hitler. Este e seu conluio, somados aos desafortunados socialistas, foram exilados para

a cidade-estado Quinto Inferno. Ao retornarem, em tempos de anistia, eram sábios

doutores, escritores dotados de ideais liberais e, mais além, ocupantes de cargos

políticos.

Não poucas vezes, na esperança de arrefecer o fogo de revolta dos corações

das massas, Lúcifer adotara medidas políticas inspiradas naquelas empregadas na Terra

dos Viventes. Como nos conta a historiografia, na antiga Roma, os líderes romanos

inventaram a chamada política panem et circenses, que se consistia de alimentar e

divertir o povo, com intuito de abrandar os sentimentos de indignação e revolta contra o

sistema político e a situação social vigente. Lúcifer imitou algo semelhante, mas no

Inferno eterno, não havia política de pão e circo que fizesse a paz perdurar.

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Quando ainda do vigor da política panem et circenses, nas Olimpíadas da

Paz, que ocorrem no estádio de Atletés – evento e lugar desconhecidos aqui na Terra dos

Viventes, mas existentes no Reino dos Infernos desde sua fundação – ocorridas no

século dezesseis, um grupo de atletas famosos, sob o comando de alguns subversivos da

corte, incitaram o povo contra a ditadura de Lúcifer. O povo saiu às ruas e dirigiu-se,

aos brados e gritos de guerra, embraçados de escudos, empunhados de espadas e lanças,

ao Palácio Vermelho Sangue, sede do governo e moradia particular de Lúcifer. A

Milícia Satânica, os temidos MS, após combate de sessenta e seis anos e seis dias,

aprisionou os principais líderes revolucionários, empalou-os na hora sexta e os deixou a

vista na gigantesca Praça Vermelha do palácio, a fim de que servissem como punição

exemplar. Ficaram lá até a década de 1980, quando receberam anistia, na aurora

democrática.

O próprio arcanjo Miguel, ao falar a seu José, parecia não crer nesses fatos.

Lúcifer não perdoava a ninguém, mas lhes festejava a angústia e ria-lhes ao sofrimento.

Seu José lembrava-se bem das palavras do anjo: “Todos, que o Senhor Deus me puna se

minto, todos os opositores ao sistema totalitário do Inferno receberam anistia”. E

novamente a questão: “que diabos significa isso, meu Santo Deus!?” – palavras literais

do arcanjo Miguel, ditas a seu José em sua narrativa, e que delas não me esqueço

jamais.

O arcanjo Miguel, um dos representantes do Senhor Deus naquela montanha

alta – politicamente neutra, meio alegre, meio triste – devido precisar-se entreter ao

ofício a que fora destinado, despediu-se de seu José dizendo-lhe: “estás nesta montanha

de passagem, meu bom homem. Ainda não chegaste a tua derradeira hora”.

Talvez – disse-me seu José – essa fosse a precisa hora de acordar, mas, pela

primeira vez em minha vida, interessei-me pelos assuntos da política. Afinal, embora

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aquele não fosse o meu momento derradeiro, eu sabia que ele não tardaria a chegar e ao

voltar para a vida terrena, após acordar do sono, eu precisaria escolher aonde instalar

minha estada eterna.

Seu José, em vez de acordar do sonho, como que por escolha, resolveu-se

ter com outro anjo. Era igualmente imponente, talvez de fisionomia mais simpática e

afável. Era belíssimo.

O anjo portou-se de modo muito polido e tão solícito como afável. Saudou

seu José com um “salve”. Seria um digníssimo representante do Senhor Deus, conforme

cogitou meu amigo. Mas, para o espanto de seu José, o guardião afirmou-lhe ser um

anjo decaído: seria, em verdade, representante e assessor político de Lúcifer. Esteve

com ele na revolução celestial, no alvorecer dos dias, na milícia de um terço dos anjos,

comandada por Lúcifer, e derrotada pelo amigo e rival arcanjo Miguel e seu valente

exército.

O anjo decaído sorriu-se (mas sem sarcasmo, antes simpático) ao espanto do

homem que lhe abordava na circunstância, dizendo algo semelhante a isto: “Sei que

esperavas encontrar, como representante do Diabo, um ser com rabo e chifres, feio e

raivoso; não acredites, pois, em tudo o quanto escutas nas igrejas que frequentas. Ora,

como tu sabes, é comum ao ferrenho opositor político moldar má imagem ao seu

adversário”.

Conforme o assessor político de Lúcifer, quem tinha a vez com seu José

naquele instante, seu líder é o maior dos estrategistas e jamais se arrisca a implementar

no Inferno políticas nunca antes muito bem avaliadas, por isso ele selecionara grandes

pensadores para se constituírem na Comissão de Estudos Sobre os Sistemas Políticos e

Econômicos da Terra, a chamada CESPET. A verdade é que desde há muito, sentia o

primeiro escalão do Inferno a necessidade de adoção de ações que, simultaneamente,

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preservassem seus pescoços, criassem estabilidade política, conservassem os poderes do

dirigente e, o mais importante de tudo, não “desinfernizassem” o Inferno.

Os pesquisadores da CESPET, a princípio, concentraram seus esforços em

estudar Estados centralizadores e totalitários, pois pensavam constituírem-se lugares

mais análogos ao espírito político predominante nos Infernos. As políticas ditatoriais

desses Estados mantiveram-se por pouco tempo, de outros um pouco mais. Os cientistas

observaram, neste ínterim, que mesmo nas ditaduras mais duradouras, havia no espírito

do povo a semente da revolta e isso, cedo ou tarde, germinaria em levantes e

consequentes decadências dos ditadores. Esses modelos de governo certamente não

dispunham de diretrizes seguras para serem adotadas eternamente no Reino dos

Infernos.

Conforme ouvi de seu José, segundo lhe dissera o anjo decaído, dedicado a

Lúcifer, as primeiras pesquisas da CESPET resultaram desanimadoras. Não se

encontravam sistemas ditatoriais ou totalitários a contento.

Entrementes, mais recentemente, em meados do século XX, um perspicaz

pensador ingressou na comissão e pôs-se a observar as pesquisas. Observou ele que

todos os estudos estavam voltados para análises políticas, sendo os dados econômicos

pouco significativos nos relatórios. Além do mais, muito pouco se estudou a

democracia, desde a antiga Grécia. O erro, dizia o pensador, conforme referira-se o anjo

decaído a seu José – a quem agora eu escutava atento – é que os estudos desvinculavam

a política da economia. A partir de então, redirecionou-se o cerne dos estudos.

A CESPET descobriu que, no século XVIII, emergira na Europa, em

especial na Inglaterra, um fenômeno muito peculiar, que nos séculos seguintes

contaminaria maior parte da Terra dos Viventes: o sistema capitalista de produção. Esse

sistema de produção, conforme o definira um insigne pensador, adaptara-se a vários

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sistemas políticos, desde a ditaduras até a democracias, sem se descaracterizar

essencialmente. No final do século XX, não somente a maioria dos países mais

influentes, mas também os menos – como os africanos e sul-americanos – já se haviam

sob a égide do capital e haviam adotado a democracia.

Nos meados do século XX, propagaram-se pelo mundo ocidental os

chamados direitos sociais. Essa sorte de direitos visava a que todos tivessem direito a

sobrevivência digna e pudessem acessar a bens e a serviços independentemente do

ingresso ao mercado de trabalho. Os direitos trabalhistas, que amalgamavam os direitos

civis, políticos e sociais, expandiam-se. Nasciam os chamados Welfare States, ou

Estados de Bem-Estar. Seria o fim do capitalismo e do domínio dos potentados

mercantis? – perguntavam-se os sábios da CESPET. Restava a eles desprezar a pressa

de Lúcifer e esperar pelo culminar da história.

Parece-me que foi no momento no qual eram ditas tais coisas, que minha

noiva chegou com seu jeito espevitado e interrompeu a narrativa de seu José, que não

gostava de ser interrompido assim. Ela chegou rindo-se do mais lindo riso, ria-se do

nada. Trazia xícaras de café amargo, mais açúcar para mim e menos para seu José. Ele

sorriu, chamou Maria Elisa (Elis, carinhosamente) para assentar-se conosco e

compartilhar da conversa. Ela assentou-se ao meu lado, deu-me a mão e passou a ouvir

atenciosamente, às vezes procurando o melhor jeito de se aconchegar na poltrona.

Ela amava demasiado seu José, meu amigo; deleitava-se nas suas histórias,

ria-se ou espantava-se com todos os músculos da face, mas em especial com os olhos

cor de mel. Seu José a amava. Disse-me que, se um dia eu magoasse a menina dos olhos

de mel, ele me mataria. Dizia sempre: “não sei o que essa bela menina viu em um

homem feio e ignorante como você, ela que é excelente violonista e erudita, além de

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bela”. A presença de Elis fez com que seu José começasse a história novamente, desde o

início, o que felizmente reviva agora minha frágil memória ao escrever.

Em se chegando ao ponto no qual a conversa parou, por interrupção de

Maria Elisa, as xícaras jaziam vazias, mas os espíritos repletos de curiosidade. Seu José

narrava, ao seu modo, o que o anjo de Lúcifer lhe dissera em sonho. Parece-me que o

assunto eram as pesquisas da CESPET.

Um aspecto interessante do estudo cespetiano, dissera o anjo decaído, é que

nas duas Grandes Guerras, os mais infernais eventos havidos na Terra dos Viventes, o

ingresso ao Reino dos Céus aumentara e, pela primeira vez na história, os derredores

dos portões celestiais sobrepujaram, em número de pessoas, aos portões do Reino dos

Infernos. As guerras elevaram ao nível maior o sofrimento do mundo. Nas provações e

na penúria, homens, mulheres e crianças clamavam ao Senhor Deus. Os soldados, em

sua grande maioria, faziam seus ritos sagrados antes das batalhas, como ajoelhar-se ou

fazer sinal da cruz, ou outro rito conforme suas crenças. A maioria desejava o fim da

guerra e o fim do massacre, ansiavam com ardor estar com suas famílias. Muitos dos

que não morreram, suportaram grande sofrimento pelo resto da vida, em seus

empobrecidos corações. Muitas foram as baixas de civis inocentes. Houve fábricas de

morte, num período que muitos denominaram “O Holocausto”. O sofrimento humano

revigorou a misericórdia do Senhor Deus, que considerava todos esses fatos e mais

muitos outros, em favor dos réus, em Seu Tribunal Sagrado.

Nos tempos de Moisés, os povos, semelhantemente, clamavam ao Senhor

Deus nos dias infaustos, mas logo que sobrevinha a prosperidade, o Senhor Deus era

esquecido, ou eram desobedecidas suas leis sagradas. Seu José tecera esse comentário a

parte, conforme Elis relembrou-me mais tarde, tempos depois da morte de nosso amado

amigo.

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Dizia o anjo decaído a seu José, sempre conforme os dados da CESPET, que

o pós-guerra foi um terreno fértil de pesquisa para os sábios do Inferno. Nesse período,

foram se desenvolvendo as políticas de bem-estar social na Terra dos Viventes, houve

melhorias fundamentais no modo como as pessoas viviam, mas as pessoas mesmas

desprezaram, em seus peitos, o vínculo entre o agora e o passado recente, quando o

mundo quase foi terrivelmente devastado. Essas décadas prósperas, denominadas “A

Era de Ouro”, foram também doiradas para o Inferno, pois os cidadãos dos países

prósperos passaram a dispor de seu tempo e seus bens para desfrutarem dos prazeres

mundanos, enquanto muitos povos pereciam com a peste e a fome em lugares

longínquos. Parte do mundo morria e outra parte tornou-se amiga do mundo e inimiga

das virtudes divinas. Grande foi o sucesso de Lúcifer, que sempre teve por objetivos

arruinar a Terra dos Viventes e preencher o grandioso Reino dos Infernos com almas

perdidas.

Esses fenômenos, embora interessantes, não informavam nada de seguro à

CESPET, pois não se sabia se o capitalismo seria duradouro, uma vez que crises, como

a da década de 1930, quase derribaram o capital e seus potentados.

Surpreendentemente, nas décadas seguintes a 1930, o capital se recuperou,

aliás, ele possuiria um poder sobrenatural de se recompor, independentemente de como

seguiam as políticas adotadas pelos Estados-nações. Convertia-se tudo, na triste Terra

dos Viventes; em meio a guerras, ou paz armada, tudo vertia-se e invertia-se, menos as

características centrais do sistema capitalista de produção, em especial o acúmulo de

poder. Poder supremo era tudo o quanto ansiava Lúcifer nos terrenos do norte ao sul, do

leste ao oeste, do primeiro ao último dos Infernos. Mesmo onipresente, Lúcifer, o

inimigo que vem para matar, roubar e destruir, não há para si o poder da onisciência,

como o Senhor Deus, portanto não poderia jamais sondar corações e mentes, nem dos

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vivos, nem dos mortos. Se não poderia controlar e conhecer os pensamentos humanos,

havia a possibilidade de controlar seus comportamentos, através do mercado e da

política aos moldes capitalistas.

Ao ouvir essa parte da história, Elis fitou em meus olhos os seus. E porque

se mencionasse no momento a capacidade de sondar corações, ocorreu-me que sempre

que Maria Elisa e eu nos olhávamos, sentia o meu peito que ela via tudo o quanto se

passava dentro dele, como se ela fosse onisciente, à semelhança de um legítimo anjo de

Deus. Parece que havia nela certa tristeza quase omitida e resignação pelo que haveria

de vir.

Nesse ponto da narrativa, eu me ofereci para buscar mais café, com menos

açúcar para seu José. Maria Elisa fez gentil objeção, dizendo que somente ela sabia

como seu José gostava do café. Foi-se então buscar a bebida. Como seu José a esperasse

para continuar a prosa, entrou em outro caso: Quando será o casamento? – Perguntou-

me ele. Mas eu desconversei, alegando dificuldades que não existiam. Bem que eu

gostaria de dispor de umas horas para falar-lhe dos assuntos do coração. Mas a bela

moça voltava já com o café e também tratávamos de outro assunto. Seu José provou um

gole da bebida e disse galanteador: acertou no açúcar, minha amada, parece até que se

derramou no café um pouco do mel de seus olhos. Ela riu-se encabulada, de um jeito

que outrora desinquietara meu coração.

Refrescando a garganta depois de outro gole de café, continuou a narrativa o

meu grande amigo, dizendo: Conforme o anjo decaído, Lúcifer já se havia aflito por um

resultado consistente da CESPET. Os estudiosos da comissão haviam-se desesperados,

temerosos do peso da mão de Lúcifer. Então na década de 1980, no ano de 1986, a

CESPET enviou um rico e detalhado relatório ao Anjo da Luz, que parece ter gozado de

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grande satisfação, pois convocou os estudiosos para uma assembléia. Desejava ouvir as

análises e considerações pessoalmente.

Justamente no Palácio Vermelho Sangue ocorrera o famoso Concílio

Vermelho Sangue – que recebera esse nome em função do lugar onde sucedera – no dia

01 de dezembro de 1986. Sentava-se Lúcifer na cabeceira da mesa de ouro, a sua destra

seu assessor, de vigília, empunhando um fuzil e embainhando uma espada, e de modo

que os pensadores cespetianos assentassem à esquerda e à direita, solenemente.

No relatório da CESPET apresentado a Lúcifer, a principal constatação foi a

de que o sistema capitalista gerava enorme poder a um grupo seleto de pessoas, mesmo

embora houvesse democracia e política livre. Constatou-se também que, em muitos

países, grandes corporações mercantis, especialmente com a emergência do mercado

financeiro, determinavam os rumos da política, independentemente do partido que

ocupasse o “poder”. Havia grandes corporações que estavam em todos os lugares, mas

em lugar algum ao mesmo tempo, demonstrando assim a onipresença do mercado.

A mais fantasmagórica das constatações empíricas foi a de que a pessoa

física dos poderosos não necessariamente aparecia, mas tão somente aquilo que poderia

ser chamado de pessoa jurídica, que existia, mas também não existia de fato. Era um

nome, era uma marca, mas era ninguém a quem se pudesse atribuir mérito ou culpa.

Quando havia crises, como a que abateu a Terra dos Viventes na década de 1970,

promovendo fissura na coluna central dos Welfare States, os povos se insurgiram contra

os governos, exigindo melhorias de condições de vida, mas o capitalismo permaneceu

incólume diante desses fenômenos.

Conforme a CESPET, muitas foram as crises relacionadas ao capital, mas

ele resistiu a todas elas, entra governo, sai governo, submirja ditaduras, emirja

democracias, nada disso importa ao sistema capitalista. Entrementes, vive o mercado

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capitalista, mas morrem os potentados, deixando suas heranças aos sucessores. Lúcifer,

em sendo imortal, viveria o poder do capital no Reino dos Infernos eternamente, sem se

preocupar com possíveis sucessores; Lúcifer seria o capital, o capital seria Lúcifer.

Ainda que houvesse revoluções e guerras, e ainda que governos decaíssem e mudassem

os sistemas políticos, o nobre Anjo da Luz nada sofreria.

Seu José e eu tentávamos explicar essas coisas a Maria Elisa, que desejava,

em seu coração, inventar um modo de isso tudo ser reversível, pois que muitas almas se

perderiam sob a ideologia da invenção democrática dos Infernos. Ela interrompia com

vários “e se’s”. Explicamos que, em matéria de historiografia, não existem os “e se’s”,

mas tão somente a investigação e o estudo dos fatos históricos, em busca de um tão

difícil consenso entre pensadores de ideologias diferentes.

Os pensadores da CESPET, infelizmente, estavam corretos, pois desde que

o sistema capitalista de produção nasceu, nada brotara tão poderoso quanto, e qualquer

esperança que brota ou é logo sufocada pelas raízes do capital, ou, em se crescendo,

torna-se tão cruel quanto, como o chamado “Socialismo Real”. Sabemos que há apenas

algumas felizes ilhas de esperança, protegidas pelo Senhor Deus, onde não se

assenhoreou o capital: Pequenas tribos, ou recantos onde ainda as forças da natureza

são, para homens e mulheres, os maiores poderes.

Dito isso, parece que o coração de Maria Elisa se turbou sobremodo, de

sorte que sua fala demonstrava certa angústia, sua face franzia as sobrancelhas

tristemente, e seus olhos de mel se salgavam da lágrima que neles ajuntava mas, por

esforço dela, não rolaram por suas maçãs – um triste e belo contraste entre mel e sal.

“Que a intercessão do Senhor Jesus Cristo, da Virgem Maria e de São Miguel Arcanjo

seja poderosa em favor das almas perdidas, no tribunal do Senhor Deus”, disse Maria

Elisa certo momento, posto ser católica e devota de Nossa Senhora de Aparecida.

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No concílio, continuou seu José, Lúcifer consultou os pensadores da

CESPET, mas através de seu assessor, o anjo decaído, porque desejasse manter-se

mudo.

Iniciada a reunião, um nobre filósofo afirmou que, como já era de

conhecimento comum, alguns países capitalistas conquistaram certo nível de bem-estar

social, foram denominados Welfare States, ou simplesmente Estados sociais, como se

tratava na tradição francesa; mas em outros países houve enorme mal-estar, fome,

miséria, guerras civis. Isso dependeu de vários fatores, dentre eles, o espírito do povo.

Em seguida, um insigne sociólogo tomou a palavra e mencionou outro

pensador, dizendo que o povo é governado pelo governo merecido. Como em uma

democracia o próprio povo elege quem os governará, o governo refletirá o espírito desse

povo. Esse seria, pois, o grande trunfo de Lúcifer: uma vez que somente os piores

descem aos Infernos, de sorte que, por essência, o lugar é constituído de pérfidos,

desonestos, canalhas e pecadores de toda raça, o povo detinha espírito do mal e, por

causa disso, elegeriam sempre maus governantes. A corrupção era, em praticamente

toda a Terra dos Viventes, a pior inimiga do bem-estar. Se não há lugar conhecido onde

habitam maior corja de corruptos do que no Reino dos Infernos, é certo que a corrupção

infestará os escalões do governo e a sociedade civil perecerá. Concluiu: O Inferno não

se “desinfernizará” jamais.

Um doutor em direito refletiu que, nas democracias, a imprensa é livre e

tudo podia ser veiculado. Ele também parafraseou alguém que disse: “uma mentira

contada mil vezes, torna-se uma verdade”. Com a imprensa livre, não seria difícil

propagar a ideia de que o Inferno é a melhor morada do universo sobrenatural, o que

atrairia inúmeras pessoas. Dar-se-ia um passo a frente na conquista do apoio político

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dos humanos em novos templos, que deturpariam a palavra do Senhor Deus, por via dos

marqueteiros falsos profetas.

Por fim, um economista pediu a palavra, dirigindo-se diretamente a Lúcifer,

que escutava a tudo calado. Nesse momento da narrativa, peguei um pedaço de papel

para tomar nota da palavra do supramencionado pensador, conforme narrava seu José a

Maria Elisa e eu o que o anjo decaído lhe dissera em sonho. Em minhas anotações está

escrito assim, conforme dissera o economista: “A partir do momento em que o Inferno

se torne uma república democrática, não importa a vossa majestade quem assumirá a

direção da política, desde que a economia, aos moldes capitalistas, esteja em vossas

mãos, meu Príncipe. Terás poder irrestrito sobre os políticos e sobre as massas

populares. Vossa riqueza será a vossa glória eternamente. Haverá, por certo, tentativas

de revolta ou revoltas de fato, mas as cabeças dos políticos, não a vossa, é que rolarão”.

Ao cabo, Lúcifer saiu da grande assembléia como entrou, mudo. Por ordem

dele, uma semana depois do concílio, o primeiro escalão do Reino dos Infernos reuniu-

se a portas fechadas, por doze horas. Todos, menos o Anjo da Luz, saíram exauridos e

com feições de desespero.

O que seguiu de politicamente relevante, após o Concílio Vermelho Sangue,

foi o Tratado Democrático de Athletés, dia 25 de dezembro de 1986, no gigantesco

estádio de Athletés. Havia presente uma multidão dantesca – literalmente dantesca,

como a descrevera Dante em sua Divina Comédia – convocada por decreto coercitivo,

sob pena de quinhentas chicotadas em praça pública, caso descumprissem a ordem.

Estavam presentes também os violentos guerreiros da MS, fortemente armados,

agredindo as pessoas a chicotadas por qualquer motivo, como um olhar para o lado, ou

um coçar de nariz. Lúcifer discursou por seis horas e, logo após, foi assinado e selado

pelo próprio Anjo da Luz o documento do Tratado Democrático de Athletés.

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Dentre os termos do tratado, constava que seria instituída uma Assembléia

Constituinte dia 01 de fevereiro de 1987 e, em setembro de 1988, promulgada a

Constituição Federativa Democrática dos Infernos. Os cinco infernos não seriam mais

cidades-estado, mas estados independentes, aos moldes de uma confederação. Todo o

poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos. Em número de

três seriam os poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Esses seriam os

principais termos do esdrúxulo Tratado Democrático de Athletés.

Assim, segundo o anjo decaído que narrava a seu José, foi promulgada, não

em setembro, como determinara Lúcifer, mas dia primeiro de abril de 1988, a

Constituição Federativa Democrática dos Infernos, que passou a vigorar em todo

território nacional a partir dessa data.

Seu José disse-nos das prováveis consequências disso para a Terra dos

Viventes: maior perdição de almas.

Elis chorou.

Seu José a consolou. Embora não fosse simpático a religião alguma, ele era

cristão e, como teólogo, exímio entendedor da Bíblia. Em verdade – disse ele a Maria

Elisa – o peso de sua lágrima vale muitíssimo para o Senhor Deus, pois o próprio Cristo

teria chorado. Citou para ela um fato bíblico, tão comovente que mereceu ser destacado

em um só verso, o menorzinho de toda a Bíblia, encontrado no Evangelho de João, no

capítulo 11, verso 35:

Jesus Chorou.

Seu José disse ainda que, às vezes, pensamos que o Senhor Deus nos

abandona. O próprio Cristo pensou assim, pois quando do imenso sofrimento na cruz,

na hora nona, disse:

Eli, Eli, lamá sabactâni?

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Elis – continuou seu José – essa súplica de Cristo, traduzida, quer dizer:

“Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?” Mas sabemos que o Senhor Deus

não desampara a ninguém e nem despreza uma lágrima de amor.

Elis reconfortou-se.

Depois dessas coisas sentidas, provavelmente inefáveis para quem não

sonda os corações, seu José continuou a prosear, dizendo: Perguntemo-nos se a

democracia deu certo? – instigou-nos ele – se ela estabilizou o sistema político do

Inferno? Se prosperará, somente se saberá no futuro, quando, talvez, todos estivermos

mortos. É certo que estabilidade não houve, isso já se sabe. Conforme o anjo decaído,

aconteceu lá no Reino dos Infernos, em seus curtos anos de democracia, um

impeachment, dia 29 de dezembro de 1992, após menos de dois anos de mandato do

primeiro presidente da República Democrática do Inferno. Foi eleito outro presidente,

munido de ideário liberal: – Adolf Hitler.

O anjo decaído, uma vez fosse próximo a Lúcifer, disse a seu José que essa

confusão na política serviu de regalo ao Anjo da Luz, pois, perscrutando tudo de muito

longe, riu-se muito, sabendo que lá, no seu palácio, invisível, controlando todo o

mercado capitalista, em especial o mercado financeiro, sairia, como sempre, ileso.

As horas passaram voando pelo tempo e, quando Maria Elisa e eu nos

demos por conta, o relógio marcava quase 22:30, era já tarde, portanto. Seu José, acerca

da República Democrática do Inferno, acrescentou uma coisa ou outra, mas creio narrei

os fatos mais importantes dessa instigante história.

No sonho, ele despediu-se do anjo de Lúcifer com um “adeus” e logo após

acordou, sabendo, em seu peito, que aquele sonho era o prenúncio de sua morte, uma

vez que estivesse velho e se houvesse, de saúde, sobremodo debilitado.

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Nessa noite feliz, fizemos nossos rodeios comuns, congratulações e nos

despedimos finalmente, Maria Elisa e eu de seu José e, no portão da casa de Elis, eu

dela.

No mesmo ano de 2001, depois que seu José contou-nos a história da

República Democrática do Inferno, não o vimos mais com vida. Faleceu dormindo, dia

07 de dezembro; foi andar pelo Vale da Sombra da Morte, certamente sem medo em seu

coração, cuidando-se que o Senhor Deus é quem o guiava.

Eu chorei a morte de um pai, mais que um amigo. Maria Elisa de Santa

Rosa rezou e pranteou, certa de que seu José Silvério Fonseca Tavares, amado amigo,

seguira em direção ao sistema totalitário do Reino dos Céus, ditado pelo Senhor Deus,

cuja lei maior é a do amor.

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ESTÉTICA

Eu não diria que o feio e o belo são desdobramentos das noções de mal e

bem respectivamente: diria antes o contrário: o homem primeiro reconheceu o feio e o

belo antes de atribui-lhes os nomes de mal e de bem. É claro que essa divisão não se deu

no espaço e no tempo, pois não se pode afirmar que o dado estético surgiu primeiro, ou

o inverso. O que podemos afirmar é que a estética é preeminente no espírito de cada ser

consciente, no momento de reconhecer o mundo ao seu redor e de procurar pela

verdade: não somos maniqueístas ao dividir o mundo em mal e bem, somos estéticos.

Toda verdade absoluta construída na historia respeitou ao belo ou ao feio: se

bem que as verdades indemonstráveis na verdade são quase sempre belas, a fuga da

realidade é quase sempre romântica, edificando uma além belo para o bem e um além

feio para o mal, colocando cada coisa supostamente em seu lugar. O além, em respeito

ao feio e ao belo tem a vantagem de dividir o bem e o mal, o justo e o injusto, o forte do

fraco: coisas que no plano da imanência estão misturados, desorganizados: a

transcendência é um organizador, aquele que acaba com a bagunça e com o incerto,

através de critérios absolutos.

No plano imanente, por imposição da realidade, existe o relativo, o incerto e

o imperfeito. E o perfeito o que seria? O belo absoluto.

A grande questão é: somos por natureza afeitos ao belo e avessos ao feio: ao

buscarmos pela verdade e ao encontrarmos ela é muito bela. Não é a verdade que é

atraente: atraente é a beleza. Mas será que em algum momento a beleza não nos leva à

mentira, ou a uma não verdade?

Eis uma grande questão: há confluência entre o belo e a verdade?

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OS DOIS UNIVERSOS DE HELENA

Errar por estradas solitárias, encontrar-se com a morte, dormir ao relento,

cavalgar cavalo belo por campos e mais campos, sem lugar certo de ir; explorar terras

desconhecidas e dar nomes, conforme o gosto, aos novos animais descobertos. Mas

ainda havia a possibilidade de singrar por todos os mares, combatendo monstros antigos

e piratas. Ou, talvez, fosse mais interessante mergulhar mar profundo a explorar a

Oceania, conhecendo a cultura de sua população submersa. Mas, quem sabe, seria mais

empolgante embarcar em uma nave espacial e visitar mil galáxias e conhecer os

habitantes de outros planetas. Depois, ao envelhecer, escrever livros e mais livros sobre

aventuras meticulosamente registradas em antigos diários.

Todo esse devaneio parecia muito excitante à Maria Helena, na cama do

despertar, em seu quarto, cuja janela avistava, para sempre, a casa dos Santos, com seu

jardim de rosas e plantas. A velha casa dos Santos e seu quintal bem cuidado por dona

Clementina Soares Santos, esposa de seu Amadeu Alves Santos: o casal de velhinhos

mais simpático do mundo. Maria Helena, com toda a viveza de sua idade pequenina,

guardava que aquele casal morava naquela casa a milhares de anos. Ria-se ao pensar

maldosamente que talvez algum deles tenha sido mordido por um dinossauro de

verdade. É claro: não acreditava nisso, só gostava de imaginar.

Logo pela manhã, antes de o sol nascer por completo, dona Clementina

Santos aguava as plantas, adubava o chão, cortava um ou outro galhinho, remexia umas

coisas com toda a paciência, para que as plantas ficassem belas e vigorosas. E tudo era

realmente belo, belo e normal, em sua suave rotina, lenta como o próprio

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desenvolvimento das rosas no tempo infinito. Ao acordar, Maria Helena não passava

sem ir até a janela e dizer “olá” à dona Clementina Santos, que respondia com um

sorriso muito meigo e um aceno secular de mãos.

Ambas, a moça e a velha, adoravam-se e, ao conversarem sentiam que o

futuro e o passado se encontravam no instante. Dona Clementina Santos adorava dar

conselhos à moça, quando a sós no banco de madeira do jardim da casa dos Santos.

Esses conselhos nunca vinham antes de uma anedota ou de uma história baseada em

alguma experiência real da anfitriã.

Parece que ela sentia-se útil a falar a Lenina, apelido carinhoso adotado

pelos íntimos da garota e que dona Clementina orgulhava-se de tê-lo criado, conforme

comentara mais de uma vez.

Maria Helena gostava de conversar com dona Clementina Santos. Mas

pensava que seus conselhos eram bastante antiquados, sem propriedade para os tempos

modernos. Escutava tudo atenciosamente, formulava perguntas nos momentos

propícios, fazia a fisionomia facial de quem reflete sobre sábias palavras e, no fim da

conversa, agradecia como um discípulo a seu mestre valioso. Mas guardava em seu

peito a impetuosidade e a arrogância dos jovens de sua idade, sentia-se eternamente

jovem e detinha a sensação de que o moderno sempre destrói, aniquila, mata o antigo. O

antigo era, devia ser, ofuscado pelo brilho do novo. Dona Clementina Santos não seria

senão uma deleitosa fonte viva de histórias do passado, uma agradável visita a um

tempo cujos olhos da garota não podiam ver. Mas nos recônditos do seu peito, embora

não quisesse admitir para si mesma, os conselhos de dona Clementina Santos eram nada

e não passavam disso.

A grande casa dos Santos, primeiro cenário de todos os dias, era para Maria

Helena a prova de que acordara para essa vida, que o sol logo seria apenas um, que sua

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pacata família daqui a um pouco jazeria defronte a mesa do café: o pai, Roberto, com a

revista que a mãe, Ana, lera dia anterior, com a guerra na capa, mas como se a guerra só

existisse na revista e o mundo lá fora estivesse em paz. A criança, Iasmim, com a

mamadeira no beiço, sorrindo-se das coisas mais sem graça do universo é a coisa mais

agradável e fazia generalizar-se o riso, principalmente aos domingos, quando antes de ir

à missa o casal Santos compartilhava da mesa matinal.

Era assim que se chamavam as pessoas de Maria Helena, conforme já se

disse: o pai chamava-se Roberto, a mãe Ana e a criança Iasmim, todos de sobrenome

Oliveira Gentil.

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A DESDITOSA LOUCURA DO JOVEM ARISTEU

Nos últimos dias de vida do Jovem Aristeu, a realidade transfigurou-se aos

seus olhos taciturnos em espantosas fantasias, e o que para todos os outros mortais era

fantástico, para ele tornou-se real. Naquele tempo, como pôde conceber quem se havia

em plenas faculdades da razão, o Jovem Aristeu tornou-se aquela imagem quase

estúpida porque buscou se adaptar aos fatos que seus sentidos enganados captavam, e

foram justamente suas ações que permitiram inferir do grande devaneio de seu espírito:

foi considerado louco... E dessa mazela da alma afloram as mais destrutivas lesões, os

mais mortais comportamentos, as mais devastadoras tristezas: a loucura é a chaga maior

da alma. Dessa moléstia padeceu até o triste fim nosso notável anti-herói.

Todos, à extensão da vasta planície terrestre, souberam da desgraça imensa,

mas mesmo cientes da abissal desrazão surpreendiam-se ao primeiro confronto com tão

infausta figura a que se transformara o rapaz, percebiam que sua sorte perversa viajara

para o além-comum. De pouco se alimentar, emagreceu todo o peso permitido pela vida

antes da morte, os olhos eram pura melancolia opaca, sob grossa faixa de trapos havia

as mãos e sob a pele ossos esmigalhados de tanto que socara as paredes, sangue lhe

corria dos ouvidos e das narinas... Parece que toda a desventura lhe tomara toda a

comum alegria, que seu sorriso último fizera-se há vários séculos.

A Menina Amanda - sua namorada - foi a primeira a ouvir as incoerências

da boca que soava o princípio da loucura. Naquela hora, ela pensou que brincava o

Jovem Aristeu (era muito afeito a zombarias), pois lhe disse, sem pormenores e mais

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verbos precedentes, que maldades e vilezas, tantas guerras e tanta miséria, toda a

desgraça do mundo lhe cortavam as tripas. Nessa hora a Menina Amanda riu, fazendo

graciosa chacota, e perguntou de qual mundo o seu namoradinho falava, tirara-o de

alguma história fantástica, onde terremotos são possíveis e crianças morrem de fome e

povos guerreiam entre si?

À pergunta não houve resposta, mas somente o gesto de sobrancelha típico

de quem se afronteira entre a confusão e o esclarecimento, de quem tem dúvida sobre o

que é e o que não é. Talvez nesse momento a desrazão não reinasse suprema, ou se

houvesse em batalha contra o discernimento já encurralado e quase rendido...

Da forma imperativa e doce de quem se assenhoreia com amor, a Menina

Amanda arrastou o Jovem Aristeu a um passeio de tapete voador sobre as mansas

nuvens de algodão e sob a desmedida beleza do infinito que quase não é; assim,

serviam-se da distração preferida. Nesses passeios, voavam para todo canto, conhecido

ou não; até o Olimpo os conheceu e quase foi rebatizado de Monte Ari, devido a uma

partida de xadrez vencida pelo nosso anti-herói, contra toda a cúpula dos deuses

olímpicos. Quando de passagem pelo firmamento, gostavam de arrancar os pirilampos

grudados no denso piche e lançarem-nos de volta a Terra, fazendo raiva a Deus por

apagarem as estrelas. Mas quando soberbo o sol estivesse nervoso, a ponto de derreter

asas de cera, o casal não se ousava aproximar, antes voavam sobre os mares para espiar

o nado das sereias migrantes. Nada mais, todavia, felicitava tanto quanto a celestial

orquestra dos anjos que, quando se inflava a lua na vasta abobada, tocavam suas cordas,

sopros e películas, iluminados por estrelas e, ocasionalmente, cometas que rabiscavam o

céu como se fossem o riso da noite. Nesses momentos, os casais deitavam-se sobre o

algodão macio das nuvens e se deixavam massagear pelas notas musicais, que caiam

como plumas sobre os corpos e depois eram sopradas pelos ventos boreais, que se

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encurvavam ali mesmo e seguiam em direção ao leste, levando-as para serem ouvidas

pelo sol matutino.

Dessa vez, porém, o passeio transcorreu sobremaneira triste, embora no

caminho tenham encontrado com Gabriel, o educado anjo, com a lua sorridente e com

Dumbo, aquele elefantinho simpático. E passaram por muitos raios bonitos, elétricos

como duendes felizes do arco íris que brotava de seu ouro, por fadículas brilhantes,

virgens, juvenis, alegres e mágicas, por super-heróis felizes de seus sempre finais

felizes, e por outras lindas normalidades do mundo. Tudo isso houve, mas parece que o

Jovem Aristeu nada viu, tão absorto estava: não mirou os montes, não tocou estrela, não

sorriu à lua, não proferiu palavra, justo ele, que a troco de suspiros de amor não

economizava verso.

A Menina Amanda quis saber o porquê do silêncio e perguntou, então novos

desvarios soaram. Dessa vez o Jovem Aristeu falou absurdos tão grandes que a Menina

Amanda conheceu sua loucura. Falou de guerras profusas, de metais flamejantes-

luminosos-mortais que viajavam pelo céu para destruir, como se os opostos bonita-

estrela-cadente e cruel-morte-sinistra fossem possíveis juntos; e falou de trabalho: a

morte lenta por vida curta, segundo inferiu a Menina Amanda. Eram os livros de terror

conquistando a mente de nosso anti-herói, tal como foi com um conhecido dele,

alcunhado Quixote, quando quis imitar os heróis de seus livros. O devaneio suserano,

que há muito avassala espíritos, foi o pior dos tiranos: fez o Jovem Aristeu perecer, pois

via diante de si absurdo o anti-comum. Carros mecânicos que andavam autônomos e

aviões que, obedecendo a homens, eram dragões amestrados para cuspir fogo ao

comando do mestre, fronteiras sem Cérbero que não podiam ser ultrapassadas, a

felicidade vendida; tudo isso a loucura fez ver e sentir o rapaz, que relatou tudo à

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Menina Amanda: lágrimas de sangue libertaram-se do calabouço dos olhos dela para

secarem-se no alvo tapete voador.

Muito depressa então o tapete voltou para casa, pois sentiu necessidade de

providência. Ao chegar, pousou-se no gramado sutilmente. A Menina Amanda

levantou-se rápido, cumprimentou o Burro que ali pastava e entrou na casa tão depressa

que nem ouviu a resposta do animal.

Quando toda família, sob o espanto do alarde da Menina Amanda, saiu para

avistar a novidade, o Jovem Aristeu estava sentado ainda, e todos puseram-se a ouvi-lo.

Concluíram pelo evidente: o rapaz perdera todo o juízo, pois só falava de temas das

literaturas fantásticas. As palavras eram confusas, semelhantes a profecias, mas do

pouco que se julgou compreender verificou-se a desrazão da alma outrora lúcida e medo

imenso. O Jovem Aristeu temia porque pensava que uma espécie de Leviatã, algo

estranhamente chamado de Estado pelo rapaz, o mandaria a uma guerra por – imaginem

– petróleo. Falou também que não haveria pão para si porquanto não tinha papel para

trocar por tão sagrado alimento. E para acabar de pasmar a todos – vejam só o grau da

loucura – disse haver uns tais cafetões mandando meninas deitarem-se com homens a

troco de papel. Humanos possuidores de muitas coisas, como se fossem eternos em

corpo e pudessem mais que a natureza das coisas, povoavam as lúgubres fantasias do

nosso grande anti-herói, fazendo-o distante do antes imponente mundo real.

O assombro frente à visão triste amestrou a família e ordenou silêncio para o

momento. O primeiro a falar foi o Burro: sugeriu que levassem o louco para dentro da

casinha. Acataram: a Menina Amanda o segurou pelo braço direito, a mãe pelo

esquerdo, o pai pelas pernas e o levaram para um dos quartos da pequena casinha de

doces. Já agasalhado no leito, teve sede e, por causa disso, a mãe levou-lhe uma xícara

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de néctar, a bebida preferida do Jovem Aristeu, mas este a recusou porque pensou ser

leite roubado de vacas cativas.

Os dias foram passando inevitáveis e o Jovem Aristeu enfraquecia porque

recusava qualquer alimento: somente a loucura prosperou naquele lar. Nem mesmo as

poções médicas mágicas de Merlim, o Mago, importaram de volta o juízo. Todos, visto

a situação, sabiam que a Morte se aproximava depressa do rapaz; tanto assim, que certo

dia a Menina Amanda a encontrou sentada numa cadeira ao lado do leito moribundo.

A senhora Morte era como uma rainha feia, embora muito simpática e

educada, cumpridora de todas as obrigações com os seus súditos, ora ou outra. Ela disse

olá a Menina Amanda e a convidou a uma partida de xadrez para passar o tempo.

Enquanto cismava decisão entre peão e bispo, a garota perguntou, por curiosidade,

quanto tempo o Jovem Aristeu tinha de vida e se decidiu pelo bispo. A ilustre senhora

moveu rápido a torre, arrebatando um cavalo, e disse de um a dois dias. A Menina

Amanda receou ainda perder o bispo que movera há pouco: recuá-lo? Perguntou à

adversária se não haveria outra fórmula e recuou o bispo enfim. A necessária madame

saltou com o cavalo um peão e disse que para não cumprir a tarefa deveria ser

enganada, mas advertiu que nem ela mesma conseguira se enganar nas últimas mil

décadas.

Ao fim da partida perdida, à luz meio escura da aurora da noite, foi a

Menina Amanda cismar alguma fórmula para enganar a senhora de todos os mortais.

Pensou mil enganos possíveis, mas caia inevitavelmente na verdade das coisas,

despencava na racionalidade dos próprios sentidos. Tentou entrar num mundo de

fantasias, com o intuito de pensar ser realidade o fantástico, quis conhecer o erro, o fato

da loucura, para lhes apreender a essência: uma vez conhecida a verdade do engano,

poderia enganar a Morte. Então a Menina Amanda fechou os olhos e tentou viajar pelo

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fantástico: tentou se lembrar dos livros de estória que lera, principalmente os dos

gêneros filosófico, histórico e sociológico, contentores das fantasias mais absurdas.

Tentou acreditar realmente em guerras, massacres, igrejas, cidades, parques de

diversão... mas não conseguia: sempre que abria novamente os olhos via-se no seu

quartinho de paredes, teto e chão forrados de chocolate, via o branco tapete voador

(ainda manchado de lágrimas de sangue) e, através da janela que dava para o quintal,

algumas fênix voando alegres porque acabaram de renascer das cinzas.

A coisa não era simples, nem meio difícil, como abrir o Lobo para tirar a

Vovozinha ou correr com os pés voltados para traz, tal como o Curupira. Mas antes de

entrar em desespero pelo insucesso de tão difícil empreendimento, o de enlouquecer,

ocorreu à Menina Amanda conversar com Merlim, o mago, pois talvez ele tivesse uma

poção mágica que a fizesse devanear em total insanidade por algum pouco tempo,

tempo suficiente para ela apreender a essência da ilusão. Ela telepatizou então com o

mago e este lhe passou uma receita infalível, feita com cabo de cometa, cocô de dragão

e pêlo de unicórnio mocho (o azul). A Menina Amanda deveria beber a poção ou então

passá-la na sola do pé e depois tocar com o dedo indicador da mão destra a pupila do

olho sinistro do Jovem Aristeu. Dessa forma, ela passaria a ver tudo o quanto ele via e a

acreditar em tudo que ele acreditava.

A Menina Amanda seguiu as instruções: preparou a poção, a bebeu e tocou

com a dita mão a dita pupila... Quanta desventura é ser louco! Que realidade perversa!

Agora ela via e percebia tal como o Jovem Aristeu: um mundo de fantasia e devaneio.

Viajou por longos caminhos e se deparou com várias coisas: tudo era,

entretanto, natural para as pessoas desse universo, tudo fazia sentido... para a alienígena

também, tudo era natural, mas era ao mesmo tempo novo: uma sensação horrível, como

a de acordar certa manhã e, à luz da aurora, todo o conhecido parecesse algo recente e

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estranho, embora não o fosse. A guerra que se anunciava nesse dia era como a guerra de

outrora, a máquina que aterrissou hoje era a mesma que decolou ontem, a morte

insincera, que se move escondida, sem rosto e ataca somente por traz, era a mesma

morte de sempre, o trabalho que se executaria hoje era o trabalho normal diário, mas

tudo parecia novidade absurda... causava medo.

O tapete voador, o Burro Falante, a casinha de doce e mesmo o Papai Noel

não seriam senão lembrança deleitosa de um tempo em que a voz da mamãe não poderia

ser menos do que límpida verdade, ainda que soasse somente fantasia. E o real de agora

era, para ela, a realidade de um solitário, de alguém que não vê num objeto que explode,

fere e mata absurdo menor do que a vida dentro do estômago do Lobo... o absurdo era o

mundo de agora, onde o homem é o lobo do homem.

Nas andanças sem norte da Menina Amanda no mundo de loucura, que

então era mundo real, ela viu pessoas que não eram pessoas, mas números, e viu as

nuvens explicadas como concentrados gasosos, onde não poderia repousar mesmo uma

pluma. Tudo o quanto havia poderia ser trocado por papel, inclusive gente. A Menina

Amanda também viu as meninas que deitavam com homens a troco de papel, e chorou

lágrimas de água, como se visão tão nefasta não merecesse dos olhos o sangue...

No dia seguinte ao devaneio, a Menina Amanda voltou ao quarto onde

convalescia o Jovem Aristeu. A Morte estava lá novamente, mas parecia mais bela –

devia ter feito algo no cabelo – preparada para levar consigo o moribundo. A senhora

Morte perguntou a Menina Amanda se encontrara um modo de enganá-la, ao que a

menina respondeu que não queria fazer tal coisa, só fora ao quarto despedir-se do Jovem

Aristeu: despediu-se, elogiou o novo penteado da Morte e depois se retirou para que a

fatal senhora fizesse o seu serviço.

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Morreu então o Jovem Aristeu. O seu espírito subiu ao etéreo e recobrou a

mesma lucidez de outrora.

Curioso é que a alma dele ficou mais presente no seio da família do que

quando estava vivo. Em vida, não parava em casa, enchia a cara de néctar no Olimpo e

voltava sempre meio ébrio. Bateu duas vezes o seu tapete voador no Dumbo, aquele

elefantinho simpático, e uma vez no cometa do pequeno príncipe. Agora que morreu,

não se estabelece no Além: volta sempre para “conversar” com a Menina Amanda,

comer doces e passear no turbinado tapete. Quando se satisfaz com as pessoas daqui e

sente saudades de seus novos amigos do céu, volta para lá e fica três dias e três noites

fazendo sabe-se-la-o-quê. Que bom que morreu...

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A DIVINA COMÉDIA LITERÁRIA

Eu morri muito jovem, aos vinte e três anos. Tornei-me uma sombra

vagabunda por opção, qual mortal caminheiro que sacrifica o conforto do lar na busca

pelos recônditos. Abdiquei-me dos puros ares do Céu e de seus outros sabores para

realizar apenas um dos dois desejos que nem a morte desarraigou do meu espírito

infeliz: conhecer coisas mil e amar uma mulher. Este último me é impossível nas

topografias das quatro instâncias conhecidas: Céu, Inferno, Purgatório e Terra. O amor

que se ama na Terra, só na Terra se ama, e sendo corpo e alma. E é por esse amor e por

outros sentimentos humanos que a natureza nos prende naquele lugar, libertando-nos,

mas somente por uma única vida, que edificará a consciência no além-túmulo e as

lembranças das primaveras, outonos, invernos e verões de outrora. E cada vida é um

lance de dados da mão de Deus. Einstein não estava correto: Ele joga sim... e parece que

fui uma jogada de má sorte.

Caí no planeta que crucificou o Cristo como cai qualquer excremento

animal, que com sua natureza de excremento segue até ser incorporado ao solo. Assim

foi comigo até a morte, quando num túmulo fui deitado sob terra e cruz de madeira, que

sendo madeira ruim deteriorou-se antes mesmo de meu corpo que era carne. Minha mãe

certo sentiu o ente que saía de si e o desprezou, porque fui encontrado numa lata de lixo

por um grupo de turistas, que antes de me recolherem tiraram uma foto: a minha

primeira foto. Vivi aleijado num abrigo de crianças órfãs, invejando as branquinhas e

saudáveis, que eram aduladas, acalentadas e, muitas vezes, adotadas pelas pessoas boas

que ali apareciam. Lembro-me de uma vez, aos seis anos, em que uma senhora

presenteou com pequenos bonés todas as crianças do orfanato. Porém, em mim nenhum

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deles serviu, porque a hidrocefalia deixara enorme a minha cabeça, que tinha em si mais

água que cérebro e mais cérebro que inteligência. Assim eu vivi até os vinte e três:

confluência perfeita entre uma mente irrisória com um corpo distorcido.

A fascinação pelo conhecimento e o desejo de amar e de ser amado, de

escorrer-me pelo corpo feminino percorrendo toda sua extensão, vieram pouco antes de

completar a idade fulminante. Certo sábado, dia preferido dos que queriam fazer

caridade para se sentirem melhor, vi pela primeira vez a mulher da qual me enamorei.

Ela trazia uma bela cabeleira loira, pele branca e olhos claros, qual as crianças

preferidas do orfanato onde por algum tempo morei. Além dos arreios com os quais o

complô entre sorte e natureza lhe coroou, carregava sacolas de alimento, que como

todas as sacolas de alimento doadas não continham carne de primeira nem iogurte, mas

somente o chamado básico, como se a única vontade dos pobres fosse a de matar a

fome. Atribuo a essa moça o desejo de amar. Ela veio em minha direção, onde também

estava o Mocó, meu irmão de destino perverso, e a pilha de doações onde seriam

sobrepostas as suas sacolas. Em algum momento depois de aumentar o montante de

doações, ela olhou para mim e para o Mocó, nos sorriu alegre e me fez um carinho

clemente no aquário sobre o pescoço. Eu retribui o sorriso e fiz xixi na roupa e cadeira

de rodas abaixo até o chão.

Sonhei muitas noites com aquela moça, princesa dos contos de fadas que

ouvi, mas nunca soube ler; a imaginava nua à semelhança de uma foto de corpo de

mulher que um dia vira num livro de biologia. Vislumbrava-me beijando-a, mas não

como eu era, antes fazia em mim, em pensamento, metamorfose para ser como o

homem belo e inteligente da novela. Guardei uma paixão que nunca seria retribuída nem

na Terra, nem nos outros lugares: naquela por ser quem eu era, nestes nem mesmo

diferenças de gênero há.

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A agonia por conhecimento teve sua gênese quando, em um dos sábados,

ouvi a musa inspiradora dos meus sonhos dizer a uma amiga, também benevolente, que

gostava de um tal homem por muitos atributos, mas principalmente porque ele era culto

e inteligente, sabia de arte e de filosofia e falava sempre coisas muito interessantes.

Derramei lágrimas tristes quando a noite derrotou esse dia, pois nunca caberiam essas

virtudes em meu espírito asinino, não seria culto, não saberia de arte, tampouco de

filosofia. Mas a semente daquela agonia estava plantada.

Certo dia chegou à cidade um famoso senhor, escritor de um livro que fazia

bem para o coração e ensinava as pessoas a vencerem na vida e a serem muito felizes,

diferentemente do padre que nos visitava e dizia: “a santa felicidade se encontra no

Reino dos Céus”. Haveria uma palestra do senhor escritor no auditório da universidade,

assim sendo, o diretor do abrigo para onde mudei depois de sair do orfanato organizou

uma excursão para lá.

O senhor escritor era um homem elegante, inteligente, falava bonito... dizia

muitas coisas que eu não compreendia. Eu bem me lembro de que fiquei estupefato

imaginando de onde um mortal retirava tanto conhecimento, mas nada duvidei de tão

soberba autoridade. Ele declamava frases belíssimas. Algumas poucas até mesmo eu

gravei: “Querer é poder”. “A felicidade só depende de você”. “Você pode superar todos

os males que o atormentam”. “Se você se esforçar, se lutar não haverá limites”. “Libere

essa grande força que há dentro de ti”. “Você é do tamanho do seu espírito, cresça-o e

será grande”. Vários exemplos de pessoas que venceram através da força de vontade

foram citados. Muitas dicas foram dadas para se alcançar a paz. No final, o cultíssimo

senhor mostrou-nos um livro com todos os ensinamentos necessários para uma vida

maravilhosa e de superação. Um verdadeiro tesouro: se eu tivesse dinheiro compraria,

se soubesse ler leria.

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Aquele dia foi dos mais perfeitos. Eu voltei ao abrigo me sentindo um

semideus. Livros como aquele eram a verdadeira arte, uma relíquia na qual se

encontrava a verdadeira filosofia. Estava decidido: eu seria escritor de livro de auto-

ajuda, nem que para isso eu tivesse que estudar muitos anos. Afinal, se eu não sabia ler

nem escrever foi porque não me superei, não superei minha doença, nem a minha

pobreza, nem a falta de escolas adaptadas. Mas aquele nobre senhor me abriu os olhos,

mostrou-me o meu poder. Então a semente do anseio por conhecimento germinou

gerando árvore de cerrado, uma daquelas resistentes aos tempos mais rigorosos.

Nos dias conseqüentes, mudei totalmente minha postura. Pedi primeiramente

à faxineira que me ensinasse a ler, mas ela também não sabia, nem a escrever. Pobre

ignorante! – certamente não conhecia sua força interior. Pedi então à freira e ela me

atendeu de boa fé.

Aprendi as cinco vogais em cinco meses, aprendi a desenhá-las e a

identificá-las. Mas eu desejava muito mais. Mesmo com todo esforço empregado não

avancei. Precisava do livro para que a dona freira lesse para mim, precisava de todas as

diretrizes da vitória...

A idade fatal chegou rápido. No final de cinco meses de estudo eu contava

vinte e três anos e três meses. Estava muito debilitado, respirando mal... Para agravar a

debilidade, um antígeno novo adentrou pelos meus olhos para rebentar o tênue fio que

amarrava meu espírito ao corpo: presenciei a senhora do meu terno amor beijar o seu

homem. Foram ambos, num sábado maldito qualquer, levar doações ao abrigo, sacolas

que não tinham nem brigadeiros, nem refrigerantes porque a única vontade dos pobres é

a de matar a fome. Os namorados tocaram-se as mãos e se beijaram

inescrupulosamente, numa roda de amigos benevolentes. Morri três dias depois. Não

sou suficiente romântico para acreditar que morri de amor, mas com todos os problemas

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de saúde corroendo minha carcaça aleijada, suponho que um sentimento forte saturou

minha existência, levando-me ao túmulo, sob uma cruz de madeira, que sendo madeira

ruim deteriorou-se antes de minha carne.

Transcendi o mundo material, como já dei ciência, carregando o desejo de

sentir uma mulher e de acumular conhecimento infinito, este sim possível no Além.

Sendo espírito, posso apreender quaisquer criações intelectuais, basta que pra isso eu me

disponha a “ler”. Parece estranho, mas aqui nestas paragens existem energias

concentradas portadoras de pacotes de conhecimento, energias que na terra seriam

livros, energias que são incorporadas a seres humanos em vida para que estes as

transformem em escritos, filmes, quadros, músicas. Assim como na Terra há

bibliotecas, no Além há espaços onde essas energias são armazenadas. Algumas já

foram usadas por seres humanos, muitas ainda serão usadas, outras nunca saíram nem

sairão do Além.

Em cada uma das instâncias do Além há uma infinita biblioteca, cada uma

com seus concentrados de energia que seriam como livros. Mas cada biblioteca possui

características distintas: quem lê na biblioteca do inferno apreende todo o conteúdo de

uma energia, conhece detalhadamente todo o conhecimento contido em um livro. Nessa

biblioteca, come-se o fruto da Árvore do Conhecimento. Na biblioteca do Purgatório, os

livros são idênticos aos do Inferno, mas ao invés de se incorporarem ao espírito,

retiram-lhe o conhecimento desejado, concedendo assim um doce não-saber. Basta

escolher o livro com o conhecimento que se quer esquecer e o ler.

A biblioteca do céu é bastante distinta. Não há em si nenhum conhecimento.

Suas energias são verdades essenciais que ainda não foram traduzidas para a linguagem

imperfeita humana e nem distorcidas por ela. São, portanto, inócuas, sem sentido e

incompreensíveis até que sejam traduzidas. Mas quando expressas pela linguagem

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perdem o caráter de perfeição próprio de si e passam a não ser mais verdades, mas

conhecimentos: não essenciais e não necessários. Quando um desses livros do céu é

incorporado em um ser humano na Terra, este sente um sentimento confuso em relação

ao mundo e tenta desvelá-lo e traduzi-lo em forma de algum conhecimento: seja arte,

seja ciência, seja senso comum. Esses conhecimentos vão para a Terra como sendo

novos, mas já existem traduzidos na biblioteca do Inferno e na do Purgatório. Assim

sendo, cada verdade do Céu corresponde a vários conhecimentos do Inferno. No

entanto, nem todo conhecimento do Inferno corresponde a uma verdade no Céu, pois há

obras que nunca tiveram compromisso com esta.

Às vezes os conhecimentos vão para a Terra por vias do Inferno, ou seja,

chegam prontos e só precisam ser transcritos; às vezes vão por vias do Céu: chegam

como um sentimento, um incômodo com o mundo que só depois se transforma em

saber. Os pacotes de energia, sejam do Céu ou sejam do Inferno, são distribuídos entre

os mortais, na maioria das vezes, pelo acaso. Nietzsche poderia ter sido um escritor de

poemas sacros, tal como São João da Cruz. Uma única exceção: àqueles que fazem

pactos com o Demônio são destinados conhecimentos escolhidos por ele, geralmente

muito medíocres, mal elaborados e sem nenhum rigor que possa torná-los confiáveis.

Eu gosto de estudar na biblioteca do Inferno. Absorvo obras das mais nobres

estirpes, dos clássicos aos contemporâneos. Dante, Cervantes, Machado de Assis,

Camões, Pessoa, Aristóteles, Platão, Maquiavel, Spinoza, Mozart, Bach, Picasso,

Michelangelo... só para citar alguns poucos. Também recorro ao Céu quando desejo um

daqueles sentimentos incômodos, mas logo volto ao Inferno para buscar respostas a

eles. Conheci também muitas das obras que foram queimadas em Alexandria:

impressionei-me com o quanto a humanidade perdeu.

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Mas fato curioso ocorreu logo quando cheguei ao Além. Quando se chega,

recebe-se instruções sobre o funcionamento dos lugares. Logo que fiquei sabendo das

bibliotecas, fui direto a do Inferno. Por coincidência, o Anjo da Luz estava lá a se

entreter. Aproximei-me dele com um sentimento indagador, mas antes de me expressar

ele perguntou, com natural soberba, o que queria. Expliquei-lhe o anseio por conhecer

infinitamente e o desejo de amar uma mulher. Ele sorriu irônico para mim e disse que

todos os sábios que por ali passavam, ou que ali se formavam , acabavam, cedo ou

tarde, optando pelo confortável não-saber; somente os ignorantes como eu, ressentidos

de sua ignorância, procuravam pelo doloroso conhecimento. Disse-me também que eu

não tardaria a procurar pela biblioteca do Purgatório para me redimir. Repliquei dizendo

que mesmo assim gostaria de absorver todo o saber possível.

–Sabes por onde queres começar? – ele perguntou.

Então lhe contei do senhor sapientíssimo que dera a palestra da qual já falei.

Descrevi toda a minha admiração daquele homem portador de grande saber sobre a

alma humana e sobre as coisas do mundo. Disse, por fim, que era a minha vontade ler

os seus livros. Quando terminei a minha fala, Lúcifer deu uma gargalhada tão forte que

fissurou as colunas sustentadoras do inferno.

–Meu jovem, es acaso o maior dos tolos? Venhas comigo, vou te mostrar

umas coisas.

Descemos por escadas gigantescas, passando por suntuosas estantes onde se

encontravam as energias compactas. Tudo belíssimo, luminoso, magnífico. No

caminho, deparei-me com alguns títulos de alto brilho. Lembro-me muito bem de Os

Lusíadas, de A Odisséia, de O Banquete, da Bíblia e de A Divina Comédia. Mas a

medida em que íamos descendo, as coisas tornavam-se obscuras, sem o brilho e o

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esplendor dos andares de cima. Lúcifer me explicou que as obras de menos brilho eram

as mais medíocres.

Chegamos, depois de muito descer, ao último patamar do Inferno. Um lugar

apagado, horrendo e com fortes odores de enxofre. Aproximamo-nos de uma estante e

Lúcifer retirou um livro, o entregou a mim e deu outra gargalhada:

–Aqui está a preciosa obra que procuras.

Era uma energia concentrada muito escura, semelhante a uma sombra,

totalmente desprovida da luminosidade dos livros situados nos andares de cima. Grande

foi o meu assombro: porque esta obra que na Terra parecia tão grande aqui no inferno

está subjacente? Eu carecia de resposta e o Anjo da Sabedoria as deu:

–Há aqui hierarquia de energias concentradas de saber. As obras sublimes,

muito exigentes em sua confecção, ensejadoras de muita paciência e labor,

comprometidas com a estética, portadoras de criatividade ou de informações valiosas,

que tentam aproximar-se da verdade; essas estão nos patamares altos e fulguram

esplendidas. As obras que, pelo contrário, não se configuram com essas características,

são relegadas aos confins mais sórdidos do Inferno e em nada cintilam.

Enquanto Lúcifer me explicava, observei que a maioria das obras desse

último andar eram livros de auto-ajuda. Devia haver mais de quinhentos mil somente

naquela área, alguns até já foram lançados na Terra.

–... Esse livro que seguras – continuou o Capeta – é um livro de plebe rude,

como todos os outros aqui jacentes. São obras sem compromisso com a estética,

falaciosos e demagógicos. Não são nem belos como livros literários e nem possuem

informações rigorosamente científicas ou filosóficas. Seus argumentos são de uma

pseudo-autoridade, que diz saber os segredos da felicidade, do amor, da superação, da

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paz, de se alcançar riqueza e de muito mais. A maioria desses livretos considera que o

sujeito é responsável por tudo o quanto lhe acomete, ou é capaz de, por força própria,

superar todos os males e todas as situações indesejadas. Dessa forma, desconsideram as

forças exteriores ao sujeito, desconsideram os acontecimentos situados muito além do

controle das pessoas. Generalizam ações que, se empreendidas, servem a todos. Alguns

deles dizem, sem qualquer embasamento, existirem poderes transcendentes, que, se

existissem verdadeiramente, transcenderiam até mesmo a Deus e a mim, os quais

conspirariam para o sucesso do indivíduo se este procedesse nos conformes. Prometem

milagres se as instruções forem seguidas fielmente. Quem os lê, geralmente pessoas

fragilizadas, animam-se por algum tempo, sentem-se grandes, mas logo perdem o ânimo

e precisam de outra dose de alguma dessas outras drogas. Aqueles que não alcançam as

maravilhas prometidas muitas vezes acreditam não terem seguido corretamente as

instruções: o livro é bom, eu fracassei.

Julgando ter entendido a mensagem do Capeta, o interrompi perguntando

como esses livros iam para a Terra. Perguntei-lhe também a finalidade de coisas tão

rigorosamente ruins. Então ele narrou todo o processo que expus anteriormente. O leitor

deve-se lembrar de que algumas obras não vão à Terra ao acaso, mas se faz um pacto

com o Demônio e este escolhe nas estantes do Inferno aquelas que o pseudo-autor irá

lançar. Lúcifer explicou dessa forma:

–Algumas pessoas anseiam pelo sucesso na Terra de tal forma que chegam a

vender a alma para mim. Eu lhes dou, de alguma maneira, fama, sucesso e dinheiro. A

esses pobres infelizes, concedo realizações conforme o contrato feito. Alguns, por

exemplo, a troco de alguma fortuna, cedem suas almas sórdidas para que eu possa

usufruir de seus serviços por mil anos.

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Enquanto falava, Lúcifer pôs-se a locomover por entre as estantes e eu o

segui. Avistamos uma pobre alma que me parecia familiar. Então o grande Anjo da Luz

disse:

–Vês aquele espírito desventurado? Reconheces? É o autor do livro que

seguras.

Sabendo disso, lancei o livro ao chão e ordenei àquele espírito imundo ir

guardá-lo ligeiro em seu lugar. Ele nem titubeou. Vendo-me ao lado de tão imponente

figura, obedeceu subjuntivamente. O Demônio, por meu gesto, soltou outra gargalhada

e continuou sua explicação:

–Aos seres humanos com quem faço pacto, concedo os livros destas estantes

sem brilho, nunca as obras esplendidas situadas nos andares de cima. As desse andar

não guardam relação com nenhuma das verdades contidas na biblioteca do céu, somente

as resplandecentes guardam. Estas obras opacas deste patamar são vendidas facilmente,

espalham-se feito praga e prestam valioso serviço a mim na Terra.

Lúcifer me disse de muitas outras coisas. Eu o escutava atentamente,

formulando indagações que no momento propício eu lhe expressei. Ele respondeu a

todas elas. Foi através dele que descobri a impossibilidade de outra vida e,

conseqüentemente, da impossibilidade de amar uma mulher. Dedico-me, nessa

existência infinita, a absorver inutilmente seletas energias compactas. E cada vez mais

eu conheço a humanidade e a minha própria história. É uma imensa dor: quanto mais

absorvo das energias compactas, mais me aprofundo no Inferno. Sei que um dia não

mais suportarei e, nesse tempo, recorrerei à biblioteca redentora do Purgatório.

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De vez em quando vejo o Demônio solicitar os serviços de algumas das

almas compradas, verdadeiras escravas. Algumas ele faz encarnar na Terra, não em

pessoas, mas em porcos. O Demônio se diverte vendo-os viver e morrer como porcos.

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UMA CARTA DE AMOR

Antes de escrever-te pedi auxilio a Deus, para que Ele me instruísse e me

permitisse entregar-te palavras verdadeiras, puras e sobremodo edificantes.

Pois que muita coisa aconteceu desde que nos conhecemos, muita coisa boa,

mas também ruins – para ambos. Quanto a mim, hoje estou extremamente sóbrio, viril e

feliz. Estou pronto para pelejar no campo de batalha da vida: minha espada está cingida

em meu flanco, bem afiada; meu escudo está embraçado. Quem pensa que meu espírito

guerreiro morreu engana-se. Nunca estive mais forte e bem disposto. Sinto-me ungido,

abençoado e justificado por Deus, Aquele que tudo me emprestou gratuitamente para

ser usado de forma correta. Tive bons trabalhos e boa instrução, boa saúde e uma

família que deposita uma confiança em mim que julgo não merecer. Deus entregou tudo

isso aos meus cuidados, para que eu pudesse cuidar e zelar, entregou-te em meus

braços. De sorte, tudo o quanto meu Senhor a mim confiou, por direito ele pode tomar

de volta para si. Assim aconteceu.

Destarte, depois que fui preso em um cárcere triste, sem que minhas mãos

estivessem por perto, tudo foi providenciado: minha mãe está muito bem de saúde,

minha irmã esta feliz, com bom emprego e vai se casar, meu irmão namora uma linda

menina, vai se casar também e construir sua casa. Meu pai vai muito bem e até reduziu

o consumo de bebida. E tu, amada, formou-se e conseguiu um bom trabalho e um bom

companheiro, tem um futuro certo e prospero. Tudo me foi preparado, foi-me devolvido

tudo em dobro. Dez vezes mais é meu gosto por música e poesia, meu tino está afiado

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por aquele que me criou. Não cabe a criatura questionar ao criador o porquê de ser

como é. Por isso agradeço por ser tão abençoado por ser exatamente assim como sou.

Gosto de meu passado e de meu presente, meu futuro segue enquanto eu

puder, conforme aprazer ao Pai. Orgulho-me de minha descendência de guerreiros e

músicos. Meu bisavô fundou a banda de música de Brasília de Minas, não se conheceu

ainda hoje músico melhor na cidade. Meus tios dizem que meu bisavô os ensinou os

primeiros acordes. Meu avô pelejou na Segunda Guerra mundial e sobreviveu a um

naufrágio de um navio afundado pelos submarinos alemães, na costa de Santa Catarina.

Ele tocava cavaquinho. Meu pai gerou três filhos com minha mãe, que nos educou a

todos com perfeição. Minha herança, pois, não é dinheiro nem bens, herdei um espírito

guerreiro e poeta, um coração intrépido e uma destra bastante peculiar. De minha mãe e

heroína herdei o amor à vida e a resiliência incomparável, além de um espírito

voluntarioso.

Tudo em minha volta está lindo e perfeito, desfruto de rico banquete.

O homem tolo pode afirmar que perdi tudo, porque perdi emprego, dinheiro

e tu, menina amada. Podem sentir pena em seus pobres corações. Mas o contrário foi o

que me aconteceu, ganhei mais sabedoria, paciência e a graça de Deus, que por si só me

basta. Emprego e relacionamento serão conseqüência do meu renascimento, com eles

despreocupo-me.

Meu maior problema eu já identifiquei e estou solucionando. Como disse o

psicólogo, na minha história de vida eu sempre fui um discípulo sem mestre. Isso é

verdade. Um discípulo sem mestre é desventurado em seus caminhos, pois não tem um

porto seguro. Pela minha peculiaridade, o psicólogo se ofereceu para ser esse mestre,

abaixo de meu Senhor, que sempre guardou minha entrada e minha saída. Nunca estarei

só, pois ao contrário do que eu pensava, não sei andar sozinho.

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Quanto a ti, amada, guarda contigo sempre os seus dons especiais, raros

neste mundo triste, pelos quais me encantei e que sabes bem quais são. Em relação a ti,

resta-me escrever e cantar com teu rosto em meu coração. Eu peço: lembra te de mim

não segundo minha transgressão, mas segundo sua bondade. Lembra-te de nossas

conversas, dos muitos beijos, do encontro de nossos corpos, do calor com o qual nos

acalantávamos, da pureza de meu olhar, dos momentos felizes pelo qual passamos, da

sensualidade que havia entre nós, enfim, lembra-te de mim com amor, assim como

sempre de ti eu me lembrarei.

Saiba, entretanto, que não vivemos de passado. Segue, pois, teu caminho,

tenha a mesma prosperidade que agora tenho, ou ainda mais. Nunca se esqueça de Deus

e da espiritualidade. Eu me preocupo muito contigo, com tua saúde espiritual e física.

Tu és teimosa quanto a isso. Não segue meu exemplo, por favor, pois algumas decisões

podem custar muito caro. Lembra-te de que teus doces braços não foram feitos para

abraçar o mundo e nem tuas firmes pernas para correr atrás do vento. Deves saber o que

todos deveriam: colocar as coisas mais importantes em primeiro lugar. Não inverte,

pois, as coisas. Entre os dons supremos, não sou eu quem o diz, o maior deles é o amor.

Confio em ti, sei que seu arbítrio, seguido sempre dos dons de Deus, levar-te-ão à

verdadeira prosperidade.

(Ler primeira Coríntios, capítulo 13)

Sem mais,

Dhan

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POEMAS E AFORISMOS

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Há um altar feito de açúcar refinado, mascavo e mel; sobre ele ainda repousa um

crucifixo de madeira ganhado em uma carona; e ele não está sob um templo, antes sob o

tempo, sujeito à temporada das águas. Zela desse altar um noivo: recobre-o com lona de

circo no frio e, no calor, com folhas de bananeira; repõe os açucares e o mel; ajeita o

crucifixo em seu lugar, em forma de oração. Espera ansioso, mas feliz, pela noiva, que

ele nem sabe se existe. Ele cuida do altar porque sabe que pertence a Deus, e não aos

seus deleites e nem ao seu casamento. Esse doce altar passa sem perder a doçura e sua

cruz pelos cursos e, menos ainda, pelos concursos da vida. Se eu pudesse descrever o

coração em meu peito, eu o descreveria assim.

...

Nestes tempos insólitos, de grande peleja e labuta, frutos das guerras e ainda

amigos de uma guerra, desembainho minha espada, que é a fé e embraço meu

escudo, que é o amor. Em caminhos sobremodo temerosos, fixo o pé na estrada da

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esperança. Ah! Antes meu Senhor confiasse-me sina impossível, em cuja toda vida

pudesse jamais realizar a termo, como contar as estrelas do firmamento ou contar

os muitos fios de teu cabelo, mulher amada. De sorte, eu pelejaria com prazer,

cingindo em meu peito teus fios, contando-os vagaroso, sem medo de errar e

recomeçar muitas vezes. Certo eu erraria. Confundiria os números enquanto

velasse teu sono, assistido por estrelas, sem temor àquele que me confiasse essa

empreita, sem o pecado de errar, ainda que com certo dolo no coração. Eu mesmo

teria bom sono, sabendo que o Senhor que te guarda jamais toscaneja. Mas não é

essa a minha sorte. Parece que a sina de todos é labuta; e o medo cavalga por toda

estrada e todo trilho de trem, por caminhos, por toda trilha e vereda da Terra.

...

São tão verdadeiras as mentiras do século passado que ainda se espraiam largamente e

delas embebem-se os espíritos, mesmo os mais sóbrios. Não há sequer um respirar

seguro... mas que dizer a uma geração ignorante de um ar puro? Da destra da ciência

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procedem as verdades e da arte a ilusão ou entretenimento. Essa é uma inversão triste,

pois do bom poeta procedem as verdades mais seguras, sendo ele inimigo natural das

imposições seculares. Toda grande criatura da ciência moderna nasceu da guerra e pela

guerra, a custa de muitos gemidos que ainda agora podem ser ouvidos entremeados com

todo o barulho remanescente. A grande tecnologia de que diariamente desfruta-se em

prol de uma fictícia saúde, que arrasta os dias à longevidade, encobre fatos ignorados

sempre: ainda hoje a maior causa de mortes no mundo provém de doenças relacionadas

à fome e a miséria. E a nossa morbidade é maior ainda: é cegueira, automutilação e

auto-envenenamento. Remedeia-me o espírito um artista, conta-me uma história bonita

para mim, que logo vou andar pelo cinza do mundo, sem lentes nuançadas, e o mais

depressa voltar aos acalantos dos seus braços... descansar do ocaso à aurora.

...

A pureza é o dom de ser cego e anular todos os sentidos, de não ver sentido, de abrir o

peito sem interpor barreira alguma entre o mundo e o coração. É a virtude de abrir os

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olhos para as trevas e ver a luz e iluminar-se o espírito em miríade. A pureza desce ao

abismo e não teme a profundidade, sobe a colina e não se assombra da altitude.

...

Chora-se por tudo e por pouco se alegra. Sorrir é questão de poder! Para chorar, basta

ser. Há de se convir que, neste mundo infausto, não condiz, nem é prudente esconder

um riso a quem abre uma porta ou toca o ombro. Mas quem ri para agradar não sabe se

dói mais chorar ou sorrir sem ter vontade. Quem vê um sorriso, por sua vez, não se dá

conta do grau de sinceridade do rosto que se mostra. Ora, água salgada e areia podem

bem ser uma praia, mas também podem ser uma lágrima em deserto poento.

...
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Em que nós nos seguramos? Em que nos sustentamos? O Homem em meio a uma forte

ventania, daquelas que o podem carregar para o infinito, deseja agarrar-se à rocha mais

fincada ao chão, ou a arvore mais bem arraigada. Mas, se não houver rochas ou arvores

na planície para se agarrar, ou caverna para se esconder, em meio a forte ventania, o

homem tenta sobreviver a todo custo, agarrando-se até mesmo a uma flor. A

conseqüência é que ele, ao invés de ficar junto a flor, a levará junto de si, arrancados

ambos pelo vento forte, para longe, onde ninguém alcança sem risco. É assim quando,

no caminho, ocorre forte ventania e não há rocha fincada ou arvore, e agarra-se, o

Homem, à primeira flor e leva-a junto do peito para sempre com o vento. Quem faz isso

não vive perto de onde a flor nasceu, mas sempre a leva consigo, infinitamente, para

lugar muito especial, que é qualquer lugar onde ela esteja.

...

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Água ou metal, eu me pergunto, de que somos feitos, meus irmãos. Um médico disse-

me que preciso de ferro no sangue, um religioso disse que de água, de fonte segura, eu

necessito.O ferro, dizem os médicos, torna o sangue vermelho e a água o torna líquido...

Então o que sou: homem de ferro ou de água? Se for de ferro, que seja ferro aquecido;

se for de água, que seja fervente. Nunca , meu Deus, permita que eu seja frio, porque

tanto a água (em estado de gelo) quanto o ferro, podem ser duros, quanto rocha bruta ou

diamante. Por estar doente, no momento, resolvi tentar ver algo de fora e alegre...olhei

para o céu e vi, creiam, o planeta Marte. O planeta Marte é vermelho, mas não é de

sangue, como o de nossas veias. Ele enche os olhos de água, quando aparece em

céulímpido; mas em si não tem água, nem vida. Talvez devêssemos transferir as coisas

para outro mundo: se toda água dos olhos que se emocionam por Marte, em certas

noites de maravilha, fossem locadas para esse planeta, que é vermelho por causa do

ferro, então lá teria vida! Marte seria como nosso sangue, cheio de água e de ferro.

Afinal, somos feitos de quê – água ou metal?

...
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Uma borboleta pousou na mão... Sabemos por instinto o que é perigoso... ou será que

não o sabemos? Nós nos assustamos até quando uma borboleta nos surpreende a tocar a

pele (sem saber, pobre bichinho, do perigo que somos) e ignoramos as mais mortais

possibilidades de todos os dias. Nossos instintos nos instruem às vezes de modo

enganoso – e vejam que são esses mesmos instintos que nos permitem amar! Nossos

instintos de amor e ódio nos enganam todo o tempo – mas se é necessário o engano, que

se não engane por ódio, mas por amor. Nem é tão preciso se apaixonar por uma pessoa,

mas é preciso pelo menos amar o próprio gesto de ser especial (às vezes acariciar o

cabelo resolve, mas às vezes não [e não é por carícias que se faz o sacrifício]). Quem

ama se torna humano, amar o próprio gesto de amar pertence somente a Deus. Sejamos

humildes para admitir que, ou ele não existe, ou que nós, tendenciosos às paixões, não o

conhecemos de modo divino, mas somente humano... Ele certo compreende bem,

porque (talvez triste) somente pode ser o que é e nada mais (impossibilitado de se

apaixonar como a criatura). Voltando às borboletas: que pensar acerca de saber que

imolamos em sacrifício não o perigo iminente, mas o pobre bichinho que só veio

acariciar uma mão?

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Doce anjo, caíste em mar salgado.

Do azul celeste ao azul marinho:

Grande distância!

Quanto importa o azul do teu olhar!

O azul e as lágrimas salgadas...

Lembram-me o próprio mar,

Lembram-me o quanto dói o sal na ferida

Ou as ondas que me afogam.

Afogar em teu choro é mais triste

Que naufragar.

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Aristóteles dizia que as coisas tendem a voltar para suas origens. Não sei se ele está

certo, não sei, mas espero que sim. Talvez as pessoas, também, tenham uma origem e

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tendam a voltar. Há muitos escritos sobre essa ideia, como, por exemplo, aquele que diz

que da terra veio o homem e para terra ele voltará. Mas, quem sabe antes de voltar para

a terra o homem precise voltar para si mesmo e para os seus amores? Um peito pode

esperar por quase tudo... pode esperar pela vitória na vida, pode esperar pela volta de

alguém – embora com muita angústia – mas não pode conceber a espera pelo amor em

si mesmo. As coisas, algumas delas, voltarão necessariamente, para donde vieram, tal

como para a terra de onde saíram, mas algumas podem não voltar nunca, tais como as

pessoas a quem amamos. Algumas coisas, como as preocupações com o trabalho, nos

levam à terra, digo, ao chão ou ao túmulo. A vida faz isso por si mesma. É prudente, eu

penso, voltar então para nossos amores antes de voltar para a terra. Todos nós já vimos

pessoas que saíram para uma estrada, abriram cancelas de desencanto e jamais voltaram.

Eu mesmo, Sabendo-me desterrado, já há muito desconheço meu chão.

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Vi hoje na estrada um burrinho maltratado, machucado e triste. Pobre bichinho! O dono

dele devia ser muito mal: certo nem devia dar água para ele quando sentia sede. Deve

tê-lo cavalgado brutalmente por estradas duras e de pedras afiadas. Agora que está

velho, foi abandonado aos capins das praças e lugares perigosos onde pode até ser

atropelado. Meu consolo é saber que ele está livre, embora não veja o perigo de ser

capturado novamente e sacrificado de forma brutal, depois de vida tão sofrida, tratado

como quem nunca serviu. Será que ele sonhava ser um belo cavalo, daqueles em que

somente montam os heróis? Mas como posso criticar o dono dele? Eu mesmo, também,

às vezes, cavalgo um sonho burro como se estivesse montado em um pegasus a voar,

não pelo quintal de minha casa, mas pelo universo. Eu espero não judiar de meus

sonhos como foi judiado o burrinho tão machucado que vi, certo dia, numa estrada

muito bela, rodeada que era de ipês roxos, rosas e amarelos... e nem abandoná-los para

serem atropelados.

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Prefiro as pessoas que trazem no rosto o coração. Na cara nada se esconde, mas nem

tudo se pode ver claramente... Pode-se enxergar a cara de qualquer alguém, mas o

sentir, o amar e o doer resplandecem em raros rostos que já pude vislumbrar. Creio

conseguir amar qualquer pessoa, mas prefiro as pessoas que trazem no rosto mais que

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um nariz, uma boca ou um ordinário par de olhos bonitos. Sinceramente, prefiro as

pessoas que trazem no rosto o coração.

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Eu já entrei em peleja e fiz armistício com todos; nessas relações venho ganhando e

perdendo tudo – todos os dias – desde o momento em que nasci. No início de meu

próprio tempo, acordei perdido em meio às coisas. Nesse meio vivo perdido como quem

é banido da tribo e, no final, pede ao menos uma morte calma. Eu jamais saberia de meu

nascimento e nem escolheria o dia e a hora se soubesse; jamais vislumbraria de meu

futuro uma certeza qualquer, tanto quanto sei que a morte ceifará meu espírito

certamente. Se, e o quanto for possível pedir, peço somente uma vida sereníssima, pois,

ao dobrar as esquinas de costume, jamais saberei o que me espera. Pode ser encontre eu

uma moeda que um descuidado perdeu; mas também pode ser uma bala perdida é que

me venha encontrar. Se o caso for de eu achar uma moedinha, espero não me sentir uma

pessoa de sorte, se não sei se quem a perdeu ia comprar um pão ou uma dose de

bebida... mas se encontrar uma bala a cortar meu peito duro ao meio, espero não me

sentir azarado, que possivelmente o destino daquela seta fosse reivindicar outra vida e,

por acidente, confundiu seu destino veloz com minha sina rápida. Assim penso ser a

nossa existência nestes dias em que a esperança de vida aumenta (ou que a morte foge

de nós, conforme a interpretação) e que a alegria e a paz fogem também velozes, sem

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esperar por nós, zombando de nossa passagem única por esta vida. Fogem deixando-nos

somente com nós mesmos e nossas pernas frágeis, que não podem segui-las.

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Eu vou embora, sozinho, mas volto. Não importa se a distância é de um ou se são mil

quilômetros, pois se não estou junto, estou infinitamente distante. Sei que quando

vou,ofereçoa vocês somente lágrima, tristeza e saudade (desfaleço e choro por causa

disso). Saibam que estou em uma guerra. Preferiria enfrentar balas e canhões ao lado de

alguém que amo... mas como levar vocês a uma guerra? Devo ser muito egoísta por

precisar tanto de vocês!!! Mas saibam que vou por necessidade e porque morro de amor.

Saibam também que tentarei voltar e que desconheço do perigo de qualquer estrada, por

causa desse amor. Saibam que para mim é muito difícil substituir um abraço em troca

de distância e um pouco de dinheiro. Só penso em uma frase, vulgar, mas que acho

muito bonita: “vou porque preciso, volto porque te amo”.

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Deve haver caminho tortuoso em lábio vermelho:

Então venho desencontrando-me de outra causa?

Vi-me perdido em irremeável, porém doce, encanto,

Num acalanto do tempo, suspenso em longa pausa.

Supondo saber do norte, no caminho me vi sem rumo,

Pois dos labirintos de um beijo não se sai incólume,

E em sentimento muito oblíquo não se encontra lume,

Antes caminha-se cego, em terra obscura, sem tino.

Mas, perdido, às vezes me é concedido grande favor

Vindo da senhora de mim: – um pouco de presença,

Vem toda dotada de paixão nos olhos, nos lábios fervor...

Dotes que fazem de mim pobre homem desencontrado,

Sentenciado a vagar incerto, cumprindo fiel a sentença,

Vagando a ermo, mas sabendo que de amor é conduzido.

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O muito que tive encontrei em abraço moreno,

Mas ao anseio inscrito em minh’alma indago,

Se de esmolar, do amor migalhas, fiz-me mendigo

Ou um fraco, que de orgulho me vi desprovido.

Mas doação se fez de tão bom grado, morena,

Que eu mesmo, recebendo, vi-me prestando favor:

Se enamorados dispensam-se recíproca dádiva,

Eis patente a contradição, capricho único do amor.

Mas meu pensamento fez-se turvo como um rio negro,

Que vi perigo em águas calmas, onde mal não havia,

Pois não dana à flor o perfume levado pelo vento,

Nem é menos senhor, o homem de amor escravizado:

Nestes tempos difíceis, de pouca bondade consentida,

Será antes um rei quem de seu reino se quer destronado.

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Já terminamos, irmãos, de fazer o que devíamos: remexemos o chão duro, cortamos o

mato espinhento,retiramos a cerca que rodeava o lago (que brilhava muito ao sabor do

sol e da lua), construímos aquele muro, que era tão difícil, e já pagamos as nossas

dívidas com ouro, suor, sangue e lágrima, conforme nos foi requisitado. Se ladrão entrar

em nossa casa,quando nós não estivermos, só roubarão coisas, então não poderão roubar

vocês de mim, porque estarão comigo... As coisas se perderão de qualquer forma,

porque são perecíveis!... Somos mais que elas: o quanto não podemos perder é nós uns

dos outros. Não temos muito de material a perder, portanto. Não se desesperem, pois

temos muita coisa, temos agora, por exemplo, aquela nuvem que encobre estrelas e faz

chover sobre nós. Caso a nuvem se acabe em pranto de chuva, teremos de volta as

estrelas... e, com sorte, talvez alguma se desprenda do céu e o risque de doirado,

parecendo aquela serpentina que vimos no circo,aquele dia em que rimos muito.

Prestem atenção, meus irmãos: eu não posso levar vocês para qualquer canto (e para

lugares insólitos, nem desejo), porque algumas coisas devo fazer sozinho. Ninguém

pode garantir uma volta e um presença, mas se eu tiver que sair, farei de tudo para

voltar... e, voltando, voaremos em cavalo alado, livres novamente, sem medo, em nosso

próprio paraíso.

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A pureza é o antípoda da hipocrisia. Não que a pureza seja isenta de pecado e que a

hipocrisisa não possa ser utilizada para o bem. A pessoa pura mostra todo seu carater no

rosto e, quando se olha em espelho límpido, ve-se defeitos e perfeições, conforme o

caso, estampados logo a um palmo do próprio rosto. E é comum ao hipócrita esconder

inveja de pureza existente no rosto de quem depara, mas a pessoa pura nada pode

esconder em sua face. As lágrimas caem sem querer e a testa fransi sem que se dê conta,

mas também o riso vem fácil, quando é hora de felicidade. Hipocrisia é esconder,

pureza é mostrar, o tempo todo, a verdade, ainda que se tente contar uma mentira para

agradar. A hipocrisia consegue esconder quando não deseja mostrar... A pureza deve ser

um defeito pior que a hipocrisia, pois faz de nós palavras duras ou macias, mas sempre

sinceras, com o coração cheio toda hora de desejos bons. A hipocrisia atrofia nossos

músculos da face, enquanto a pureza faz que sejamos verdadeiros na hora de rir e de

chorar.

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De amor, angústia e ausências o homem farta o peito;

Com saudade e lágrima aventura-se em temeroso temporal,

Quem farto de longa caminhada, deseja, num colo, seu leito

E, em noite nebulosa, espera, de incerta estrela, um sinal.

Quando a presença despeja em seus dias a luz d’aurora

E o sorriso se faz certo como a luminosidade da manhã

E o abraço se faz abrigo cálido como, no frio, a suave lã

Tornam-se passado e futuro vãos em função do agora.

Mas a aspirada felicidade não supera a força do porvir,

Que traz em sua supra-essência a tristeza e o desengano

E elege-se Príncipe regente das separações sem consolo

E não adoça o sabor do cálice único que tem a servir,

Nem alivia a humanidade da sua lei maior: a morte;

Não há prerrogativa, desvio, socorro, exceção, ou sorte.

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Mas eu ainda vou para casa abraçar alguém...

Só não pode ser agora, então outro dia eu vou...

Não pode ser de jeito que eu vá mais além,

Mas que fique aqui, onde moro, onde estou.

É porque amo muito que desejo esse lugar,

Mas nem penso direito que locus é esse,

Que não vem a mim senão para me matar,

Se não mata quem dele tem menos interesse.

Lugar esse e este amor não podem ser lidos,

Pois só lêem tais letras quem delas compartilham...

E são só minhas... de agora e de tempos idos...

Mas se por desventura lerem minh’alma agora,

Saberiam de mim muitas dores que angustiam

E que minha vida está no crepúsculo, não n’aurora.

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Uma tribo se levanta contra a outra, frente a um lindo templo. Há morte sob o sol,

diante de Deus e eu me pergunto: que sentido isso faz? O ouro não é amarelo e o

diamante não é transparente, a prata não brilha e as pedras preciosas não são duras, tudo

é vermelho cor de sangue. Tudo isso fez correr sangue e a terra toda ficou vermelha,

inclusive o ouro, o diamante, a prata e as pedras coloridas que brilhavam sob o mesmo

sol, diante de um templo e diante de Deus. Ou isso não faz sentido, ou eu estou louco.

Se eu estiver louco, se todos nós estivermos, que nossa tribo não descanse de nós e nem

derrame nosso sangue, porque parece injusto uma pedra ou um metal valer mais que

nós, uma vez que a vida é sempre mais rara que as coisas, quaisquer delas. As coisas

passarão entre as mãos, mas são as mãos, e não as coisas, que se derreterão debaixo da

terra e sob o sol que nasce todo dia. Se minha idade fosse de mil anos, teria visto tribos

e mais tribos ajuntando posses, sem ajuntar uma única vida, exceto nas palavras de um

livro e na história. Então, devo pensar (se eu não estiver louco) que age com cautela a

tribo que lembra ser o corpo feito de algo raro e muito fragil, tão valioso quanto o

tempo da vida onde vagueia, sobre a terra vermelha, cor de todo sangue derramado.

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