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A INFLUÊNCIA DE HANS-GEORG GADAMER NA

POLÍTICA DE RECONHECIMENTO DE CHARLES TAYLOR


HANS-GEORG GADAMER’S INFLUENCE ON THE
CHARLES TAYLOR’S POLITICS OF RECOGNITION

Fabrício José Rodrigues de Lemos1

RESUMO

A política de reconhecimento de Charles Taylor indica que a identidade de uma pessoa está
intimamente ligada ao reconhecimento fornecido pelos seus pares e pelo grupo do qual faz parte. Por
isso, de acordo com o pensamento tayloriano, o reconhecimento incorreto ou a própria inexistência de
reconhecimento traduzem-se em formas de agressão, uma vez que passam a ser internalizadas pelo
indivíduo. Tendo em consideração, então, as consequências nefastas do reconhecimento incorreto ou
da inexistência de reconhecimento, o artigo buscará demonstrar de que maneira o conceito de ‘fusão
de horizontes’, consoante cunhado por Hans-Georg Gadamer, veio ao auxílio da teoria tayloriana, de
tal modo que possa explanar as formas como tal reconhecimento deve ocorrer no plano do
entendimento positivo entre pares.

PALAVRAS-CHAVE: Charles Taylor. Política de reconhecimento. Hans-Georg Gadamer. Fusão de


horizontes.

ABSTRACT

Charles Taylor’s recognition policy indicates that the identity of a person is closely linked to the
recognition provided by its peers and by the group of which is a part. Therefore, according to Taylor’s
thought, incorrect recognition or lack of recognition itself translate into forms of aggression, once
they are internalized by the individual. Considering, then, the harmful consequences of the incorrect
recognition or of the lack of recognition, the article will seek to demonstrate how the concept of
'fusion of horizons', as thought by Hans-Georg Gadamer, came to aid Taylor’s theory, in a way to
explain the method in which such recognition should occur in the frame of positive understanding
among peers.

KEY-WORDS: Charles Taylor. Recognition policy. Hans-Georg Gadamer. Fusion of horizons.

1
Doutorando em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Mestre em Direito Público pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos (2016). Possui graduação em Direito pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos - Unisinos (2013). Integrante do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos (NDH).
Presidente da Comissão Permanente de Direitos Humanos da OAB - Subseção Sapiranga/RS. Tem experiência na
área de Direitos Humanos, e Direito Civil, com ênfase em Direito Imobiliário, Direito Bancário, Responsabilidade
Civil e Contratos. Advogado - OAB/RS 91.595.
1 INTRODUÇÃO

A política de reconhecimento de Charles Taylor, importante filósofo canadense, possui


como escopo o reconhecimento enquanto necessidade básica à subsistência do ser humano;
considera agressão ao indivíduo a ausência de reconhecimento ou o reconhecimento incorreto
por parte de terceiros, uma vez que tais fatos podem vir a ser internalizados pelo indivíduo - ou
até mesmo por grupo enquanto minoria -, atingindo sua identidade, levando-o a uma maneira de
ser distorcida da realidade, cujas reais dificuldades impostas tornam-se mais facilmente
transponíveis do que as próprias barreiras que o indivíduo, já tendo absorvido a agressão, impõe
a si mesmo. Como se verá no presente artigo, tal prática ocorre constantemente na sociedade
multicultural atual, muito em decorrência das políticas coloniais praticadas em diferentes níveis
pelas metrópoles em relação às colônias ou pelas práticas escravagistas disseminadas pelo
mundo nos séculos XVI ao XIX.
Em outro aspecto, a ‘fusão de horizontes’ (horizontverschmelzung) gadameriana
compreende uma maneira de atingir um estado hermenêutico em que haja um compartilhamento
de horizontes. Tal processo possibilita um processo de compreensão no qual ambos os
interlocutores saem modificados pela experiência. Estabelece-se um novo horizonte, sendo que
as limitações de compreensão de cada indivíduo são alargadas e modificadas pela experiência e
historicidade do outro. O processo de ‘fusão de horizontes’ permite, assim, à política de
reconhecimento, o estabelecimento de um fundamento hermenêutico capaz de transformar algo
que se traduzia em um escolho para o efetivo reconhecimento do outro em condição de
possibilidade do procedimento de compreensão. Em consequência, dada a característica de
perene mutabilidade do entendimento propiciado pela ‘fusão de horizontes’ e da constante
evolução do próprio reconhecimento, faz cessar a agressão ao indivíduo, permitindo-lhe
expurgar de si o sentimento internalizado.
Nesse passo, notando a importância do assunto para as atuais questões sobre a sociedade
multicultural, o presente artigo visará, utilizando o método de pesquisa teórico-bibliográfica,
demonstrar de que forma a política de reconhecimento de Charles Taylor, determinante para a
construção de uma sociedade atenta às necessidades dos indivíduos e minorias, buscou sua
fundamentação hermenêutico-filosófica em Hans-Georg Gadamer, em especial, no processo de
‘fusão de horizontes’, tornando, destarte, imprescindível ao sucesso da teoria o sólido
embasamento hermenêutico que possibilitou à política de reconhecimento rever o entendimento
de que a historicidade constitui um empecilho para o reconhecimento correto do outro.
Inicialmente, o presente artigo dissertará acerca da política de reconhecimento de Taylor,
visando demonstrar de que maneira a ausência de reconhecimento ou o reconhecimento
incorreto podem obstaculizar o crescimento do indivíduo, constituindo-se em verdadeiras formas
de agressão. Após, fará a ligação entre a política de reconhecimento e a ‘fusão de horizontes’,
para então explicitar de que maneira a influência de Hans-Georg Gadamer proporcionou a
Charles Taylor uma teoria consistente e hermeneuticamente sólida.

2 A POLÍTICA DE RECONHECIMENTO DE CHARLES TAYLOR

Charles Taylor organizou um livro denominado Multiculturalismo (1998), em que


convidou K. Anthony Appiah, Jürgen Habermas, Steven C. Rockefeller, Michael Walzer e
Susan Wolf para comentar acerca de um artigo de sua autoria sobre a política de
reconhecimento. O autor, introduzindo o tema, indica que a política de reconhecimento nasce em
decorrência de alguns aspectos da política atual que estimulam – ou exigem – a necessidade de
reconhecimento, a qual se fomenta, hodiernamente, em nome de grupos minoritários periféricos,
em manifestações feministas e no fenômeno que se designa por ‘multiculturalismo’.2
Imaginando-se, portanto, que há relação entre reconhecimento e identidade, esta concebida
como a maneira com que alguém se vê e se percebe como ser humano, o autor faz a seguinte
constatação: “A tese consiste no facto de a nossa identidade ser formada, em parte, pela
existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorrecto
3
dos outros”. Ele argumenta que essa inexistência de reconhecimento ou o reconhecimento
incorreto por parte da sociedade e de outros membros da comunidade em que o indivíduo está
inserido constituem uma forma de agressão, afetando negativamente sua identidade, i.e., a uma
visão que reduz “a pessoa a uma maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe”. 4
Embora seja possível, em razão das colocações acima, aferir o que seja ‘reconhecimento’,
cumpre, para fins de clarificação, esmiuçar o conceito: O termo possui tanto uma dimensão
normativa quanto psicológica. Reconhecimento tem tanto uma dimensão normativa quanto uma
dimensão psicológica. No reconhecimento de uma pessoa - como um agente autônomo - com
relação a uma determinada característica, admitindo que esse indivíduo possui essa determinada
feição, assume-se uma atitude positiva em relação ao recurso identificado. O reconhecimento

2
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.45.
3
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.45.
4
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.45.
implica, nesse sentido, que se tem uma obrigação de tratamento de certa maneira deste indivíduo
com essa característica reconhecida, ou seja, você reconhece um estatuto normativo específico
da outra pessoa, por exemplo, como uma pessoa livre e igual. Entretanto, há mais do que
somente a importância normativa ao reconhecimento: o âmbito psicológico também importa. A
maior parte das teorias de reconhecimento indica que, uma vez desenvolvida uma identidade,
para que esta possa tornar-se prática, deve-se contar, fundamentalmente, com o parecer de outros
sujeitos e, ao fim, da sociedade como um todo. Destarte, não sendo obtido o reconhecimento
adequado, i.e., inexistindo o retrato positivo por parte dos outros indivíduos, o sujeito não - ou
mal – reconhecido internaliza tal identidade, julgando a si próprio e a seus projetos como não
sendo valiosos. Assim sendo, o reconhecimento incorreto dificulta ou destrói um – possível -
bem-sucedido relacionamento das pessoas em relação às suas identidades.5
Foi incisivamente descrito como as vítimas de racismo e colonialismo sofreram danos
psicológicos graves ao serem depreciados como seres humanos inferiores, menores que outros.
Portanto, depreende-se que o reconhecimento constitui uma ‘necessidade humana vital’.6
Indica Taylor7 que “a possibilidade de ruptura nas sociedades multinacionais existe,
devido, em grande medida, à ausência, entre os grupos, de reconhecimento (apreendido) do igual
valor”. Portanto, ante essa falta de reconhecimento, esse desprezo e falta de respeito por
terceiros, disseminada por séculos, inclusive vem fomentando uma política nacionalista em
diversas regiões do globo – o que, muitas vezes, pode levar a condições trágicas. Nesse último
aspecto, Charles Taylor8 indica que a exigência atual da teoria é de apreço: “[...] é a de que todos
reconheçam o valor igual das diferentes culturas: que as deixemos, não só sobreviver, mas
também admitamos seu mérito”. Frantz Fanon, em sentido semelhante, porém com um viés
diferenciado, quando do lançamento de Les damnés de la terre, em 1961, já aduzia acerca da
visão pejorativa imposta aos colonizados pelos colonos, o que, na sua visão, impelia o
colonizado à violência contra o colonizador – fomentava uma política descolonial cuja liberdade
poderia ser alcançada através da violência, que, segundo Taylor9, “ia ao encontro da violência
original por parte do dominador estrangeiro”.
A discussão, ainda que possua um grande escopo histórico, possui também implicações
extremamente atuais: em relação, por exemplo, à política do nacionalismo, que, durante mais um

5
ISER, Mattias. Recognition. In: ZALTA, Edward. (Org.). STANFORD Encyclopedia of Philosophy. Stanford,
Aug. 23 2013. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/recognition/>. Acesso em: 23 jul. 2015.
6
TAYLOR, Charles. GUTMANN, Amy. (Org.). Multiculturalism: examining the politics of recognition.
Princeton: Princeton University Press, 1994. P.26.
7
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.84.
8
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.84.
9
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.85.
de século, vem sendo estimulada pelo sentido que as pessoas concedem ao respeito ou desprezo
daqueles que as rodeiam. Em um caráter interno de países multiculturais, a possibilidade de
ruptura existe, em grande medida, em razão da ausência, entre determinados grupos, de
reconhecimento – e/ou respeito – (apreendido) do igual valor. No cenário internacional, a
sensibilidade exacerbada de certas sociedades fechadas à opinião mundial confirma a
importância do reconhecimento exterior. 10
Em um plano mais íntimo, Taylor coloca que, por exemplo, nas sociedades patriarcais, as
mulheres eram levadas a adotar uma visão depreciativa de si próprias, sendo que, quando as
barreiras reais impostas às mulheres deixavam de existir, elas ainda demonstravam certa
incapacidade de aproveitarem as novas oportunidades que vinham surgindo. O mesmo ocorre
com os negros, a quem foi imposta uma visão depreciativa e de inferioridade, o que fez com que
alguns indivíduos dessa minoria incorporassem esse sentimento, impedindo-os de prosperar.
“Nesta perspectiva, a sua auto depreciação torna-se um dos instrumentos mais poderosos da sua
própria opressão”. 11 O mesmo se argumenta no relativo aos indígenas e aos povos colonizados,
o que pode ser vislumbrado, ainda hoje, nesse “complexo de vira-lata”12, esse “coitadismo” que
o brasileiro possui.
De acordo com essa perspectiva, o reconhecimento incorreto constitui-se por algo muito
além do que apenas a falta do respeito devido: marca as vítimas de maneira vil, dado que as
13
subjuga por meio de um sentimento de ódio contra elas mesmas, incapacitando-as. Desse
modo, argumenta o autor que a necessidade do devido reconhecimento e o respeito, além de
tratarem-se condições de possibilidade de uma sociedade democrática saudável, são também
necessidades humanas vitais; caso contrário, não havendo reconhecimento, ou, quando o há, o há
de maneira distorcida, tal projeção se interioriza, oprime e se constitui em uma forte forma de
agressão da vítima. 14
Por isso, a democracia introduziu a política de reconhecimento igualitário, que assumiu
diversas formas durante os anos, agora retornando à discussão sob a forma de “exigências de um
15
estatuto igual para as diversas culturas e para os sexos”. Tal retórica multiculturalista, da
diferença e da diversidade é, consoante indica o autor, central para uma cultura contemporânea
de autenticidade.16

10
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.84-85.
11
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.46.
12
RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.P.43.
13
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.46.
14
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.56-57.
15
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.48.
16
Las cosas adquieren importancia contra un fondo de inteligibilidad. Llamaremos a esto horizonte. Se deduce que
una de las cosas que no podemos hacer, si tenemos que definirnos significativamente, es suprimir o negar los
Destarte, Taylor coloca que, mesmo que se assuma que os diferentes sexos possuem
diferentes maneiras de ser, ainda assim são iguais em algumas características que possuem valor
– para tal reconhecimento, entretanto, é necessário um horizonte compartilhado. Em relação às
diferenciações entre homens e mulheres, por exemplo, Taylor17argumenta que, acima das
diferenças, existem certas propriedades, comuns ou complementárias, que possuem algum valor.
Ambos os sexos são capazes de razão, de amor, de memória, de reconhecimento dialógico.
Nesse sentido, a união em torno de um mútuo reconhecimento da diferença requer que se
compartilhe algo mais que a crença neste princípio: há que se compartilhar, indica o autor, certas
normas de valor em que as identidades em questão se demonstram iguais. Ou seja, um acordo
fundamental sobre o valor; de qualquer outra maneira, o princípio formal de igualdade será vazio
e apenas imposto. Pode-se compreender a instituição do reconhecimento de um plano de
igualdade, porém, a compreensão da igualdade em si somente ocorre quando há o
compartilhamento de algo a mais. “Reconocer la diferencia, al igual que la elección de uno
mismo, requiere un horizonte de significación, en este caso compartido”. 18
Considerando que “o ideal monológico subestima gravemente o lugar do ideal dialógico na
vida” 19, para que se esteja aberto à discussão acerca das exigências de reconhecimento do outro,
de maneira a perfectibilizar a política do reconhecimento, dando-lhe embasamento filosófico
consistente com a amplitude do que a teoria pretende, Taylor20 se utilizou do conhecido conceito
gadameriano da ‘fusão de horizontes’ – a próxima seção é inteiramente dedicada à relação entre
ambos.
Cumpre frisar que esse processo de fusão, qual seja, o discurso do reconhecimento, chega
ao indivíduo em dois níveis: a esfera privada, íntima, em que o próprio indivíduo se inferioriza
ante a inexistência de reconhecimento alheio ou o reconhecimento incorreto por parte da
sociedade e a esfera pública, na qual a política de reconhecimento passou a desempenhar um

horizontes contra los que las cosas adquieren significación para nosotros. Éste es el tipo de paso contraproducente
que se da con frecuencia en nuestra civilización subjetivista. Al acentuar la legitimidad de la elección entre ciertas
opciones, muy a menudo nos encontramos con que privamos las opciones de su significación. (…). Pero por más
que lo expliquemos, está claro que esta retórica de la ‘diferencia’, de la ‘diversidad’ (incluso del
‘multiculturalismo’) resulta central para la cultura contemporánea de la autenticidad. (TAYLOR, Charles. La
ética de la autenticidad. Barcelona: Paidós, 1994.P.72-73).
17
TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. Barcelona: Paidós, 1994.P.56.
18
TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. Barcelona: Paidós, 1994.P.86.
19
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.53.
20
Aprendemos a movimentar-nos num horizonte mais alargado, dentro do qual partimos já do princípio de que
aquilo que serve de base à valorização pode ser considerado como uma possibilidade a par do background da
cultura que antes nos era desconhecida. A ‘fusão de horizontes’ funciona através do desenvolvimento de novos
vocabulários de comparação, através dos quais poderemos articular estes contrastes. A tal ponto que, se e quando
acabarmos por encontrar uma base firme para a nossa pressuposição, será em termos de uma noção do que
constitui o valor que jamais poderíamos ter no início. Atingimos o juízo de valor, em parte, porque transformamos
os nossos critérios. (TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.88).
papel ainda maior, para a qual as instituições públicas devem estar atentas. Em relação à
responsabilidade pública, Amy Gutmann21 indica que o reconhecimento de indivíduos e/ou
alguns grupos como iguais exige, das instituições públicas, a admissão de tais diferenças.
Por isso, no âmbito social, Taylor argumenta que o reconhecimento igualitário “não é
apenas a situação adequada para uma sociedade democrática saudável”: considera a recusa deste
reconhecimento como algo prejudicial às pessoas, visto que passam a interiorizar essa imagem
de ser inferior e desprezível. 22
O autor canadense argumenta que, em decorrência da mudança da honra para a dignidade,
surgiu uma política de universalismo, a qual dá ênfase à dignidade igual para todos os cidadãos e
possui como escopo a igualdade de direitos e privilégios. Nesse sentido, argumenta Taylor, há
divergência no relativo ao que seja a igualdade – qual seja, somente no sentido civil e político ou
também no socioeconômico. Nessa última perspectiva, coexistem na mesma sociedade cidadãos
de “primeira” e “segunda” classe, ante a disparidade de riquezas. A sociedade deve, portanto,
formalizar ações compensatórias através da igualdade em prol daqueles que, de forma
sistemática, são “impedidos de usufruírem ao máximo dos seus direitos de cidadania”. 23
Na política de reconhecimento, a exigência é que se reconheça a identidade de um ou mais
indivíduos, tanto individualmente quanto em grupo, sua singularidade. Nesse sentido, a teoria se
desenvolveu em torno da agressão constituída pelo fato de que os indivíduos e grupos
dominantes ignoram, disfarçam e/ou assimilam tais identidades às suas próprias identidades. Tal
assimilação constitui o pecado maior contra o ideal de autenticidade. 24
E é justamente nesse contexto que Taylor coaduna com a ideia da política de diferença em
um segundo modelo de liberalismo, em que “o Estado adota uma concepção substantiva de bem,
levando em conta metas coletivas, primando pela defesa da comunidade e pela diversidade
25
cultural”. Para justificar sua escolha por um modelo de sociedade liberal, tradicionalmente
atrelado à formação estatal de cunho mais individualista, Taylor26 indica que essa forma de

21
Reconhecer e tratar os membros de alguns grupos como iguais parece exigir, hoje, das instituições públicas que
admitam, em vez de ignorarem, as especificidades culturais, pelos menos em relação àquelas pessoas cuja
capacidade de compreensão depende da vitalidade da respectiva cultura. Esta exigência de reconhecimento
político das especificidades culturais – alargado a todos os indivíduos – é compatível com uma forma de
universalismo que considera a cultura e o contexto cultural valorizado pelos indivíduos como fazendo parte dos
seus interesses fundamentais. (...) Questões sobre a eventualidade e o modo de reconhecimento político dos
grupos culturais figuram entre as mais proeminentes e desagradáveis dos programas governamentais de muitas das
actuais sociedades democráticas e democratizantes. (GUTMANN, Amy. Comentário. In: TAYLOR, Charles.
(Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.23-24).
22
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.58.
23
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.58.
24
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.58-59.
25
TENFEN SILVA, Larissa. O multiculturalismo e a política de reconhecimento de Charles Taylor. Novos Estudos
Jurídicos. Florianópolis, v. 11, n. 02, p. 317-318, jul.-dez. 2006.P.317-318.
26
Uma sociedade com objetivos coletivos fortes pode ser liberal, segundo esta perspectiva, desde que seja capaz de
Estado foca na proteção dos direitos fundamentais, eis que suas políticas públicas se voltam para
as metas coletivas de defesa de particularidades culturais das minorias, transformando-as em
direitos legítimos. Ademais, nem mesmo em face dessas particularidades culturais das minorias,
se podem afastar certos direitos, como, por exemplo, o direito à vida e às liberdades individuais.
Michael Walzer27, em comentário, chama essa forma de liberalismo defendida por Taylor,
de Liberalismo 2, o qual “permite um estado comprometido com a sobrevivência e o
florescimento de uma determinada nação, cultura ou religião, ou com um grupo (limitado) de
nações, culturas e religiões – desde que os direitos básicos dos cidadãos que têm diferentes
compromissos ou que não têm nenhuns estejam protegidos”.
Considerando-se, portanto, que o objetivo da política de reconhecimento de Taylor,
consoante já dito, é a recognição do valor igual das diferentes culturas, com a consequente
admissão de seu mérito , objetivou-se demonstrar de que maneira o autor cunhou uma teoria em
que as diferentes culturas restassem acomodadas – uma na qual as diferentes concepções de vida
boa estivessem protegidas e, ao mesmo tempo, houvesse a defesa das diversas culturas dentro de
um contexto de segurança para a autenticidade – “ser verdadeiro para comigo mesmo e para com
a minha maneira própria de ser”. 28 Nesse sentido, buscou-se demonstrar de que maneira o autor
cunhou uma teoria em que os direitos fundamentais individuais não entrassem em conflitos com
alguns direitos coletivos ou de grupo, tendo em vista que “a cidadania se faz tanto pelos direitos
fundamentais, como pela defesa de direitos que levam em conta as particularidades das
diferenças culturais que são exercidas dentro dos limites no Estado nação”. 29
Em conclusão a esta seção, a utilização por Charles Taylor do conceito gadameriano de
‘fusão de horizontes’ possibilitou à política de reconhecimento, além de servir como
fundamentação hermenêutico-filosófica para a percepção do outro, uma melhor explanação do
processo de compreensão no qual há uma modificação dos participantes. Tal modificação ocorre
de tal maneira que, através da horizontverschmelzung, passam, dentro dos moldes colocados por
Taylor, a reconhecer, de maneira meritória, o outro – ao invés de tratar a historicidade alheia
como empecilho para o processo de compreensão, a ‘fusão de horizontes’ traduz em algo

respeitar a diversidade, em especial, quando considera aqueles que não compartilham dos objetivos comuns, e
desde que possa proporcionar garantias adequadas para os direitos fundamentais. Concretizar todos estes objetivos
irá provocar, sem dúvida, tensões e dificuldades, mas não é nada de impossível, e os problemas não são, em
princípio, maiores do que aqueles que qualquer sociedade liberal encontra quando tem de combinar, por exemplo,
liberdades com igualdades ou prosperidade com justiça. (TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política
del reconocimiento. Fondo de Cultura Económica: .Cidade do México, 1993.P.89)
27
WALZER, Michael. Comentário. In: TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget,
1998.P.117-118.
28
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.48.
29
TENFEN SILVA, Larissa. O multiculturalismo e a política de reconhecimento de Charles Taylor. Novos Estudos
Jurídicos. Florianópolis, v. 11, n. 02, p. 317-318, jul.-dez. 2006.P.319.
positivo – e não negativo – o contexto do qual o outro se produz.
Nesse passo, o artigo passará agora a demonstrar como a política de reconhecimento de
Charles Taylor buscou alcançar tais objetivos, utilizando, como um de seus fundamentos
filosóficos, do conceito de ‘fusão de horizontes’ consoante pensado por Hans-Georg Gadamer.

3 A FUSÃO DE HORIZONTES NA POLÍTICA DE RECONHECIMENTO

O artigo agora passará a discorrer acerca do papel do conhecido conceito gadameriano da


horizontverschmelzung na política de reconhecimento de Charles Taylor e como tal fusão é
importante para um reconhecimento correto do outro. Por isso, cumpre explicitar,
primeiramente, as razões pelas quais Taylor escolheu a visão gadameriana em detrimento do
princípio da caridade de Donald Davidson.
O princípio da caridade de Davidson indica que, em um processo de compreensão, se deve
assumir que o outro – aquele a quem se deseja entender - opera com as melhores intenções
possíveis, devendo-se, portanto, tentar compreender, no melhor sentido possível, as palavras e
ações do interlocutor.30 Entretanto, consoante aduz Taylor, há um problema na aferição de
Davidson: sua concepção de linguagem pode assumir duas interpretações bastante diversas, o
que acaba por dificultar o processo de compreensão e, dessa forma, pode vir a acarretar, em uma
situação real, uma distorção etnocêntrica do outro. Taylor31 indica que tal distorção não ocorre
no processo de ‘fusão de horizontes’ de Gadamer, eis que o princípio da caridade de Davidson,
ainda que indique que se deva sempre assumir, tanto na fala quanto nas ações do outro, que este
faz inferências válidas, verdadeiras, nem sempre se obtém o resultado desejado. A problemática
reside no que se constitui como a ‘linguagem’: pode significar tanto o idioma no qual ocorre a
expressão; pode também referir-se à linguagem extensiva, aquela que emerge da tentativa de
compreensão do outro. Se for assumida apenas a primeira maneira, há grandes chances de que
ocorra a distorção etnocêntrica do outro. 32
O horizonte conforme concebido por Hans-Georg Gadamer33, dada sua maleabilidade em

30
MALPAS, Jeff. Donald Davidson. In: ZALTA, Edward. (Org.). STANFORD Encyclopedia of Philosophy.
Stanford, May 05 2014a. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/davidson/>. Acesso em: 04 set. 2014.
31
TAYLOR, Charles. Gadamer on the human sciences. In: DOSTAL, Robert J. (Org.). The Cambridge
companion to Gadamer. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P.138.
32
MALPAS, Jeff. Donald Davidson. In: ZALTA, Edward. (Org.). STANFORD Encyclopedia of Philosophy.
Stanford, May 05 2014a. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/davidson/>. Acesso em: 04 set. 2014.
33
Na verdade, o horizonte do presente está num processo de constante formação, na medida em que estamos
face da tradição, pôde, nesse sentido, dar maior fundamentação à política de reconhecimento de
Taylor, ante o constante desafio aos pré-juízos, o que possibilita uma contínua adequação do
outro no processo de compreensão e, consequentemente, no processo de reconhecimento –
quando há distorção, ela é facilmente identificada.
Desse modo, portanto, Taylor34escolheu, para fins de embasamento hermenêutico-
filosófico de sua política de reconhecimento, a concepção gadameriana de ‘fusão de horizontes’,
dada a complexidade do conceito de horizonte e de sua maleabilidade no relativo ao processo de
compreensão, de fusão: por um lado, um horizonte pode ser identificado e distinguido, e é
justamente por causa dessas distinções pode-se chegar às distorções da compreensão e às razões
do impedimento da comunicação; por outro lado, horizontes evoluem e se modificam – não há
horizonte fixo.35 Nesse ponto, consoante já arguido, Taylor36 rompe com a ideia de que a gênese
da mente humana é monológica, para dissertar acerca do caráter dialógico da vida.
Nesse sentido, a hermenêutica filosófica de Gadamer explicita que, para que haja a
compreensão, deve haver, necessariamente, a historicidade, que, neste aspecto, é tratada como
‘condição de possibilidade’: “compreendemos a partir de nossos pré-conceitos que se gestaram
na história e são agora ‘condições transcendentais’ de nossa compreensão”.37O sujeito que
engaja no processo de compreensão por meio da horizontverschmelzung movimenta-se em um
horizonte mais alargado, ampliado: o que antes era desconhecido agora passa a fazer parte do
ser. Há a criação de novos sentidos, novos vocabulários de comparação, os quais possibilitam a
articulação dos contrastes existentes. No momento em que se atinge uma base firme para a
pressuposição, a noção ocorre em um terreno valorativo que não poderia existir sem o processo

obrigados a pôr à prova constantemente todos os nossos preconceitos. Parte dessa prova é o encontro com o
passado e a compreensão da tradição da qual nós mesmos procedemos. O horizonte do presente não se forma pois
à margem do passado. Nem mesmo existe um horizonte do presente por si mesmo, assim como não existem
horizontes históricos a serem ganhos. Antes, compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes
presumivelmente dados por si mesmos. (GADAMER, Hans-Geors. Verdade e Método. Petrópolis: Paidós, 1998.
P. 457).
34
TAYLOR, Charles. Gadamer on the human sciences. In: DOSTAL, Robert J. (Org.). The Cambridge
companion to Gadamer. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P.136.
35
TAYLOR, Charles. Gadamer on the human sciences. In: DOSTAL, Robert J. (Org.). The Cambridge
companion to Gadamer. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. P.136.
36
El rasgo general de la vida humana que deseo evocar es el de su carácter fundamentalmente dialógico. Nos
convertimos en agentes humanos plenos, capaces de comprendernos a nosotros mismos, y por ello de definir una
identidad por medio de nuestra adquisición de ricos lenguajes de expresión humana. Para los fines de esta
discusión, quiero tomar el ‘lenguaje’ en su más amplio sentido, que abarca no sólo las palabras, sino también a
otros modos de expresión por los que nos definimos a nosotros mismos, incluyendo los ‘lenguajes’ del arte, del
gesto, del amor, y similares. Pero a ello nos vemos inducidos en el intercambio con los otros. Nadie adquiere por
sí mismo los lenguajes necesarios para la autodefinición. Se nos introduce en ellos por medio de los intercambios
con los otros que tienen importancia para nosotros, aquellos a los que Georg Herbert Mead llamaba ‘los otros
significativos’. La génesis de la mente humana es en este sentido no ‘monológica’, y no constituye algo que cada
cual logre por sí mismo, sino que es dialógica. (TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. Barcelona:
Paidós, 1994.P.68-69).
37
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo:
Loyola, 2006.P.228
38
de ‘fusão de horizontes’. Os novos juízos de valor são atingidos, em parte, em razão da
transformação dos critérios daquele que se engaja no procedimento hermenêutico e de
compreensão.
Gadamer, ao expressar que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, pretendendo
dar caráter universal à sua hermenêutica, demonstra a importância da palavra para o
reconhecimento do outro – e é daí que Taylor buscou a ‘fusão de horizontes’ como um dos
pilares de sua teoria. E é justamente nesse aspecto de não assumir a historicidade do outro de
maneira pejorativa que consiste o trunfo do embasamento hermenêutico-filosófico escolhido por
Taylor. A importância de tal abordagem resta clara ao se perceber que algo que não encontrava-
se no mesmo mundo em que o interlocutor, passou, em razão da linguagem, a pertencer a ele.39
Como indica Streck40: “Isto porque é pela linguagem que, simbolizando, compreendo; logo,
aquele real, que estava fora do meu mundo, compreendido através da linguagem, passa a ser
realidade”.
41
Para Hans-Georg Gadame ,o processo de compreensão é visto no sentido de entabular
acordo sobre o assunto em discussão, eis que a compreensão pode ser vista como questão de
negociação entre si mesmo e o outro no diálogo hermenêutico – em que ambos trazem à tona sua
tradição, seu legado, para que, juntos, venham a estabelecer um novo horizonte comum. Em
qualquer procedimento de compreensão, o processo parte de uma tradição de sentido que, ao
mesmo que marca o indivíduo, é o que torna a compreensão possível. Essa tradição é a instância
da qual a compreensão pode ser determinada – mesmo que seja a partir dela que o indivíduo
torna possível o conhecimento, as valorizações, as tomadas de posição no mundo, a influência
exercida pela tradição de sentido não se verifica plenamente na consciência: faz parte do ser.
42
“Assim, pode-se dizer com Gadamer que os pré-conceitos não são pré-conceitos de um sujeito,
mas muito mais a realidade histórica de seu ser, aquele todo histórico de sentido no qual os

38
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.88.
39
Como diz Gadamer, o modo como algo se apresenta a si mesmo forma parte de seu próprio ser; o que pode
compreender-se é linguagem. Assim, passa não ter sentido perguntar sobre a efetiva existência do ser; somente
tem sentido perguntar acerca do ser enquanto compreendido / sentido / interpretado. Sem a compreensão do ser,
este ser não é, embora não se possa dizer nada sobre o ser que não é, eis que não é possível falar sobre algo que
não se consegue simbolizar pela linguagem. Se não consigo dizer algo sobre algo, esse dito não é real (Lacan),
pois é o que sobra. Isto porque é pela linguagem que, simbolizando, compreendo; logo, aquele real, que estava
fora do meu mundo, compreendido através da linguagem, passa a ser realidade. (STRECK, 2013, p. 295).
40
STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise – uma exploração hermenêutica da construção do Direito.
11ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
P.295.
41
MALPAS, Jeff. Donald Davidson. In: ZALTA, Edward. (Org.). STANFORD Encyclopedia of Philosophy.
Stanford, May 05 2014a. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/davidson/>. Acesso em: 04 set. 2014.
42
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo:
Loyola, 2006.P.228.
sujeitos emergem como sujeitos”. 43
Gadamer indica que chegar a um acordo significa estabelecer um quadro em comum, ou
‘horizonte’ e, por essa razão, o filósofo considera a compreensão como ‘fusão de horizontes’ –
no original, horizontverschmelzung. Em termos amplos, o ‘horizonte’ é aquele cenário mais
aberto de significado, em que qualquer apresentação significativa particular está situada. No
momento em que a compreensão envolve a ‘fusão de horizontes’, então também sempre envolve
a formação de um novo contexto de significado que possibilita integração, interiorização do que,
caso contrário, não havendo o procedimento aludido, é não familiar, estranho e anômalo.
O sujeito não consegue se desvencilhar de um mundo de sentido do qual já faz parte, que é
o horizonte do qual capta o sentido de tudo. Nesse passo, a compreensão possui um caráter
circular: “[...] ela sempre se realiza a partir de uma pré-compreensão, que é procedente de nosso
próprio mundo de experiência e compreensão, mas essa pré-compreensão pode enriquecer-se por
44
meio da captação de conteúdos novos”. Nesse passo, portanto, é que Ana Maria D’Ávila
Lopes45 indica que a diferença que causa a separação dos indivíduos no diálogo será preenchida
pela compreensão: a compreensão implica na fusão de um horizonte histórico com outro, por
meio do qual se adquire um novo horizonte. Essa inter-relação de horizontes próprios dá origem
a uma nova expressão dos fatos, eis que os preconceitos se dissipam em novos espaços de
compreensão, os quais não se estabilizam, tampouco se esgotam: evoluem continuamente.
Dada a importância do processo de comunicação, eis o homem e, consequentemente, a
sociedade, se constituem pela linguagem46, interessante frisar, entretanto, que, para que haja uma
horizontverschmelzung digna de mérito, os horizontes devem ser já fundidos de critérios – já
tingidos pelo estudo do outro. O julgamento positivo do outro antes do tempo da compreensão é,
ao mesmo tempo, condescendente e etnocêntrico: louvar o outro por ser como si. Há que se
livrar de tais imposições de percepção do homem (europeu / americano do norte) moderno que
embaçam, por meio da arrogância ou de outra falha moral, as lentes de quem busca a
compreensão, para que se esteja disposto ao estudo aprofundado de comparação de culturas, o
que, por fim, obriga o sujeito a alargar seu próprio horizonte. Uma vez livre de tais imposições,
pode o sujeito buscar o julgamento não somente através de critérios originários: exige-se, porém,

43
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo:
Loyola, 2006.P.229.
44
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo:
Loyola, 2006.P.230.
45
LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Revista de informação legislativa. Brasília,
v. 37, n. 145, jan-mar. 2000. p. 105.
46
ANDRADE, Alysson Assunção. A política de reconhecimento em Charles Taylor. 2013. 210 f. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) -- Programa de Pós-Graduação, Departamento de Filosofia, Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, MG, 2013.P.97-98.
a admissão de que se está muito aquém do horizonte final, aquele em que a política de
reconhecimento encontra-se potencializada, aquele em que o valor relativo das diferentes
culturas é evidente.47
Nesse mesmo sentido, o pensamento de Gadamer aduz que toda e qualquer compreensão
envolve um processo de mediação e diálogo entre o que é familiar e o que não o é, no qual
ambos saem afetados – modificados.48 Esse processo de engate horizontal nunca atinge
qualquer tipo de completude final ou elucidação completa – está em constante processamento.
Ademais, na medida em que nossa própria história e tradição é ela mesma constitutiva da nossa
própria situação hermenêutica bem como também está constantemente ela mesma sendo tomada
pelo processo de compreensão, também nossa situação histórica e hermenêutica nunca pode ser
totalmente elucidada para nós mesmos.
Ademais, Taylor49, em ensaio sobre Gadamer, indica as próprias implicações do processo
de ‘fusão de horizontes’ e do desafio ao outro como formas de possibilitar as tentativas de
compreensão de outras épocas e outros povos.
Nesse passo, depreende-se que a ‘fusão de horizontes’ gadameriana possui tal importância
na política de reconhecimento de Charles Taylor que constitui peça basilar para o entendimento
de outras culturas e épocas. Tal cognição, consoante visto na seção supra, quando dada de forma
correta, caracteriza-se como a essência do pensamento de Taylor e é fundamental para o
processo de reconhecimento do outro – trata a historicidade do outro como algo positivo para o
processo de compreensão, para a política de reconhecimento.

4 CONCLUSÃO

O artigo, buscando demonstrar a importância da política de reconhecimento de Charles

47
TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.P.91-94.
48
MALPAS, Jeff. Donald Davidson. In: ZALTA, Edward. (Org.). STANFORD Encyclopedia of Philosophy.
Stanford, May 05 2014a. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/davidson/>. Acesso em: 04 set. 2014.
49
O meu argumento neste ensaio tem sido que o relato de Gadamer do desafio do outro e da fusão de horizontes se
aplica também às nossas tentativas de entender sociedades e épocas bastante exóticas. A alegação aqui não vem de
seu lugar dentro da nossa identidade, mas precisamente do seu desafio à ela. Eles nos apresentam diferentes, e
muitas vezes desconcertantes, modos de ser humano. O desafio é ser capaz de reconhecer a humanidade dos seus
modos, enquanto continuamos sendo capazes de viver os nossos. De que isso pode ser difícil de alcançar, de que é
quase certo que envolva uma mudança em nossa autocompreensão e, portanto, em nossos modos, isso emergiu da
discussão acima. Enfrentar este desafio se torna cada vez mais urgente em nosso mundo intensamente
intercomunicante. Na virada do milênio, é um prazer saudar Hans-Georg Gadamer, que nos ajudou tão
imensamente a pensar este desafio de forma clara e firmemente. (TAYLOR, 2002. p. 142, tradução nossa).
Taylor para uma melhor compreensão da sociedade global atual, iniciou com breve dissertação
acerca dos parâmetros utilizados pelo autor para caracterizar como o reconhecimento se faz
fundamental para que o indivíduo consiga viver em comunidade. Demonstrou como o
reconhecimento incorreto ou a própria ausência de reconhecimento traduz-se em agressão ao
indivíduo, uma vez que, dependendo da intensidade com que ocorrem, tais fatos podem vir a ser
internalizados, impedindo o crescimento pessoal e, até mesmo, para aquele membro, a vida em
sociedade.
Entretanto, de forma a conseguir demonstrar o quão importante é a política de
reconhecimento para o mundo global hodierno, Charles Taylor buscou em Hans-Georg Gadamer
a fundamentação hermenêutico-filosófica da teoria, a fim de estabelecer um parâmetro que
pudesse respaldar teoricamente o próprio processo de reconhecimento. Portanto, consoante
restou demonstrado, Taylor buscou em Gadamer, em detrimento da doutrina de Davidson, sua
fundamentação hermenêutico-filosófico, mormente porque a ‘fusão de horizontes’ gadameriana
não compreende a historicidade do interlocutor como um escolho, mas sim como ‘condição de
necessidade’ para o processo hermenêutico. Taylor concebe assim a política de reconhecimento
justamente porque Gadamer vê a compreensão e a horizontverschmelzung como procedimentos
nos quais nenhum dos interlocutores sai da mesma maneira que entrou.
Ao iniciar o diálogo, tanto Taylor quanto Gadamer percebem que os interlocutores,
juntamente com sua tradição e historicidade, saem modificados. E, na política de
reconhecimento, Taylor buscou essa fundamentação ao considerar que, uma vez que haja a
‘fusão de horizontes’ entre dois interlocutores já dotados de certos critérios, ambos sairão tendo
uma noção que jamais poderiam ter sem ter passado por este processo - e, como o processo está
em constante aperfeiçoamento, subsiste o desafio constante acerca da modificação do próprio
modo de ser da maioria ao mesmo tempo em que se reconhece a humanidade do outro: a
historicidade muda, evolui, passando a aceitar e reconhecer o outro. Destrói-se, destarte, pela
compreensão e pela ‘fusão de horizontes’, a agressão causada pela ausência de reconhecimento
ou pelo reconhecimento incorreto do outro.
A teoria tayloriana, através da fundamentação fornecida por Hans-Georg Gadamer,
concebe, assim, que através da palavra e do reconhecimento, “aquele real, que estava fora do
meu mundo, compreendido através da linguagem, passa a ser realidade” 50, acertada a escolha de
Taylor pelo conceito gadameriano, uma vez que possibilitou à política de reconhecimento uma
universalidade que jamais poderia ter tido simplesmente por aduzir que há necessidade de

50
STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise – uma exploração hermenêutica da construção do Direito.
11ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.P.295.
reconhecimento por parte de terceiros em relação a determinado indivíduo ou minoria.

5 REFERÊNCIAS

ANDRADE, Alysson Assunção. A política de reconhecimento em Charles Taylor. 2013. 210


f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) -- Programa de Pós-Graduação, Departamento de
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