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PAULO NETTO
LUKÁCS E A CRÍTICA
DA FILOSOFIA
BURGUESA
Capa de
Henrique Ruivo
© J. Paulo Netto
e
Empresa de Publicidade Seara Nova, S. A. R. L. seara nova
R. Bernardo Lima, 42, r/c —LISBOA 19 7 8
ROTEIRO :
1. Advertência
2. Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa
3. Apêndice: Excurso sobre a Ontologia do Ser Social
4. Cronologia de Georg Lukács
5. Notas
A Cida,
1. ADVERTÊNCIA
11
se procurou não sacrificar o rigor documental
no altar da simplicidade.
Afora o «Excurso sobre a Ontologia do Ser
Social», escrito em Janeiro deste ano, e algumas
alterações formais de pouca monta, «Lukács e
a Crítica da Filosofia Burguesa» sai à luz sem
qualquer modificação assinalável, conservando
as suas limitadas pretensões, apenas acrescido
de uma cronologia que situa historicamente o
filósofo magiar.
Mesmo insistindo no âmbito dessas preten
sões diminutas, o autor confia em que o texto 2. LUKÁCS E A CRÍTICA
possa ser útil ao leitor português **. DA FILOSOFIA BURGUESA
12 13
lista. Mas não é só: a desintegração daquela
filosofia, iniciada com a dissolução do hegelia
nismo, também é o indício cultural mais elo
quente das rupturas que, antagonicamente, dila
ceram a formação económico-social capitalista.
Daí que a história da filosofia contemporânea,
no que tem de mais notável, seja focada por
Lukács a partir da evolução pós-hegeliana da fi
losofia alemã.
Naturalmente que a imensa e profunda cul
tura filosófica de Lukács não se restringe à re
flexão germânica. Conversador habitual de Aris I
tóteles e dos pensadores da Antiguidade Clássica,
Lukács dominava praticamente todo o pensa A específica crítica filosófica de Lukács en
mento filosófico do Ocidente até ao século XX. contra-se em dois livros que, a todos os títulos,
Na medida, porém, em que o seu objectivo era, são monumentais : O Jovem Hegel e os Proble
ao nível da crítica, a análise histórica e sistemá mas da Sociedade Capitalista e A Destruição da
tica das modalidades de conhecimento e inter Razão. É verdade que em muitos dos textos que
pretação do mundo construídas pela cultura constituem outras obras de Lukács — como, por
burguesa, os seus estudos centram-se, quase ex exemplo, no material componente de Contribui
clusivamente, na tematização da quinta-essência ções à História da Estética, Realistas Alemães
daquelas modalidades — a filosofia clássica do Século XIX, Goethe e sua Época, Introdução
alemã. a uma Estética Marxista, e ainda na Estética I —
Esta tematização tem, para Lukács, um signi localizamos o diálogo renovado com a tradição
ficado nodular (que coexiste com um duplo in filosófica burguesa. No entanto, é naqueles dois
teresse: determinar o estatuto histórico-filosó livros que o pensamento lukacsiano maduro se
fico do marxismo e acertar as contas com o seu debruça particularmente sobre a problemática
próprio passado) : ela instaura-se como crítica filosófica.
macroscópica da totalidade da cultura burguesa. Entre a publicação de ambos, Lukács deu à
luz uma pequena obra — que Sartre, em 1957,
chamaria de livrinho — na qual se ocupa espe
cialmente do existencialismo francês: Existen
cialismo ou Marxismo?1. Na verdade, pode-se
afirmar com segurança que este texto, concluído
em Julho de 1947 e editado no ano seguinte, não
é mais do que a reacção de Lukács ao estrondo
com que o existencialismo sartreano se levantou
das cinzas da Resistência: o filósofo húngaro,
que já tinha pronto O Jovem Hegel e trabalhava
14 15
em A Destruição da Razão, percebera a «novi losófico burguês; em si mesmo, «o existencia
dade» do existencialismo nos Encontros Interna lismo reflecte..., no plano da ideologia, o caos
cionais de Genebra, dos quais participara em 1946, espiritual e moral da inteligência burguesa con
e como que abria um parêntesis na sua investi temporânea» 5.
gação para introduzir, na efervescência ideoló Segundo Lukács, a evolução do pensamento
gica do imediato pós-guerra, algumas determina filosófico burguês realiza-se em três estádios. No
ções que considerava indispensáveis. Realmente, primeiro, que vai até 1848, desenvolve-se a filo
a problemática que aborda em Existencialismo sofia burguesa clássica: «é esta época que dá
ou Marxismo? está perfeitamente integrada no origem à expressão mais elevada da concepção
contexto das duas outras obras : de um lado, o do mundo da burguesia... [...] As intervenções
quadro geral da decadência burguesa 2 na esteira da filosofia nos grandes problemas concretos das
do irracionalismo moderno, que tem o seu pre ciências naturais e sociais mostraram-se férteis
cursor em Schelling; de outro, este irraciona e é então que ela ascende ao nível das mais al
lismo que deriva nas formulações existencialistas tas abstracções. É assim que se manifesta o seu
na perspectiva da chamada crise geral do capita carácter de universalidade e o seu papel de fer
lismo sob o imperialismo. A peculiaridade do mento das ciências, que lhe permite descobrir
pequeno livro reside em concretizar estas duas tantas perspectivas novas» 6. Neste período, com
variáveis em relação à obra de Sartre, Simone a burguesia encarnando os ideais de progresso
de Beauvoir e M. Merleau-Ponty. Entretanto, de toda a sociedade, os seus pensadores susten
mesmo a modéstia do livro — posta em desta tam a plena cognoscibilidade do mundo e man
que pelo próprio autor : «Não consideramos, de têm uma grande independência face às exigên
forma alguma, o texto que se vai lar como uma cias ideológicas da sua própria classe social, na
resposta exaustiva a todas as questões levanta medida em que o seu exercício intelectual se
das. Os estudos que o compõem representam funda na admissão da imensa tarefa histórica
apenas esboços polémicos...» 3— contribui para a ser cumprida pela burguesia; isto possibilita-
que ele apresente, sinopticamente, as posições -lhes a crítica, de dentro, das características
lukacsianas que serão amplamente desenvolvi mais deletérias do mundo burguês, e, além disso,
das em A Destruição da Razão. faz com que os seus equívocos teóricos decor
Lukács começa por assinalar que o confronto ram da própria necessidade das «ilusões herói
entre existencialismo e marxismo é um aspecto cas» despertadas com a preparação da Revolu
de um combate filosófico mais antigo : «trata-se ção Francesa.
do choque de duas orientações do pensamento : A partir de 1848, com a entrada autónoma
de um lado, daquela que vai de Hegel a Marx, do proletariado na cena política, a burguesia
e, de outro, daquela que liga Schelling ( a partir passa à defensiva : não mais assumindo os valo
de 1804) a Kierkegaard» 4. É no período do im res universais da sociedade, mas somente ex
perialismo, contudo, que este choque vai tomar pressando os seus mesquinhos interesses parti
uma feição particular, no interior da qual o exis culares, ela vê encerrar-se o seu ciclo de actuação
tencialismo, em si mesmo, não é mais do que progressista e é compelida a compromissos com
um sinal da crise que penetra o pensamento fi a reacção remanescente para enfrentar a classe
16 17
operária. Inicia-se então o segundo período evo ideológico que leva em conta o fim da «estabi
lutivo do seu pensamento filosófico que, esten lidade» burguesa. A crise filosófica manifestasse,
dendo-se até à emergência do imperialismo (por agora, através da premente necessidade de uma
volta de 1880/1890), operasse sob a égide da de ideologia, que se estrutura em torno do irracio
cadência. As modificações por que passa o ori nalismo. Na impossibilidade, social e teórica, de
ginal projecto filosófico burguês são notáveis: uma defesa clara do sistema, e na necessária
a crença no poder da razão transformare em intocabilidade do modo de produção capitalista,
agnosticismo (manifesto quer no positivismo, a ideologia irracionalista burguesa propõe a
quer no neokantismo) e a reflexão abandona as falsa solução do «terceiro caminho»: nem ca
grandes temáticas sócio-históricas para conver pitalismo, nem socialismo. Para tanto, ao nível
ter-se em «guarda-fronteiras» das ciências: o da epistemologia, ela instaura uma nova objecti
seu papel limita-se à vigilância «para que nin vidade, a objectividade dos mitos (uma pseudo
guém ouse tirar das ciências económicas e so -objectividade) e postula a intuição como o ins
ciais conclusões que poderiam desacreditar o trumento do conhecimento verdadeiro. Lukács
sistema» 7. Mutação radical sofre a posição so resume, conclusivamente, a funcionalidade filo
cial do filósofo : agora vítima da crescente espe sófica deste estádio do pensamento burguês :
cialização condicionada pelo avanço da divisão «Não se tirata mais de fazer o elogio directo e
social do trabalho, ele está afastado da vida grosseiro da sociedade capitalista... A crítica da
económica produtiva da sociedade e passa a cultura capitalista constitui, ao contrário, o tema
manter os seus vínculos de pertença com uma central dessa filosofia nova. À medida que a
camada social — quase sempre agregada à ins crise se prolonga, a concepção de um ‘terceiro
tituição universitária — que é como que a de caminho’ progride cada vez mais no plano so
positária da filosofia; assim burocratizado, ele cial: é urna ideologia segundo a qual nem o
adquire a «liberdade» de (articular uma reflexão capitalismo nem o socialismo correspondem às
que é determinada pelos problemas específicos autênticas aspirações da humanidade. Essa con
desta intelectualidade «livre». cepção parece aceitar tacitamente o facto de que
Mediações muito complexas fazem correspon o sistema capitalista é teoricamente indefensá
der à entrada do capitalismo na sua era impe vel tal como existe. Mas... o ‘terceiro caminho’
rialista — aquela que agudiza profundamente as está investido da missão social que consiste em
suas contradições— o terceiro estádio da evo impedir que a intelligentzia retire da crise a
lução da filosofia burguesa. De facto, este está conclusão socialista. Por ser indirecto, o ‘ter
dio prolonga essencialmente as características ceiro caminho’ não deixa de ser uma apologia
do período anterior, mas acrescendo-as dos com do capitalismo» 8. Com efeito, se as correntes
ponentes indispensáveis para, ao mesmo tempo,
irracionalistas criticam aspectos da vida capita
amenizar a brutalidade da percepção da cha
mada crise geral do sistema e tentar esforços lista, fazem-no sempre negligenciando como se
de reacção à teoria social que responde à praxis cundárias as condições sociais ; o elemento mais
do proletariado. Desta maneira, sobre os limites importante das ideologias irracionalistas con
do agnosticismo anterior floresce um conjunto siste em «transformar, mistificando-a, a condi
18 19
ção do homem do capitalismo imperialista em O Ser e o Tempo, Lukács evidencia que as sen
uma condição humana geral e universal» 9. síveis diferenças históricas que cercam a elabo
É no contexto deste terceiro estádio que o ração das duas obras — a de Heidegger, em vés
existencialismo se insere como manifestação tí peras da ascensão de Hitler, expressa e reforça
pica do irracionalismo que, no final das contas, a passividade da intelectualidade burguesa; a
preparou ideologicamente a maré montante do de Sartre, em pleno vigor da Resistência, ex
nazi-fascismo. Ele revela-se, através do aprovei pressa e reforça o activismo dos intelectuais
tamento, a seu talante, do método fenomenoló patriotas — respondem pelos traços específicos
gico de Husserl, desde a obra de Heidegger, de do trabalho sartreano ; por exemplo, enquanto
1927, O Ser e o Tempo. Contudo, se o existen em Heidegger «o Nada é um dado ontológico
cialismo, na sua versão alemã (Heidegger e Jas tanto quanto a existência», em Sartre «o Nada
pers), acabou por adequar-se à concepção hitle não tem existência independente do ser, é abso
riana do mundo, o existencialismo francês — que lutamente inseparável dele» 11; ou ainda: o ser-
esteve mesmo ligado à Resistência — pretende-se -para-a-morte heideggeriano é permutado, em
e situa-se como filosofia de intelectuais de es Sartre, pelo ser-para-a-liberdade. Mas o irracio
querda. Para Lukács, a posição socialmente pro nalismo e o solipsismo ontológico que fundam
gressista e a honestidade pessoal dos existencia o existencialismo sartreano comprometem me
listas franceses não significa, no entanto, nem dularmente o conceito de liberdade: o irracio
que a sua oposição ao capitalismo seja conse nalismo estatui a liberdade como algo de meta
quente, nem, menos ainda, que ela decorra or fisicamente absoluto, e aquele solipsismo impõe
ganicamente da sua filosofia: «No plano social, que o acto livre só adquira sentido para o seu
a única diferença entre o existencialismo [fran próprio agente. Assim, «a noção sartreana de
cês ] e o [ pré-faseista ] de Heidegger é a seguinte : liberdade toma-se... completamente irracional,
o existencialismo francês levantou o seu pro arbitrária e incontrolável »12. Aliás, para o exis
testo arbitrário não contra o conjunto da crise, tencialismo, «a liberdade é, com efeito, um dado
mas contra o fascismo em particular. Mas o seu humano absoluto : não pode nem se constituir,
protesto permanece também abstracto e isto não nem se perder» 13.
se deve ao acaso. A maior parte dos pensadores Logo após a Libertação, Sartre procurou ma
antifascistas arrancam, com efeito, ideológica e tizar as suas concepções ; as tarefas políticas da
metodologicamente, do mesmo plano que seus reconstrução de uma França nova compelem-no
adversários» 10. Isto quer dizer que, na propor a concretizar o seu conceito de liberdade. É o
ção em que o existencialismo francês aprofunda que ele tenta fazer em O Existencialismo é um
as implicações da sua posição antifascista, fá-lo Humanismo, indicando as conexões entre a li
ao preço de insolúveis contradições metodológi berdade individual e a liberdade de outrem ;
cas e de um acentuado ecletismo. mas, ao fazê-lo, Sartre — avançando sobre O Ser
Esta perturbadora dualidade de método e e o Nada — não põe em causa a sua metodolo
conclusões é cuidadosamente registada, por Lu gia, entrando em espantosas contradições com
kács, no tratamento das obras de Sartre. Esta os seus postulados. Como isto não é raro em
belecendo a directa filiação de O Ser o Nada a Sartre, Lukács ( que lhe aponta várias outras
20
21
situações similares) não hesita em afirmar que mone de Beauvoir e Merleau-Ponty tentavam
ele «muda resolutamente de posição, sem se em incorporar (abusivamente, na óptica de Lukács)
baraçar com as contradições nas quais se arrisca ao existencialismo algumas conquistas do mar
a cair a cada instante e das quais, de todos os xismo.
pensadores existencialistas, é o menos cons Simone de Beauvoir tinha preocupações bem
ciente» definidas : a partir de O Ser e o Nada, ela esfor
Lukács não nega que, em Sartre, se encon ça-se por «completar as bases ontológicas da
tre um elemento de verdade, que «consiste na doutrina existencialista pela junção de uma mo
acentuação da importância da decisão indivi ral» 20. Neste rumo, o seu interlocutor explícito
dual, que o determinismo burguês e o marxismo é o marxismo, o que leva Simone de Beauvoir
vulgar subestimam habitualmente» 15. A esta va ao problema central de toda a moralidade, «a
lorização da subjectividade, que Sartre sempre reconciliação da liberdade e da necessidade» 21.
reivindicou 16, Lukács não lhe recusa funda A análise lukacsiana reencontra, neste projecto,
mento quando oposta «aos marxistas vulgares a irrupção das gritantes contradições entre o
que consideram a determinação económica da método e o objectivo da importante pensadora :
consciência humana como uma fatalidade me já que a «liberdade não poderia ter um con
cânica» 17 ; mas quando Sartre se propõe fazer teúdo concreto e uma relação dialéctica com a
dessa valorização a base de uma nova filosofia, necessidade, a não ser com a condição de ser
oposta ao marxismo — e este é o caminho de compreendida, na sua génese histórica e social,
Sartre em 1946/1947 —, ele é forçado a identi como a luta do homem contra a natureza, atra
ficar como autêntico marxismo as versões vul vés da mediação das diversas formas da socie
garizadas do materialismo histórico e dialéctico. dade» 22 e que, «considerada sob o ângulo da
Ora, replica Lukács, «quando o marxismo se ontologia fundamental do existencialismo, toda
apresenta sob seu verdadeiro aspecto e não sob hipótese de uma génese real da liberdade cons
o da caricatura concebida por Sartre 18, perce titui uma contradição em si mesma» 23, Simone
be-se a sua incompatibilidade fundamental com de Beauvoir passa a equilibrar-se sobre antino
o existencialismo. Com efeito, enquanto este úl mias insolúveis (que Lukács assinala com ri
timo limita-se... a esboçar a análise psicológica gor). A sua honradez intelectual impede-lhe uma
e fenomenológica de resoluções e acções indivi falsa síntese, mas o resultado objectivo da sua
duais isoladas..., a análise marxista da história moral da ambiguidade é, segundo Lukács, uma
começa por examinar como esse caos de actos ambiguidade moral.
individuais torna-se um processo objectivo, re No âmbito do existencialismo francês, a po
gido por leis cognoscíveis a que denominamos sição de Merleau-Ponty é singular. Para Lukács,
História» 19. Este exame, se não pode abandonar ele «conhece o marxismo bem melhor que os
o papel da subjectividade, também não o pode outros existencialistas e... sofreu-lhe a influên
assumir como o faz o existencialismo — misti cia numa medida considerável. (...) Disto re
ficada e arbitrariamente. sulta, de um lado, que está em condições de
Enquanto no imediato pós-guerra Sartre po colocar seus problemas de uma maneira muito
lemizava abertamente contra o marxismo, Si mais concreta e, de outro, que entre a marcha
22 23
do seu pensamento, orientado para a objectivi mado da consciência» 26. Afirmando decidida
dade e a verdade 24, e seus princípios de exis mente a modernidade do materialismo leniniano,
tencialista, a divergência é ainda maior do que Lukács passa a ressaltar que é a sua compo
a que constatamos em S. de Beauvoir» 25. Os nente dialéctica que pode esclarecer adequada
problemas colocadas por Merleau-Ponty cen mente as relações entre fenómeno e lei, apa
tram-se na relação entre a [responsabilidade mo rência e essência, e, sobretudo, a questão do
ral e a responsabilidade histórica. Neste sentido, carácter relativo/absoluto do conhecimento. Por
ele avança bem mais que Sartre e Simone de outro lado, Lukács insiste em que é a concep
Beauvoir; mas, na medida em que a sua per ção da totalidade que permite a Lenine elabo
cepção do marxismo está viciada por uma lente rar as suas soluções, concepção assente em que
trotskista, os equívocos das suas premissas exis «a realidade objectiva é um todo coerente em
tencialistas somam-se aos equívocos de um mar que cada elemento está, de urna maneira ou de
xismo estreito. A negação da objectividade da outra, em relação com os outros elementos e...
dimensão temporal, a redução da história a uma que essas relações formam, na própria realidade
mescla arbitrária de racionalidade e casualidade, objectiva, correlações concretas, conjuntos, uni
a esquematização da dialéctica até vulgarizá-la dades, ligadas entre si de modos completamente
ao nível de simples princípio de interacção— diversos, mas sempre determinados» 27.
tudo isto conduz as soluções de Merleau-Ponty A introdução da categoria da totalidade no
ao mais aberrante ecletismo filosófico. debate não se explica, única e necessariamente,
Havendo submetido as concepções existen como uma exigência interna da discussão. Na
cialistas a um atilado crivo analítico, Lukács, verdade, parece-me que ela se compreende me
no quarto e último capítulo do seu livro, opõe lhor se se parte da hipótese de que, neste capí
a elas as proposições da metodologia e da gno- tulo, Lukács está mesmo — sem qualquer refe
siologia leninianas. Como o próprio título do rência a este respeito — a corrigir as concepções
ensaio o indica — «A Teoria Leninista do Co epistemológicas que, em 1923, defendeu em His
nhecimento e os Problemas da Filosofia Mo tória e Consciência de Classe. Com efeito, no
derna» —, Lukács procura mostrar a forma mesmo ano em que concluía a redacção de Exis
como só o marxismo enriquecido gnosiologica- tencialismo ou Marxismo?, numa conferência
mente por Lenine pode iluminar correctamente pronunciada no Congresso de Filósofos Marxis
os problemas filosóficos contemporâneos. Assi tas de Milão, ele afirmava: «A concepção ma
nalando que a noção de uma via epistemológica terialista dialéctica da totalidade significa, em
alternativa (o «terceiro caminho») entre o ma primeiro lugar, a unidade concreta de contradi
terialismo e o idealismo é, objectivamente, a ções interactuantes; em segundo lugar, a rela
recusa do materialismo, ele esclarece que, neste tividade sistemática de toda totalidade, tanto
domínio, «o essencial da crítica leninista con para cima como para baixo (o que quer dizer
siste em afastar resolutamente todas as espe que toda totalidade é constituída por totalida
culações vazias, para voltar à questão sobre a des subordinadas a ela e também que, ao mesmo
qual deve repousar toda a teoria do conheci tempo, ela mesma é sobredeterminada por totali
mento, a saber: primado da existência ou pri dades de maior complexidade... ); e, em terceiro
24 25
lugar, a relatividade histórica de toda totali sobre o outro está em jogo» 30. Como se vê,
dade, ou seja, que o carácter-de-totalidade de Lukács não só corrige a discutível epistemolo
toda totalidade é dinâmico, mutável, sendo gia de História e Consciência de Classe como, o
limitado a um período histórico concreto, de que é mais importante, vale-se de Lenine para,
terminado» 26. Lukács alcança, aqui, a exacta superando a sua concepção — decorrente da
determinação da categoria da totalidade con quela epistemologia — de um sujeito/objecto
creta, que, no último estádio do seu trabalho idêntico no processo do conhecimento, afirmar
filosófico, vai fundar a noção da realidade como a sua distinção sem suprimir a sua unidade.
«complexo de complexos» (a expressão é de A noção leniniana da prática sócio-humana como
Hartmann); não se trata já da totalidade como critério de verdade de toda teoria ganha, ou
imperativo de princípio metodológico ou como tros sim, nova luz: a de um processo gnosioló-
princípio (abstracto) regulador da realidade, gico onde, ao contrário do positivismo, não
mas da totalidade corno a categoria da reali existe nenhum abismo entre o sujeito e o
dade. Ela mesma se coloca mediatizada, apreen objecto no processo do conhecimento e onde,
dendo-se, pois, somente através de mediações ainda, ao contrário do idealismo hegeliano, o
imanentes (sistemáticas) e transcendentes (his sujeito não se confunde com o objecto — tra-
tóricas). ta-se, portanto, da superação dialéctica de am
A impressão de que estamos diante de uma bas as deformações.
operação que é de natureza autocrítica refor Passadas três décadas desde a sua publica
ça-se mais ainda quando Lukács, prosseguindo ção, Existencialismo ou Marxismo? pode decep
em sua argumentação sobre a epistemologia de cionar o leitor desprevenido. Na verdade, as
Lenine, coloca em tela a relação entre o sujeito análises particulares de Lukács ressentem-se do
do conhecimento e a acção prática. Lukács anacronismo derivado da posterior e significa
assume, então, inteiramente a teoria do reflexo tiva evolução dos existencialistas franceses 31,
— teoria que é contraditada pelo arcaboiço teó especialmente de Sartre 32.
rico de História e Consciência de Classe —, se Entretanto — e descontado o valor teórico e
gundo a qual a consciência humana reproduz, autocrítico do último capítulo do livro —, per
reflectindo-a, a realidade objectiva; mas assu manece em destaque a justeza da crítica lu
meva fazendo ressaltar a sua nuclearidade dia kacsiana no que concerne à questão de -princípio,
léctica, retomando' de Lenine a ideia basilar de ou seja, sobreleva como exacta a incompatibi
que o reflexo «não é um processo simples e di lidade epistemológica (e metodológica) que Lu
recto, dando a imagem rígida de um espelho, kács — pela primeira vez — fundamentou entre
mas um acto complexo, desigual, movendo-se em o existencialismo e o marxismo. Neste sentido
ziguezague, que contém também a possibilidade (como, aliás, se encarrega de provar até agora
de ver a imaginação destacar-se da vida...» 29. a evolução do próprio Sartre 33), a análise lu
E, logo a seguir, aduz: «Também Lenine tem o kacsiana mostra-se legítima e consistente. Há a
cuidado de especificar que a antinomia da ma ressaltar, finalmente, o seu valor histórico: foi
téria e do pensamento não é absoluta, mas so Lukács o primeiro marxista a tratar, com serie
mente... [opera enquanto o primado de um dade, do pensamento existencialista francês 34.
26 27
II
30 31
entre os tempos modernos e a Antiguidade, que tudo pelo facto básico de que começa a ver na
é, «para o jovem Hegel, uma imagem de con sociedade burguesa um dado fundamental e já
traste político-utópico com o presente» 48. Em ineliminável, com cuja essência e legalidade
suma: «para o jovem Hegel, a religião positiva objectiva tem então que enfrentarle no pensa
do cristianismo é um pilar do despotismo e da mento e na prática» 53. Em razão disto, altera-se
opressão, enquanto que as antigas religiões não- totalmente a sua posição diante da religião: ele
-positivas foram as religiões da liberdade e da « nunca esteve sentimentalmente tão próximo do
dignidade humanas. A renovação delas é, se cristianismo como nesse período» 54; chega,
gundo as ideias do jovem Hegel, um objectivo mesmo, a um «autêntico misticismo» 55 __ na
revolucionário ante cuja realização está posta a medida em que os principais problemas com
humanidade da sua época» 49. Decorro daí, pois, que agora se ocupa sejam «a contraposição en-
a simpatia de Hegel para com as tentativas de tre vida e objectividade morta e a solução desta
inovação religiosa esboçadas pelos revolucioná contradição na vida religiosa» 56, Hegel passa a
rios franceses. ver «efectivamente, na religião, a culminação da
Todas estas concepções do jovem Hegel en filosofia» 57 Este misticismo, que, de modo in
tram em crise em 1797/1800, período em que tegral, será superado posteriormente, não cons
se radicou em Frankfurt: aí, ele passa a viver titui para Lukács, o essencial do período de
na sociedade burguesa, enquanto que a estadia Frankfurt: o essencial são os primeiros sinais
em Berna possibilitava-lhe observar esta socie de que Hegel caminha no sentido do método
dade. A crise que então experimenta encontrará dialéctico.
uma solução provisória no período de Jena; por Neste período, a categoria central do pensa
agora, ele vive uma «tentativa em busca de algo mento hegeliano e a de vida, que antecipa pre
novo/uma lenta, mas ininterrupta... pesquisa em cisamente aquilo a que Hegel, em Jena, chamará
todas as direcções — uma verdadeira crise» 50. moralidade: «a concreta totalidade do modo de
Esta fase da sua evolução contrasta claramente comportamento do homem na sociedade bur
com todas as outras: nela, o seu pensamento guesa» 58. E como «a colocação básica do Hegel
«parte quase sempre de vivências individuais de Frankfurt é exactamente o destino do indiví
matizadas e leva, estilisticamente, tanto a marca duo na sociedade burguesa» 59, Lukács infere,
da paixão como as da imprecisão e obscuridade documentalmente, que, «filosoficamente, o essen
da vivência pessoal» 51. cial e a contraposição entre o homem inteiro e
Em Frankfurt, «o que Hegel se pergunta já o homem fragmentado» 60. No contexto desta
não é mais como pode ser destruída esta socie colocação, a polémica que Hegel trava com a
dade [burguesa] e substituída por outra radical ética kantiana apresenta interesse ímpar: «a con-
mente diferente, mas, ao contrário, como pode traposição entre Kant e Hegel consiste... em que
o indivíduo ter nela uma vida humana, isto é, Kant deixa sem análise os conteúdos sociais da
uma vida que supere a positividade em si, nos moral, aceita-os sem crítica histórica e tenta de
demais, em suas relações com os homens e com duzir as exigências morais partindo dos crité
as coisas» 52. E isto porque «a nova etapa do rios morais do conceito de dever, enquanto que,
desenvolvimento de Hegel se caracteriza sobre para Hegel, cada exigência moral constitui só
32 33
L. C. F. B. - 2
uma parte, um momento do todo social vivo jectória dos dois pensadores no âmbito da
e em constante movimento. Para Kant, pois, os filosofia idealista objectiva.
diversos mandamentos da moral se erguem iso De acordo com Lukács, o idealismo objectivo
lados e justapostos, como se fossem inapeláveis pode apreender a realidade de duas maneiras.
consequências lógicas de um princípio da razão Primeira: «a realidade empírica se concebe como
unitário, supra-histórioo e supra-social; para o produto de um ‘colocar’ que é obra de um sujei
Hegel, são momentos de um processo dialéctico to filosófico. Mas há que existir uma outra reali
que, no seu curso, entram em contradição uns dade, ‘não-colocada’, que é a autêntica e inde
com os outros, se superam reciprocamente pelo pendente da consciência humana» 64 ; esta moda
jogo vivo destas contradições, se extinguem no lidade é potencialmente místico-reaccionária, e
curso do desenvolvimento social ou então rea é dela que derivará a filosofia «positiva» de
parecem em nova forma e com um conteúdo Schelling após 1804. A segunda consiste «em
modificado» 61. converter a substância em sujeito, ou seja: a
É claro que, para Hegel alcançar este nível
filosofia tem que expor o mundo como autopro-
na crítica do sistema ótico de Kant, já se arti
dução e autoconheoimento do espírito, com o
culavam no seu pensamento novas determina
que cada realidade objectiva aparece apenas
ções: ele começa a debater-se com a problemá
como uma forma das várias ‘alienações’ do espí
tica da contradição e com a relevância do pro
rito» 65; e esta modalidade a única que pode
cesso de trabalho na constituição do fenómeno
transcender o irracionalismo e o misticismo.
social. Ora, no idealismo subjectivo, tais ques
Conforme Lukács, «o desenvolvimento de Hegel
tões não podem ser exploradas correcta e in
vai da versão reaccionária do idealismo objec
36 37
Religião, Schelling assume decididamente a se Além da significação imanente da obra, Lu
gunda alternativa e evoluirá, através dela, para kács ressalta a sua importância na trajectória
uma teoria aristocrática do conhecimento e para de Hegel: «Com a Fenomenologia termina o pe
o irracionalismo místico que o tornará o filó ríodo de preparação do sistema hegeliano; a
sofo oficial da reacção teológica. Hegel, por seu personalidade histórico-universal de Hegel está
turno, explorará a primeira via, numa polémica já nesta obra, diante de nossos olhos; mas, ape
aberta com os discípulos de Schelling e com o sar disso, não é correcto identificar, sem reser
próprio Schelling, na Fenomenologia do Espí vas, o Hegel da Fenomenologia e o do desenvol
rito. vimento posterior» 80. E, malgrado escape a seus
Esta obra, que finaliza o período jenense e a objectivos a análise do velho Hegel, Lukács con
«juventude» de Hegel, é cuidadosamente anali tribui para aniquilar a vulgarizada lenda de uma
sada por Lukács. A fenomenologia «expõe a re acomodação venal do filósofo aos poderes da
lação entre a consciência e a realidade» 76 ; Hegel época, notando que o «Hegel posterior se apro
parte «necessariamente da consciência natural e xima muito mais à concreta realidade histórica
vulgar do indivíduo» 77 para explicitar «a apro da Alemanha do seu tempo do que no período
priação das experiências da espécie pelo indi em que esperava e desejava uma transformação
víduo» 78, e o seu esquema expositivo —que Lu radical do país pela política napoleónica da Liga
kács submete a meticuloso tratamento analí Renana» 81. Aliás, Lukács insiste sempre — com
tico — revela que Hegel, dominando as variáveis base na tensão contraditória que Engels cons
mais significativas ocorrentes na vida social, ela tatou entre o sistema e o método de Hegel —
bora o que, definitivamente, é a base do seu sis em que a «reconciliação» de Hegel com a «mi
tema. Já compreendendo (mercê da análise da séria alemã» não expressou nunca nenhum opor
economia capitalista, via Smith e Ricardo) a na tunismo, mas foi ditada pelo próprio condicio
tureza humanizadora do processo do trabalho, namento histórico-social a que estava submetido
Hegel introduz aí, como sua categoria central,
o conceito de alienação (que supera integral o filósofo e, objectivamente, deu-lhe uma pers
mente a positividade de Berna e a vida de Frank pectiva que lhe permitiu desvendar a realidade
furt). É na Fenomenologia do Espírito que a tri própria da sociedade burguesa. O adeus às ilu
pla dimensão da alienação se constrói e afirma: sões juvenis robusteceu a obra de Hegel : capa
quer como fenómeno altamente generalizado, citou-o a melhor apreender a realidade. Lukács
confundindo-se com a objectividade (ou «coisi- di-lo com clareza: «quanto mais resolutamente
dade»), quer como a complicada relação sujeito/ [Hegel] se afasta dos seus ideais revolucionários
/objecto envolvida em todo o trabalho, com toda juvenis, quanto mais e mais resolutamente se
actividade económico-social dos homens (per ‘reconcilia’ com o domínio da sociedade bur
mitindo apreender a objectividade da socie guesa, tanto mais vigorosa e conscientemente
dade), quer ainda na sua forma especificamente aparece nele o pensador dialéctico» 82.
produzida pela sociedade capitalista ( a que Marx É no final da diferenciação do idealismo
denominou «feiticismo»). objectivo da filosofia clássica alemã que Lukács
38 39
detém a sua análise, centrada sobre Hegel, a
quem competiria elevá-la à formulação mais
ampla, profunda e progressista. A outra vertente
do idealismo objectivo, explorada por Schelling
a partir de 1804, será o ponto de arranque de
A Destruição da Razão.
III
42 43
história determinada autonomamente, ou seja: firmes as determinações. A razão é negativa e
que ela resulte do desenvolvimento intrínseco da dialéctica, porque dissolve as determinações do
sua problemática interna. Muito ao contrário: entendimento ; é positiva, porque cria o univer
reconhecendo uma constante reiteração dos seus sal, e nele compreende o particular» 96. Em Hegel,
traços básicos («o desprezo pela intelecção e entretanto, a passagem do entendimento (qué
pela razão, a glorificação directa e chã da intui é sempre uma apreensão abstracta dos fenó
ção, a teoria aristocrática do conhecimento, a re menos, porquanto apreensão das suas singula-
pulsa ao progresso social, a mitomania, etc.» 93), ri d ades específicas) à razão é um processo per
Lukács assinala que o irracionalismo se desen feitamente cognoscível através de operações
volve heteronomicamente— «o conteúdo, a mediadoras, o que permite o acesso à verdade
forma, o método, o tom, etc., de suas reacções essencial do concreto. Esta questão, com efeito,
contra o progresso social, não os determina... é fundamental, e só comporta duas atitudes:’
aquela dialéctica interna e específica do pensa aquela que distingue entendimento de razão,
mento ; ao inverso, quem os determina é o adver mas compreende na razão a instância que tota
sário, as condições da luta que são impostas de liza na medida em que ultrapassa os limites
fora à burguesia reaccionária» 94. Portanto, «o postos pela positividade abstracta própria do
irracionalismo... não pode ter uma história coe entendimento, ou aquela que identifica, imedia
rente e única, como se pode constatar no caso tamente, entendimento e razão. A primeira ati
do materialismo ou da dialéctica» 95. tude caracteriza o pensamento dialéctico ; a se
A fundamentação do irracionalismo moderno gunda cuja forma inicial é a contraposição
tem lugar, segundo Lukács, entre 1789 e 1848, e rígida entre os dois termos, redundando na in-
deve-se a Schelling, Schopenhauer e Kierkegaard. tangibilidade da razão e, portanto, no extremo,
Em O Jovem Hegel, Lukács mostrou como o reduzindo-a ao entendimento —caracteriza tanto
idealismo objectivo surge, filosoficamente, como o irracionalismo como o racionalismo não-dia-
resultado da polémica que Schelling sustenta léctico (formal). No caso1 do irracionalismo, a
contra Fichte; a posição de Schelling, todavia, consequência é a destruição da razão; no caso
sofre uma inflexão radical com sua partida de do racionalismo não-dialéctieo, a mencionada
Jena: a sua mudança para Wurzburg, afastan identificação conduz a um agnosticismo que,
do-o de Hegel e Goethe (por cuja filosofia da na desenvolvido, irá articular o que já se denomi
tureza nutria então grande respeito), evidenciará nou como a miséria da razão 97. Ora, a destrui
fortemente as tendências místico-irracionalistas ção ^ da razão decorre de que, identificados os
que já existiam, embrionariamente, no seu pen- limites do entendimento — que, basicamente,
samento. Estas tendencias vem a tona quando, não pode dar conta da contraditoriedade do ser
na sua filosofia madura, ele opõe, mecanica social, contraditoriedade que surge, para o pen
mente, no processo do conhecimento, entendi samento, em toda a sua crueza, com a Revolu
mento (Verstand) e razão (Vernunft). ção Francesa— como os limites da racionali
O racionalismo do idealismo objectivo não dade, a razão se mostra incapaz de apreender a
identificava entendimento e razão. Esclarecia realidade, e, consequentemente, esta é conce
Hegel: «0 entendimento determina e mantém bida, em si mesma, como oarenciada de qual
44 45
quer legalidade racional. A destruição da razão que, na verdade, se opõe ao materialismo. Tra
dá-se, assim, em dois planos : tanto o pensa ta-se mesmo da fundação de uma religiosidade
mento racional é desvalorizado como se nega à sem Deus, um ateísmo religioso, «substitutivo
realidade uma estrutura e uma dinâmica racio da religião, como uma nova religião — ateísta —
nais. para quem perdeu a fé» 99. O abandono da reli
É com Schelling que se inicia a destruição gião positiva, por Schopenhauer, é apenas um
da razão. Embora não identifique entendimento dos traços que o distinguem de Schelling: na
com razão, o que ele realmente faz é instaurar trajectória do irracionalismo, a sua filosofia já
entre ambos um antagonismo insuperável, o que, «representa... uma etapa superior e mais desen
naturalmente, acarreta a inferência da incognos- volvida» 100, e isto porque ela conta «com a base
cibilidade do real. De facto, o real só se toma social para um irracionalismo erigido sobre o
permeável através do que Schelling chama de ser social da burguesia» 101 — com ele, aparece
«intuição intelectual» — que passa a ser o orga «pela primeira vez, e não somente na Alemanha,
non do conhecimento. Lukács cita as palavras mas tem plano universal, a variante puramente
do próprio Schelling: «Este saber deve ser um burguesa do irracionalismo» 102.
saber absolutamente livre... ao qual não se É a situação histórico-social que se expressa
chega por nenhuma classe de provas, deduções neste novo condicionamento que responde pela
ou mediações de conceitos em geral; dito de original contribuição de Schopenhauer ao irra
outra forma e de modo mais genérico: uma in cionalismo moderno: a apologia indirecta, que
tuição» 98. O carácter reaccionário de uma tal é a mais alta e sofisticada forma de defesa do
concepção não é óbvio apenas na sua decorrente capitalismo. Lukács ilumina assim este contri
teoria aristocrática do conhecimento (porque a buto de Schopenhauer: «Enquanto que a apo
«intuição intelectual» é reservada a poucos, os logia directa se esforça por encobrir e refutar
eleitos), mas sobretudo no misticismo que sofìsticamente as contradições do sistema capi
funda; se, num primeiro momento, Schelling talista, por fazê-las desaparecer, a apologia in
considera que a objectivação da intuição se dá directa parte precisamente destas contradições
na esfera estética, a arte (compreendida roman e reconhece como um facto a sua existência
ticamente) estatuindo-se como conhecimento pri efectiva..., mas procura explicá-las de tal modo
vilegiado do mundo, no seu último período a que resultem, apesar de tudo, favoráveis para
função artística é abertamente substituída pela a existência do capitalismo. Enquanto que o
religião — a Revelação cristã passa a constituir apologista directo trata de apresentar o capita
a intuição intelectual objectivada. lismo como a melhor das ordens concebíveis,
Com Schopenhauer — que se prende ao idea como a culminação definitiva e insuperável da
lismo subjectivo pré-schellingiano— desaparece evolução da humanidade, o apologista indirecto
a defesa da religião. O seu decidido irraciona assinala cruamente os lados negativos do capi
lismo, muito mais consequente que o de Schel talismo, suas atrocidades, mas apresentando-os
ling, inaugura um comportamento que fará car não como características capitalistas, mas como
reira na ulterior evolução do pensamento reac traços inerentes à existência humana em geral,
cionário: postulará um ateísmo de novo tipo, à própria vida» 108. Daí decorre, inclusive, o
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núcleo da filosofia de Schopenhauer, o pessi do século XIX. Esta fase, que radicaliza ao
mismo, que não passa da «justificação filosó extremo a decadência própria da cultura bur
fica da carência de sentida de toda actuação guesa posterior a 1848, apresenta algumas ca
política» 104. racterísticas novas no nível da filosofia. Em
O último passo para a fundamentação do primeiro lugar, desde a dissolução do hegelia
moderno irracionalismo é dado por Kierkegaard, nismo, a burguesia não pôde mais construir ne
cuja obra, em que, «pese a todos os seus pontos nhuma filosofia progressista ; as tendências irra
de contacto com a de Schopenhauer..., distin cionalistas já não se confrontam, portanto, com
gue-se dela, historicamente, na medida em que um adversário que se situe no interior de uma
guarda uma íntima relação com o processo de visão burguesa do mundo: agora, o verdadeiro
desintegração do hegelianismo» 105. Esta relação adversário contra o qual o irracionalismo dirige
é visível no comportamento de Kierkegaard as suas baterias é o materialismo histórico e dia
— pensador cuja integridade moral fazia com léctico. E, em segundo lugar, o nível do con
que professasse um fundo sentimento (român fronto declina progressivamente: os irraciona
tico) anticapitalista— para com a herança de listas posteriores a 1848 carecem de verdadeira
Hegel: diante dela, a reflexão burguesa ou re formação filosófica e tendem a perder os míni
cusa em bloco a dialéctica, como faz Schopen mos escrúpulos científicos na condução dos deba
hauer, ou se propõe a construção de uma tes; a inadiável necessidade de se contraporem
pseudodialéctica subjetivista. Kierkegaard, que ao materialismo histórico e dialéctico —mais
se debatia com uma problemática ainda pró particularmente: ao movimento operário revo
xima à de Hegel (o que se mota, por exemplo, lucionário — conduz os ideólogos irracionalistas
ma sua obsessão pela conexão relativo x abso da fase imperialista a especulações onde se mis
luto), assume inteiramente a segunda via: ela turam «a arbitrariedade, o carácter contraditó
bora a sua «dialéctica qualitativa», retira da rio, a precariedade dos fundamentos, as argu
subjectividade concreta a possibilidade de en mentações sofísticas, etc.» 107.
contrar sentido na história (que só é dado a O fundador do irracionalismo do período im
um Deus, espectador inacessível) e postula uma perialista é, segundo Lukács, Nietzsche. Ressal
ética da intencionalidade, que só pode conduzir tando sempre que se trata de «um pensador
ao solipsismo moral que legitima o niilismo. Na honrado» 108 e reconhecendo liminarmente «seus
evolução do irracionalismo, Kierkegaard ocupa extraordinários dotes pessoais» 109, Lukács atri
um espaço importantíssimo : sua significação re bui a filosofia de Nietzsche o papel social que
side em que explorou tão radicalmente o limbo consiste «em ‘salvar’, em ‘resgatar’... este inte
de uma falsa dialéctica mística «que, ao chegar lectual burguês [que, sofrendo a decadência,
o momento de sua renovação no período impe sente-se atraído pela luta do proletariado], em
rialista, já restava muito pouco a acrescentar indicar-lhe um caminho que torne desnecessário
ao realizado por ele» 106. seu rompimento e até um conflito sério com a
Mas a fundação do moderno irracionalismo burguesia; um caminho através do qual ele
é fenómeno específico da fase imperialista, na possa continuar abrigando, e até acentuando, o
qual o capitalismo ingressa no último quartel agradável sentimento de ser um rebelde, ao
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opor... à revolução social ‘superficial’ e ‘pura de uma «verdadeira objectividade», mais «pro
mente externa’ uma outra revolução ‘mais pro funda», sendo o mito «algo subjectivamente
funda’, de ‘carácter cósmico-biológico’. Uma mentado, que se apresenta com a pretensão de
‘revolução’ que, ademais, deixa inteiramente in uma objectividade — impossível de fundamen
tocados os privilégios da burguesia e defende, tarle gnosiologicamente e que só pode basear-se
de modo apaixonado, a situação privilegiada da em alicerces subjectivistas extremos, na intui
intelectualidade burguesa, imperialista e parasi ção, etc., e que não é nem pode deixar de
tária; uma ‘revolução’ dirigida contra as massas ser, portanto, mais que uma pseudo-objectivi-
e que’ dá ao medo que os privilegiados económi dade» 114.
cos e culturais têm de perder suas prerrogativas A pseudo-objectividade nietzscheana leva con
uma expressão patético-agressiva em que se dis sigo todos os materiais ideológicos que serviram
farça seu egoísmo e seu pavor» 110. para fundamentar o irracionalismo, de 1789 a
Esta funcionalidade social confere à filosofia 1848; no entanto, inter-relaciona estes materiais
de Nietzsche uma peculiaridade que a torna ver —o ateísmo religioso, a glorificação da intuição,
dadeiramente canónica para a cultura da bur o aristocratismo epistemologico, a apologia indi
guesia imperialista : «a característica peculiar de recta — numa configuração diversa: dá-lhes uma
Nietzsche consiste em criar uma ideologia aglu nova organicidade, a que é requerida pela cul
tinadora para todas as tendências decididamente tura burguesa na fase da sua luta vital contra
reaccionárias do período imperialista» 111. Este o socialismo, ao inserir-lhe uma ética de funda
autêntico ecumenismo da reacção força Nietzs mento inédito e ao propor-lhe uma alternativa
che a abandonar qualquer pretensão ao rigor diferente. A ética de Nietzsche, cujo fundo é um
filosófico: o seu pensamento aforismático des darwinismo social grotesco, enuncia-se explícita
conhece necessariamente a sistematização— «o e cruamente como moral da dominação: é ética
que serve de centro de unidade... à coesão do exclusiva para classes possuidoras e não se de
pensamento de Nietzsche é a repulsa pelo socia bate, portanto, com os dilemas que atormentam
lismo e a luta pela criação de uma Alemanha o solipsismo moral de Kierkegaard. A solução
imperialista» 112; «o coerente e o sistemático ra para a cultura burguesa está no mito dionisíaco :
dicam precisamente no conteúdo social do seu não mais a tentativa de «salvá-la» resguardando
pensamento: radicam no combate ao socia o homem «normal», mas convertendo o tipo de
lismo» 113. cadente no homem do futuro (naturalmente que
A concepção de história que Nietzsche estru se trata de um futuro também mitificado: o
tura é totalmente nova: enquanto o seu mestre «eterno retomo» de Nietzsche é, simplesmente,
Schopenhauer (para quem a dialéctica não pas «o triunfo do ser sobre o devir» 115). Estes novos
sava de um «delírio») postulava uma a-histori- ingredientes adequam o irracionalismo às exi
cidade absoluta, Nietzsche sustenta uma histori gências agressivas da burguesia imperialista: não
cidade mitificada — ele é o primeira, partindo mais a romântica e aparente recusa do mundo
do agnosticismo, a introduzir a criação de mi capitalista, mas a sua assunção belicosa num
tos no cerne mesmo da cultura da decadencia. activismo reaccionário. E, na medida em que,
A ambição da história mitificada é a obtenção assim, «Nietzsche sabe captar e formular em
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suas obras... alguns dos traços permanentes o criador da filosofia da vida do imperialismo
mais importantes da conduta reaccionária du — que, Lukács esclarece, só servirá ao fascismo
rante o período imperialista, na época das guer a partir de Spengler — ; e o seu fundamento é
ras mundiais e das revoluções» 118, ele ocupa o a «ideia de que a vivência do mundo é a base
lugar fundamental no irracionalismo moderno: última do conhecimento» 121. Como se vê, a in
não só desbastou o terreno para a filosofia da tuição retoma como organon do saber: «a intui
vida (Lebensphilosophie) das duas primeiras dé ção é a saída que permite (aparentemente) à
cadas do século XX como, no campo da ideolo filosofia imperialista dar as costas ao forma
gia, abriu o caminho para Spengler. lismo da teoria do conhecimento e, com ela, ao
Spengler responde pelo «prelúdio real directo idealismo subjectivo e ao agnosticismo, mas sem
da filosofia do fascismo» 117; após a Primeira sequer tocar nos seus fundamentos» 122. Em
Guerra Mundial, «foi ele quem transformou a Simmel, que enceta um desenvolvimento conse
filosofia da vida em concepção do mundo da quente das tendências neokantianas, o ateísmo
reacção militante» 118. Depois dele —com o in religioso estabelece a sua vinculação com a filo
termezzo, nos anos logo seguintes a 1923, da sofia da vida.
«estabilidade relativa» que permeia a filosofia Aliás, a referência a Simmel, neste contexto,
de Scheler—, a filosofia imediatamente pré-fas- não é fortuita : a influência da filosofia da vida
cista de Heidegger e Jaspers desembocará na sobre a sociologia, e o papel que esta última
descarada apologia da barbárie que será obra desempenhou na destruição da razão, não são
de Klages, Junger, Boehm, Krieck e, principal desprezíveis 123. Lukács indica a génese da socio
mente, Rosemberg (o ideólogo do III Reich), logia como ciência particular e independente:
sustentada com base nas teses de H. St. Cham ela surge com a «dissolução da escola ricardiana
berlain (o fundador do moderno racismo), res na Inglaterra, quando se começa a extrair da
taurando o darwinismo social de Gobineau, teoria do valor-trabalho dos clássicos as conse
Gumplowicz, Ratzenhofer e Woltmann. quências socialistas; [e], de outra parte, [com
Com efeito, «a filosofia da vida é, na Alema a] dissolução do socialismo utópico na França...
nha, a ideologia dominante de todo o período Estas duas crises, e sobretudo a superação de
imperialista» 119; a sua influência atingiu todas ambas mediante a emergência do materialismo
as ciências sociais e, fora daquele país, encon histórico e da economia política marxista, colo
trou a mais ampla ressonância (por exemplo: caram um ponto final na economia burguesa,
na França, a obra de Bergson; nos países anglo- concebida classicamente como a ciência fun
-saxónicos, o pragmatismo). Professando, por damental para o conhecimento da sociedade.
princípio, uma teoria aristocrática do conheci E assim surge, num pólo, a economia burguesa
mento, a sua essência «consiste em fazer com vulgar, e, mais tarde, a economia subjectiva...
que o agnosticismo se transforme em misti que renuncia de antemão a explicar os fenóme
cismo, com que o idealismo subjectivo se con nos sociais e se propõe como tarefa essencial
verta na pseudo-objectividade do mito» 120. Dil retirar do campo da economia o problema de
they, opondo à psicologia explicativa de base mais-valia e, no outro polo, nasce a sociologia
positivista a sua «psicologia compreensiva», é corno ciência do espírito à margem da econo
52 53
mia» 124 ( Lukács empreende aqui uma pormeno tivamente, «um e outro foram..., pelo conteúdo
rizada análise que vai de Toennies a Mannheim, real do seu pensamento, batedores filosóficos do
passando por Weber — que ele considera o típico irracionalismo fascista» 132.
representante da sociologia do período guilher- Depois de esclarecer como o nazi-fascismo
mimo). instrumentalizou o irracionalismo, quer como
Se a expressão «filosofía nacional-socialista» forma de neutralização da resistência intelec
cabe a um Rosemberg qualquer, a filosofia que tual, quer como meio para implementar a sua
a antecede imediatamente e a prepara deve-se à demagogia social, quer, ainda, na tentativa de
«quarta-feira de cinzas do subjectivismo parasi fundar o seu pretenso carácter «revolucionário»,
tário» 125, ou seja: à obra de Heidegger e Jas Lukács propõe-se esboçar, no epílogo de A Des
pers 126. O inventário do existencialismo alemão, truição da Razão, as principais linhas evolutivas
levado às últimas consequências, mostra como,
do irracionalismo no pós-guerra. Indicando rapi
na obra de ambos os pensadores —entre os damente a emergência de uma epistemologia
quais, diga-se de passagem, Lukács aponta signi neomachista, ele assinala que à hegemonia ideo
ficativas diferenças —, se encontram, levados até lógica dos Estados Unidos da América passa a
ao paroxismo, «o relativismo e o irracionalismo corresponder um método de justificação do ca
radicalmente individualistas e filisteisticamente pitalismo que restaura a velha apologia directa
aristocráticos» 127. Em Jaspers, Lukács observa (Lukács menciona, então, brevemente, as ideias
que «palpita um ódio verdadeiramente zoológico de Lippmann e Burnham) e faz um ligeiro
contra as massas, um medo pavoroso ante a comentário sobre as teses históricas de Toynbee,
democracia e o socialismo» 128; quanto ao de que é, para Lukács, «um simples epígono do epí
sespero heideggeriano, ele apresenta um dupla gono da filosofia da vida, Spengler» 133.
face: «de um lado, [expressa] o inexorável des
mascaramento da nulidade interior do indivíduo Não se pode contestar que este epílogo — que
no período de crise do imperialismo; de outro não condiz com a magnitude da obra— é a
— convertendo em fetiches as razões sociais parte mais fraca do livro. E não apenas em fun
desta nulidade, situando-as fora do tempo e num ção da sua brevidade ou da sua estrutura jor
plano anti-social—, [vê-se] como o sentimento nalística, como o reconheceu Lukács reiteradas
que [daí] nasce pode facilmente se transformar vezes. A meu ver, o defeito que enfraquece es
numa actividade reaccionária desesperada» 129. truturalmente o fecho (de A Destruição da Razão
As particulares inferências das teorias dos dois reside em que o seu autor não formula, em ne
filósofos (cuja estrutura interna Lukács estuda nhum momento —e talvez isto possa ser com
e que são conducentes à afirmação «da carên preensível invocando-se a época da redacção do
cia de sentido de toda actividade no mundo texto—, com clareza, uma hipótese explicativa
real» 130) apontam, claramente, que «se o fas para o facto de que não apenas o irracionalismo
cismo pôde educar amplos sectores da intelec continuaria a servir à reacção, mas que, por
tualidade alemã numa neutralidade mais que outro lado, já se tornava possível, à burguesia
benevolente, deveu-o, em boa parte, sem dúvi imperialista, reutilizar-se do racionalismo formal
das, à filosofia de Heidegger e Jaspers» 131. Objec para anemizar as posições teórico-críticas do
54 55
movimento operário revolucionário. Numa pa
lavra: neste epílogo, Lukács não estabelece ne
nhuma relação entre a destruição e a miséria
da razão 134. Eis o que compromete, medular
mente, as páginas finais da grande obra lu
kacsiana.
IV
62 63
objectivação de problemas que, tornando-se aces É com base nestas observações que se pode
síveis à consciência filosófica, se convertem em postular que a análise lukacsiana de filosofia
núcleos e/ou matrizes culturais de um tempo burguesa consiste na operação conducente à crí
determinado. tica macroscópica da cultura burguesa. A sua
Secundariamente, a concepção da filosofia metodologia, que obriga ao trânsito mundo/filo
como resposta/projecto induz a que sua inves sofia e filosofia/mundo, na apreensão das múl
tigação obrigue à sua inserção no complexo cul tiplas mediações entre os dois termos, funda a
tural mais amplo em cujo solo ela floresce. A sua crítica da filosofia como crítica da vida social.
especificidade, já mencionada, só pode ser efec A solução que Lukács tem para garantir a uni
tivamente precisada no quadro do seu complexo dade de todas estas démarches radica na filo
cultural, fazendo com que a sua verdade intrín sofia da história que as alimenta: está contida
seca se mostre como veracidade de um bloco no explícito partidarismo sobre o qual se apoia.
cultural conectado às objectivações humano- Nisto reside o partidarismo de Lukács: a crí
-sociais que o compõem, sejam abstractas (como tica da filosofia burguesa faz-se sempre a partir
a ciência), sensíveis (como a arte) ou práticas da perspectiva do socialismo. A objectividade
(como a acção política). analítica de Lukács exclui, de princípio, a neu
Mas a dupla abordagem lukacsiana tem outra tralidade— todo o seu trabalho se constrói so
face: concordando com a noção hegeliana de bre a afirmação da necessidade histórica do
que a história da filosofia, a sua evolução, não socialismo e sobre a convicção de que o mar
é a mecânica justaposição de sistemas ou con xismo é a superação do pensamento burguês.
tribuições numa série cronológica ordenada, Lu Como se percebe, a crítica lukacsiana fundamen
kács avança para o enquadramento da evolução ta-se no que Lukács chamou, em 1923, de ponto
filosófica como desenvolvimento dos próprios de vista do proletariado: a sociedade burguesa
problemas sobre os quais se ergue a filosofia e sua evolução esclarecem-se à medida que se
enquanto reflexão. Isto é: na história dos pro introduz na análise a sua transcendência, possí
blemas estudados pela filosofia está também vel pela revolução que compete ao proletariado.
contida a história dos próprios problemas. Isto Ademais, assumir o marxismo como superação
faz com que a história da filosofia se legitime do pensamento burguês, do melhor pensamento
na articulação de uma filosofia da história : por burguês, não resulta, em Lukács, de nenhuma
quanto os problemas histórico-sociais só têm opção subjectiva: a verificação da superiori
solução no curso do seu desenvolvimento, é dade do marxismo não é uma premissa, mas
deriva de um meticuloso estudo no decorrer do
pelas modificações ulteriores que sofrem que
qual Lukács comprova a incapacidade da refle
se pode extrair a estrutura da sua génese e di
xão burguesa para elucidar os problemas deci
nâmica (em termos marxianos: é o presente sivos da sociedade capitalista.
que explica o passado). Portanto, nas mãos de Em Lukács, a intransigente defesa desse
Lukács, a história da filosofia burguesa resol ponto de vista do proletariado confunde-se com
ve-se a partir da filosofia da história que a a defesa da cultura humanista: a mais rigorosa
praxis do proletariado instaura. determinação classista da crítica, na medida em
64 65
L. C. F. B. - 3
que o interesse da classe operária é identificado humanidade, em que medida o capitalismo signi
com o interesse da humanidade como um todo ficou um progresso sociocultural e em que me
(mais exactamente: como género), conduz a que dida, na sua hora que se pensa derradeira, ele
a avaliação que Lukács opera da filosofìa bur produz uma cultura que é simples epifenómeno
guesa, sempre partindo da historicidade con de um reaccionarismo descarado.
creta e a ela retornando, procure retotalizar as
suas conquistas com a apropriação das suas
apreensões justes. Nada há aqui que se asseme Nada mais estranho ao pensamento marxista
lhe à proudhoniana concepção dos «lados bons» que a indiferença: O Capital não é apenas a crí-
e dos «lados maus» do pensamento burguês: tica da economia política — é uma emocionada
porque Lukács supõe que todo o pensamento defesa da humanitas. O Marx que dissolve o
reflecte, de um modo ou de outro, a realidade, feiticismo da mercadoria, no primeiro capítulo,
a tarefa que se propõe é a de determinar as pos é o mesmo Marx que, no capítulo décimo ter
síveis percepções correctas do pensamento bur ceiro, execra, indignado, a odiosa exploração do
guês e incorporá-las ao marxismo. trabalhador; e a cientificidade do seu projecto
É esta incorporação, evidentemente, que cons analítico não pode ser divorciada desta coexis
titui o problema central da sua démarche — pois tência de razão e paixão. É um profundo pathos
é claro que, analisando a filosofia burguesa na que constitui a tensão científica própria do pen
perspectiva da defesa, da fundamentação teórica samento que se faz teoria social para a liber
e da construção prática do socialismo, Lukács dade.
está exercitando a máxima de Molière: Je prends A crítica filosófica de Lukács, inspirada nesta
mon bien où je le trouve. Repetidas vezes, Lu fonte que é O Capital, trescala aquele pathos.
kács impugnou a assimilação acrítica, ao mar A sua entusiástica apreciação dos ideólogos da
xismo, de contributos burgueses; e, repetidas burguesia ascendente e progressista —como o
vezes, indicou o caminho adequado para fazê-lo jovem Hegel—, que procuravam apreender a
com rigor: reelaborar o material passível de ser racionalidade da história, não pode ser isolada
aproveitado à base do ser social do proletariado, do seu desprezo pela ideologia rasteiramente
para o qual o conhecimento verdadeiro da socie capitulacionista —como a formulada por Hei
dade é uma questão de vida ou de morte. degger— da burguesia imperialista frente aos
Neste sentido, Lukács não carecia de mostrar desafios da realidade histórico-social. E ambas
como Marx tratou Smith, Ricardo ou Hegel: a as atitudes se integram no processo do conheci
sua própria obra é a demonstração exacta do mento cujo tónus é determinado pelo seu pró
procedimento justo. Ao restaurar, para a teoria prio objecto: as ilusões heróicas de uma classe
marxista, o valor inesgotável da filosofia hege que encarnou as mais legítimas aspirações huma
liana e ao estigmatizar como desprezível o pen nas e seu melancólico ocaso quando se converte
samento burguês apologético (directo ou indi em anacronismo histórico que se opõe ao pro
recto), o que ele fez foi, realmente, assinalar o gresso social. A totalidade da cultura burguesa,
quanto o movimento operário revolucionário é cuja quinta-essência está contida na filosofia
herdeiro do passado cultural da burguesia e da alemã do Iluminismo aos dias de Hitler, exerce
66 67
sobre Lukács o fascínio da ambiguidade: da
amorável compreensão com que resgata as gran
diosas conquistas do seu período ascendente
deriva a recusa amarga dos frutos da sua deca-
dência.
E tanto a descoberta das operações que leva
ram o jovem Hegel, tratando as categorias eco
nómicas do capitalismo, a revelar o trabalho
como processo de humanização, quanto a iden
tificação dos nexos que unem o pensamento de
Nietzsche à agressividade imperialista se posi
cionam, em Lukács, como resultantes de um 3. APÊNDICE: EXCURSO SOBRE
da humanidade.
A chama da razão especulativa, de que talava O exame atento do primeiro volume da vá
o velho Hegel, não se apaga na reflexão lukac rias vezes anunciada Ontologia do Ser Social 146
siana justamente porque esta causa da huma revela a proeminência de temáticas directamente
nidade é investida na aposta que a burguesia relacionadas com a crítica lukacsiana da filoso
renegou em 1848: a de instaurar um sentido fia burguesia. Antes, porém, de abordar tais te
para a vida, extraindo-o da legalidade da his máticas, creio que vale a pena dar algumas indi
tória. cações sobre esta obra 147.
Desde fins de 1956, propondo-se formular
teoricamente os resultados do seu longo trajecto
filosófico, Lukács entregou-se ao processo a que
denominava «o renascimento do marxismo» 148.
Com esta expressão, referia-se ele a um retomo
a Marx que fundasse o rompimento com a para
lisia decorrente do estalinismo e, ao mesmo
tempo, a superação do ecletismo revisionista que
pretendia opor-se à esclerose provocada pelo
dogmatismo. Os derradeiros quinze anos de sua
vida, consumiu-os Lukács neste combate em duas
frentes: contra a herança estalinista e contra o
moderno revisionismo.
Resultou desse ambicioso projecto a monu
mental Estética I (1963). O esforço aí dispen-
dido (e que deveria actualizar-se ainda em mais
duas outras partes, nunca escritas) convergia
também para a elaboração de uma Ética, que
68 69
L. C. F. B. - 4
nunca foi concluída. A razão deste inacabamento real e concreta da existência do ser, a sua estru
reside em que, a meio de sua empresa, Lukács tura e movimento. O marxismo é posto por Lu
reconheceu a imperativa necessidade de funda kács, nesta perspectiva, como a pesquisa mate
mentar ontologicamente o seu sistema ma rialista e dialéctica da ontologia do ser social 153
duro 149. Esta fundamentação constituía, para o — pressupondo, necessariamente, uma dialéctica
último Lukács, mais do que uma simples exi da natureza 154. Para Lukács, aliás, «todos os
gência das suas próprias pesquisas: constituía, enunciados concretos [de Marx]... em última
em si mesma, a base para a restauração do nú análise... são enunciados directos sobre um tipo
cleo do pensamento marxiano. de ser— isto é, são puras afirmações ontológi
Algum tempo antes de sua morte, ele conse cas» 155.
guiu concluir a obra que encerrava os elementos O correcto juízo sobre a relevância histórico-
basilares daquela fundamentação: a Ontologia, universal da revolução teórico-filosófica operada
do Ser Social. Mas a forma final do texto não por Marx continua relacionado, conforme o úl
o satisfez completamente. Não pensava que o timo Lukács, com o papel desempenhado pela
trabalho, com a sua divisão em duas partes (uma reflexão hegeliana. Se, para a ontologia marxista
histórica e outra sistemática), se apresentava do ser social, o processo do trabalho aparece
com uma exposição rigorosa e, sobretudo, con (e, com ele, a praxis) no centro da totalidade
siderava ter supervalorizado o papel de Hart dinamica que e o próprio ser social, é necessá-
mann na filosofia contemporânea 150. Enfim, a rio recordar que, no pensamento de Hegel, já
sua crítica do neopositivismo pareceu-lhe exigir se localizam os elementos dos quais Marx irá
outros desdobramentos. Assim, dispôs-se a pre socorrer-se para fundar uma nova compreensão
parar um novo texto no qual procuraria ultra ontológica do fenómeno sócio-humano. Com
passar os dilemas da redacção original. Este efeito, «Hegel (descobriu no trabalho a forma de
novo escrito, no entanto, permaneceu um com existencia ontológico-rea da teleologia e, assim,
plicado esboço, de difícil decifração 181. resolveu correctamente uma antiquíssima anti
Ora, o material contido mesta Ontologia do nomia filosófica, a da rígida contraposição en
Ser Social é precisamente o que Lukács preten tre uma teleologia dirigida à transcendência e
dia refazer: trata-se da parte histórica do tra o domínio exclusivo da causalidade na ontolo
balho, só agora dada a conhecer na sua integri gia. Uma verdadeira ontologia do ser social é
dade 152. É prudente, portanto, manejar este impossível sem um justo contraste entre a cau
texto com um mínimo de cuidados. salidade da natureza e a teleologia do trabalho,
Este não é o lugar, naturalmente, para in sem esclarecer as suas concretas inter-relações
tentar a análise crítica deste material. De qual dialécticas» 156.
quer forma, interessa-me esclarecer que nele se Estamos, evidentemente, no domínio da crí
patenteia o que Lukács entendia por ontologia: tica lukacsiana à filosofia burguesa: para o úl
não um saber com conotações ou matizes meta- timo Lukács, Hegel permanece o melhor produto
-históricos, mas a própria efectividade do modo filosófico da cultura burguesa. E mais: na On
de ser, produzir e reproduzir-se da realidade. tologia do Ser Social, Lukács mantém para com
Mais exactamente: a ontologia é a modalidade Hegel a mesma relação que está subjacente a
70 71
O Jovem Hegel: sem a compreensão crítica da A crítica da filosofia burguesa contemporâ
obra hegeliana, os marxistas não poderão levar nea vem confirmada, na Ontologia do Ser Social,
adiante o projecto marxiano. À diferença, po de modo inteiramente compatível com os textos
rém, do trabalho publicado em 1948, no qual se anteriores de Lukács. Neste sentido, as passa
debruçava sobre o pensamento de Hegel até à gens particulares, onde se precisam determina
Fenomenologia do Espírito, agora Lukács estuda ções críticas voltadas para reflexão filosófica do
as questões ontológicas em toda a obra do filó século XX 160, concretizam o essencial de A Des
sofo, na qual revela a coexistência de uma dupla truição da Razão. A diferença que se pode notar
ontologia: a justa apreensão do automovimento entre as duas obras —flagrante no tom mais
do ser é subsumida no impulso originado pelo sereno e equilibrado da Ontologia do Ser So
Espírito. , cial— é devida à predominância da análise ima
Esta duplicidade ontológica, que Lukács ras- nente nesta última; nela, Lukács, pelo próprio
treia no pensamento de Hegel, é simétrica a facto de questionar a raiz ontológica dos pro
contradição, já reconhecida classicamente, que blemas, detém-se menos ma funcionalidade his-
desfasa método e sistema hegeliamos. A duali tórico-social das diversas correntes filosóficas
dade ontológica, em Hegel, deve-se prioritaria do que na estruturação interna dos seus dis
mente a que, na sua reflexão, ocorra um «pre cursos.
domínio metodológico dos princípios lógicos» 157. Todavia, o que conecta principalmente as re-
De facto, «com o sujeito/objecto idêntico, che flexões contidas nesta derradeira obra de Lukács
gamos ao ponto onde começa a problemática do com as questões referentes à sua crítica da filo
que chamamos a segunda ontologia de Hegel» 158, sofia burguesa não é tanto o conteúdo das men
isto é, à falsa ontologia. Aí, ademais, é que cionadas passagens particulares, mas sobretudo
Lukács constata os insolúveis dilemas do hege a caracterização macroscópica, extrínseca e in
lianismo, derivados do «contraste entre a trans trínseca, que oferece desta filosofia. É precisa
cendência teleologica do sistema lógico e a mente aqui que Lukács soluciona o problema
imanência do método dialéctico tomado onto que vulnerabiliza — como indiquei no lugar pró
logicamente» 159. prio — as conclusões de A Destruição da Razão :
Mas, na Ontologia do Ser Social, a tematica aqui são correctamente colocadas as relações
da crítica lukacsiana à filosofia burguesa não entre as manifestações do moderno irraciona
arranca de Hegel: sem a pretensão e o objec lísimo e a racionalidade formal e burocratizada
tivo de historiar a evolução do pensamento filo do neopositivismo. Viale dizer: Lukács assinala
sófico, mesmo referenciado apenas à ontologia, como a destruição e a miséria da razão são ne-
da Grécia aos nossos dias, Lukács desenvolve cessariamente complementares 161.
uma análise que cobre os momentos mais im Para Lukács, nos últimos setenta anos, o sis-
portantes da reflexão ocidental do Renascimento tema capitalista sofreu importantes mutações,
ao século XX. Com efeito, ele dedica especial uma das mais significativas de entre elas refe
atenção ao impacto que, na elaboração filosó re-se à «submissão completa da indústria dos
fica, o pensamento do Ocidente sofre a partir bens de consumo (e dos chamados serviços) ao
das descobertas de Galileu. capitalismo» 162. Daí a emergência de uma nova
72 73
necessidade para o sistema: «uma progressiva tivismo) e a sua destruição (por exemplo, o
mente refinada manipulação do mercado» 163. existencialismo alemão) se colocam como fenó
A manipulação torna-se, a partir de um impe menos paralelos: ambos são respostas teórico-
rativo originalmente económico, a característica -filosóficas distintas mas auto-implicadas en
fundamental da vida quotidiana. Ou, nas pala quanto construídas sobre a base da aceitação
vras do tradutor italiano da Ontologia do Ser acritica da manipulação social. Ambas, estrutu
Social: «o novo da realidade capitalista con radas sobre o fundamento da manipulação, são
siste... no domínio da mais-valia relativa, dimi respostas cujo resultado final é solidário: o neo-
nuída a importância da mais-valia absoluta, com positivismo, reduzindo o conhecimento à episte
a consequente tentativa capitalista de alcançar mologia, considera as questões ontológicas como
o controlo das consciências» 164 — este controlo metafísicas; o existencialismo recolhe estas ques
configura a manipulação social. tões e produz uma solução ontológica manipula
Segundo Lukács, a manipulação social, fenó- dora, isto é, também metafísica (enquanto solu
meno de evidentes tendências totalitarias, invade ção ontológica).
todos os domínios da vida social e envolve a Uma tal solidariedade é identificada parti
reflexão científica e filosófica. Nestas, por de cularmente por Lukács na análise dos represen
corrência, «a questão da verdade objectiva... é tantes canónicos das duas vertentes filosóficas:
abandonada, como desinteressante; somente im «Carnap, descrevendo a manipulação geral do
portam os resultados práticos imediatos» 165. De pensamento e da vida, exprime seu conformismo,
facto, nas condições ideológicas do capitalismo revestido de neutralidade, com esta situação; e
desenvolvido, «a manipulação vem sempre mais embora Heidegger veja a mesma realidade social
resolutamente elevada a método único da filo da vida alienada como uma condition humaine
sofia» 166. ontologicamente absoluta e eternamente dada,
É claro, assim, que os critérios decisivos da ele observa esta situação com olhos irraciona-
verificabilidade do conhecimento se deslocam e listas-pessimistas e procura introduzir sobre o
se desnaturam: o índice posto pela praxis ma- plano ontológico a prospectiva, para os indiví
nipulatória não concerne à verdade do saber, duos singulares, de uma alternativa religiosa
mas à sua eficácia prática imediata. A reflexão (religiosa-ateia), que não afecta os seus funda
científica e filosófica não se testa mais no con mentos» 168.
fronto com o movimento estrutural da realidade, Funcionalmente, pois, o neopositivismo e o
mas legitima-se enquanto instrumento de imple moderno irracionalismo constituem uma uni
mentação e validação dos processos reiterativos dade. Ou, como Lukács escreve: «A solidarie
e abstractos de reprodução imediata dos meca dade antitético-polar... entre neopositivismo e
nismos da quotidianidade. existencialismo se revela, claramente, pela coe
Ora, «as mesmas condições e tendências so xistência ideal —embora antitético-polar—, de
ciais podem muito bem produzir vários pensa um lado, da técnica manipulatória, nominalistica
mentos análogos, ainda que seus ideólogos não ao extremo, no conhecimento de todos os gru
saibam ou não queiram saber nada uns dos ou pamentos de fenómenos que seja possível ima
tros» 167. Eis que a miséria da razão (o neoposi ginar objectiváveis... e, de outro, da concepção
74 75
irracionalista de todo o que está fora deste âm
bito. Em ambos os casos, surge um inimigo capi
tal: a ontologia concebida racionalmente» 169.
Nos dois casos, o exilio da razão dialéctica
não apenas dispõe como aliados da quotidiani-
dade manipulada e manipuladora o neopositi
vismo e o moderno irracionalismo. Faz mais:
articula uma frente teórico-filosófica que pre
tende a impugnação da ontologia do ser social,
que, sob o capitalismo, somente o projecto mar
xiano tem possibilidades de construir. 170
4. CRONOLOGIA de GEORG LUKÁCS
1885
nasce em Budapeste, a 13 de Abril, filho do director
do Budapest Kreditanstalt, o maior estabelecimento
bancário húngaro da época.
1902
— publica seus primearos textos na imprensa húngara;
freqüenta as reuniões do Círculo dos Estudantes
Socialistas Revolucionários de Budapeste, criado
neste ano por E. Szabó.
1904
— é um dos fundadores do Teatro Thalia que, em Bu
dapeste, pretende retomar as experiências do Teatro
Livre de Berlim;
— toma-se membro da Sociedade de Ciências Sociais,
criada por G. Pikler e dirigida por O. Jászi.
1906
— doutora-se em Filosofia pela Universidade de Buda
peste;
— passa a colaborar em duas revistas progressistas
húngaras: Século XX (Huszadik Század) e Ocidente
(Nyugat).
1908
recebe o prémio de literatura da Sociedade Kisfaludy,
pelo seu trabalho sobre a evolução do drama mo
derno.
76 77
1909/1910 Comissário do Povo para a Cultura e a Educação
Popular;
— segue cursos na Universidade de Berlim, onde é aluno — em Agosto, a República Soviética húngara é massa
de Simmel; crada pelas tropas de Horthy (5000 pessoas são exe
— frequenta o Círculo Galileu, em Berlim, cenáculo cutadas, 75 000 são aprisionadas e 100 000 emigram).
liberal-radical fundado em 1908; Após um breve período de clandestinidade, Lukács
— viaja pela Alemanha, Itália e França. exila-se em Viena;
— é condenado à morte pelo regime de Horthy e preso
1910 em Viena; a sua extradição é impedida pela mais
ampla imobilização da intelectualidade alemã;
publica, em húngaro, A Alma e as Formas.
— em finais do ano, é libertado em Viena, tomando-se
um dos articuladores do Partido Comunista Húngaro
1911 no exterior;
publica, em húngaro, A Evolução do Drama Moderno — casa-se com Gertrud Bortstieber;
e, em alemão, A Alma e as Formas (Die Seele und — toma-se o redactor-chefe da revista Comunismo
die Formen). (Kommunismus), órgão da ultra-esquerda da III In
ternacional;
1913 — publica o ensaio Táctica e Ética.
transfere-se para Heidelberga, onde estabelece rela 1920
ções com E. Lask, E. Bloch, H. Rickert e Max Weber.
— dedica-se inteiramente a Comunismo, onde publica,
1914/1915 entre outros, os ensaios A Tarefa Moral do Partido
Comunista, Velha e Nova Moral e A Última Supera
prepara os materiais de A Teoria do Romance (Die ção do Marxismo. No sexto número da revista, pu
Theorie des Romans). blica o texto Sobre a Questão do Parlamentarismo,
que, a 12 de Junho, foi severamente criticado por
1916 Lenine;
— como livro, é publicada A Teoria do Romance.
publica, no periódico Zeitschrift fiir Àsthetik und
allgemeine Kunstwissenschaft, A Teoria do Romance. 1921
1917 no Terceiro Congresso da III Internacional, como
delegado do Partido Comunista Húngaro, mantém
— retoma a Budapeste, em finais do ano; seu único encontro com Lenine e Trotski.
— torna-se conferencista da Escola Livre de Humani
dades, criada por Karl Mannheim e Arnold Hauser; 1922
— publica o ensaio A Relação Sujeito/Objecto na Es
em Viena, entrevista-se com Thomas Mann, a quem
tética. já admirava desde 1909.
1918 1923
em Dezembro, ingressa no Partido Comunista Hún publica História e Consciência de Classe (Geschichte
garo. und Klassenbewusstsein), colectânea de materiais
elaborados entre 1919 e 1922.
1919
1924
— em Março, cai a monarquia dos Habsburgos. A 21 do
mesmo mês, proclama-se a República Soviética da — História e Consciência de Classe é violentamente cri
Hungria, liderada por Béla Kun. Lukács é designado ticado, de igual modo que Marxismo e Filosofia
78 79
(Marxismus und Philosophie), de Karl Korsch, pu — desempenha papel fundamental na orientação da
blicado na mesma época. Em Junho, o V Congresso revista Virada à Esquerda (Die Linkskurve), periódico
da III Internacional, através de Zinoviev e Bukharine, da Federação dos Escritores Proletários Revolucio
censura a obra. Em Julho, o Pravda soma-se às crí nários (Bund proletarisch-revolutionarer Schifsteller),
ticas, que também partem da social-democracia ligada ao Partido Comunista Alemão. A revista tirou
alemã, pela voz de Kautsky. L. Rudas, um dos funda 41 números, entre Agosto de 1929 e Dezembro de 1932;
dores do Partido Comunista Húngaro, reprova o — durante o ano de 1932, mantém estreita ligação com
livro, juntamente com M. Deborin, conhecido filósofo o filósofo E. Bloch;
russo; — publica vários ensaios tematizando a questão do rea
— publica Lenine: A Coerência do seu Pensamento lismo e da «literatura proletária», entre os quais :
(Lenin: Studei uber den Zusammenhanf seiner Ge Tendência ou Partidarismo? e Reportagem ou Con
daken). figuração?; em outro ensaio, Da Necessidade, Uma
Virtude, critica as suas próprias posições expressas
1925 em História e Consciência de Classe.
liga-se a J. Landler, cuja influência viria a ser sen
sível no Partido Comunista Húngaro, em oposição 1933/1944
a Béla Kun.
— em 1933 regressa a Moscovo e publica o esboço auto
1926 biográfico Meu Caminho até Marx;
— toma-se membro do Instituto Filosófico da Academia
publica o livro Moses Hess e o Problema da Dialéctica de Ciências da URSS;
Idealista (Moses Hess und die Probleme der idealis — exerce intensa actividade intelectual: é membro do
tischen Dialektik). conselho de redacção das revistas Literatura Inter
nacional (Internationale Literatur), A Nova Voz (Uj
1929 Hang — órgão da emigração húngara) e Crítica Lite
sob o pseudónimo de Blum, alinha-se na facção par rária (Literatourny Kritik), além de colaborar com
tidária de J. Landler, falecido no ano anterior. No o órgão da emigração alemã, A Palavra (Das Wort);
II Congresso do Partido Comunista Húngaro, apre — em 1935, redige o verbete «O Romance», para o IX vo
senta o projecto político que ficaria famoso sob o lume da Enciclopédia Literária;
título de Teses de Blum (Thesen uber die politische — entre 1936/1938, é figura central nos debates que a
und wirtschaftliche Lage in Ungarn und uber die intelectualidade emigrada articula, polemizando com
Aufgaben der Kommunistischen Partei Ungarns). E. Bloch, B. Brecht e A. Seghers, criticando o expres
O Congresso, dominado pela facção de Béla Kun, sionismo alemão e insistindo na defesa de um rea
recusa asperamente as proposições de Lukács e este, lismo capaz de assimilar a herança cultural do rea
ameaçado de expulsão, faz autocrítica. lismo burguês do século XIX;
— faz novas observações autocríticas com relação à
1930/1931 História e Consciência de Classe;
— em 1937, em russo, publica O Romance Histórico;
— em 1930, estagia no Instituto Marx-Engels, de Mos — desenvolve uma série de estudos literários e filo
covo; sóficos que, no pós-guerra, tomarão a forma de
— estabelece duradoura amizade com o filósofo russo livros; desses ensaios, muitos dos que se referem
Mikhail A. Lifschitz. à questão do realismo literário serão editados, depois
do fim da Segunda Guerra, nos volumes intitulados
1931-1933 Problemas do Realismo (Probleme der Realismus) ;
— em 1931, radica-se em Berlim, onde vive semilegal- — em 1941, é preso pela polícia política estalinista, sendo
mente como emigrado húngaro; em tarefas políticas, libertado meses depois, graças aos empenhos de
usa o pseudónimo Keller; Dimitrov.
80 81
1944/1945 de Lukács, secundado por M. Horwath, secretário
do imesmo ministério, empenham-se na campanha
— com a libertação da Hungria, retorna a Budapeste contra Lukács ;
em 1944; — submetido a enorme pressão, Lukács faz autocrítica ;
— desenvolve intensa actividade política: é membro do —publica O Realismo Russo na Literatura Universal
Parlamento, do Conselho Nacional da Frente Popular (Der russische Realismus in der Weltliteratur) e
Patriótica e do Conselho Mundial da Paz ; Thomas Mann (Thomas Mann).
— torna-se professor de Estética e História da Arte
da Universidade de Budapeste; 1950
— participa da direcção da Academia de Ciências da
Hungria. continua submetido a uma sistemática campanha de
descrédito ideológico.
1946
1951
— destaca-se no I Encontro Internacional de Genebra,
polemizando duramente com K. Jaspers; — a campanha contra Lukács atinge o clímax; o su
— publica, como ensaio, a sua conferência pronunciada cessor de Révai no Ministério da Cultura, J. Darvas,
em Genebra, sob o título As Concepções de Mundo ataca-o asperamente, e Lukács retira-se da vida pú
Aristocrática e Democrática. blica;
— publica Realistas Alemães do Século XIX (Deutsche
1947 Realisten des XIX Jahrhunderts).
— publica Goethe e a sua Época (Goethe und seine 1952
Zeit) e, em húngaro, Literatura e Democracia;
— em Dezembro, participa do Congresso de Filósofos publica Balzac e o Realismo Francês (Balzac und
Marxistas de Milão, onde pronuncia a conferência der franzõsische Realismus).
As Tarefas da Filosofia Marxista na Nova Democracia.
1953
1948
publica Nova História da Literatura Alemã (Skizze
— participa, em Paris, de um congresso internacional einer Qeschichte der neuren deutschen Literatur)
sobre Hegel; e A Destruição da Razão (Die Zerstõrung der Ver
— publica O Jovem Hegel (Der Junge Hegel), Ensaios nunft).
sobre o Realismo (Essays über Realismus), Revira
voltas do Destino (Schicksalswende), Existencialismo 1954
ou Marxismo? (Existentialismus oder Marxismus?)
e Karl Marx e Friedrich Engels como Historiadores publica Contribuições à História da Estética (Beitrage
da Literatura (Karl Marx und Friedrich Engels als zur Geschichte der Ãsthetik).
Literaturhistoriker);
— na Hungria, inicia-se a luta pelo poder entre Rajk 1955
e Rakosi, este representando as concepções políticas
do estalinismo. — recebe em Budapeste o Prémio Kossuth;
— torna-se membro-correspondente da Academia Alemã
1949 de Ciências.
82 83
da liberalização do regime. Lukács rompe, então, com — publica A Significação Presente do Realismo Crítico
o seu silêncio compulsório: faz duas discutidas in (Wider den missverstandesen Realismus).
tervenções no Círculo Petöfi — instrumento de in
quietação sociocultural criado em Março e interdi 1961
tado em Junho;
— a 14 de Outubro, em entrevista de repercussão mun agora, quem dirige a campanha anti-Lukács é A.
dial, Lukács reclama a liberalização política e exige Wirth, secretário do comité filosófico do Partido
o fim do burocratismo cultural; Comunista Húngaro;
— a 23 de Outubro, sobe ao poder o grupo de Imre 1962
Nagy, que se propõe a liberalização política;
— a 24 de Outubro, Lukács torna-se membro do Comité as Obras Completas de Georg Lukács começam a ser
Central do Partido Comunista Húngaro; publicadas na Alemanha Federal, pela Luchterhand
— a 27 de Outubro, Lukács assume o Ministério da Cul Verlag.
tura;
— a 31 de Outubro, juntamente com Nagy, Donath e 1963
Kadar, Lukács constitui o Comité de Organização
de um novo Partido Comunista Húngaro; — em Abril, morre-lhe a esposa;
— com os apelos de Nagy à intervenção da ONU e à — publica a Estética I; A Peculiaridade do Estético
retirada da Hungria do Pacto de Varsóvia, Lukács (Àsthetik, Teil I: Die Eigenart des Àsthetischen) e
afasta-se do Ministério; o ensaio Contribuição ao Debate entre a China e a
— com a defecção de Kadar, aprofunda-se a crise, que URSS;
é coroada com a intervenção das tropas russas ; — atendendo a pedido da revista italiana Nuovi Argu
— a 4 de Novembro, Lukács refugia-se na embaixada menti, escreve a célebre Carta sobre o Estalinismo.
da Jugoslávia;
— o novo governo, liderado por Kadar, procura inutil 1964
mente obter a colaboração de Lukács, que é então — pela Revista Húngara de Filosofia, são feitos a Lukács
deportado para a Roménia; os últimos ataques oficiais;
— Lukács publica o texto de uma conferência que pro —publica o ensaio Problemas da Coexistência Cultural.
nunciou a 28 de Junho, A Luta entre Progresso e
Reacção na Cultura do Nosso Tempo. 1966
1957 as suas Obras Completas começam a ser editadas
em espanhol, por Juan Grijalbo Ed., Barcelona/
— em Abril, obtém autorização para regressar a Buda /México.
peste ;
— não responde a nenhum processo pela sua partici 1967
pação nos acontecimentos que conduziram ao Levan
tamento de Outubro, mas é pressionado a uma auto — é oficialmente reintegrado no Partido Comunista
crítica. Recusa-se. Perde a cátedra universitária, é Húngaro ;
expulso do Partido e inicia-se contra ele outra cam- — autoriza, pela primeira vez, a reedição de História
panha oficial, capitaneada por Shigéti, ministro- e Consciência de Classe, precedida de um longo
adjunto da Cultura; prefácio datado de Março;
— publica Introdução a uma Estética Marxista (Über — são publicadas as entrevistas que concedeu a H. H.
die Besonderheit ais Kategorie der Àsthetik). Holz, W. Abendroth e L. Kofler, sob o título Con
versando com Lukács (Gesprãche mit Georg Lukács ).
1958
1970
— prossegue a campanha oficial contra Lukács, dirigida
agora por B. Fogarasi, principal teórico do Partido — recebe o Prémio Goethe;
Comunista Húngaro; — publica Solzenitsyn (Solschenizyn).
84 85
1971
— em Janeiro, escreve, para o Time Literary Supple
ment, uma breve apresentação de seus discípulos
Agnes Heller, G. Markus, M. Vajda e F. Feher, re
conhecendo a existência de uma «escola de Buda
peste» ;
— a 4 de Junho, vitimado por um canoro pulmonar,
faleceu.
1974
— em Paris, as Éditions Sociales publicam, pela pri
meira vez em livro, os ensaios que escreveu entre
1933/1934, em Moscovo, sob o título Escritos de Mos 5. NOTAS
covo (Moskauer Schriften).
1 Publicado no Brasil, em 1967, pela ed. Senzala, de
1976
S. Paulo. Em finais da década de sessenta, circulou
em Roma, pela Ed. Riuniti, sai, em primeira edição deste livro uma edição portuguesa, sob o título Exis
mundial, a parte inicial da Ontologia do Ser Social tencialismo ou Realismo?. Cito a tradução brasileira
(Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins). mas, em alguns pontos, modifiquei os textos, valendo-me
da versão francesa (Existencialisme ou Marxisme?, ed.
Nagel, Pans, 1948).
2 Sobre a questão da decadência, cfr. o meu ensaio
«Sobre o Conceito de Decadência» (Revista Hora & Vez,
ed. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora
Janeiro de 1971) e o meu artigo «Decadência: Um Con
ceito Marxista» (Seara Nova, Lisboa, Junho de 1977).
3 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 22
4 Idem, p. 15.
5 Idem, p. 21.
6 Idem, p. 31.
7 Idem, p. 34.
8 Idem, pp. 44/45.
9 Idem, p. 57.
10 Idem, p. 62.
11 Idem, p. 81.
12 Idem, p. 93.
13 Idem, p. 157.
14 Idem, p. 165.
15 Idem, p. 97.
16 E com a qual ele pretendeu «completar» o mar
xismo a que acusa de marginalizar o estudo do indiví
duo. Nos inícios dos anos sessenta, escrevia ele a Ga-
raudy: «Parece-me... que neste domínio tomamos a
dianteira: ocupamo-nos dos homens e receio que vocês
[os marxistas] os tenham esquecido um pouco». E
ainda: «Parece-me... que o pensamento da existência
enquanto se reconhece como marxista... continua a
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87
ser... a única investigação marxista ao mesmo tempo 29 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 247.
fundada e concreta» (cfr. Roger Garaudy, Perspectivas 30 Idem, p. 248.
do Homem, ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 31 No prefácio que escreveu, em 1960, para uma
1965, p. 114). E mais, na sua Questão de Método: «O re
sultado é que [o marxismo contemporâneo] perdeu reedição deste livro, Lukács reconhece este problema.
totalmente o sentido do que é um homem...» (cfr. Crí 32 Lukács, entretanto, permaneceu atento à evolução
tica de la Razón Dialéctica, ed. Losada, Buenos Aires, de Sartre. Em 1969, numa entrevista a Leandro Konder,
1970, livro I, p. 72). assinalou que, considerando equivocada a sua posição
17 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 125. filosófica, «respeito-o e admiro-o como personalidade»
18 A imediata reacção dos existencialistas a esta (cfr. Jornal do_ Brasil, Rio de Janeiro, 24/25-08-1969).
acusação lukacsiana foi barulhenta. Mas o tempo correu Este respeito não impede Lukács de criticar com dureza
e, anos depois, o testemunho insuspeito de Simone de a obra recente de Sartre; numa entrevista a Naim
Beauvoir avaliza o comentário de Lukács; ela afirma Kattan, comentou: «[Sartre], como filósofo, fez pro
que, no imediato pós-guerra, «sem dúvida Sartre estava gressos depois de O Ser e o Nada, aproximando-se
ainda longe de ter compreendido a fecundidade da ideia do marxismo. Entretanto, há nele uma debilidade:
dialéctica e do materialismo marxista» (cfr. Sob o quando a vida o obriga a mudar de ponto de vista, não
Signo da Historia, ed. Difusão Europeia do Livro, se sujeita a modificá-lo radicalmente e procura dar-nos
S. Paulo, 1965, 1.° volume, p. 52). Desta compreensão uma ilusão de continuidade. Na sua Crítica da Razão
limitada, por outro lado, faz menção o próprio Sartre, Dialéctica, aceita Marx, mas quer conciliá-lo com Hei
no seu belo ensaio «Merleau-Ponty Vivant» (Les Temps degger. A contradição é clara. Há um Sartre número
Modernes, Paris, n.° 184-185, 1961). um no início da página e um Sartre número dois no
19 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 126/127. fim da mesma página. Que confusão de método e de
20 Idem, p. 135. Trata-se das pesquisas que, sob a pensamento!» (cfr. La Quinzaine Littéraire, Paris, 01-
forma de livro, Simone de Beauvoir apresentaria em -12-1968). Na Ontologia do Ser Social, comentada adiante
Por uma Moral da Ambiguidade. num brevíssimo excurso, Lukács dedica umas poucas
21 Idem, p. 149. páginas às últimas posições de Sartre, insistindo sem
22 Idem, p. 152. pre em que elas «não se libertaram, no plano ontológico,
23 Idem, p. 155. dos preconceitos do neopositivismo e do existencialis
24 Acerca da grandeza moral e da seriedade científica mo» (p. 81 da edição que será referida mais adiante).
de Merleau-Ponty, Lukács não tem nenhuma dúvida, e Na década de sessenta, como se sabe, vários mar
ressaltadas repetidas vezes. Sobre a pureza humana de xistas debruçaram-se sobre a obra de Sartre (Roger
Merleau-Ponty, o emocionado depoimento de Sartre, já Garaudy, Adam Schaff et allii). Uma crítica inclusiva
mencionado na nota 18, constitui um belo testemunho. e compreensiva do pensamento sartreano, encontrará
25 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 164/165. o leitor no ensaio de Carlos Nelson Coutinho, intitulado
26 Idem, p. 213. «A Trajectória de Sartre» (in Literatura e Humanismo,
27 Idem, p. 240. ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1967).
28 Apud I. Mészáros, «El Concepto de Dialéctica en 83 Cfr. as observações de Carlos Nelson Coutinho
Lukács», in G. H. R. Parkinson, org., Georg Lukács: El em «As Ambiguidades do Ültimo Sartre» (Revista Hora,
Hombre, Su Obra, Sus Ideas (ed. Grijalbo, Barcelona/ ed. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora,
/México, p. 79/80). É interessante comparar a rica con Dezembro de 1971).
cepção lukacsiana da totalidade (onde os fenómenos da 34 Recordemo-nos de que a cruzada «marxista» con
determinação e da sobredeterminação aparecem cor tra Sartre chegara a um ponto tal que, em 1946, Henri
rectamente situados) com o seu pendant, empobrecido Lefebvre (então membro do Partido Comunista Fran
e esquemático, de Louis Althusser (cfr. especialmente, cês), no seu livro L’Existencialisme, escreveu que o
deste autor, a quinta secção de «Sobre a Dialética Ma autor de O Ser e o Nada era um literato que fazia «la
terialista», in Análise Crítica da Teoria Marxista, ed. métaphysique de la merde» (apud Leandro Konder,
Zahar, Rio de Janeiro, 1967. Esta obra é a tradução Os Marxistas e a Arte, ed. Civilização Brasileira, Rio
do original francês Pour Marx). de Janeiro, 1967, p. 159).
88 89
35 Para as citações desta obra, que, como se sabe, 58 A definição é de Lukács; cfr. El Joven Hegel, ed.
foi dedicada a Mikhail A. Lifschitz, vali-me da versão cit., p. 136.
castelhana El Joven Hegel y los Problemas de la So 59 El Joven Hegel, ed. cit., p. 212.
ciedad Capitalista (ed. Grijalbo, México, 1963). 60 Idem, p. 165. Reenvio o leitor à observação que
36 Sabe-se que, durante e imediatamente após a Se fiz na nota 48.
gunda Guerra Mundial, a cultural «oficial» soviética 81 Idem, pp. 168/169.
tendeu a tratar Hegel como um «funcionário da mo 62 Idem, p. 226.
narquia prussiana». 83 Idem, p. 262.
37 Neste livro, Lukács interessa-se pela obra de 61 Idem, p. 227.
Hegel até à publicação da Fenomenologia do Espírito 85 Idem, ibidem.
(1807). A posterior evolução de Hegel, a sua passagem 66 Idem, p. 228.
por Bamberg, a sua fixação em Nuremberga e a sua 67 Idem, p. 267.
transferência para Berlim não caem sob o foco da 68 Durante toda a sua vida, Hegel manterá para com
análise lukacsiana. a religião atitudes dúbias. E só no final da sua evolução
38 El Joven Hegel..., ed. cit., p. 35.
39 Idem, p. 29.
é que inverterá a posição de Frankfurt : no seu período
40 Idem, p. 35.
berlinés, a religião virá a ser resolvida na filosofia.
41 Idem, p. 37.
Esta questão cai fora do âmbito do estudo de Lukács.
69 El Jovem Hegel..., ed. cit., p. 269.
42 É em relação a esta tradição que Marx afirmava :
70 Idem, p. 392.
«Nós [os alemães] somos os contemporâneos filosóficos 71 Idem, p. 393.
do presente, sem ser seus contemporâneos históricos. 72 Idem, p. 348.
A filosofia alemã é o prolongamento ideal da história 73 Idem, p. 331.
alemã» (cfr. Contribution à la Critique de la Philosophie 74 Idem, p. 354.
du Droit de Hegel, ed. Aubier/Montaigne, Paris, 1971, 75 Idem, p. 411.
p, 71). 76 Idem, p. 459.
43 El Joven Hegel..., ed. cit., p. 43.
77 Idem, p. 456.
44 Idem, p. 39.
78 Idem, ibidem.
45 Também este facto foi indicado por Marx, espe 79 Idem, p. 437.
cialmente em A Ideologia Alemã, mas as suas implica 80 Idem, ibidem.
ções já estão contidas na Contribuição à Crítica da Filo 81 Idem, p. 449.
sofia do Direito de Hegel. 82 Idem, p. 243. Apesar de uma formulação tão cris
46 El Joven Hegel..., ed. cit., p. 49.
47 Idem, pp. 53/54. talina e meridiana, lê-se num laureado catedrático bra
48 Idem, p. 70. Encontra-se aqui uma clara homolo sileiro : «Lukács, rastejando na esteira ideológica, repete
a legenda marxista de que a especulação de Hegel cum
gia entre o utopismo do jovem Hegel e o do jovem pria seus deveres para com o Estado prussiano» (Djacir
Lukács, expresso em A Teoria do Romance. Sobre esta Meneses, «Introdução» a Textos Dialéticos de Hegel,
questão, cfr. o meu ensaio «A Teoria do Romance do ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1969, p. 24). Como teremos
Jovem Lukács» (Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, oportunidade de ver mais adiante, esse lamentável des
Dezembro de 1976). preparo intelectual, onde a ignorância nem sempre está
49 Idem, p. 49.
50 Idem, p. 121.
isenta de má fé, no trato com Lukács, não é exclusivo
51 Idem, p. 117.
apanágio de «autoridades» universitárias brasileiras.
83 As minhas citações serão retiradas da versão es
52 Idem, p. 130.
53 Idem, p. 118. panhola El Asalta a la Razón (ed. Grijalbo, Barcelona/
54 Idem, p. 193. /México, 1968).
55 Idem, p. 225. 84 El Asalto ..., ed. cit., p. 4.
56 Idem, p. 221. 85 Idem, p. 10.
57 Idem, p. 199. 86 Idem, p. 4.
90 91
87 Idem, p. 29. Lukács retoma aqui as interpretações 121 Idem, p. 337.
veram sobre a evolução histórica da Alemanha, especial 123 Sobre a relação de Lukács com a sociologia, cfr.
92 93
135 Cfr. As Ideias de Lukács, ed. Cultrix, S. Paulo, de A. Scarponi sobre o original aos cuidados de F. Brody
1973, cap. VII. Pela natureza dos seus comentários, e G. Révai). Deste primeiro volume, já haviam sido
pode-se duvidar que Liohtheim tenha lido qualquer das publicados, separadamente e em alemão, os capítulos
duas obras. A Falsa e a Verdadeira Ontologia em Hegel (1971) e
136 Cfr. Le Marxisme Soviétique, ed. Gallimard, Paris, Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx (1972).
1968, p. 172. Como é frequente nos juízos de valor de 147 Para maiores detalhes, cfr. o artigo de Istvan
Marcuse, não se segue a esta afirmação—formulada Eorsi, «The Story of a posthumous work (Lukács Onto
numa simples nota de rodapé — nenhum desenvolvi logy» (The New Hungarian Quarterly, XVI, n.° 58,
mento probatório. summer/1975).
137 Cfr. «Lukács y el Equívoco del Realismo», in Vv. 148 Com este espírito, aliás, Lukács apoiou o apareci
Aa., Polémica sobre Realismo, ed. Tiempo Contempo mento da chamada «escola de Budapeste». Sobre esta,
ráneo, Buenos Aires, 1972, p. 43. Mais adiante, Adorno cfr. o material contido em Les Temps Modernes (n.° 337/
acusa Lukács de se valer, em A Destruição da Razão, de /338, 1974); seja-me permitido destacar aqui o carácter
um «jargão digno de um bedel do período guilher- apologético deste material.
mino». Caberia indagar se, neste ensaio, a linguagem 149 Esta necessidade é evidente na Estética I, onde
adorniana não é, por seu turno, um jargão digno de um a categoria da praxis, distanciada do pensamento lu
burocrata universitário da social-democracia da Ale kacsiano desde 1923, aparece retomada e enriquecida.
manha Federal. Também nas suas entrevistas com Holz, Abendroth e
138 O nome de Freud, na edição de A Destruição da
Kofler, na segunda metade dos anos sessenta, Lukács
Razão de que me valho, aparece a páginas 190, 254 tematiza amplamente o problema (cfr. Conversando
(onde Lukács lhe toma a expressão «mal-estar da cul com Lukács, ed. cit.).
tura»), 517 e 535. 150 De facto, ele dedica a Hartmann o capítulo «O Im
139 Cfr. a primeira parte do capítulo IV de A Des
pulso de N. Hartmann em Direcção a uma Verdadeira
truição da Razão. Com maior clareza, Lukács fala, em Ontologia». Aí, Lukács acredita que «Hartmann rompe
Existencialismo ou Marxismo?, caracterizando o pensa resolutamente com a impostação unilateralmente gno-
mento burguês pós-1848, com desprezo, de «filosofía siológica do neokantismo. Seu pensamento nunca
professoral».
140 A expressão aparece em Conversando com Lukács
sofreu o influxo do positivismo e do neopositivismo»
(cfr. Ontologia..., ed. cit., p. 113). Embora criticando
(ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1969, p. 99). A crítica a ontologia hartmanniana, Lukács credita-lhe o mérito
que os pensadores influenciados por Lukács fazem às de, no seu tempo e solitariamente, haver tentado solu
concepções de Adorno e seus seguidores é constante; ções filosóficas descomprometidas com as correntes
Wolfgang Abeodroth, por exemplo, chega a citar «o ideológicas da manipulação social.
pessimismo e a educação para a passividade produzi 151 As páginas deste texto, que Lukács não chegou
dos pela escola de Frankfurt» (cfr. Conversando com
Lukács, ed. cit., p. 92). Uma réplica inspirada em Lukács a ver dactilografadas, levam o título de Prolegômenos à
às críticas adornianas encontra-se em Leo Kofler, Zur Ontologia do Ser Social.
152 Da segunda parte, já se conhece o primeiro capí
Theorie der modernen Literatur/Avantgardismus in
Soziologischer Sicht (Newied/Berlim, 1962). tulo, intitulado O Trabalho, publicado em alemão (1973).
141 No seu opúsculo Introducción a Lukács, ed. Tanto este capítulo, como os citados na nota 146, foram
Siglo XXI, Buenos Aires, 1974. editados pela Luchterhand Verlag. Há versão inglesa de
142 Op. cit., p. 71. O Trabalho, sob o título «Labour as a Model of Social
143 El Asalto ..., p. 441. Practice» (The New Hungarian Quaterly, XVIII, n.° 47,
144 Bedeschi, op. cit., p. 76. 1972).
145 Deveriam ser mencionadas aqui, entre outras, as 153 Daí a recusa em identificar o projecto marxiano
intervenções de H. A. Hodges, P. Rossi. N. Merker como um historicismo de novo tipo (como o próprio
e G. Stedmann Jones. Lukács o fizera em 1923) ou como uma epistemologia.
146 Ontologia dell'Essere Sociale I, ed. Riuniti, Roma, 154 Lukács escreve: «a viragem materialista na onto
1976 (trata-se da primeira edição mundial, em tradução logia do ser social, provocada pela descoberta da prio
94 95
ridade ontológica da economia no seu âmbito, pres de língua portuguesa são acessíveis os seguintes livros
supõe uma ontologia materialista da natureza» (Onto de Lukács: Teoria do Romance, Lisboa, sem data; Exis
logia..., ed. cit., p, 268). tencialismo ou Marxismo?, S. Paulo, 1967; Introdução
155 Ontologia ..., ed. cit., p. 261. a uma Estética Marxista, Rio de Janeiro, 1968; Rea
156 Idem, pp. 207/208.
lismo Critico Hoje (versão brasileira de O Significado
157 Idem, p. 215.
Presente do Realismo Crítico), Brasília, 1969 e Conver
158 Idem, p. 187. sando com Lukács, Rio de Janeiro, 1969. Estão tradu
159 Idem, p. 213. zidos, ainda, vários ensaios de Lukács nas seguintes
160 Cfr., na Ontologia..., as brilhantes observações antologias ou colectâneas: Ensaios sobre Literatura,
acerca do relacionamento ambíguo da ciência com a Rio de Janeiro, 1965; O Escritor e o Crítico, Lisboa, 1968;
religião (no quadro do «compromisso belarminiano»), Marxismo e Teoria da Literatura, Rio de Janeiro, 1968;
as notações sobre Wittgenstein e Carnap, a reproblema- Sobre a Consciência de Classe, Porto, 1973.
tização de Heidegger, a breve consideração da última
obra de Sartre, etc.
161 Insisto em que Lukács jamais utilizou, explicita
mente, a categoria de miséria da razão. A sua tema
tização específica deve-se a Carlos Nelson Coutinho,
que afirma: «Por miséria da razão queremos significar
o radical empobrecimento agnóstico das categorias
racionais, reduzidas a simples regras formais intelec
tivas que operam na praxis manipuladora» (cfr. Estruc
turalismo y Miséria de la Razon, ed. Era, México, 1973,
p. 13).
162 Ontologia..., ed. cit., p. 25.
163 Idem, ibidem.
164 Cfr. o prefácio de A. Scarponi, Ontologia..., ed.
cit., pp. VIII/IX.
165 Ontologia ..., ed. cit., p. 35.
166 Idem, p. 37. Vale a pena observar que Lukács
assinala a generalização dos modelos manipulatórios.
O período estalinista é, para ele, em si mesmo, a era
da manipulação par excellence do socialismo. Não é
casual que Lukács julgue o estalinismo como «irrupção
do neopositivismo no marxismo» (cfr. Conversazioni
con Lukács, Bari, 1968, p. 189).
167 Ontologia ed. cit., p. 61.
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Acabou de se imprimir: em 20 de Fevereiro de 1978
Título: Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa
Editor: Empresa de Publicidade Seara Nova, S. A. R. L.
Autor: J. Paulo Netto
Oficinas: E. P. N. C: — Oficinas gráficas
Tiragem: 3200 ex.