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J.

PAULO NETTO

LUKÁCS E A CRÍTICA

DA FILOSOFIA

BURGUESA

Capa de
Henrique Ruivo

© J. Paulo Netto
e
Empresa de Publicidade Seara Nova, S. A. R. L. seara nova
R. Bernardo Lima, 42, r/c —LISBOA 19 7 8
ROTEIRO :

1. Advertência
2. Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa
3. Apêndice: Excurso sobre a Ontologia do Ser Social
4. Cronologia de Georg Lukács
5. Notas
A Cida,

com quem vivi esta crítica.

1. ADVERTÊNCIA

O ensaio que agora se publica foi original­


mente redigido em princípios de 1976, ainda no
Brasil, quando o autor preparava uma colectânea
de textos que deveria intitular-se Introdução a
Lukács. Circunstâncias várias e realmente cons­
trangedoras obrigaram ao (provisório) abandono
deste projecto.
No conjunto inicialmente planeado, «Lukács
e a Crítica da Filosofia Burguesa» tinha por
objectivo, valendo-se prioritariamente de cita­
ções do pensador húngaro *, explicitar o posi­
cionamento do que se considera o «quarto clás­
sico do marxismo» frente à produção filosófica
burguesa mais significativa dos séculos XIX e
XX — posicionamento referido à «obra madura»
de Lukács. Balizava aquele objectivo uma preo­
cupação quase didáctica: pretendia-se que a
exposição fosse acessível a uma audiência inte­
ressada, mas desprovida de informações espe­
cializadas sobre a temática. Daí o tom necessa­
riamente declarativo do ensaio, onde, todavia,

* Não será fora de propósito evocar, aqui, o «jo­


vem» Lukács de História e Consciência de Classe: «Mas
toda a citação é, ao mesmo tempo, uma interpretação.»

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se procurou não sacrificar o rigor documental
no altar da simplicidade.
Afora o «Excurso sobre a Ontologia do Ser
Social», escrito em Janeiro deste ano, e algumas
alterações formais de pouca monta, «Lukács e
a Crítica da Filosofia Burguesa» sai à luz sem
qualquer modificação assinalável, conservando
as suas limitadas pretensões, apenas acrescido
de uma cronologia que situa historicamente o
filósofo magiar.
Mesmo insistindo no âmbito dessas preten­
sões diminutas, o autor confia em que o texto 2. LUKÁCS E A CRÍTICA
possa ser útil ao leitor português **. DA FILOSOFIA BURGUESA

«... a Apragmosyne filosófica — que


Lisboa, Verão/77 consiste em não tomar partido, mas
em submeter-se de antemão ao que
triunfará e universalizará o destino —
é punida pela morte da razão espe­
culativa.» (Hegel)

A referência filosófica básica do universo in­


telectual de Lukács é sempre a filosofia alemã
— mais precisamente, a filosofia clássica alemã
na sua expressão maior, o sistema hegeliano.
Evidentemente, este facto não expressa ape­
nas uma preferência subjectiva de Lukács, nem,
tão-pouco, uma simples decorrência da sua for­
mação cultural, realizada especialmente sob a
influência do pensamento alemão. Antes de mais,
trata-se, para Lukács, de explorar a indicação
marxiana — contida já na Contribuição à Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel — segundo a
qual é na filosofia clássica alemã que se elabora
o mais alto conhecimento filosófico próprio do
mundo burguês. A crítica desta filosofia, por­
tanto, é a crítica da reflexão privilegiada que
** O autor agradece a Sérgio R. Contreiras, que
teve a gentileza e a paciência de obviar os «brasileiris-
traduz, no plano do pensamento, as categorias
mos» do texto original. e as condições essenciais da sociedade capita­

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lista. Mas não é só: a desintegração daquela
filosofia, iniciada com a dissolução do hegelia­
nismo, também é o indício cultural mais elo­
quente das rupturas que, antagonicamente, dila­
ceram a formação económico-social capitalista.
Daí que a história da filosofia contemporânea,
no que tem de mais notável, seja focada por
Lukács a partir da evolução pós-hegeliana da fi­
losofia alemã.
Naturalmente que a imensa e profunda cul­
tura filosófica de Lukács não se restringe à re­
flexão germânica. Conversador habitual de Aris­ I
tóteles e dos pensadores da Antiguidade Clássica,
Lukács dominava praticamente todo o pensa­ A específica crítica filosófica de Lukács en­
mento filosófico do Ocidente até ao século XX. contra-se em dois livros que, a todos os títulos,
Na medida, porém, em que o seu objectivo era, são monumentais : O Jovem Hegel e os Proble­
ao nível da crítica, a análise histórica e sistemá­ mas da Sociedade Capitalista e A Destruição da
tica das modalidades de conhecimento e inter­ Razão. É verdade que em muitos dos textos que
pretação do mundo construídas pela cultura constituem outras obras de Lukács — como, por
burguesa, os seus estudos centram-se, quase ex­ exemplo, no material componente de Contribui­
clusivamente, na tematização da quinta-essência ções à História da Estética, Realistas Alemães
daquelas modalidades — a filosofia clássica do Século XIX, Goethe e sua Época, Introdução
alemã. a uma Estética Marxista, e ainda na Estética I —
Esta tematização tem, para Lukács, um signi­ localizamos o diálogo renovado com a tradição
ficado nodular (que coexiste com um duplo in­ filosófica burguesa. No entanto, é naqueles dois
teresse: determinar o estatuto histórico-filosó­ livros que o pensamento lukacsiano maduro se
fico do marxismo e acertar as contas com o seu debruça particularmente sobre a problemática
próprio passado) : ela instaura-se como crítica filosófica.
macroscópica da totalidade da cultura burguesa. Entre a publicação de ambos, Lukács deu à
luz uma pequena obra — que Sartre, em 1957,
chamaria de livrinho — na qual se ocupa espe­
cialmente do existencialismo francês: Existen­
cialismo ou Marxismo?1. Na verdade, pode-se
afirmar com segurança que este texto, concluído
em Julho de 1947 e editado no ano seguinte, não
é mais do que a reacção de Lukács ao estrondo
com que o existencialismo sartreano se levantou
das cinzas da Resistência: o filósofo húngaro,
que já tinha pronto O Jovem Hegel e trabalhava
14 15
em A Destruição da Razão, percebera a «novi­ losófico burguês; em si mesmo, «o existencia­
dade» do existencialismo nos Encontros Interna­ lismo reflecte..., no plano da ideologia, o caos
cionais de Genebra, dos quais participara em 1946, espiritual e moral da inteligência burguesa con­
e como que abria um parêntesis na sua investi­ temporânea» 5.
gação para introduzir, na efervescência ideoló­ Segundo Lukács, a evolução do pensamento
gica do imediato pós-guerra, algumas determina­ filosófico burguês realiza-se em três estádios. No
ções que considerava indispensáveis. Realmente, primeiro, que vai até 1848, desenvolve-se a filo­
a problemática que aborda em Existencialismo sofia burguesa clássica: «é esta época que dá
ou Marxismo? está perfeitamente integrada no origem à expressão mais elevada da concepção
contexto das duas outras obras : de um lado, o do mundo da burguesia... [...] As intervenções
quadro geral da decadência burguesa 2 na esteira da filosofia nos grandes problemas concretos das
do irracionalismo moderno, que tem o seu pre­ ciências naturais e sociais mostraram-se férteis
cursor em Schelling; de outro, este irraciona­ e é então que ela ascende ao nível das mais al­
lismo que deriva nas formulações existencialistas tas abstracções. É assim que se manifesta o seu
na perspectiva da chamada crise geral do capita­ carácter de universalidade e o seu papel de fer­
lismo sob o imperialismo. A peculiaridade do mento das ciências, que lhe permite descobrir
pequeno livro reside em concretizar estas duas tantas perspectivas novas» 6. Neste período, com
variáveis em relação à obra de Sartre, Simone a burguesia encarnando os ideais de progresso
de Beauvoir e M. Merleau-Ponty. Entretanto, de toda a sociedade, os seus pensadores susten­
mesmo a modéstia do livro — posta em desta­ tam a plena cognoscibilidade do mundo e man­
que pelo próprio autor : «Não consideramos, de têm uma grande independência face às exigên­
forma alguma, o texto que se vai lar como uma cias ideológicas da sua própria classe social, na
resposta exaustiva a todas as questões levanta­ medida em que o seu exercício intelectual se
das. Os estudos que o compõem representam funda na admissão da imensa tarefa histórica
apenas esboços polémicos...» 3— contribui para a ser cumprida pela burguesia; isto possibilita-
que ele apresente, sinopticamente, as posições -lhes a crítica, de dentro, das características
lukacsianas que serão amplamente desenvolvi­ mais deletérias do mundo burguês, e, além disso,
das em A Destruição da Razão. faz com que os seus equívocos teóricos decor­
Lukács começa por assinalar que o confronto ram da própria necessidade das «ilusões herói­
entre existencialismo e marxismo é um aspecto cas» despertadas com a preparação da Revolu­
de um combate filosófico mais antigo : «trata-se ção Francesa.
do choque de duas orientações do pensamento : A partir de 1848, com a entrada autónoma
de um lado, daquela que vai de Hegel a Marx, do proletariado na cena política, a burguesia
e, de outro, daquela que liga Schelling ( a partir passa à defensiva : não mais assumindo os valo­
de 1804) a Kierkegaard» 4. É no período do im­ res universais da sociedade, mas somente ex­
perialismo, contudo, que este choque vai tomar pressando os seus mesquinhos interesses parti­
uma feição particular, no interior da qual o exis­ culares, ela vê encerrar-se o seu ciclo de actuação
tencialismo, em si mesmo, não é mais do que progressista e é compelida a compromissos com
um sinal da crise que penetra o pensamento fi­ a reacção remanescente para enfrentar a classe
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operária. Inicia-se então o segundo período evo­ ideológico que leva em conta o fim da «estabi­
lutivo do seu pensamento filosófico que, esten­ lidade» burguesa. A crise filosófica manifestasse,
dendo-se até à emergência do imperialismo (por agora, através da premente necessidade de uma
volta de 1880/1890), operasse sob a égide da de­ ideologia, que se estrutura em torno do irracio­
cadência. As modificações por que passa o ori­ nalismo. Na impossibilidade, social e teórica, de
ginal projecto filosófico burguês são notáveis: uma defesa clara do sistema, e na necessária
a crença no poder da razão transformare em intocabilidade do modo de produção capitalista,
agnosticismo (manifesto quer no positivismo, a ideologia irracionalista burguesa propõe a
quer no neokantismo) e a reflexão abandona as falsa solução do «terceiro caminho»: nem ca­
grandes temáticas sócio-históricas para conver­ pitalismo, nem socialismo. Para tanto, ao nível
ter-se em «guarda-fronteiras» das ciências: o da epistemologia, ela instaura uma nova objecti­
seu papel limita-se à vigilância «para que nin­ vidade, a objectividade dos mitos (uma pseudo­
guém ouse tirar das ciências económicas e so­ -objectividade) e postula a intuição como o ins­
ciais conclusões que poderiam desacreditar o trumento do conhecimento verdadeiro. Lukács
sistema» 7. Mutação radical sofre a posição so­ resume, conclusivamente, a funcionalidade filo­
cial do filósofo : agora vítima da crescente espe­ sófica deste estádio do pensamento burguês :
cialização condicionada pelo avanço da divisão «Não se tirata mais de fazer o elogio directo e
social do trabalho, ele está afastado da vida grosseiro da sociedade capitalista... A crítica da
económica produtiva da sociedade e passa a cultura capitalista constitui, ao contrário, o tema
manter os seus vínculos de pertença com uma central dessa filosofia nova. À medida que a
camada social — quase sempre agregada à ins­ crise se prolonga, a concepção de um ‘terceiro
tituição universitária — que é como que a de­ caminho’ progride cada vez mais no plano so­
positária da filosofia; assim burocratizado, ele cial: é urna ideologia segundo a qual nem o
adquire a «liberdade» de (articular uma reflexão capitalismo nem o socialismo correspondem às
que é determinada pelos problemas específicos autênticas aspirações da humanidade. Essa con­
desta intelectualidade «livre». cepção parece aceitar tacitamente o facto de que
Mediações muito complexas fazem correspon­ o sistema capitalista é teoricamente indefensá­
der à entrada do capitalismo na sua era impe­ vel tal como existe. Mas... o ‘terceiro caminho’
rialista — aquela que agudiza profundamente as está investido da missão social que consiste em
suas contradições— o terceiro estádio da evo­ impedir que a intelligentzia retire da crise a
lução da filosofia burguesa. De facto, este está­ conclusão socialista. Por ser indirecto, o ‘ter­
dio prolonga essencialmente as características ceiro caminho’ não deixa de ser uma apologia
do período anterior, mas acrescendo-as dos com­ do capitalismo» 8. Com efeito, se as correntes
ponentes indispensáveis para, ao mesmo tempo,
irracionalistas criticam aspectos da vida capita­
amenizar a brutalidade da percepção da cha­
mada crise geral do sistema e tentar esforços lista, fazem-no sempre negligenciando como se­
de reacção à teoria social que responde à praxis cundárias as condições sociais ; o elemento mais
do proletariado. Desta maneira, sobre os limites importante das ideologias irracionalistas con­
do agnosticismo anterior floresce um conjunto siste em «transformar, mistificando-a, a condi­

18 19
ção do homem do capitalismo imperialista em O Ser e o Tempo, Lukács evidencia que as sen­
uma condição humana geral e universal» 9. síveis diferenças históricas que cercam a elabo­
É no contexto deste terceiro estádio que o ração das duas obras — a de Heidegger, em vés­
existencialismo se insere como manifestação tí­ peras da ascensão de Hitler, expressa e reforça
pica do irracionalismo que, no final das contas, a passividade da intelectualidade burguesa; a
preparou ideologicamente a maré montante do de Sartre, em pleno vigor da Resistência, ex­
nazi-fascismo. Ele revela-se, através do aprovei­ pressa e reforça o activismo dos intelectuais
tamento, a seu talante, do método fenomenoló­ patriotas — respondem pelos traços específicos
gico de Husserl, desde a obra de Heidegger, de do trabalho sartreano ; por exemplo, enquanto
1927, O Ser e o Tempo. Contudo, se o existen­ em Heidegger «o Nada é um dado ontológico
cialismo, na sua versão alemã (Heidegger e Jas­ tanto quanto a existência», em Sartre «o Nada
pers), acabou por adequar-se à concepção hitle­ não tem existência independente do ser, é abso­
riana do mundo, o existencialismo francês — que lutamente inseparável dele» 11; ou ainda: o ser-
esteve mesmo ligado à Resistência — pretende-se -para-a-morte heideggeriano é permutado, em
e situa-se como filosofia de intelectuais de es­ Sartre, pelo ser-para-a-liberdade. Mas o irracio­
querda. Para Lukács, a posição socialmente pro­ nalismo e o solipsismo ontológico que fundam
gressista e a honestidade pessoal dos existencia­ o existencialismo sartreano comprometem me­
listas franceses não significa, no entanto, nem dularmente o conceito de liberdade: o irracio­
que a sua oposição ao capitalismo seja conse­ nalismo estatui a liberdade como algo de meta­
quente, nem, menos ainda, que ela decorra or­ fisicamente absoluto, e aquele solipsismo impõe
ganicamente da sua filosofia: «No plano social, que o acto livre só adquira sentido para o seu
a única diferença entre o existencialismo [fran­ próprio agente. Assim, «a noção sartreana de
cês ] e o [ pré-faseista ] de Heidegger é a seguinte : liberdade toma-se... completamente irracional,
o existencialismo francês levantou o seu pro­ arbitrária e incontrolável »12. Aliás, para o exis­
testo arbitrário não contra o conjunto da crise, tencialismo, «a liberdade é, com efeito, um dado
mas contra o fascismo em particular. Mas o seu humano absoluto : não pode nem se constituir,
protesto permanece também abstracto e isto não nem se perder» 13.
se deve ao acaso. A maior parte dos pensadores Logo após a Libertação, Sartre procurou ma­
antifascistas arrancam, com efeito, ideológica e tizar as suas concepções ; as tarefas políticas da
metodologicamente, do mesmo plano que seus reconstrução de uma França nova compelem-no
adversários» 10. Isto quer dizer que, na propor­ a concretizar o seu conceito de liberdade. É o
ção em que o existencialismo francês aprofunda que ele tenta fazer em O Existencialismo é um
as implicações da sua posição antifascista, fá-lo Humanismo, indicando as conexões entre a li­
ao preço de insolúveis contradições metodológi­ berdade individual e a liberdade de outrem ;
cas e de um acentuado ecletismo. mas, ao fazê-lo, Sartre — avançando sobre O Ser
Esta perturbadora dualidade de método e e o Nada — não põe em causa a sua metodolo­
conclusões é cuidadosamente registada, por Lu­ gia, entrando em espantosas contradições com
kács, no tratamento das obras de Sartre. Esta­ os seus postulados. Como isto não é raro em
belecendo a directa filiação de O Ser o Nada a Sartre, Lukács ( que lhe aponta várias outras
20
21
situações similares) não hesita em afirmar que mone de Beauvoir e Merleau-Ponty tentavam
ele «muda resolutamente de posição, sem se em­ incorporar (abusivamente, na óptica de Lukács)
baraçar com as contradições nas quais se arrisca ao existencialismo algumas conquistas do mar­
a cair a cada instante e das quais, de todos os xismo.
pensadores existencialistas, é o menos cons­ Simone de Beauvoir tinha preocupações bem
ciente» definidas : a partir de O Ser e o Nada, ela esfor­
Lukács não nega que, em Sartre, se encon­ ça-se por «completar as bases ontológicas da
tre um elemento de verdade, que «consiste na doutrina existencialista pela junção de uma mo­
acentuação da importância da decisão indivi­ ral» 20. Neste rumo, o seu interlocutor explícito
dual, que o determinismo burguês e o marxismo é o marxismo, o que leva Simone de Beauvoir
vulgar subestimam habitualmente» 15. A esta va­ ao problema central de toda a moralidade, «a
lorização da subjectividade, que Sartre sempre reconciliação da liberdade e da necessidade» 21.
reivindicou 16, Lukács não lhe recusa funda­ A análise lukacsiana reencontra, neste projecto,
mento quando oposta «aos marxistas vulgares a irrupção das gritantes contradições entre o
que consideram a determinação económica da método e o objectivo da importante pensadora :
consciência humana como uma fatalidade me­ já que a «liberdade não poderia ter um con­
cânica» 17 ; mas quando Sartre se propõe fazer teúdo concreto e uma relação dialéctica com a
dessa valorização a base de uma nova filosofia, necessidade, a não ser com a condição de ser
oposta ao marxismo — e este é o caminho de compreendida, na sua génese histórica e social,
Sartre em 1946/1947 —, ele é forçado a identi­ como a luta do homem contra a natureza, atra­
ficar como autêntico marxismo as versões vul­ vés da mediação das diversas formas da socie­
garizadas do materialismo histórico e dialéctico. dade» 22 e que, «considerada sob o ângulo da
Ora, replica Lukács, «quando o marxismo se ontologia fundamental do existencialismo, toda
apresenta sob seu verdadeiro aspecto e não sob hipótese de uma génese real da liberdade cons­
o da caricatura concebida por Sartre 18, perce­ titui uma contradição em si mesma» 23, Simone
be-se a sua incompatibilidade fundamental com de Beauvoir passa a equilibrar-se sobre antino­
o existencialismo. Com efeito, enquanto este úl­ mias insolúveis (que Lukács assinala com ri­
timo limita-se... a esboçar a análise psicológica gor). A sua honradez intelectual impede-lhe uma
e fenomenológica de resoluções e acções indivi­ falsa síntese, mas o resultado objectivo da sua
duais isoladas..., a análise marxista da história moral da ambiguidade é, segundo Lukács, uma
começa por examinar como esse caos de actos ambiguidade moral.
individuais torna-se um processo objectivo, re­ No âmbito do existencialismo francês, a po­
gido por leis cognoscíveis a que denominamos sição de Merleau-Ponty é singular. Para Lukács,
História» 19. Este exame, se não pode abandonar ele «conhece o marxismo bem melhor que os
o papel da subjectividade, também não o pode outros existencialistas e... sofreu-lhe a influên­
assumir como o faz o existencialismo — misti­ cia numa medida considerável. (...) Disto re­
ficada e arbitrariamente. sulta, de um lado, que está em condições de
Enquanto no imediato pós-guerra Sartre po­ colocar seus problemas de uma maneira muito
lemizava abertamente contra o marxismo, Si­ mais concreta e, de outro, que entre a marcha
22 23
do seu pensamento, orientado para a objectivi­ mado da consciência» 26. Afirmando decidida­
dade e a verdade 24, e seus princípios de exis­ mente a modernidade do materialismo leniniano,
tencialista, a divergência é ainda maior do que Lukács passa a ressaltar que é a sua compo­
a que constatamos em S. de Beauvoir» 25. Os nente dialéctica que pode esclarecer adequada­
problemas colocadas por Merleau-Ponty cen­ mente as relações entre fenómeno e lei, apa­
tram-se na relação entre a [responsabilidade mo­ rência e essência, e, sobretudo, a questão do
ral e a responsabilidade histórica. Neste sentido, carácter relativo/absoluto do conhecimento. Por
ele avança bem mais que Sartre e Simone de outro lado, Lukács insiste em que é a concep­
Beauvoir; mas, na medida em que a sua per­ ção da totalidade que permite a Lenine elabo­
cepção do marxismo está viciada por uma lente rar as suas soluções, concepção assente em que
trotskista, os equívocos das suas premissas exis­ «a realidade objectiva é um todo coerente em
tencialistas somam-se aos equívocos de um mar­ que cada elemento está, de urna maneira ou de
xismo estreito. A negação da objectividade da outra, em relação com os outros elementos e...
dimensão temporal, a redução da história a uma que essas relações formam, na própria realidade
mescla arbitrária de racionalidade e casualidade, objectiva, correlações concretas, conjuntos, uni­
a esquematização da dialéctica até vulgarizá-la dades, ligadas entre si de modos completamente
ao nível de simples princípio de interacção— diversos, mas sempre determinados» 27.
tudo isto conduz as soluções de Merleau-Ponty A introdução da categoria da totalidade no
ao mais aberrante ecletismo filosófico. debate não se explica, única e necessariamente,
Havendo submetido as concepções existen­ como uma exigência interna da discussão. Na
cialistas a um atilado crivo analítico, Lukács, verdade, parece-me que ela se compreende me­
no quarto e último capítulo do seu livro, opõe lhor se se parte da hipótese de que, neste capí­
a elas as proposições da metodologia e da gno- tulo, Lukács está mesmo — sem qualquer refe­
siologia leninianas. Como o próprio título do rência a este respeito — a corrigir as concepções
ensaio o indica — «A Teoria Leninista do Co­ epistemológicas que, em 1923, defendeu em His­
nhecimento e os Problemas da Filosofia Mo­ tória e Consciência de Classe. Com efeito, no
derna» —, Lukács procura mostrar a forma mesmo ano em que concluía a redacção de Exis­
como só o marxismo enriquecido gnosiologica- tencialismo ou Marxismo?, numa conferência
mente por Lenine pode iluminar correctamente pronunciada no Congresso de Filósofos Marxis­
os problemas filosóficos contemporâneos. Assi­ tas de Milão, ele afirmava: «A concepção ma­
nalando que a noção de uma via epistemológica terialista dialéctica da totalidade significa, em
alternativa (o «terceiro caminho») entre o ma­ primeiro lugar, a unidade concreta de contradi­
terialismo e o idealismo é, objectivamente, a ções interactuantes; em segundo lugar, a rela­
recusa do materialismo, ele esclarece que, neste tividade sistemática de toda totalidade, tanto
domínio, «o essencial da crítica leninista con­ para cima como para baixo (o que quer dizer
siste em afastar resolutamente todas as espe­ que toda totalidade é constituída por totalida­
culações vazias, para voltar à questão sobre a des subordinadas a ela e também que, ao mesmo
qual deve repousar toda a teoria do conheci­ tempo, ela mesma é sobredeterminada por totali­
mento, a saber: primado da existência ou pri­ dades de maior complexidade... ); e, em terceiro
24 25
lugar, a relatividade histórica de toda totali­ sobre o outro está em jogo» 30. Como se vê,
dade, ou seja, que o carácter-de-totalidade de Lukács não só corrige a discutível epistemolo­
toda totalidade é dinâmico, mutável, sendo gia de História e Consciência de Classe como, o
limitado a um período histórico concreto, de­ que é mais importante, vale-se de Lenine para,
terminado» 26. Lukács alcança, aqui, a exacta superando a sua concepção — decorrente da­
determinação da categoria da totalidade con­ quela epistemologia — de um sujeito/objecto
creta, que, no último estádio do seu trabalho idêntico no processo do conhecimento, afirmar
filosófico, vai fundar a noção da realidade como a sua distinção sem suprimir a sua unidade.
«complexo de complexos» (a expressão é de A noção leniniana da prática sócio-humana como
Hartmann); não se trata já da totalidade como critério de verdade de toda teoria ganha, ou­
imperativo de princípio metodológico ou como tros sim, nova luz: a de um processo gnosioló-
princípio (abstracto) regulador da realidade, gico onde, ao contrário do positivismo, não
mas da totalidade corno a categoria da reali­ existe nenhum abismo entre o sujeito e o
dade. Ela mesma se coloca mediatizada, apreen­ objecto no processo do conhecimento e onde,
dendo-se, pois, somente através de mediações ainda, ao contrário do idealismo hegeliano, o
imanentes (sistemáticas) e transcendentes (his­ sujeito não se confunde com o objecto — tra-
tóricas). ta-se, portanto, da superação dialéctica de am­
A impressão de que estamos diante de uma bas as deformações.
operação que é de natureza autocrítica refor­ Passadas três décadas desde a sua publica­
ça-se mais ainda quando Lukács, prosseguindo ção, Existencialismo ou Marxismo? pode decep­
em sua argumentação sobre a epistemologia de cionar o leitor desprevenido. Na verdade, as
Lenine, coloca em tela a relação entre o sujeito análises particulares de Lukács ressentem-se do
do conhecimento e a acção prática. Lukács anacronismo derivado da posterior e significa­
assume, então, inteiramente a teoria do reflexo tiva evolução dos existencialistas franceses 31,
— teoria que é contraditada pelo arcaboiço teó­ especialmente de Sartre 32.
rico de História e Consciência de Classe —, se­ Entretanto — e descontado o valor teórico e
gundo a qual a consciência humana reproduz, autocrítico do último capítulo do livro —, per­
reflectindo-a, a realidade objectiva; mas assu­ manece em destaque a justeza da crítica lu­
meva fazendo ressaltar a sua nuclearidade dia­ kacsiana no que concerne à questão de -princípio,
léctica, retomando' de Lenine a ideia basilar de ou seja, sobreleva como exacta a incompatibi­
que o reflexo «não é um processo simples e di­ lidade epistemológica (e metodológica) que Lu­
recto, dando a imagem rígida de um espelho, kács — pela primeira vez — fundamentou entre
mas um acto complexo, desigual, movendo-se em o existencialismo e o marxismo. Neste sentido
ziguezague, que contém também a possibilidade (como, aliás, se encarrega de provar até agora
de ver a imaginação destacar-se da vida...» 29. a evolução do próprio Sartre 33), a análise lu­
E, logo a seguir, aduz: «Também Lenine tem o kacsiana mostra-se legítima e consistente. Há a
cuidado de especificar que a antinomia da ma­ ressaltar, finalmente, o seu valor histórico: foi
téria e do pensamento não é absoluta, mas so­ Lukács o primeiro marxista a tratar, com serie­
mente... [opera enquanto o primado de um dade, do pensamento existencialista francês 34.

26 27
II

O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade


Capitalista 35, concluído no fim do Outono de
1938, só foi publicado dez anos depois, na Suiça ;
não é necessário acrescentar que as razões do
atraso da edição se prendem à política cultural
da era estalinista, contra a qual, aliás, em si
mesmo, o livro era um eloquente protesto 36.
Trata-se de uma das obras mais extensas de
Lukács, embora se dirija somente à investiga­
ção da trajectória do jovem Hegel 37. O carácter
modelar desta pesquisa dificilmente poderá ser
exagerado: perfeita na documentação, riquís­
sima na articulação das conexões entre a obra
filosófica e suas influências (activas e passivas)
culturais, inovadora na análise interna dos tex­
tos e criativa nas conclusões. É natural, por­
tanto, que a exposição que se segue — forçosa­
mente esquemática e selectiva — não seja mais
que um resumo pálido e empobrecido do origi­
nalíssimo trabalho lukacsiano.
Em termos amplos, a finalidade da obra era
tríplice: primeiro, esclarecer devidamente o po­
sicionamento de Hegel em relação ao Ilumi-
nismo e à Revolução Francesa; segundo, mos­
trar a falsidade da concepção (patrocinada por
Dilthey nos primeiros anos deste século) de um
29
medular e oculto irracionalismo na emergência diante dos acontecimentos de 1789 e 1793 :
da dialéctica hegeliana — para tanto, era pre­ «desde o primeiro momento opondo-se à ex­
ciso iluminar as relações de Hegel para com a trema esquerda da Revolução Francesa [ele]
religião e para com Schelling; e, enfim, indicar sustentou, entretanto, durante toda a sua vida,
em que grau a nascente filosofia hegeliana a necessidade histórica daquela revolução e con­
apreende e como elabora as realidades e catego­ tinuou a ver nela o fundamento da moderna so­
rias económico-sociais do capitalismo. Resultará ciedade burguesa» 43. Filosoficamente, também o
destas operações histórico-críticas, antes de mais, jovem Hegel parte do Iluminismo alemão: ele
que «o Iluminismo é o ponto de partida do de­ propõe-se aplicar o kantismo da Crítica da Ra­
senvolvimento de Hegel» 38 e que ele «não é zão Prática à sociedade e à história; no entanto,
somente o filósofo que, na Alemanha, tem a mais a sua perspectiva é diversa da de Kant — e aqui
profunda compreensão da essência da Revolu­ reside o núcleo da sua ulterior polémica contra
ção Francesa è do período napoleónico, mas, o mestre de Koenisberg: enquanto este foca
ainda, o único pensador alemão da época que os problemas sociais como problemas de uma
se ocupou seriamente dos problemas da Revo­ moralidade individual, «para Hegel o ponto de
lução Industrial inglesa e o único que, naquele partida e o objecto central da investigação é
tempo, relacionou os problemas da economia sempre a actividade, a prática da sociedade» 44.
clássica inglesa com os problemas filosóficos da O conceito básico de Hegel (proposto no
dialéctica» 89. opúsculo A Positividade da Religião Cristã) é,
Lukács começa por analisar pormenorizada­ neste período, o de positividade. O argumento
mente as concepções hegelianas desenvolvidas em de Lukács dirige-se, directamente, contra a mis­
Berna, entre 1793 e 1796, no chamado «período tificação historiográfica que identifica, aqui, um
republicano» do jovem Hegel. 0 Iluminismo ale­ «escrito teológico juvenil» de Hegel. Além de
mão, cuja grande contradição estava em servir recordar que, dadas as condições da época, a
«ideologicamente, ao mesmo tempo, às finalida­ crítica social germânica se disfarçava sempre
des do absolutismo feudal dos pequenos estados em crítica religiosa 45, Lukács esclarece que «po­
germânicos e aos revolucionários burgueses que sitividade significa... para o jovem Hegel, antes
então se organizavam» 40, é a base ideológica de de mais, a supressão da autonomia moral do
que parte Hegel: nela, ele se situa «cada vez sujeito» 46. Assim, «o objecto da religião posi­
mais na ala esquerda democrática» 41. É rele­ tiva, que é alheio ao sujeito, morto, dado, e, no
vante notar, todavia, que, nesta direcção, Hegel entanto, dominante, dilacera a unidade e a con­
se coloca sempre no interior da tradição filosó­ clusão da vida em que vivia antigamente o
fica alemã: uma tradição que se opunha ao homem, na era da sua liberdade, e converte as
materialismo dos iluministas franceses e ingle­ questões decisivas da vida em problemas trans­
ses — trata-se de uma tradição idealista 42, a que cendentes incognoscíveis e inacessíveis para a
Hegel sempre será fiel. Esse idealismo e o facto razão» 47. De acordo com Lukács, o conceito de
de a esquerda iluminista alemã responder a con­ positividade leva Hegel a uma polémica contra
dicionamentos sociopolíticos muito particulares o cristianismo, a religião positiva por excelên­
farão com que Hegel se situe singularmente cia; esta polémica acarreta uma contraposição

30 31
entre os tempos modernos e a Antiguidade, que tudo pelo facto básico de que começa a ver na
é, «para o jovem Hegel, uma imagem de con­ sociedade burguesa um dado fundamental e já
traste político-utópico com o presente» 48. Em ineliminável, com cuja essência e legalidade
suma: «para o jovem Hegel, a religião positiva objectiva tem então que enfrentarle no pensa­
do cristianismo é um pilar do despotismo e da mento e na prática» 53. Em razão disto, altera-se
opressão, enquanto que as antigas religiões não- totalmente a sua posição diante da religião: ele
-positivas foram as religiões da liberdade e da « nunca esteve sentimentalmente tão próximo do
dignidade humanas. A renovação delas é, se­ cristianismo como nesse período» 54; chega,
gundo as ideias do jovem Hegel, um objectivo mesmo, a um «autêntico misticismo» 55 __ na
revolucionário ante cuja realização está posta a medida em que os principais problemas com
humanidade da sua época» 49. Decorro daí, pois, que agora se ocupa sejam «a contraposição en-
a simpatia de Hegel para com as tentativas de tre vida e objectividade morta e a solução desta
inovação religiosa esboçadas pelos revolucioná­ contradição na vida religiosa» 56, Hegel passa a
rios franceses. ver «efectivamente, na religião, a culminação da
Todas estas concepções do jovem Hegel en­ filosofia» 57 Este misticismo, que, de modo in­
tram em crise em 1797/1800, período em que tegral, será superado posteriormente, não cons­
se radicou em Frankfurt: aí, ele passa a viver titui para Lukács, o essencial do período de
na sociedade burguesa, enquanto que a estadia Frankfurt: o essencial são os primeiros sinais
em Berna possibilitava-lhe observar esta socie­ de que Hegel caminha no sentido do método
dade. A crise que então experimenta encontrará dialéctico.
uma solução provisória no período de Jena; por Neste período, a categoria central do pensa­
agora, ele vive uma «tentativa em busca de algo mento hegeliano e a de vida, que antecipa pre­
novo/uma lenta, mas ininterrupta... pesquisa em cisamente aquilo a que Hegel, em Jena, chamará
todas as direcções — uma verdadeira crise» 50. moralidade: «a concreta totalidade do modo de
Esta fase da sua evolução contrasta claramente comportamento do homem na sociedade bur­
com todas as outras: nela, o seu pensamento guesa» 58. E como «a colocação básica do Hegel
«parte quase sempre de vivências individuais de Frankfurt é exactamente o destino do indiví­
matizadas e leva, estilisticamente, tanto a marca duo na sociedade burguesa» 59, Lukács infere,
da paixão como as da imprecisão e obscuridade documentalmente, que, «filosoficamente, o essen­
da vivência pessoal» 51. cial e a contraposição entre o homem inteiro e
Em Frankfurt, «o que Hegel se pergunta já o homem fragmentado» 60. No contexto desta
não é mais como pode ser destruída esta socie­ colocação, a polémica que Hegel trava com a
dade [burguesa] e substituída por outra radical­ ética kantiana apresenta interesse ímpar: «a con-
mente diferente, mas, ao contrário, como pode traposição entre Kant e Hegel consiste... em que
o indivíduo ter nela uma vida humana, isto é, Kant deixa sem análise os conteúdos sociais da
uma vida que supere a positividade em si, nos moral, aceita-os sem crítica histórica e tenta de­
demais, em suas relações com os homens e com duzir as exigências morais partindo dos crité­
as coisas» 52. E isto porque «a nova etapa do rios morais do conceito de dever, enquanto que,
desenvolvimento de Hegel se caracteriza sobre­ para Hegel, cada exigência moral constitui só

32 33
L. C. F. B. - 2
uma parte, um momento do todo social vivo jectória dos dois pensadores no âmbito da
e em constante movimento. Para Kant, pois, os filosofia idealista objectiva.
diversos mandamentos da moral se erguem iso­ De acordo com Lukács, o idealismo objectivo
lados e justapostos, como se fossem inapeláveis pode apreender a realidade de duas maneiras.
consequências lógicas de um princípio da razão Primeira: «a realidade empírica se concebe como
unitário, supra-histórioo e supra-social; para o produto de um ‘colocar’ que é obra de um sujei­
Hegel, são momentos de um processo dialéctico to filosófico. Mas há que existir uma outra reali­
que, no seu curso, entram em contradição uns dade, ‘não-colocada’, que é a autêntica e inde­
com os outros, se superam reciprocamente pelo pendente da consciência humana» 64 ; esta moda­
jogo vivo destas contradições, se extinguem no lidade é potencialmente místico-reaccionária, e
curso do desenvolvimento social ou então rea­ é dela que derivará a filosofia «positiva» de
parecem em nova forma e com um conteúdo Schelling após 1804. A segunda consiste «em
modificado» 61. converter a substância em sujeito, ou seja: a
É claro que, para Hegel alcançar este nível
filosofia tem que expor o mundo como autopro-
na crítica do sistema ótico de Kant, já se arti­
dução e autoconheoimento do espírito, com o
culavam no seu pensamento novas determina­
que cada realidade objectiva aparece apenas
ções: ele começa a debater-se com a problemá­
como uma forma das várias ‘alienações’ do espí­
tica da contradição e com a relevância do pro­
rito» 65; e esta modalidade a única que pode
cesso de trabalho na constituição do fenómeno
transcender o irracionalismo e o misticismo.
social. Ora, no idealismo subjectivo, tais ques­
Conforme Lukács, «o desenvolvimento de Hegel
tões não podem ser exploradas correcta e in­
vai da versão reaccionária do idealismo objec­

tensivamente; mais ainda: mesmo a versão mais


tivo à sua versão progressista, enquanto Schel­

radical deste idealismo, a de Fichte, não os in­


ling percorre o itinerário inverso» 66.

cluía. Eis porque, no final do seu período em


Esta diferença, contudo, só se tornaria pa­
Frankfurt, Hegel já caminha no sentido da fun­
tente após 1804: no primeiro momento do pe­
dação do idealismo objectivo. Lukács precisa,
ríodo de Hegel em Jena, 1801/1803, ela não
corrigindo toda uma série de erros historiográ-
aparece. Realmente, Hegel chega a Jena no ins­
ficos, que «a primeira formulação hegeliana do
tante em que Schelling rompe com o idealismo
idealismo objectivo não é um (resultado de in­
subjectivo de Fichte. Enquanto os dois estão
fluências de Schelling, mas nasceu organica­
associados na fundação e defesa do idealismo
mente do solo das colocações histórico-sociais
objectivo, na época em que, segundo Marx,
de Hegel» 62. Este ponto é de fundamental im­
Schelling estava imbuído da sua sincera ideia
portância; se o idealismo objectivo resultara da
juvenil (conceber a natureza e a história como
luta filosófica comum de Hegel e Schelling, entre
um processo dialéctico e unitário), a diferença
1801 e 1803, contra o idealismo subjectivo — com­ está implícita e oculta até mesmo na termino­
bate travado através do Kritische Journal der logia que Hegel toma de Schelling e da qual só
Philosophie —, e se Lukács reconhece em Schel­ se libertará entre 1805 e 1806.
ling o «iniciador da revolução filosófica na Ale­ No parecer de Lukács, esta primeira fase do
manha» 63, ele também destaca a diferente tra­ período jenense de Hegel aprofunda e amplia
34 35
as tendências surgidas nos últimos tempos de de alcançar a fonte última real dos problemas
Frankfurt; trata-se do «esforço por fundar em com que se defronta. A sua posição é, na filoso­
contradições e contraposições da vida todas as fia, semelhante à de Ricardo na economia polí­
contradições e contraposições que se apresen­ tica: ambos reconhecem as contradições da so­
tam na filosofia, mostrando sua origem na vida ciedade capitalista e jamais procuram negá-las
social do homem» 67. Por outro lado, ela man­ ou encobri-las. Esta honestidade para com a rea­
tém com vigor redobrado as vacilações de Hegel lidade é bem sublinhada por Lukács: «como
para com a religião 68 e define conclusivamente Hegel mão pode ver anais além do horizonte da
a fidelidade hegeliana ao combate contra o ma­ sociedade burguesa, da sociedade de classes em
terialismo: «a linha básica da filosofia clássica geral, sua profunda honradez de pensador se
alemã é urna luta contra o materialismo filosó­ expressa neste testemunho trágico : reconhece as
fico. [...] Hegel é sempre e conscientemente contradições do progresso no desenvolvimento
idealista, inimigo declarado do materialismo» 69. das sociedades classisitas como contradições in­
Mas o que é mesmo fundamental é que Hegel, superáveis» 75.
então, começa a desenvolver uma série de refle­ Na sua segunda fase em Jena, que vai de
xões que, explicitadas na segunda fase do seu 1803 e 1807, Hegel prepara a Fenomenologia do
período jenense, irão posicioná-lo como o autor Espírito, no tempo que também é o da sua rup­
da «suprema expressão filosófica desta etapa tura com Schelling (que, em 1803, parte para
[1789/1848] do pensamento burguês» 70, facto Wurzburg). Se, em 1801, Schelling se aproxi­
que radica em «que, na sua filosofia, pela pri­ mara muito das posições contidas na incipiente
meira vez, como problema filosófico central, dialéctica hegeliana (com a Exposição do Meu
chegou à consciência o problema da contradito­ Sistema de Filosofia), é com Filosofia e Religião,
riedade da própria existência» 71. Encontram-se de 1804, que ele se volta para as concepções mís­
aí as raízes da grandeza filosófica de Hegel: ticas e reaccionárias com que notabilizará a sua
assimilando as análises da economia capitalista maturidade, e a cujo combate Hegel se dedicará
operadas por Adam Smith (de quem se torna integralmente, a começar com a própria Feno­
partidário), ele inicia o processo de descobri­ menologia do Espirito. A diferenciação do idea­
mento das relações entre o trabalho e a huma­ lísimo objectivo, como nota Lukács, dá-se conco­
nização, entre o trabalho e a teleologia que o mitantemente à constituição da lógica dialéctica.
homem introduz na vida — percepção que, na Filosofia e Religião marca o início da rup­
opinião de Lukács, fá-lo um «precursor do ma­ tura. Nesta obra, o que está em jogo é o conhe­
terialismo histórico» 72; esta inteligência da vida cimento do Absoluto. Ora — de acordo com
social capacita-o ao exercício de urna impiedosa Lukács —, a partir do idealismo objectivo o
crítica da cultura capitalista, sem qualquer ma­ Absoluto põe-se para o sujeito filosófico ou atra­
tiz romântico. Mas, como «não tem um horizonte vés de mediações racionais, que absorvem no
histórico que ultrapasse o do capitalismo» 73 e sujeito as alienações que manifestam a essência
como a sua concepção da história é limitada do Absoluto, ou põe-se imediata e directamente,
pelo «seu desconhecimento da luta de classes através de uma «intuição intelectual», acto mís­
como motor da sociedade» 7 4 , Hegel é incapaz tico de revelação do Espírito. Em Filosofia e

36 37
Religião, Schelling assume decididamente a se­ Além da significação imanente da obra, Lu­
gunda alternativa e evoluirá, através dela, para kács ressalta a sua importância na trajectória
uma teoria aristocrática do conhecimento e para de Hegel: «Com a Fenomenologia termina o pe­
o irracionalismo místico que o tornará o filó­ ríodo de preparação do sistema hegeliano; a
sofo oficial da reacção teológica. Hegel, por seu personalidade histórico-universal de Hegel está
turno, explorará a primeira via, numa polémica já nesta obra, diante de nossos olhos; mas, ape­
aberta com os discípulos de Schelling e com o sar disso, não é correcto identificar, sem reser­
próprio Schelling, na Fenomenologia do Espí­ vas, o Hegel da Fenomenologia e o do desenvol­
rito. vimento posterior» 80. E, malgrado escape a seus
Esta obra, que finaliza o período jenense e a objectivos a análise do velho Hegel, Lukács con­
«juventude» de Hegel, é cuidadosamente anali­ tribui para aniquilar a vulgarizada lenda de uma
sada por Lukács. A fenomenologia «expõe a re­ acomodação venal do filósofo aos poderes da
lação entre a consciência e a realidade» 76 ; Hegel época, notando que o «Hegel posterior se apro­
parte «necessariamente da consciência natural e xima muito mais à concreta realidade histórica
vulgar do indivíduo» 77 para explicitar «a apro­ da Alemanha do seu tempo do que no período
priação das experiências da espécie pelo indi­ em que esperava e desejava uma transformação
víduo» 78, e o seu esquema expositivo —que Lu­ radical do país pela política napoleónica da Liga
kács submete a meticuloso tratamento analí­ Renana» 81. Aliás, Lukács insiste sempre — com
tico — revela que Hegel, dominando as variáveis base na tensão contraditória que Engels cons­
mais significativas ocorrentes na vida social, ela­ tatou entre o sistema e o método de Hegel —
bora o que, definitivamente, é a base do seu sis­ em que a «reconciliação» de Hegel com a «mi­
tema. Já compreendendo (mercê da análise da séria alemã» não expressou nunca nenhum opor­
economia capitalista, via Smith e Ricardo) a na­ tunismo, mas foi ditada pelo próprio condicio­
tureza humanizadora do processo do trabalho, namento histórico-social a que estava submetido
Hegel introduz aí, como sua categoria central,
o conceito de alienação (que supera integral­ o filósofo e, objectivamente, deu-lhe uma pers­
mente a positividade de Berna e a vida de Frank­ pectiva que lhe permitiu desvendar a realidade
furt). É na Fenomenologia do Espírito que a tri­ própria da sociedade burguesa. O adeus às ilu­
pla dimensão da alienação se constrói e afirma: sões juvenis robusteceu a obra de Hegel : capa­
quer como fenómeno altamente generalizado, citou-o a melhor apreender a realidade. Lukács
confundindo-se com a objectividade (ou «coisi- di-lo com clareza: «quanto mais resolutamente
dade»), quer como a complicada relação sujeito/ [Hegel] se afasta dos seus ideais revolucionários
/objecto envolvida em todo o trabalho, com toda juvenis, quanto mais e mais resolutamente se
actividade económico-social dos homens (per­ ‘reconcilia’ com o domínio da sociedade bur­
mitindo apreender a objectividade da socie­ guesa, tanto mais vigorosa e conscientemente
dade), quer ainda na sua forma especificamente aparece nele o pensador dialéctico» 82.
produzida pela sociedade capitalista ( a que Marx É no final da diferenciação do idealismo
denominou «feiticismo»). objectivo da filosofia clássica alemã que Lukács

38 39
detém a sua análise, centrada sobre Hegel, a
quem competiria elevá-la à formulação mais
ampla, profunda e progressista. A outra vertente
do idealismo objectivo, explorada por Schelling
a partir de 1804, será o ponto de arranque de
A Destruição da Razão.

III

Começada durante a Segunda Guerra Mun­


dial, concluída em fins de 1952 e publicada em
1953, A Destruição da Razão 83 é uma volumosa
obra na qual Lukács procura «assinalar o cami­
nho seguido pela Alemanha, no terreno da filo­
sofia, até chegar a Hitler» 84. Pela sua amplitude
— na verdade, o texto expõe a emergência do
irracionalismo moderno, a sua aparição e ex­
pansão até se converter em corrente dominante
da filosofia burguesa do período imperialista —,
esta obra impõe a mesma selectividade e a
mesma esquematização a que fui obrigado na
exposição de O Jovem Hegel: poderei apontar
somente o essencial da análise lukacsiana do
irracionalismo, focado como um aspecto (em­
bona o principal) da filosofia burguesa reaccio­
nária.
Lukács, «concebendo o irracionalismo como
a corrente fundamental e decisiva da filosofìa
reaccionária dos séculos XIX e XX» 85, faz, logo
de início, uma observação que é de visceral im­
portância para a correcta avaliação do seu pro­
jecto crítico. Diz ele : «uma das teses fundamen­
tais deste livro é a de que não há nenhuma
ideologia ‘inocente’» 86. Com estas palavras, ele
quer patentear que, objectivamente, no plano
41
40
dos conflitos que tensionam a dinâmica da vida vulnerabilidade, muito mais intensa que em to­
social, toda construção ideológica se compro­ dos os países da Europa Ocidental, responde
mete independentemente da vontade subjectiva pelo caracter «exemplar» do irracionalismo ale-
do pensador que a elabora, com as forças socio­ mão.
políticas do progresso, do conservantismo ou da O irracionalismo moderno, em suas diferen­
reacção; com elas, Lukács quer explicitar que o tes fases, nasce «como outras tantas respostas
juízo histórico-crítico não pode ponderar a in­ reaccionárias aos problemas colocados pela luta
tenção dos ideólogos, mas sim o papel que as de classes» 88; a sua característica maior «con­
suas ideias de jacto desempenham no desenro­ siste... em que brota sobre a base da produção
lar das lutas sociais; em suma: Lukács exclui capitalista e de sua luta de classes específica
da instância crítica a subjectividade filosofica, primeiro no marco da luta progressista da bur­
para colocar como único objecto da analise a guesia contra o feudalismo... e, mais tarde, nas
sua produção e a sua funcionalidade. condições do seu combate defensivo e reaccio­
Por outro lado, ao escolher a filosofia alemã nário contra o proletariado» 89; resumindo: «o
como campo de pesquisa, Lukács não o faz so- irracionalismo moderno nasce da grande crise
mente movido pelo desejo de contribuir para económico-social, política e ideológica que marca
que a nacionalidade germânica, acertando as a transição do século XVIII ao XIX» 90. Na sua
contas com o seu passado cultural remoto e evolução, são perceptíveis duas fases: a pri­
próximo, possa superar eficazmente a pesada meira compreende o caminho que leva de Schel­
herança nazi-fascista. A sua opção fundamen­ ling a Kierkegaard, «o caminho que conduz da
ta-se no facto de a Alemanha ser o país «clas­ reacção feudal provocada pela Revolução Fran­
sico» do irracionalismo, tal como a Inglaterra cesa à hostilidade burguesa contra a ideia de
foi o país «clássico» do capitalismo; o estudo progresso», e notabiliza-se pela «luta contra o
do seu irracionalismo — à maneira do estudo do conceito idealista, dialéctico-histórico, do pro­
capitalismo inglês por Marx— pode, pois, reve­ gresso» 91; a segunda fase tem por marco 1870
lar as características típicas do irracionalismo precisamente o tempo da afirmação da hege­
como fenómeno universal. Além disso, não é por monia prussiana, da eclosão da Comuna Pari­
acaso que a Alemanha é o terreno mais propi­ siense e da emergência do imperialismo — e nela
cio para o florescimento do irracionalismo mo­ «será a ideologia do proletariado, o materialismo
derno: como Marx e Engels mostraram cabal­ dialéctico e histórico, o alvo de ataque cuja na­
mente, «o destino, a tragédia do povo alemão... tureza essencial determinará o ulterior desenvol­
consiste em ter chegado muito tarde no pro­ vimento do irracionalismo. Este novo período
cesso de desenvolvimento da moderna burgue­ encontra em Nietzsche seu primeiro e mais im­
sia» 87. Assim, o drama alemão da ausência da portante expoente» 92.
unidade nacional, agudizado na segunda metade O facto de Lukács visualizar a evolução do
do século XIX pelo sucedâneo de unificação sob irracionalismo como um todo, de localizar as
o coturno prussiano de Bismark, tornou a cul­ transições que se operam no seu interior, não
tura alemã extremamente vulnerável à fase de deve, porém, conduzir à conclusão de que o irra­
decadência da burguesia, iniciada em 1848. Esta cionalismo, corno corrente filosófica, tenha a sua

42 43
história determinada autonomamente, ou seja: firmes as determinações. A razão é negativa e
que ela resulte do desenvolvimento intrínseco da dialéctica, porque dissolve as determinações do
sua problemática interna. Muito ao contrário: entendimento ; é positiva, porque cria o univer­
reconhecendo uma constante reiteração dos seus sal, e nele compreende o particular» 96. Em Hegel,
traços básicos («o desprezo pela intelecção e entretanto, a passagem do entendimento (qué
pela razão, a glorificação directa e chã da intui­ é sempre uma apreensão abstracta dos fenó­
ção, a teoria aristocrática do conhecimento, a re­ menos, porquanto apreensão das suas singula-
pulsa ao progresso social, a mitomania, etc.» 93), ri d ades específicas) à razão é um processo per­
Lukács assinala que o irracionalismo se desen­ feitamente cognoscível através de operações
volve heteronomicamente— «o conteúdo, a mediadoras, o que permite o acesso à verdade
forma, o método, o tom, etc., de suas reacções essencial do concreto. Esta questão, com efeito,
contra o progresso social, não os determina... é fundamental, e só comporta duas atitudes:’
aquela dialéctica interna e específica do pensa­ aquela que distingue entendimento de razão,
mento ; ao inverso, quem os determina é o adver­ mas compreende na razão a instância que tota­
sário, as condições da luta que são impostas de liza na medida em que ultrapassa os limites
fora à burguesia reaccionária» 94. Portanto, «o postos pela positividade abstracta própria do
irracionalismo... não pode ter uma história coe­ entendimento, ou aquela que identifica, imedia­
rente e única, como se pode constatar no caso tamente, entendimento e razão. A primeira ati­
do materialismo ou da dialéctica» 95. tude caracteriza o pensamento dialéctico ; a se­
A fundamentação do irracionalismo moderno gunda cuja forma inicial é a contraposição
tem lugar, segundo Lukács, entre 1789 e 1848, e rígida entre os dois termos, redundando na in-
deve-se a Schelling, Schopenhauer e Kierkegaard. tangibilidade da razão e, portanto, no extremo,
Em O Jovem Hegel, Lukács mostrou como o reduzindo-a ao entendimento —caracteriza tanto
idealismo objectivo surge, filosoficamente, como o irracionalismo como o racionalismo não-dia-
resultado da polémica que Schelling sustenta léctico (formal). No caso1 do irracionalismo, a
contra Fichte; a posição de Schelling, todavia, consequência é a destruição da razão; no caso
sofre uma inflexão radical com sua partida de do racionalismo não-dialéctieo, a mencionada
Jena: a sua mudança para Wurzburg, afastan­ identificação conduz a um agnosticismo que,
do-o de Hegel e Goethe (por cuja filosofia da na­ desenvolvido, irá articular o que já se denomi­
tureza nutria então grande respeito), evidenciará nou como a miséria da razão 97. Ora, a destrui­
fortemente as tendências místico-irracionalistas ção ^ da razão decorre de que, identificados os
que já existiam, embrionariamente, no seu pen- limites do entendimento — que, basicamente,
samento. Estas tendencias vem a tona quando, não pode dar conta da contraditoriedade do ser
na sua filosofia madura, ele opõe, mecanica­ social, contraditoriedade que surge, para o pen­
mente, no processo do conhecimento, entendi­ samento, em toda a sua crueza, com a Revolu­
mento (Verstand) e razão (Vernunft). ção Francesa— como os limites da racionali­
O racionalismo do idealismo objectivo não dade, a razão se mostra incapaz de apreender a
identificava entendimento e razão. Esclarecia realidade, e, consequentemente, esta é conce­
Hegel: «0 entendimento determina e mantém bida, em si mesma, como oarenciada de qual­

44 45
quer legalidade racional. A destruição da razão que, na verdade, se opõe ao materialismo. Tra­
dá-se, assim, em dois planos : tanto o pensa­ ta-se mesmo da fundação de uma religiosidade
mento racional é desvalorizado como se nega à sem Deus, um ateísmo religioso, «substitutivo
realidade uma estrutura e uma dinâmica racio­ da religião, como uma nova religião — ateísta —
nais. para quem perdeu a fé» 99. O abandono da reli­
É com Schelling que se inicia a destruição gião positiva, por Schopenhauer, é apenas um
da razão. Embora não identifique entendimento dos traços que o distinguem de Schelling: na
com razão, o que ele realmente faz é instaurar trajectória do irracionalismo, a sua filosofia já
entre ambos um antagonismo insuperável, o que, «representa... uma etapa superior e mais desen­
naturalmente, acarreta a inferência da incognos- volvida» 100, e isto porque ela conta «com a base
cibilidade do real. De facto, o real só se toma social para um irracionalismo erigido sobre o
permeável através do que Schelling chama de ser social da burguesia» 101 — com ele, aparece
«intuição intelectual» — que passa a ser o orga­ «pela primeira vez, e não somente na Alemanha,
non do conhecimento. Lukács cita as palavras mas tem plano universal, a variante puramente
do próprio Schelling: «Este saber deve ser um burguesa do irracionalismo» 102.
saber absolutamente livre... ao qual não se É a situação histórico-social que se expressa
chega por nenhuma classe de provas, deduções neste novo condicionamento que responde pela
ou mediações de conceitos em geral; dito de original contribuição de Schopenhauer ao irra­
outra forma e de modo mais genérico: uma in­ cionalismo moderno: a apologia indirecta, que
tuição» 98. O carácter reaccionário de uma tal é a mais alta e sofisticada forma de defesa do
concepção não é óbvio apenas na sua decorrente capitalismo. Lukács ilumina assim este contri­
teoria aristocrática do conhecimento (porque a buto de Schopenhauer: «Enquanto que a apo­
«intuição intelectual» é reservada a poucos, os logia directa se esforça por encobrir e refutar
eleitos), mas sobretudo no misticismo que sofìsticamente as contradições do sistema capi­
funda; se, num primeiro momento, Schelling talista, por fazê-las desaparecer, a apologia in­
considera que a objectivação da intuição se dá directa parte precisamente destas contradições
na esfera estética, a arte (compreendida roman­ e reconhece como um facto a sua existência
ticamente) estatuindo-se como conhecimento pri­ efectiva..., mas procura explicá-las de tal modo
vilegiado do mundo, no seu último período a que resultem, apesar de tudo, favoráveis para
função artística é abertamente substituída pela a existência do capitalismo. Enquanto que o
religião — a Revelação cristã passa a constituir apologista directo trata de apresentar o capita­
a intuição intelectual objectivada. lismo como a melhor das ordens concebíveis,
Com Schopenhauer — que se prende ao idea­ como a culminação definitiva e insuperável da
lismo subjectivo pré-schellingiano— desaparece evolução da humanidade, o apologista indirecto
a defesa da religião. O seu decidido irraciona­ assinala cruamente os lados negativos do capi­
lismo, muito mais consequente que o de Schel­ talismo, suas atrocidades, mas apresentando-os
ling, inaugura um comportamento que fará car­ não como características capitalistas, mas como
reira na ulterior evolução do pensamento reac­ traços inerentes à existência humana em geral,
cionário: postulará um ateísmo de novo tipo, à própria vida» 108. Daí decorre, inclusive, o
46 47
núcleo da filosofia de Schopenhauer, o pessi­ do século XIX. Esta fase, que radicaliza ao
mismo, que não passa da «justificação filosó­ extremo a decadência própria da cultura bur­
fica da carência de sentida de toda actuação guesa posterior a 1848, apresenta algumas ca­
política» 104. racterísticas novas no nível da filosofia. Em
O último passo para a fundamentação do primeiro lugar, desde a dissolução do hegelia­
moderno irracionalismo é dado por Kierkegaard, nismo, a burguesia não pôde mais construir ne­
cuja obra, em que, «pese a todos os seus pontos nhuma filosofia progressista ; as tendências irra­
de contacto com a de Schopenhauer..., distin­ cionalistas já não se confrontam, portanto, com
gue-se dela, historicamente, na medida em que um adversário que se situe no interior de uma
guarda uma íntima relação com o processo de visão burguesa do mundo: agora, o verdadeiro
desintegração do hegelianismo» 105. Esta relação adversário contra o qual o irracionalismo dirige
é visível no comportamento de Kierkegaard as suas baterias é o materialismo histórico e dia­
— pensador cuja integridade moral fazia com léctico. E, em segundo lugar, o nível do con­
que professasse um fundo sentimento (român­ fronto declina progressivamente: os irraciona­
tico) anticapitalista— para com a herança de listas posteriores a 1848 carecem de verdadeira
Hegel: diante dela, a reflexão burguesa ou re­ formação filosófica e tendem a perder os míni­
cusa em bloco a dialéctica, como faz Schopen­ mos escrúpulos científicos na condução dos deba­
hauer, ou se propõe a construção de uma tes; a inadiável necessidade de se contraporem
pseudodialéctica subjetivista. Kierkegaard, que ao materialismo histórico e dialéctico —mais
se debatia com uma problemática ainda pró­ particularmente: ao movimento operário revo­
xima à de Hegel (o que se mota, por exemplo, lucionário — conduz os ideólogos irracionalistas
ma sua obsessão pela conexão relativo x abso­ da fase imperialista a especulações onde se mis­
luto), assume inteiramente a segunda via: ela­ turam «a arbitrariedade, o carácter contraditó­
bora a sua «dialéctica qualitativa», retira da rio, a precariedade dos fundamentos, as argu­
subjectividade concreta a possibilidade de en­ mentações sofísticas, etc.» 107.
contrar sentido na história (que só é dado a O fundador do irracionalismo do período im­
um Deus, espectador inacessível) e postula uma perialista é, segundo Lukács, Nietzsche. Ressal­
ética da intencionalidade, que só pode conduzir tando sempre que se trata de «um pensador
ao solipsismo moral que legitima o niilismo. Na honrado» 108 e reconhecendo liminarmente «seus
evolução do irracionalismo, Kierkegaard ocupa extraordinários dotes pessoais» 109, Lukács atri­
um espaço importantíssimo : sua significação re­ bui a filosofia de Nietzsche o papel social que
side em que explorou tão radicalmente o limbo consiste «em ‘salvar’, em ‘resgatar’... este inte­
de uma falsa dialéctica mística «que, ao chegar lectual burguês [que, sofrendo a decadência,
o momento de sua renovação no período impe­ sente-se atraído pela luta do proletariado], em
rialista, já restava muito pouco a acrescentar indicar-lhe um caminho que torne desnecessário
ao realizado por ele» 106. seu rompimento e até um conflito sério com a
Mas a fundação do moderno irracionalismo burguesia; um caminho através do qual ele
é fenómeno específico da fase imperialista, na possa continuar abrigando, e até acentuando, o
qual o capitalismo ingressa no último quartel agradável sentimento de ser um rebelde, ao

48 49
opor... à revolução social ‘superficial’ e ‘pura­ de uma «verdadeira objectividade», mais «pro­
mente externa’ uma outra revolução ‘mais pro­ funda», sendo o mito «algo subjectivamente
funda’, de ‘carácter cósmico-biológico’. Uma mentado, que se apresenta com a pretensão de
‘revolução’ que, ademais, deixa inteiramente in­ uma objectividade — impossível de fundamen­
tocados os privilégios da burguesia e defende, tarle gnosiologicamente e que só pode basear-se
de modo apaixonado, a situação privilegiada da em alicerces subjectivistas extremos, na intui­
intelectualidade burguesa, imperialista e parasi­ ção, etc., e que não é nem pode deixar de
tária; uma ‘revolução’ dirigida contra as massas ser, portanto, mais que uma pseudo-objectivi-
e que’ dá ao medo que os privilegiados económi­ dade» 114.
cos e culturais têm de perder suas prerrogativas A pseudo-objectividade nietzscheana leva con­
uma expressão patético-agressiva em que se dis­ sigo todos os materiais ideológicos que serviram
farça seu egoísmo e seu pavor» 110. para fundamentar o irracionalismo, de 1789 a
Esta funcionalidade social confere à filosofia 1848; no entanto, inter-relaciona estes materiais
de Nietzsche uma peculiaridade que a torna ver­ —o ateísmo religioso, a glorificação da intuição,
dadeiramente canónica para a cultura da bur­ o aristocratismo epistemologico, a apologia indi­
guesia imperialista : «a característica peculiar de recta — numa configuração diversa: dá-lhes uma
Nietzsche consiste em criar uma ideologia aglu­ nova organicidade, a que é requerida pela cul­
tinadora para todas as tendências decididamente tura burguesa na fase da sua luta vital contra
reaccionárias do período imperialista» 111. Este o socialismo, ao inserir-lhe uma ética de funda­
autêntico ecumenismo da reacção força Nietzs­ mento inédito e ao propor-lhe uma alternativa
che a abandonar qualquer pretensão ao rigor diferente. A ética de Nietzsche, cujo fundo é um
filosófico: o seu pensamento aforismático des­ darwinismo social grotesco, enuncia-se explícita
conhece necessariamente a sistematização— «o e cruamente como moral da dominação: é ética
que serve de centro de unidade... à coesão do exclusiva para classes possuidoras e não se de­
pensamento de Nietzsche é a repulsa pelo socia­ bate, portanto, com os dilemas que atormentam
lismo e a luta pela criação de uma Alemanha o solipsismo moral de Kierkegaard. A solução
imperialista» 112; «o coerente e o sistemático ra­ para a cultura burguesa está no mito dionisíaco :
dicam precisamente no conteúdo social do seu não mais a tentativa de «salvá-la» resguardando
pensamento: radicam no combate ao socia­ o homem «normal», mas convertendo o tipo de­
lismo» 113. cadente no homem do futuro (naturalmente que
A concepção de história que Nietzsche estru­ se trata de um futuro também mitificado: o
tura é totalmente nova: enquanto o seu mestre «eterno retomo» de Nietzsche é, simplesmente,
Schopenhauer (para quem a dialéctica não pas­ «o triunfo do ser sobre o devir» 115). Estes novos
sava de um «delírio») postulava uma a-histori- ingredientes adequam o irracionalismo às exi­
cidade absoluta, Nietzsche sustenta uma histori­ gências agressivas da burguesia imperialista: não
cidade mitificada — ele é o primeira, partindo mais a romântica e aparente recusa do mundo
do agnosticismo, a introduzir a criação de mi­ capitalista, mas a sua assunção belicosa num
tos no cerne mesmo da cultura da decadencia. activismo reaccionário. E, na medida em que,
A ambição da história mitificada é a obtenção assim, «Nietzsche sabe captar e formular em

50 51
suas obras... alguns dos traços permanentes o criador da filosofia da vida do imperialismo
mais importantes da conduta reaccionária du­ — que, Lukács esclarece, só servirá ao fascismo
rante o período imperialista, na época das guer­ a partir de Spengler — ; e o seu fundamento é
ras mundiais e das revoluções» 118, ele ocupa o a «ideia de que a vivência do mundo é a base
lugar fundamental no irracionalismo moderno: última do conhecimento» 121. Como se vê, a in­
não só desbastou o terreno para a filosofia da tuição retoma como organon do saber: «a intui­
vida (Lebensphilosophie) das duas primeiras dé­ ção é a saída que permite (aparentemente) à
cadas do século XX como, no campo da ideolo­ filosofia imperialista dar as costas ao forma­
gia, abriu o caminho para Spengler. lismo da teoria do conhecimento e, com ela, ao
Spengler responde pelo «prelúdio real directo idealismo subjectivo e ao agnosticismo, mas sem
da filosofia do fascismo» 117; após a Primeira sequer tocar nos seus fundamentos» 122. Em
Guerra Mundial, «foi ele quem transformou a Simmel, que enceta um desenvolvimento conse­
filosofia da vida em concepção do mundo da quente das tendências neokantianas, o ateísmo
reacção militante» 118. Depois dele —com o in­ religioso estabelece a sua vinculação com a filo­
termezzo, nos anos logo seguintes a 1923, da sofia da vida.
«estabilidade relativa» que permeia a filosofia Aliás, a referência a Simmel, neste contexto,
de Scheler—, a filosofia imediatamente pré-fas- não é fortuita : a influência da filosofia da vida
cista de Heidegger e Jaspers desembocará na sobre a sociologia, e o papel que esta última
descarada apologia da barbárie que será obra desempenhou na destruição da razão, não são
de Klages, Junger, Boehm, Krieck e, principal­ desprezíveis 123. Lukács indica a génese da socio­
mente, Rosemberg (o ideólogo do III Reich), logia como ciência particular e independente:
sustentada com base nas teses de H. St. Cham­ ela surge com a «dissolução da escola ricardiana
berlain (o fundador do moderno racismo), res­ na Inglaterra, quando se começa a extrair da
taurando o darwinismo social de Gobineau, teoria do valor-trabalho dos clássicos as conse­
Gumplowicz, Ratzenhofer e Woltmann. quências socialistas; [e], de outra parte, [com
Com efeito, «a filosofia da vida é, na Alema­ a] dissolução do socialismo utópico na França...
nha, a ideologia dominante de todo o período Estas duas crises, e sobretudo a superação de
imperialista» 119; a sua influência atingiu todas ambas mediante a emergência do materialismo
as ciências sociais e, fora daquele país, encon­ histórico e da economia política marxista, colo­
trou a mais ampla ressonância (por exemplo: caram um ponto final na economia burguesa,
na França, a obra de Bergson; nos países anglo- concebida classicamente como a ciência fun­
-saxónicos, o pragmatismo). Professando, por damental para o conhecimento da sociedade.
princípio, uma teoria aristocrática do conheci­ E assim surge, num pólo, a economia burguesa
mento, a sua essência «consiste em fazer com vulgar, e, mais tarde, a economia subjectiva...
que o agnosticismo se transforme em misti­ que renuncia de antemão a explicar os fenóme­
cismo, com que o idealismo subjectivo se con­ nos sociais e se propõe como tarefa essencial
verta na pseudo-objectividade do mito» 120. Dil­ retirar do campo da economia o problema de
they, opondo à psicologia explicativa de base mais-valia e, no outro polo, nasce a sociologia
positivista a sua «psicologia compreensiva», é corno ciência do espírito à margem da econo­
52 53
mia» 124 ( Lukács empreende aqui uma pormeno­ tivamente, «um e outro foram..., pelo conteúdo
rizada análise que vai de Toennies a Mannheim, real do seu pensamento, batedores filosóficos do
passando por Weber — que ele considera o típico irracionalismo fascista» 132.
representante da sociologia do período guilher- Depois de esclarecer como o nazi-fascismo
mimo). instrumentalizou o irracionalismo, quer como
Se a expressão «filosofía nacional-socialista» forma de neutralização da resistência intelec­
cabe a um Rosemberg qualquer, a filosofia que tual, quer como meio para implementar a sua
a antecede imediatamente e a prepara deve-se à demagogia social, quer, ainda, na tentativa de
«quarta-feira de cinzas do subjectivismo parasi­ fundar o seu pretenso carácter «revolucionário»,
tário» 125, ou seja: à obra de Heidegger e Jas­ Lukács propõe-se esboçar, no epílogo de A Des­
pers 126. O inventário do existencialismo alemão, truição da Razão, as principais linhas evolutivas
levado às últimas consequências, mostra como,
do irracionalismo no pós-guerra. Indicando rapi­
na obra de ambos os pensadores —entre os damente a emergência de uma epistemologia
quais, diga-se de passagem, Lukács aponta signi­ neomachista, ele assinala que à hegemonia ideo­
ficativas diferenças —, se encontram, levados até lógica dos Estados Unidos da América passa a
ao paroxismo, «o relativismo e o irracionalismo corresponder um método de justificação do ca­
radicalmente individualistas e filisteisticamente pitalismo que restaura a velha apologia directa
aristocráticos» 127. Em Jaspers, Lukács observa (Lukács menciona, então, brevemente, as ideias
que «palpita um ódio verdadeiramente zoológico de Lippmann e Burnham) e faz um ligeiro
contra as massas, um medo pavoroso ante a comentário sobre as teses históricas de Toynbee,
democracia e o socialismo» 128; quanto ao de­ que é, para Lukács, «um simples epígono do epí­
sespero heideggeriano, ele apresenta um dupla gono da filosofia da vida, Spengler» 133.
face: «de um lado, [expressa] o inexorável des­
mascaramento da nulidade interior do indivíduo Não se pode contestar que este epílogo — que
no período de crise do imperialismo; de outro não condiz com a magnitude da obra— é a
— convertendo em fetiches as razões sociais parte mais fraca do livro. E não apenas em fun­
desta nulidade, situando-as fora do tempo e num ção da sua brevidade ou da sua estrutura jor­
plano anti-social—, [vê-se] como o sentimento nalística, como o reconheceu Lukács reiteradas
que [daí] nasce pode facilmente se transformar vezes. A meu ver, o defeito que enfraquece es­
numa actividade reaccionária desesperada» 129. truturalmente o fecho (de A Destruição da Razão
As particulares inferências das teorias dos dois reside em que o seu autor não formula, em ne­
filósofos (cuja estrutura interna Lukács estuda nhum momento —e talvez isto possa ser com­
e que são conducentes à afirmação «da carên­ preensível invocando-se a época da redacção do
cia de sentido de toda actividade no mundo texto—, com clareza, uma hipótese explicativa
real» 130) apontam, claramente, que «se o fas­ para o facto de que não apenas o irracionalismo
cismo pôde educar amplos sectores da intelec­ continuaria a servir à reacção, mas que, por
tualidade alemã numa neutralidade mais que outro lado, já se tornava possível, à burguesia
benevolente, deveu-o, em boa parte, sem dúvi­ imperialista, reutilizar-se do racionalismo formal
das, à filosofia de Heidegger e Jaspers» 131. Objec­ para anemizar as posições teórico-críticas do
54 55
movimento operário revolucionário. Numa pa­
lavra: neste epílogo, Lukács não estabelece ne­
nhuma relação entre a destruição e a miséria
da razão 134. Eis o que compromete, medular­
mente, as páginas finais da grande obra lu­
kacsiana.

IV

Poucas obras foram tão mal tratadas pelos


círculos intelectuais como O Jovem Hegel e
A Destruição da Razão.
A crítica burguesa impugnou-as integral­
mente: um serviçal como Lichtheim expressa
— precisamente pelo seu baixo nível cultural e
moral— o posicionamento da intelectualidade
comprometida com o sistema capitalista. Para
ele, a «tese básica» de O Jovem Hegel (na sua
opinião, a ideia «de que o jovem Hegel jamais
atravessou uma fase religiosa» !) «tem sido poli­
damente ignorada»; quanto a A Destruição da
Razão, «deve ser considerada um malogro» 135.
Este tipo de crítica, evidentemente, não tem ne­
nhum valor, tal como a crítica «oficial» sovié­
tica, que só soube detectar em Lukács «desvios
hegelianos» ou acusá-lo de subestimar o conflito
idealismo x materialismo, subsumindo-o à opo­
sição irracionalismo x racionalismo. Mas estes
trabalhos de Lukács foram alvo de outras con­
siderações que, em princípio, deveriam trazer
novos esclarecimentos à problemática que levan­
tam; digo em princípio porque, como se verá,
elas em nada contribuem para um debate ele­
vado e honesto.
A «escola de Frankfurt» recusou globalmente
57
56
A Destruição da Razão. Segundo Marcuse, a obra em relevo é que, objectivamente, a sua filosofia
«pode fornecer um exemplo da degradação so­ antecipa (até profeticamente) formulações que,
frida pela crítica marxista», no interior do que desarmando a reflexão para opor-se à barbárie,
ele chama de «marxismo soviético» 136. Adorno serão retomadas pela ideologia fascista — com
foi bem mais longe: «A Destruição da Razão veio a qual, de facto, ela não se incompatibilizava
revelar-nos a destruição da razão do próprio imanentemente.
Lukács. Com total desprezo pelo método dia­ A crítica adorniana, todavia, é mais signifi­
léctico, o prestigiado mestre da filosofia dia­ cativa pelo que não explicita — realmente, como
léctica relacionava todas as correntes irraciona­ se viu, os seus termos evidentes não condizem
listas da filosofia recente com a reacção e o com o conceito intelectual em que ternos Adorno .
fascismo, sem atentar, por outro lado, que, nas Ora, esta crítica é, na verdade, uma defesa (uma
referidas correntes, em contraste com o que autodefesa), lamentavelmente episódica, das po­
ocorre no idealismo académico, o pensamento sições da «escola de Frankfurt»: na medida em
se erguia contra a coisificação da existência e que a corrente da qual Adorno foi o expoente
da reflexão, cuja crítica fora precisamente obra indiscutível vale-se da filosofia irracionalista
sua. Para ele, Nietzsche e Freud convertiam-se, (especialmente de Nietzsche) para estabelecer a
sem mais, em nazistas» 137. Como, aqui, a desin­ sua Kulturkritik, na medida em que o próprio
formação é limítrofe do devaneio, vamos por Adorno recorre à herança irracionalista para
partes. Comecemos por um crasso erro que, con­ denunciar o esitilo burguês de vida, a desmisti­
tudo, ilustra bem a atitude mental de Adorno ficação, operada por Lukács, de todo o irracio­
para com Lukács: em A Destruição da Razão, nalismo (mas, especialmente, de Nietzsche),
o nome de Freud aparece quatro vezes, e só é
acaba por vulnerabilizar directamente as con­
citado directamente por Lukács uma vez, quando
emprega uma expressão freudiana a propósito cepções ideológicas e sociológicas de que o autor
de Nietzsche 138; ou seja: Lukács não emite um de Prismas se fez porta-voz de nomeada inter­
único juízo (de facto ou de valor) sobre Freud. nacional. Os apodos adornianos a A Destruição
Em segundo lugar, a questão do «idealismo aca­ da Razão constituam um comportamento pura­
démico»; com esta denominação, Adorno certa­ mente defensivo: a base da fundação do que
mente se refere ao idealismo «oficial» da uni­ Horkheimer chamou de teoria crítica da socie­
versidade alemã; pois bem: em nenhum instante dade é o anticapitalismo romântico e este não
Lukács deixa de levar em conta que esse «idea­ é poupado por Lukács. O casamento de uma
lismo académico» está sempre a reboque das ética de esquerda com uma epistemologia de
tendências culturais mais significativas do pen­ direita —base comum de todo anticapitalismo
samento burguês — logo depois de analisar a romântico e próprio também da «escola de
obra de Nietzsche, ele insiste na marginalidade Frankfurt» — vê-se às voltas com um revolucio-
do autor de Assim Falava Zaratustra com rela­ narismo de direito e com uma adaptação de
ção à cátedra 139. Em terceiro lugar, em nenhum facto à sociedade burguesa: eis porque Lukács
momento de A Destruição da Razão Nietzsche refere-se à «escola de Frankfurt» como promo­
é considerado como «nazista»: o que Lukács põe tora de um academicismo de oposição 140.
58 59
Bem diversa é a crítica que o italiano Giu­ redução como mera «inversão materialista» do
seppe Bedeschi dirige a Lukács 141. O publicista hegelianismo : acompanhando as indicações leni-
peninsular —que recusa in totum a distinção neanas, Lukács reconhece na obra de Marx a
engelsiana entre método e sistema em Hegel, recuperação crítica do que de melhor produziu
distinção que Lukács acata e explora—, infere a cultura ocidental, mas — operação simultânea
da leitura de O Jovem Hegel que a concepção que funda esta criticidade —, ainda, um rompi­
lukacsiana «tende a transferir sic et simpliciter mento com aquela tradição, já que se instaura
a dialéctica hegeliana ao marxismo» 142. Com como revolução filosófica imanente ao ser social
isto, Bedeschi censura duplamente Lukács : de de uma classe convocada à transformação radi­
um lado, imputa-lhe um disfarçado idealismo e, cal do mundo.
de outro, por consequência, atribui-lhe uma con­ A superficialidade de Bedeschi, porém, não
cepção metafísica do marxismo. É realmente pode ser creditada simplesmente a um exame
estranho que Bedeschi se proponha o prosse­ ligeiro da obra de Lukács. Na verdade, a miopia
guimento da sua crítica, pois que esta, liminar­ analítica deste crítico radica na ecléctica pers­
mente, é derrocada por uma passagem lukac­ pectiva teórica de que parte — na qual confluem,
siana que não deixa margem a qualquer dúvida. espantosamente, o neopositivismo de Della Volpe
Trata-se de uma observação fundamental, ex­ e o historicismo abstracto de Alfred Schmidt;
pressa quando, em A Destruição da Razão — que é dela que decorre a sua incompreensão, tanto
Bedeschi comenta no mesmo local em que ana­ de O Jovem Hegel como de A Destruição da Ra­
lisa O Jovem Hegel—, Lukács estuda o flores­ zão. Quanto a este texto, Bedeschi afirma que
cimento do neo-hegelianismo; diz ele: «É uma a análise lukacsiana do irracionalismo moderno
simplificação falseadora da história supor que, é frágil precisamente porque, ao nível filosófico,
de certo modo, bastava inverter os sinais para parte da determinação distintiva entre entendi­
extrair a dialéctica materialista de Marx da dia­ mento e razão; para o autor de Introduzione a
léctica idealista de Hegel. Nada disso: entre Lukács, ao aceitar a distinção dialéctico-hege-
Hegel e Marx medeia um salto qualitativo de liana entre Verstand e Vernunft, Lukács opera,
alcance histórico-universal. Com Marx nasce uma «de facto, a liquidação mesma do princípio do
concepção do imundo qualitativamente nova e materialismo» 144. Aqui, as coisas esclarecem-se:
uma nova dialéctica, distintas de tudo o que as Bedeschi, necessariamente, deve acoimar Lukács
antecedeu. E este tipo de relações entre Hegel de idealista — para ele, na óptica do neopositi­
e Marx acarreta, decorrentemente, que a dialéc­ vismo, de facto entendimento identifica-se com
tica materialista tenha que transformar a fundo razão. Assim, ei-lo a sustentar, tacitamente, a
e reelaborar criticamente, tanto conteudística fundação do marxismo exclusivamente sobre os
quanto formalmente, inclusive aqueles elemen­ resultados das ciências (não é casual que Bedes-
tos progressistas da dialéctica hegeliana em que chi repila a noção de uma dialéctica na natu­
Marx pôde apoiar-se» 143. A este respeito, aliás, reza): a filosofia torna-se secundária e depen­
Lukács recusa quer a concepção estalinista dente da progressiva, mas sempre incompleta e
(zdhanovista) do marxismo como «negação ca­ parcial, manipulação de segmentos do mundo
tegórica das filosofias anteriores», quer a sua pelas ciências experimentais. O marxismo de
60 61
Bodeschi, como o de Althusser, é uma versão realidade do mundo, mas parque, ao mesmo
sofisticada do cientismo e, naturalmente, não tempo, é uma resposta e um projecto culturais
pode tolerar a superação dialéctica da intelecção referidos a concretos problemas da vida social.
abstracta que, no final de contas, é o seu suporte Assim, a filosofia tanto reflecte o mundo como
epistemológico. Na medida em que, em A Des­ propõe ao mundo. Isto significa que, para Lu­
truição da Razão, Lukács lança as bases para a kács, inicialmente, a tarefa crítica não se pode
critica marxista do entendimento (ainda que de reduzir à determinação do «condicionamiento
forma indirecta e incompleta), é óbvio que se social do pensamento», que qualquer relativismo
incompatibiliza com todo o neopositivismo que sociológico do género Mannheim se compraz em
se abriga no pensamento de esquerda, à sombra realizar. Trata-se, antes, de pesquisar como, no
do marxismo ou querendo-se confundir com ele. interior de um espaço cultural limitado pela si­
A listagem dos equívocos críticas articulados tuação de classe do filósofo — situação que não
em tomo de O Jovem Hegel e de A Destruição se confunde com a sua origem, mas que se de­
da Razão poderia alongar-se bastante 145. Seria termina pela sua identificação, consciente ou
supérflua, porém, porque nada indicaria acerca inconsciente, com a perspectiva sócio-histórica
do núcleo do empreendimento teórico-crítico de de uma das classes sociais no confronto que as
Lukács, núcleo que pode ser abordado com ve­ opõe —, a reflexão filosófica toma e organiza ma­
racidade somente num debate cujos parâmetros teriais da realidade objectiva. Sinopticamente:
partam da abordagem da polémica filosófica a Lukács não interessa somente considerar os
lukacsiana como crítica macroscópica da cultura limites sócio-históricos que delineiam a acção
burguesa a partir do ponto de vista do proleta­ do pensamento; interessa-lhe saber como, neste
riado. campo, ele se move.
Esta crítica reside na dúplice abordagem que Consequente e necessariamente, o método
Lukács opera da filosofia burguesa. De uma lukacsiano de análise filosófica é histórico e crí­
parte, a especificidade da filosofia, academica­ tico. Histórico, conquanto procura determinar
mente situada sobre o sustentáculo (que o pen­ concretamente o âmbito em que se pode movi­
samento burguês valida de facto) das barreiras mentar o pensamento; crítico, enquanto busca
tradicionais que compartimentalizam o conheci­ focar imanentemente o modus e a estrutura da­
mento humano, estilhaçando-a em saberes par­ quele movimento. Ao conjugar a análise de um
ticulares, esta especificidade é dissolvida e nada período histórico-social com a crítica particular
mais lhe resta como «ciência das questões últi­ das construções dos seus pensadores, Lukács faz
mas» e quejandos. A óptica lukacsiana coloca a mais: ele funde história e sistema; o esclareci­
especificidade filosófica como consistindo exclu­ mento de uma fase precisa da evolução filo­
sivamente — e este exclusivamente é a sua pró­ sófica resulta de uma dinâmica de dois senti­
pria razão de ser— em elevar a problemática dos— tanto implica a passagem da história à
que lhe é posta pela vida social à máxima ex­ obra filosófica como a passagem desta àquela.
pressão abstracto-universal, distinguindo-se cla­ É neste jogo interactivo que as variáveis com­
ramente das ciências porque não se centra ape­ ponentes externas e internas do complexo his­
nas na manipulação gnosiológica ou prática da tórico-filosófico se explicam e se superam na

62 63
objectivação de problemas que, tornando-se aces­ É com base nestas observações que se pode
síveis à consciência filosófica, se convertem em postular que a análise lukacsiana de filosofia
núcleos e/ou matrizes culturais de um tempo burguesa consiste na operação conducente à crí­
determinado. tica macroscópica da cultura burguesa. A sua
Secundariamente, a concepção da filosofia metodologia, que obriga ao trânsito mundo/filo­
como resposta/projecto induz a que sua inves­ sofia e filosofia/mundo, na apreensão das múl­
tigação obrigue à sua inserção no complexo cul­ tiplas mediações entre os dois termos, funda a
tural mais amplo em cujo solo ela floresce. A sua crítica da filosofia como crítica da vida social.
especificidade, já mencionada, só pode ser efec­ A solução que Lukács tem para garantir a uni­
tivamente precisada no quadro do seu complexo dade de todas estas démarches radica na filo­
cultural, fazendo com que a sua verdade intrín­ sofia da história que as alimenta: está contida
seca se mostre como veracidade de um bloco no explícito partidarismo sobre o qual se apoia.
cultural conectado às objectivações humano- Nisto reside o partidarismo de Lukács: a crí­
-sociais que o compõem, sejam abstractas (como tica da filosofia burguesa faz-se sempre a partir
a ciência), sensíveis (como a arte) ou práticas da perspectiva do socialismo. A objectividade
(como a acção política). analítica de Lukács exclui, de princípio, a neu­
Mas a dupla abordagem lukacsiana tem outra tralidade— todo o seu trabalho se constrói so­
face: concordando com a noção hegeliana de bre a afirmação da necessidade histórica do
que a história da filosofia, a sua evolução, não socialismo e sobre a convicção de que o mar­
é a mecânica justaposição de sistemas ou con­ xismo é a superação do pensamento burguês.
tribuições numa série cronológica ordenada, Lu­ Como se percebe, a crítica lukacsiana fundamen­
kács avança para o enquadramento da evolução ta-se no que Lukács chamou, em 1923, de ponto
filosófica como desenvolvimento dos próprios de vista do proletariado: a sociedade burguesa
problemas sobre os quais se ergue a filosofia e sua evolução esclarecem-se à medida que se
enquanto reflexão. Isto é: na história dos pro­ introduz na análise a sua transcendência, possí­
blemas estudados pela filosofia está também vel pela revolução que compete ao proletariado.
contida a história dos próprios problemas. Isto Ademais, assumir o marxismo como superação
faz com que a história da filosofia se legitime do pensamento burguês, do melhor pensamento
na articulação de uma filosofia da história : por­ burguês, não resulta, em Lukács, de nenhuma
quanto os problemas histórico-sociais só têm opção subjectiva: a verificação da superiori­
solução no curso do seu desenvolvimento, é dade do marxismo não é uma premissa, mas
deriva de um meticuloso estudo no decorrer do
pelas modificações ulteriores que sofrem que
qual Lukács comprova a incapacidade da refle­
se pode extrair a estrutura da sua génese e di­
xão burguesa para elucidar os problemas deci­
nâmica (em termos marxianos: é o presente sivos da sociedade capitalista.
que explica o passado). Portanto, nas mãos de Em Lukács, a intransigente defesa desse
Lukács, a história da filosofia burguesa resol­ ponto de vista do proletariado confunde-se com
ve-se a partir da filosofia da história que a a defesa da cultura humanista: a mais rigorosa
praxis do proletariado instaura. determinação classista da crítica, na medida em
64 65

L. C. F. B. - 3
que o interesse da classe operária é identificado humanidade, em que medida o capitalismo signi­
com o interesse da humanidade como um todo ficou um progresso sociocultural e em que me­
(mais exactamente: como género), conduz a que dida, na sua hora que se pensa derradeira, ele
a avaliação que Lukács opera da filosofìa bur­ produz uma cultura que é simples epifenómeno
guesa, sempre partindo da historicidade con­ de um reaccionarismo descarado.
creta e a ela retornando, procure retotalizar as
suas conquistas com a apropriação das suas
apreensões justes. Nada há aqui que se asseme­ Nada mais estranho ao pensamento marxista
lhe à proudhoniana concepção dos «lados bons» que a indiferença: O Capital não é apenas a crí-
e dos «lados maus» do pensamento burguês: tica da economia política — é uma emocionada
porque Lukács supõe que todo o pensamento defesa da humanitas. O Marx que dissolve o
reflecte, de um modo ou de outro, a realidade, feiticismo da mercadoria, no primeiro capítulo,
a tarefa que se propõe é a de determinar as pos­ é o mesmo Marx que, no capítulo décimo ter­
síveis percepções correctas do pensamento bur­ ceiro, execra, indignado, a odiosa exploração do
guês e incorporá-las ao marxismo. trabalhador; e a cientificidade do seu projecto
É esta incorporação, evidentemente, que cons­ analítico não pode ser divorciada desta coexis­
titui o problema central da sua démarche — pois tência de razão e paixão. É um profundo pathos
é claro que, analisando a filosofia burguesa na que constitui a tensão científica própria do pen­
perspectiva da defesa, da fundamentação teórica samento que se faz teoria social para a liber­
e da construção prática do socialismo, Lukács dade.
está exercitando a máxima de Molière: Je prends A crítica filosófica de Lukács, inspirada nesta
mon bien où je le trouve. Repetidas vezes, Lu­ fonte que é O Capital, trescala aquele pathos.
kács impugnou a assimilação acrítica, ao mar­ A sua entusiástica apreciação dos ideólogos da
xismo, de contributos burgueses; e, repetidas burguesia ascendente e progressista —como o
vezes, indicou o caminho adequado para fazê-lo jovem Hegel—, que procuravam apreender a
com rigor: reelaborar o material passível de ser racionalidade da história, não pode ser isolada
aproveitado à base do ser social do proletariado, do seu desprezo pela ideologia rasteiramente
para o qual o conhecimento verdadeiro da socie­ capitulacionista —como a formulada por Hei­
dade é uma questão de vida ou de morte. degger— da burguesia imperialista frente aos
Neste sentido, Lukács não carecia de mostrar desafios da realidade histórico-social. E ambas
como Marx tratou Smith, Ricardo ou Hegel: a as atitudes se integram no processo do conheci­
sua própria obra é a demonstração exacta do mento cujo tónus é determinado pelo seu pró­
procedimento justo. Ao restaurar, para a teoria prio objecto: as ilusões heróicas de uma classe
marxista, o valor inesgotável da filosofia hege­ que encarnou as mais legítimas aspirações huma­
liana e ao estigmatizar como desprezível o pen­ nas e seu melancólico ocaso quando se converte
samento burguês apologético (directo ou indi­ em anacronismo histórico que se opõe ao pro­
recto), o que ele fez foi, realmente, assinalar o gresso social. A totalidade da cultura burguesa,
quanto o movimento operário revolucionário é cuja quinta-essência está contida na filosofia
herdeiro do passado cultural da burguesia e da alemã do Iluminismo aos dias de Hitler, exerce

66 67
sobre Lukács o fascínio da ambiguidade: da
amorável compreensão com que resgata as gran­
diosas conquistas do seu período ascendente
deriva a recusa amarga dos frutos da sua deca-
dência.
E tanto a descoberta das operações que leva­
ram o jovem Hegel, tratando as categorias eco­
nómicas do capitalismo, a revelar o trabalho
como processo de humanização, quanto a iden­
tificação dos nexos que unem o pensamento de
Nietzsche à agressividade imperialista se posi­
cionam, em Lukács, como resultantes de um 3. APÊNDICE: EXCURSO SOBRE

conhecimento que se quer instrumento da causa A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL

da humanidade.
A chama da razão especulativa, de que talava O exame atento do primeiro volume da vá­
o velho Hegel, não se apaga na reflexão lukac­ rias vezes anunciada Ontologia do Ser Social 146
siana justamente porque esta causa da huma­ revela a proeminência de temáticas directamente
nidade é investida na aposta que a burguesia relacionadas com a crítica lukacsiana da filoso­
renegou em 1848: a de instaurar um sentido fia burguesia. Antes, porém, de abordar tais te­
para a vida, extraindo-o da legalidade da his­ máticas, creio que vale a pena dar algumas indi­
tória. cações sobre esta obra 147.
Desde fins de 1956, propondo-se formular
teoricamente os resultados do seu longo trajecto
filosófico, Lukács entregou-se ao processo a que
denominava «o renascimento do marxismo» 148.
Com esta expressão, referia-se ele a um retomo
a Marx que fundasse o rompimento com a para­
lisia decorrente do estalinismo e, ao mesmo
tempo, a superação do ecletismo revisionista que
pretendia opor-se à esclerose provocada pelo
dogmatismo. Os derradeiros quinze anos de sua
vida, consumiu-os Lukács neste combate em duas
frentes: contra a herança estalinista e contra o
moderno revisionismo.
Resultou desse ambicioso projecto a monu­
mental Estética I (1963). O esforço aí dispen-
dido (e que deveria actualizar-se ainda em mais
duas outras partes, nunca escritas) convergia
também para a elaboração de uma Ética, que

68 69

L. C. F. B. - 4
nunca foi concluída. A razão deste inacabamento real e concreta da existência do ser, a sua estru­
reside em que, a meio de sua empresa, Lukács tura e movimento. O marxismo é posto por Lu­
reconheceu a imperativa necessidade de funda­ kács, nesta perspectiva, como a pesquisa mate­
mentar ontologicamente o seu sistema ma­ rialista e dialéctica da ontologia do ser social 153
duro 149. Esta fundamentação constituía, para o — pressupondo, necessariamente, uma dialéctica
último Lukács, mais do que uma simples exi­ da natureza 154. Para Lukács, aliás, «todos os
gência das suas próprias pesquisas: constituía, enunciados concretos [de Marx]... em última
em si mesma, a base para a restauração do nú­ análise... são enunciados directos sobre um tipo
cleo do pensamento marxiano. de ser— isto é, são puras afirmações ontológi­
Algum tempo antes de sua morte, ele conse­ cas» 155.
guiu concluir a obra que encerrava os elementos O correcto juízo sobre a relevância histórico-
basilares daquela fundamentação: a Ontologia, universal da revolução teórico-filosófica operada
do Ser Social. Mas a forma final do texto não por Marx continua relacionado, conforme o úl­
o satisfez completamente. Não pensava que o timo Lukács, com o papel desempenhado pela
trabalho, com a sua divisão em duas partes (uma reflexão hegeliana. Se, para a ontologia marxista
histórica e outra sistemática), se apresentava do ser social, o processo do trabalho aparece
com uma exposição rigorosa e, sobretudo, con­ (e, com ele, a praxis) no centro da totalidade
siderava ter supervalorizado o papel de Hart­ dinamica que e o próprio ser social, é necessá-
mann na filosofia contemporânea 150. Enfim, a rio recordar que, no pensamento de Hegel, já
sua crítica do neopositivismo pareceu-lhe exigir se localizam os elementos dos quais Marx irá
outros desdobramentos. Assim, dispôs-se a pre­ socorrer-se para fundar uma nova compreensão
parar um novo texto no qual procuraria ultra­ ontológica do fenómeno sócio-humano. Com
passar os dilemas da redacção original. Este efeito, «Hegel (descobriu no trabalho a forma de
novo escrito, no entanto, permaneceu um com­ existencia ontológico-rea da teleologia e, assim,
plicado esboço, de difícil decifração 181. resolveu correctamente uma antiquíssima anti­
Ora, o material contido mesta Ontologia do nomia filosófica, a da rígida contraposição en­
Ser Social é precisamente o que Lukács preten­ tre uma teleologia dirigida à transcendência e
dia refazer: trata-se da parte histórica do tra­ o domínio exclusivo da causalidade na ontolo­
balho, só agora dada a conhecer na sua integri­ gia. Uma verdadeira ontologia do ser social é
dade 152. É prudente, portanto, manejar este impossível sem um justo contraste entre a cau­
texto com um mínimo de cuidados. salidade da natureza e a teleologia do trabalho,
Este não é o lugar, naturalmente, para in­ sem esclarecer as suas concretas inter-relações
tentar a análise crítica deste material. De qual­ dialécticas» 156.
quer forma, interessa-me esclarecer que nele se Estamos, evidentemente, no domínio da crí­
patenteia o que Lukács entendia por ontologia: tica lukacsiana à filosofia burguesa: para o úl­
não um saber com conotações ou matizes meta- timo Lukács, Hegel permanece o melhor produto
-históricos, mas a própria efectividade do modo filosófico da cultura burguesa. E mais: na On­
de ser, produzir e reproduzir-se da realidade. tologia do Ser Social, Lukács mantém para com
Mais exactamente: a ontologia é a modalidade Hegel a mesma relação que está subjacente a
70 71
O Jovem Hegel: sem a compreensão crítica da A crítica da filosofia burguesa contemporâ­
obra hegeliana, os marxistas não poderão levar nea vem confirmada, na Ontologia do Ser Social,
adiante o projecto marxiano. À diferença, po­ de modo inteiramente compatível com os textos
rém, do trabalho publicado em 1948, no qual se anteriores de Lukács. Neste sentido, as passa­
debruçava sobre o pensamento de Hegel até à gens particulares, onde se precisam determina­
Fenomenologia do Espírito, agora Lukács estuda ções críticas voltadas para reflexão filosófica do
as questões ontológicas em toda a obra do filó­ século XX 160, concretizam o essencial de A Des­
sofo, na qual revela a coexistência de uma dupla truição da Razão. A diferença que se pode notar
ontologia: a justa apreensão do automovimento entre as duas obras —flagrante no tom mais
do ser é subsumida no impulso originado pelo sereno e equilibrado da Ontologia do Ser So­
Espírito. , cial— é devida à predominância da análise ima­
Esta duplicidade ontológica, que Lukács ras- nente nesta última; nela, Lukács, pelo próprio
treia no pensamento de Hegel, é simétrica a facto de questionar a raiz ontológica dos pro­
contradição, já reconhecida classicamente, que blemas, detém-se menos ma funcionalidade his-
desfasa método e sistema hegeliamos. A duali­ tórico-social das diversas correntes filosóficas
dade ontológica, em Hegel, deve-se prioritaria­ do que na estruturação interna dos seus dis­
mente a que, na sua reflexão, ocorra um «pre­ cursos.
domínio metodológico dos princípios lógicos» 157. Todavia, o que conecta principalmente as re-
De facto, «com o sujeito/objecto idêntico, che­ flexões contidas nesta derradeira obra de Lukács
gamos ao ponto onde começa a problemática do com as questões referentes à sua crítica da filo­
que chamamos a segunda ontologia de Hegel» 158, sofia burguesa não é tanto o conteúdo das men­
isto é, à falsa ontologia. Aí, ademais, é que cionadas passagens particulares, mas sobretudo
Lukács constata os insolúveis dilemas do hege­ a caracterização macroscópica, extrínseca e in­
lianismo, derivados do «contraste entre a trans­ trínseca, que oferece desta filosofia. É precisa­
cendência teleologica do sistema lógico e a mente aqui que Lukács soluciona o problema
imanência do método dialéctico tomado onto­ que vulnerabiliza — como indiquei no lugar pró­
logicamente» 159. prio — as conclusões de A Destruição da Razão :
Mas, na Ontologia do Ser Social, a tematica aqui são correctamente colocadas as relações
da crítica lukacsiana à filosofia burguesa não entre as manifestações do moderno irraciona­
arranca de Hegel: sem a pretensão e o objec­ lísimo e a racionalidade formal e burocratizada
tivo de historiar a evolução do pensamento filo­ do neopositivismo. Viale dizer: Lukács assinala
sófico, mesmo referenciado apenas à ontologia, como a destruição e a miséria da razão são ne-
da Grécia aos nossos dias, Lukács desenvolve cessariamente complementares 161.
uma análise que cobre os momentos mais im­ Para Lukács, nos últimos setenta anos, o sis-
portantes da reflexão ocidental do Renascimento tema capitalista sofreu importantes mutações,
ao século XX. Com efeito, ele dedica especial uma das mais significativas de entre elas refe­
atenção ao impacto que, na elaboração filosó­ re-se à «submissão completa da indústria dos
fica, o pensamento do Ocidente sofre a partir bens de consumo (e dos chamados serviços) ao
das descobertas de Galileu. capitalismo» 162. Daí a emergência de uma nova

72 73
necessidade para o sistema: «uma progressiva­ tivismo) e a sua destruição (por exemplo, o
mente refinada manipulação do mercado» 163. existencialismo alemão) se colocam como fenó­
A manipulação torna-se, a partir de um impe­ menos paralelos: ambos são respostas teórico-
rativo originalmente económico, a característica -filosóficas distintas mas auto-implicadas en­
fundamental da vida quotidiana. Ou, nas pala­ quanto construídas sobre a base da aceitação
vras do tradutor italiano da Ontologia do Ser acritica da manipulação social. Ambas, estrutu­
Social: «o novo da realidade capitalista con­ radas sobre o fundamento da manipulação, são
siste... no domínio da mais-valia relativa, dimi­ respostas cujo resultado final é solidário: o neo-
nuída a importância da mais-valia absoluta, com positivismo, reduzindo o conhecimento à episte­
a consequente tentativa capitalista de alcançar mologia, considera as questões ontológicas como
o controlo das consciências» 164 — este controlo metafísicas; o existencialismo recolhe estas ques­
configura a manipulação social. tões e produz uma solução ontológica manipula­
Segundo Lukács, a manipulação social, fenó- dora, isto é, também metafísica (enquanto solu­
meno de evidentes tendências totalitarias, invade ção ontológica).
todos os domínios da vida social e envolve a Uma tal solidariedade é identificada parti­
reflexão científica e filosófica. Nestas, por de­ cularmente por Lukács na análise dos represen­
corrência, «a questão da verdade objectiva... é tantes canónicos das duas vertentes filosóficas:
abandonada, como desinteressante; somente im­ «Carnap, descrevendo a manipulação geral do
portam os resultados práticos imediatos» 165. De pensamento e da vida, exprime seu conformismo,
facto, nas condições ideológicas do capitalismo revestido de neutralidade, com esta situação; e
desenvolvido, «a manipulação vem sempre mais embora Heidegger veja a mesma realidade social
resolutamente elevada a método único da filo­ da vida alienada como uma condition humaine
sofia» 166. ontologicamente absoluta e eternamente dada,
É claro, assim, que os critérios decisivos da ele observa esta situação com olhos irraciona-
verificabilidade do conhecimento se deslocam e listas-pessimistas e procura introduzir sobre o
se desnaturam: o índice posto pela praxis ma- plano ontológico a prospectiva, para os indiví­
nipulatória não concerne à verdade do saber, duos singulares, de uma alternativa religiosa
mas à sua eficácia prática imediata. A reflexão (religiosa-ateia), que não afecta os seus funda­
científica e filosófica não se testa mais no con­ mentos» 168.
fronto com o movimento estrutural da realidade, Funcionalmente, pois, o neopositivismo e o
mas legitima-se enquanto instrumento de imple­ moderno irracionalismo constituem uma uni­
mentação e validação dos processos reiterativos dade. Ou, como Lukács escreve: «A solidarie­
e abstractos de reprodução imediata dos meca­ dade antitético-polar... entre neopositivismo e
nismos da quotidianidade. existencialismo se revela, claramente, pela coe­
Ora, «as mesmas condições e tendências so­ xistência ideal —embora antitético-polar—, de
ciais podem muito bem produzir vários pensa­ um lado, da técnica manipulatória, nominalistica
mentos análogos, ainda que seus ideólogos não ao extremo, no conhecimento de todos os gru­
saibam ou não queiram saber nada uns dos ou­ pamentos de fenómenos que seja possível ima­
tros» 167. Eis que a miséria da razão (o neoposi­ ginar objectiváveis... e, de outro, da concepção

74 75
irracionalista de todo o que está fora deste âm­
bito. Em ambos os casos, surge um inimigo capi­
tal: a ontologia concebida racionalmente» 169.
Nos dois casos, o exilio da razão dialéctica
não apenas dispõe como aliados da quotidiani-
dade manipulada e manipuladora o neopositi­
vismo e o moderno irracionalismo. Faz mais:
articula uma frente teórico-filosófica que pre­
tende a impugnação da ontologia do ser social,
que, sob o capitalismo, somente o projecto mar­
xiano tem possibilidades de construir. 170
4. CRONOLOGIA de GEORG LUKÁCS

1885
nasce em Budapeste, a 13 de Abril, filho do director
do Budapest Kreditanstalt, o maior estabelecimento
bancário húngaro da época.
1902
— publica seus primearos textos na imprensa húngara;
freqüenta as reuniões do Círculo dos Estudantes
Socialistas Revolucionários de Budapeste, criado
neste ano por E. Szabó.
1904
— é um dos fundadores do Teatro Thalia que, em Bu­
dapeste, pretende retomar as experiências do Teatro
Livre de Berlim;
— toma-se membro da Sociedade de Ciências Sociais,
criada por G. Pikler e dirigida por O. Jászi.
1906
— doutora-se em Filosofia pela Universidade de Buda­
peste;
— passa a colaborar em duas revistas progressistas
húngaras: Século XX (Huszadik Század) e Ocidente
(Nyugat).
1908
recebe o prémio de literatura da Sociedade Kisfaludy,
pelo seu trabalho sobre a evolução do drama mo­
derno.

76 77
1909/1910 Comissário do Povo para a Cultura e a Educação
Popular;
— segue cursos na Universidade de Berlim, onde é aluno — em Agosto, a República Soviética húngara é massa­
de Simmel; crada pelas tropas de Horthy (5000 pessoas são exe­
— frequenta o Círculo Galileu, em Berlim, cenáculo cutadas, 75 000 são aprisionadas e 100 000 emigram).
liberal-radical fundado em 1908; Após um breve período de clandestinidade, Lukács
— viaja pela Alemanha, Itália e França. exila-se em Viena;
— é condenado à morte pelo regime de Horthy e preso
1910 em Viena; a sua extradição é impedida pela mais
ampla imobilização da intelectualidade alemã;
publica, em húngaro, A Alma e as Formas.
— em finais do ano, é libertado em Viena, tomando-se
um dos articuladores do Partido Comunista Húngaro
1911 no exterior;
publica, em húngaro, A Evolução do Drama Moderno — casa-se com Gertrud Bortstieber;
e, em alemão, A Alma e as Formas (Die Seele und — toma-se o redactor-chefe da revista Comunismo
die Formen). (Kommunismus), órgão da ultra-esquerda da III In­
ternacional;
1913 — publica o ensaio Táctica e Ética.
transfere-se para Heidelberga, onde estabelece rela­ 1920
ções com E. Lask, E. Bloch, H. Rickert e Max Weber.
— dedica-se inteiramente a Comunismo, onde publica,
1914/1915 entre outros, os ensaios A Tarefa Moral do Partido
Comunista, Velha e Nova Moral e A Última Supera­
prepara os materiais de A Teoria do Romance (Die ção do Marxismo. No sexto número da revista, pu­
Theorie des Romans). blica o texto Sobre a Questão do Parlamentarismo,
que, a 12 de Junho, foi severamente criticado por
1916 Lenine;
— como livro, é publicada A Teoria do Romance.
publica, no periódico Zeitschrift fiir Àsthetik und
allgemeine Kunstwissenschaft, A Teoria do Romance. 1921
1917 no Terceiro Congresso da III Internacional, como
delegado do Partido Comunista Húngaro, mantém
— retoma a Budapeste, em finais do ano; seu único encontro com Lenine e Trotski.
— torna-se conferencista da Escola Livre de Humani­
dades, criada por Karl Mannheim e Arnold Hauser; 1922
— publica o ensaio A Relação Sujeito/Objecto na Es­
em Viena, entrevista-se com Thomas Mann, a quem
tética. já admirava desde 1909.
1918 1923
em Dezembro, ingressa no Partido Comunista Hún­ publica História e Consciência de Classe (Geschichte
garo. und Klassenbewusstsein), colectânea de materiais
elaborados entre 1919 e 1922.
1919
1924
— em Março, cai a monarquia dos Habsburgos. A 21 do
mesmo mês, proclama-se a República Soviética da — História e Consciência de Classe é violentamente cri­
Hungria, liderada por Béla Kun. Lukács é designado ticado, de igual modo que Marxismo e Filosofia

78 79
(Marxismus und Philosophie), de Karl Korsch, pu­ — desempenha papel fundamental na orientação da
blicado na mesma época. Em Junho, o V Congresso revista Virada à Esquerda (Die Linkskurve), periódico
da III Internacional, através de Zinoviev e Bukharine, da Federação dos Escritores Proletários Revolucio­
censura a obra. Em Julho, o Pravda soma-se às crí­ nários (Bund proletarisch-revolutionarer Schifsteller),
ticas, que também partem da social-democracia ligada ao Partido Comunista Alemão. A revista tirou
alemã, pela voz de Kautsky. L. Rudas, um dos funda­ 41 números, entre Agosto de 1929 e Dezembro de 1932;
dores do Partido Comunista Húngaro, reprova o — durante o ano de 1932, mantém estreita ligação com
livro, juntamente com M. Deborin, conhecido filósofo o filósofo E. Bloch;
russo; — publica vários ensaios tematizando a questão do rea­
— publica Lenine: A Coerência do seu Pensamento lismo e da «literatura proletária», entre os quais :
(Lenin: Studei uber den Zusammenhanf seiner Ge­ Tendência ou Partidarismo? e Reportagem ou Con­
daken). figuração?; em outro ensaio, Da Necessidade, Uma
Virtude, critica as suas próprias posições expressas
1925 em História e Consciência de Classe.
liga-se a J. Landler, cuja influência viria a ser sen­
sível no Partido Comunista Húngaro, em oposição 1933/1944
a Béla Kun.
— em 1933 regressa a Moscovo e publica o esboço auto­
1926 biográfico Meu Caminho até Marx;
— toma-se membro do Instituto Filosófico da Academia
publica o livro Moses Hess e o Problema da Dialéctica de Ciências da URSS;
Idealista (Moses Hess und die Probleme der idealis­ — exerce intensa actividade intelectual: é membro do
tischen Dialektik). conselho de redacção das revistas Literatura Inter­
nacional (Internationale Literatur), A Nova Voz (Uj
1929 Hang — órgão da emigração húngara) e Crítica Lite­
sob o pseudónimo de Blum, alinha-se na facção par­ rária (Literatourny Kritik), além de colaborar com
tidária de J. Landler, falecido no ano anterior. No o órgão da emigração alemã, A Palavra (Das Wort);
II Congresso do Partido Comunista Húngaro, apre­ — em 1935, redige o verbete «O Romance», para o IX vo­
senta o projecto político que ficaria famoso sob o lume da Enciclopédia Literária;
título de Teses de Blum (Thesen uber die politische — entre 1936/1938, é figura central nos debates que a
und wirtschaftliche Lage in Ungarn und uber die intelectualidade emigrada articula, polemizando com
Aufgaben der Kommunistischen Partei Ungarns). E. Bloch, B. Brecht e A. Seghers, criticando o expres­
O Congresso, dominado pela facção de Béla Kun, sionismo alemão e insistindo na defesa de um rea­
recusa asperamente as proposições de Lukács e este, lismo capaz de assimilar a herança cultural do rea­
ameaçado de expulsão, faz autocrítica. lismo burguês do século XIX;
— faz novas observações autocríticas com relação à
1930/1931 História e Consciência de Classe;
— em 1937, em russo, publica O Romance Histórico;
— em 1930, estagia no Instituto Marx-Engels, de Mos­ — desenvolve uma série de estudos literários e filo­
covo; sóficos que, no pós-guerra, tomarão a forma de
— estabelece duradoura amizade com o filósofo russo livros; desses ensaios, muitos dos que se referem
Mikhail A. Lifschitz. à questão do realismo literário serão editados, depois
do fim da Segunda Guerra, nos volumes intitulados
1931-1933 Problemas do Realismo (Probleme der Realismus) ;
— em 1931, radica-se em Berlim, onde vive semilegal- — em 1941, é preso pela polícia política estalinista, sendo
mente como emigrado húngaro; em tarefas políticas, libertado meses depois, graças aos empenhos de
usa o pseudónimo Keller; Dimitrov.

80 81
1944/1945 de Lukács, secundado por M. Horwath, secretário
do imesmo ministério, empenham-se na campanha
— com a libertação da Hungria, retorna a Budapeste contra Lukács ;
em 1944; — submetido a enorme pressão, Lukács faz autocrítica ;
— desenvolve intensa actividade política: é membro do —publica O Realismo Russo na Literatura Universal
Parlamento, do Conselho Nacional da Frente Popular (Der russische Realismus in der Weltliteratur) e
Patriótica e do Conselho Mundial da Paz ; Thomas Mann (Thomas Mann).
— torna-se professor de Estética e História da Arte
da Universidade de Budapeste; 1950
— participa da direcção da Academia de Ciências da
Hungria. continua submetido a uma sistemática campanha de
descrédito ideológico.
1946
1951
— destaca-se no I Encontro Internacional de Genebra,
polemizando duramente com K. Jaspers; — a campanha contra Lukács atinge o clímax; o su­
— publica, como ensaio, a sua conferência pronunciada cessor de Révai no Ministério da Cultura, J. Darvas,
em Genebra, sob o título As Concepções de Mundo ataca-o asperamente, e Lukács retira-se da vida pú­
Aristocrática e Democrática. blica;
— publica Realistas Alemães do Século XIX (Deutsche
1947 Realisten des XIX Jahrhunderts).
— publica Goethe e a sua Época (Goethe und seine 1952
Zeit) e, em húngaro, Literatura e Democracia;
— em Dezembro, participa do Congresso de Filósofos publica Balzac e o Realismo Francês (Balzac und
Marxistas de Milão, onde pronuncia a conferência der franzõsische Realismus).
As Tarefas da Filosofia Marxista na Nova Democracia.
1953
1948
publica Nova História da Literatura Alemã (Skizze
— participa, em Paris, de um congresso internacional einer Qeschichte der neuren deutschen Literatur)
sobre Hegel; e A Destruição da Razão (Die Zerstõrung der Ver­
— publica O Jovem Hegel (Der Junge Hegel), Ensaios nunft).
sobre o Realismo (Essays über Realismus), Revira­
voltas do Destino (Schicksalswende), Existencialismo 1954
ou Marxismo? (Existentialismus oder Marxismus?)
e Karl Marx e Friedrich Engels como Historiadores publica Contribuições à História da Estética (Beitrage
da Literatura (Karl Marx und Friedrich Engels als zur Geschichte der Ãsthetik).
Literaturhistoriker);
— na Hungria, inicia-se a luta pelo poder entre Rajk 1955
e Rakosi, este representando as concepções políticas
do estalinismo. — recebe em Budapeste o Prémio Kossuth;
— torna-se membro-correspondente da Academia Alemã
1949 de Ciências.

— com a liquidação de Rajk, abre-se na Hungria um 1956


período de obscurantismo;
— Lukács é duramente atacado. Em Julho, L. Rudas — ano de febril agitação na Europa Central e Oriental
reprova as teses de Literatura e Democracia. A seguir, decorrente do xx Congresso dos PCUS;
o ministro da Cultura, J. Révai, antigo admirador — na Hungria, ocorrem amplas mobilizações no sentido

82 83
da liberalização do regime. Lukács rompe, então, com — publica A Significação Presente do Realismo Crítico
o seu silêncio compulsório: faz duas discutidas in­ (Wider den missverstandesen Realismus).
tervenções no Círculo Petöfi — instrumento de in­
quietação sociocultural criado em Março e interdi­ 1961
tado em Junho;
— a 14 de Outubro, em entrevista de repercussão mun­ agora, quem dirige a campanha anti-Lukács é A.
dial, Lukács reclama a liberalização política e exige Wirth, secretário do comité filosófico do Partido
o fim do burocratismo cultural; Comunista Húngaro;
— a 23 de Outubro, sobe ao poder o grupo de Imre 1962
Nagy, que se propõe a liberalização política;
— a 24 de Outubro, Lukács torna-se membro do Comité as Obras Completas de Georg Lukács começam a ser
Central do Partido Comunista Húngaro; publicadas na Alemanha Federal, pela Luchterhand
— a 27 de Outubro, Lukács assume o Ministério da Cul­ Verlag.
tura;
— a 31 de Outubro, juntamente com Nagy, Donath e 1963
Kadar, Lukács constitui o Comité de Organização
de um novo Partido Comunista Húngaro; — em Abril, morre-lhe a esposa;
— com os apelos de Nagy à intervenção da ONU e à — publica a Estética I; A Peculiaridade do Estético
retirada da Hungria do Pacto de Varsóvia, Lukács (Àsthetik, Teil I: Die Eigenart des Àsthetischen) e
afasta-se do Ministério; o ensaio Contribuição ao Debate entre a China e a
— com a defecção de Kadar, aprofunda-se a crise, que URSS;
é coroada com a intervenção das tropas russas ; — atendendo a pedido da revista italiana Nuovi Argu­
— a 4 de Novembro, Lukács refugia-se na embaixada menti, escreve a célebre Carta sobre o Estalinismo.
da Jugoslávia;
— o novo governo, liderado por Kadar, procura inutil­ 1964
mente obter a colaboração de Lukács, que é então — pela Revista Húngara de Filosofia, são feitos a Lukács
deportado para a Roménia; os últimos ataques oficiais;
— Lukács publica o texto de uma conferência que pro­ —publica o ensaio Problemas da Coexistência Cultural.
nunciou a 28 de Junho, A Luta entre Progresso e
Reacção na Cultura do Nosso Tempo. 1966
1957 as suas Obras Completas começam a ser editadas
em espanhol, por Juan Grijalbo Ed., Barcelona/
— em Abril, obtém autorização para regressar a Buda­ /México.
peste ;
— não responde a nenhum processo pela sua partici­ 1967
pação nos acontecimentos que conduziram ao Levan­
tamento de Outubro, mas é pressionado a uma auto­ — é oficialmente reintegrado no Partido Comunista
crítica. Recusa-se. Perde a cátedra universitária, é Húngaro ;
expulso do Partido e inicia-se contra ele outra cam- — autoriza, pela primeira vez, a reedição de História
panha oficial, capitaneada por Shigéti, ministro- e Consciência de Classe, precedida de um longo
adjunto da Cultura; prefácio datado de Março;
— publica Introdução a uma Estética Marxista (Über — são publicadas as entrevistas que concedeu a H. H.
die Besonderheit ais Kategorie der Àsthetik). Holz, W. Abendroth e L. Kofler, sob o título Con­
versando com Lukács (Gesprãche mit Georg Lukács ).
1958
1970
— prossegue a campanha oficial contra Lukács, dirigida
agora por B. Fogarasi, principal teórico do Partido — recebe o Prémio Goethe;
Comunista Húngaro; — publica Solzenitsyn (Solschenizyn).

84 85
1971
— em Janeiro, escreve, para o Time Literary Supple­
ment, uma breve apresentação de seus discípulos
Agnes Heller, G. Markus, M. Vajda e F. Feher, re­
conhecendo a existência de uma «escola de Buda­
peste» ;
— a 4 de Junho, vitimado por um canoro pulmonar,
faleceu.

1974
— em Paris, as Éditions Sociales publicam, pela pri­
meira vez em livro, os ensaios que escreveu entre
1933/1934, em Moscovo, sob o título Escritos de Mos­ 5. NOTAS
covo (Moskauer Schriften).
1 Publicado no Brasil, em 1967, pela ed. Senzala, de
1976
S. Paulo. Em finais da década de sessenta, circulou
em Roma, pela Ed. Riuniti, sai, em primeira edição deste livro uma edição portuguesa, sob o título Exis­
mundial, a parte inicial da Ontologia do Ser Social tencialismo ou Realismo?. Cito a tradução brasileira
(Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins). mas, em alguns pontos, modifiquei os textos, valendo-me
da versão francesa (Existencialisme ou Marxisme?, ed.
Nagel, Pans, 1948).
2 Sobre a questão da decadência, cfr. o meu ensaio
«Sobre o Conceito de Decadência» (Revista Hora & Vez,
ed. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora
Janeiro de 1971) e o meu artigo «Decadência: Um Con­
ceito Marxista» (Seara Nova, Lisboa, Junho de 1977).
3 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 22
4 Idem, p. 15.
5 Idem, p. 21.
6 Idem, p. 31.
7 Idem, p. 34.
8 Idem, pp. 44/45.
9 Idem, p. 57.
10 Idem, p. 62.
11 Idem, p. 81.
12 Idem, p. 93.
13 Idem, p. 157.
14 Idem, p. 165.
15 Idem, p. 97.
16 E com a qual ele pretendeu «completar» o mar­
xismo a que acusa de marginalizar o estudo do indiví­
duo. Nos inícios dos anos sessenta, escrevia ele a Ga-
raudy: «Parece-me... que neste domínio tomamos a
dianteira: ocupamo-nos dos homens e receio que vocês
[os marxistas] os tenham esquecido um pouco». E
ainda: «Parece-me... que o pensamento da existência
enquanto se reconhece como marxista... continua a
86
87
ser... a única investigação marxista ao mesmo tempo 29 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 247.
fundada e concreta» (cfr. Roger Garaudy, Perspectivas 30 Idem, p. 248.
do Homem, ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 31 No prefácio que escreveu, em 1960, para uma
1965, p. 114). E mais, na sua Questão de Método: «O re­
sultado é que [o marxismo contemporâneo] perdeu reedição deste livro, Lukács reconhece este problema.
totalmente o sentido do que é um homem...» (cfr. Crí­ 32 Lukács, entretanto, permaneceu atento à evolução
tica de la Razón Dialéctica, ed. Losada, Buenos Aires, de Sartre. Em 1969, numa entrevista a Leandro Konder,
1970, livro I, p. 72). assinalou que, considerando equivocada a sua posição
17 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 125. filosófica, «respeito-o e admiro-o como personalidade»
18 A imediata reacção dos existencialistas a esta (cfr. Jornal do_ Brasil, Rio de Janeiro, 24/25-08-1969).
acusação lukacsiana foi barulhenta. Mas o tempo correu Este respeito não impede Lukács de criticar com dureza
e, anos depois, o testemunho insuspeito de Simone de a obra recente de Sartre; numa entrevista a Naim
Beauvoir avaliza o comentário de Lukács; ela afirma Kattan, comentou: «[Sartre], como filósofo, fez pro­
que, no imediato pós-guerra, «sem dúvida Sartre estava gressos depois de O Ser e o Nada, aproximando-se
ainda longe de ter compreendido a fecundidade da ideia do marxismo. Entretanto, há nele uma debilidade:
dialéctica e do materialismo marxista» (cfr. Sob o quando a vida o obriga a mudar de ponto de vista, não
Signo da Historia, ed. Difusão Europeia do Livro, se sujeita a modificá-lo radicalmente e procura dar-nos
S. Paulo, 1965, 1.° volume, p. 52). Desta compreensão uma ilusão de continuidade. Na sua Crítica da Razão
limitada, por outro lado, faz menção o próprio Sartre, Dialéctica, aceita Marx, mas quer conciliá-lo com Hei­
no seu belo ensaio «Merleau-Ponty Vivant» (Les Temps degger. A contradição é clara. Há um Sartre número
Modernes, Paris, n.° 184-185, 1961). um no início da página e um Sartre número dois no
19 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 126/127. fim da mesma página. Que confusão de método e de
20 Idem, p. 135. Trata-se das pesquisas que, sob a pensamento!» (cfr. La Quinzaine Littéraire, Paris, 01-
forma de livro, Simone de Beauvoir apresentaria em -12-1968). Na Ontologia do Ser Social, comentada adiante
Por uma Moral da Ambiguidade. num brevíssimo excurso, Lukács dedica umas poucas
21 Idem, p. 149. páginas às últimas posições de Sartre, insistindo sem­
22 Idem, p. 152. pre em que elas «não se libertaram, no plano ontológico,
23 Idem, p. 155. dos preconceitos do neopositivismo e do existencialis­
24 Acerca da grandeza moral e da seriedade científica mo» (p. 81 da edição que será referida mais adiante).
de Merleau-Ponty, Lukács não tem nenhuma dúvida, e Na década de sessenta, como se sabe, vários mar­
ressaltadas repetidas vezes. Sobre a pureza humana de xistas debruçaram-se sobre a obra de Sartre (Roger
Merleau-Ponty, o emocionado depoimento de Sartre, já Garaudy, Adam Schaff et allii). Uma crítica inclusiva
mencionado na nota 18, constitui um belo testemunho. e compreensiva do pensamento sartreano, encontrará
25 Existencialismo ou Marxismo?, ed. cit., p. 164/165. o leitor no ensaio de Carlos Nelson Coutinho, intitulado
26 Idem, p. 213. «A Trajectória de Sartre» (in Literatura e Humanismo,
27 Idem, p. 240. ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1967).
28 Apud I. Mészáros, «El Concepto de Dialéctica en 83 Cfr. as observações de Carlos Nelson Coutinho
Lukács», in G. H. R. Parkinson, org., Georg Lukács: El em «As Ambiguidades do Ültimo Sartre» (Revista Hora,
Hombre, Su Obra, Sus Ideas (ed. Grijalbo, Barcelona/ ed. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora,
/México, p. 79/80). É interessante comparar a rica con­ Dezembro de 1971).
cepção lukacsiana da totalidade (onde os fenómenos da 34 Recordemo-nos de que a cruzada «marxista» con­
determinação e da sobredeterminação aparecem cor­ tra Sartre chegara a um ponto tal que, em 1946, Henri
rectamente situados) com o seu pendant, empobrecido Lefebvre (então membro do Partido Comunista Fran­
e esquemático, de Louis Althusser (cfr. especialmente, cês), no seu livro L’Existencialisme, escreveu que o
deste autor, a quinta secção de «Sobre a Dialética Ma­ autor de O Ser e o Nada era um literato que fazia «la
terialista», in Análise Crítica da Teoria Marxista, ed. métaphysique de la merde» (apud Leandro Konder,
Zahar, Rio de Janeiro, 1967. Esta obra é a tradução Os Marxistas e a Arte, ed. Civilização Brasileira, Rio
do original francês Pour Marx). de Janeiro, 1967, p. 159).

88 89
35 Para as citações desta obra, que, como se sabe, 58 A definição é de Lukács; cfr. El Joven Hegel, ed.
foi dedicada a Mikhail A. Lifschitz, vali-me da versão cit., p. 136.
castelhana El Joven Hegel y los Problemas de la So­ 59 El Joven Hegel, ed. cit., p. 212.
ciedad Capitalista (ed. Grijalbo, México, 1963). 60 Idem, p. 165. Reenvio o leitor à observação que
36 Sabe-se que, durante e imediatamente após a Se­ fiz na nota 48.
gunda Guerra Mundial, a cultural «oficial» soviética 81 Idem, pp. 168/169.
tendeu a tratar Hegel como um «funcionário da mo­ 62 Idem, p. 226.
narquia prussiana». 83 Idem, p. 262.
37 Neste livro, Lukács interessa-se pela obra de 61 Idem, p. 227.
Hegel até à publicação da Fenomenologia do Espírito 85 Idem, ibidem.
(1807). A posterior evolução de Hegel, a sua passagem 66 Idem, p. 228.
por Bamberg, a sua fixação em Nuremberga e a sua 67 Idem, p. 267.
transferência para Berlim não caem sob o foco da 68 Durante toda a sua vida, Hegel manterá para com
análise lukacsiana. a religião atitudes dúbias. E só no final da sua evolução
38 El Joven Hegel..., ed. cit., p. 35.
39 Idem, p. 29.
é que inverterá a posição de Frankfurt : no seu período
40 Idem, p. 35.
berlinés, a religião virá a ser resolvida na filosofia.
41 Idem, p. 37.
Esta questão cai fora do âmbito do estudo de Lukács.
69 El Jovem Hegel..., ed. cit., p. 269.
42 É em relação a esta tradição que Marx afirmava :
70 Idem, p. 392.
«Nós [os alemães] somos os contemporâneos filosóficos 71 Idem, p. 393.
do presente, sem ser seus contemporâneos históricos. 72 Idem, p. 348.
A filosofia alemã é o prolongamento ideal da história 73 Idem, p. 331.
alemã» (cfr. Contribution à la Critique de la Philosophie 74 Idem, p. 354.
du Droit de Hegel, ed. Aubier/Montaigne, Paris, 1971, 75 Idem, p. 411.
p, 71). 76 Idem, p. 459.
43 El Joven Hegel..., ed. cit., p. 43.
77 Idem, p. 456.
44 Idem, p. 39.
78 Idem, ibidem.
45 Também este facto foi indicado por Marx, espe­ 79 Idem, p. 437.
cialmente em A Ideologia Alemã, mas as suas implica­ 80 Idem, ibidem.
ções já estão contidas na Contribuição à Crítica da Filo­ 81 Idem, p. 449.
sofia do Direito de Hegel. 82 Idem, p. 243. Apesar de uma formulação tão cris­
46 El Joven Hegel..., ed. cit., p. 49.
47 Idem, pp. 53/54. talina e meridiana, lê-se num laureado catedrático bra­
48 Idem, p. 70. Encontra-se aqui uma clara homolo­ sileiro : «Lukács, rastejando na esteira ideológica, repete
a legenda marxista de que a especulação de Hegel cum­
gia entre o utopismo do jovem Hegel e o do jovem pria seus deveres para com o Estado prussiano» (Djacir
Lukács, expresso em A Teoria do Romance. Sobre esta Meneses, «Introdução» a Textos Dialéticos de Hegel,
questão, cfr. o meu ensaio «A Teoria do Romance do ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1969, p. 24). Como teremos
Jovem Lukács» (Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, oportunidade de ver mais adiante, esse lamentável des­
Dezembro de 1976). preparo intelectual, onde a ignorância nem sempre está
49 Idem, p. 49.
50 Idem, p. 121.
isenta de má fé, no trato com Lukács, não é exclusivo
51 Idem, p. 117.
apanágio de «autoridades» universitárias brasileiras.
83 As minhas citações serão retiradas da versão es­
52 Idem, p. 130.
53 Idem, p. 118. panhola El Asalta a la Razón (ed. Grijalbo, Barcelona/
54 Idem, p. 193. /México, 1968).
55 Idem, p. 225. 84 El Asalto ..., ed. cit., p. 4.
56 Idem, p. 221. 85 Idem, p. 10.
57 Idem, p. 199. 86 Idem, p. 4.

90 91
87 Idem, p. 29. Lukács retoma aqui as interpretações 121 Idem, p. 337.

que os fundadores do materialismo histórico desenvol­ 122 Idem, pp. 345/346.

veram sobre a evolução histórica da Alemanha, especial­ 123 Sobre a relação de Lukács com a sociologia, cfr.

mente em Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito


de Hegel, A Questão Judaica, A Ideologia Alemã e o meu ensaio «Lukács e a Sociologia» (Revista Con­
Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. texto, S. Paulo, Novembro de 1976).
88 Idem, p. 8. 124 El Asalto..., ed. cit., p. 471.
89 Idem, p. 84. 125 Idem, p. 397.
90 Idem, p. 103. 126 A decidida inserção de Heidegger no âmbito da
91 Idem, p. 6.
ideologia pré-fascista custou a Lukács as mais diversas
92 Idem, ibidem.
(e duras) críticas. Dentre as mais singulares e elípticas
93 Idem, p. 9.
está a de Goldmann: na sua Introduction a Lukács et a
94 Idem, p. 8.
Heidegger (incluída no volume póstumo Lukács et Hei­
95 Idem, p. 83.
degger, ed. Denoel/Gonthier, Paris, 1973), ele argumenta
96 É o que se lê no prefácio à primeira edição da que Heidegger está para Hitler assim como Lukács está
Wissenschaft der Logik (cfr. edição castelhana, Ciência para Estaline (cfr. esp. pp. 77 e ss.). A analogia é tão
de la Lógica, ed. Solar/Hachette, Buenos Aires, 1968, sedutora quanto falsa. Em primeiro lugar, porque é
p. 29). — histórica, intelectual e moralmente — bem diversa a
97 Lukács, explicitamente, jamais tematizará a cate­ posição de se alinhar com Hitler ou Estaline. Em se­
goria da miséria da razão. Mas o seu discípulo Carlos gundo lugar, porque o conteúdo das formulações lukac­
Nelson Coutinho, partindo de indicações contidas nas sianas opunha-se, de facto, a ideologia estalinista; a
últimas obras do pensador húngaro, formulará com filosofia de Heidegger foi, no auge do nazismo, recusada
rigor o conceito desta razão miserável e empobrecida por Hitler tão somente por não ser imediatamente ins-
(cfr. O Estruturalismo- e a Miséria da Razão, ed. Paz trumentalizável. Em terceiro lugar, mesmo as citações
e Terra, Rio de Janeiro, 1973). «protocolares» dos dois pensadores são bem distintas:
98 El Joven Hegel..., ed. cit., p. 117.
enquanto Lukács se adapta à necessidade de mencionar
99 Idem, p. 175. Estaline naquilo que é comum ao marxismo como um
100 Idem, p. 158.
todo, Heidegger — de quem não conheço propriamente
101 Idem, p. 161.
citações de Hitler—foi infinitamente mais longe, como
102 Idem, p. 158.
se pode ver na seguinte conclamação que dirigiu aos
103 Idem, p. 167.

seus alunos: «Que nem teoremas nem ideias sejam


104 Idem, p. 168.

regras para a vossa vida. O Führer e somente Ele é


105 Idem, p. 203.
a realidade alemã e a lei de hoje e de amanhã» (apud
106 Idem, p. 208.
G. Rusconi, Teoría Crítica de la Sociedad, ed. Martínez
107 Idem, p. 7.
Roca, Barcelona, 1969, p. 290).
108 Idem, p. 283.

Na Ontologia do Ser Social, Lukács, como veremos


109 Idem, p. 253.

adiante, retoma a Heidegger, insistindo em que a sua


110 Idem, pp. 255/256.

111 Idem, p. 295.

filosofia serve, objectivamente, à manipulação social.


127 El Asalto..., ed. cit., p. 425.

112 Idem, p. 262.

128 Idem, p. 424.

113 Idem, p. 322.

129 Idem, p. 410.

114 Idem, p. 313.

115 Idem, p. 316.


130 Idem, p. 425.

116 Idem, p. 257.


131 Idem, ibidem.

117 Idem, p. 373.


132 Idem, p. 426.

118 Idem, p. 385.


133 Idem, p. 656.

119 Idem, p. 324.


134 Já indiquei, na nota 97, que esta temática é explo­
120 Idem, p. 333.

rada por Carlos Nelson Coutinho.

92 93
135 Cfr. As Ideias de Lukács, ed. Cultrix, S. Paulo, de A. Scarponi sobre o original aos cuidados de F. Brody
1973, cap. VII. Pela natureza dos seus comentários, e G. Révai). Deste primeiro volume, já haviam sido
pode-se duvidar que Liohtheim tenha lido qualquer das publicados, separadamente e em alemão, os capítulos
duas obras. A Falsa e a Verdadeira Ontologia em Hegel (1971) e
136 Cfr. Le Marxisme Soviétique, ed. Gallimard, Paris, Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx (1972).
1968, p. 172. Como é frequente nos juízos de valor de 147 Para maiores detalhes, cfr. o artigo de Istvan
Marcuse, não se segue a esta afirmação—formulada Eorsi, «The Story of a posthumous work (Lukács Onto­
numa simples nota de rodapé — nenhum desenvolvi­ logy» (The New Hungarian Quarterly, XVI, n.° 58,
mento probatório. summer/1975).
137 Cfr. «Lukács y el Equívoco del Realismo», in Vv. 148 Com este espírito, aliás, Lukács apoiou o apareci­
Aa., Polémica sobre Realismo, ed. Tiempo Contempo­ mento da chamada «escola de Budapeste». Sobre esta,
ráneo, Buenos Aires, 1972, p. 43. Mais adiante, Adorno cfr. o material contido em Les Temps Modernes (n.° 337/
acusa Lukács de se valer, em A Destruição da Razão, de /338, 1974); seja-me permitido destacar aqui o carácter
um «jargão digno de um bedel do período guilher- apologético deste material.
mino». Caberia indagar se, neste ensaio, a linguagem 149 Esta necessidade é evidente na Estética I, onde
adorniana não é, por seu turno, um jargão digno de um a categoria da praxis, distanciada do pensamento lu­
burocrata universitário da social-democracia da Ale­ kacsiano desde 1923, aparece retomada e enriquecida.
manha Federal. Também nas suas entrevistas com Holz, Abendroth e
138 O nome de Freud, na edição de A Destruição da
Kofler, na segunda metade dos anos sessenta, Lukács
Razão de que me valho, aparece a páginas 190, 254 tematiza amplamente o problema (cfr. Conversando
(onde Lukács lhe toma a expressão «mal-estar da cul­ com Lukács, ed. cit.).
tura»), 517 e 535. 150 De facto, ele dedica a Hartmann o capítulo «O Im­
139 Cfr. a primeira parte do capítulo IV de A Des­
pulso de N. Hartmann em Direcção a uma Verdadeira
truição da Razão. Com maior clareza, Lukács fala, em Ontologia». Aí, Lukács acredita que «Hartmann rompe
Existencialismo ou Marxismo?, caracterizando o pensa­ resolutamente com a impostação unilateralmente gno-
mento burguês pós-1848, com desprezo, de «filosofía siológica do neokantismo. Seu pensamento nunca
professoral».
140 A expressão aparece em Conversando com Lukács
sofreu o influxo do positivismo e do neopositivismo»
(cfr. Ontologia..., ed. cit., p. 113). Embora criticando
(ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1969, p. 99). A crítica a ontologia hartmanniana, Lukács credita-lhe o mérito
que os pensadores influenciados por Lukács fazem às de, no seu tempo e solitariamente, haver tentado solu­
concepções de Adorno e seus seguidores é constante; ções filosóficas descomprometidas com as correntes
Wolfgang Abeodroth, por exemplo, chega a citar «o ideológicas da manipulação social.
pessimismo e a educação para a passividade produzi­ 151 As páginas deste texto, que Lukács não chegou
dos pela escola de Frankfurt» (cfr. Conversando com
Lukács, ed. cit., p. 92). Uma réplica inspirada em Lukács a ver dactilografadas, levam o título de Prolegômenos à
às críticas adornianas encontra-se em Leo Kofler, Zur Ontologia do Ser Social.
152 Da segunda parte, já se conhece o primeiro capí­
Theorie der modernen Literatur/Avantgardismus in
Soziologischer Sicht (Newied/Berlim, 1962). tulo, intitulado O Trabalho, publicado em alemão (1973).
141 No seu opúsculo Introducción a Lukács, ed. Tanto este capítulo, como os citados na nota 146, foram
Siglo XXI, Buenos Aires, 1974. editados pela Luchterhand Verlag. Há versão inglesa de
142 Op. cit., p. 71. O Trabalho, sob o título «Labour as a Model of Social
143 El Asalto ..., p. 441. Practice» (The New Hungarian Quaterly, XVIII, n.° 47,
144 Bedeschi, op. cit., p. 76. 1972).
145 Deveriam ser mencionadas aqui, entre outras, as 153 Daí a recusa em identificar o projecto marxiano
intervenções de H. A. Hodges, P. Rossi. N. Merker como um historicismo de novo tipo (como o próprio
e G. Stedmann Jones. Lukács o fizera em 1923) ou como uma epistemologia.
146 Ontologia dell'Essere Sociale I, ed. Riuniti, Roma, 154 Lukács escreve: «a viragem materialista na onto­

1976 (trata-se da primeira edição mundial, em tradução logia do ser social, provocada pela descoberta da prio­

94 95
ridade ontológica da economia no seu âmbito, pres­ de língua portuguesa são acessíveis os seguintes livros
supõe uma ontologia materialista da natureza» (Onto­ de Lukács: Teoria do Romance, Lisboa, sem data; Exis­
logia..., ed. cit., p, 268). tencialismo ou Marxismo?, S. Paulo, 1967; Introdução
155 Ontologia ..., ed. cit., p. 261. a uma Estética Marxista, Rio de Janeiro, 1968; Rea­
156 Idem, pp. 207/208.
lismo Critico Hoje (versão brasileira de O Significado
157 Idem, p. 215.
Presente do Realismo Crítico), Brasília, 1969 e Conver­
158 Idem, p. 187. sando com Lukács, Rio de Janeiro, 1969. Estão tradu­
159 Idem, p. 213. zidos, ainda, vários ensaios de Lukács nas seguintes
160 Cfr., na Ontologia..., as brilhantes observações antologias ou colectâneas: Ensaios sobre Literatura,
acerca do relacionamento ambíguo da ciência com a Rio de Janeiro, 1965; O Escritor e o Crítico, Lisboa, 1968;
religião (no quadro do «compromisso belarminiano»), Marxismo e Teoria da Literatura, Rio de Janeiro, 1968;
as notações sobre Wittgenstein e Carnap, a reproblema- Sobre a Consciência de Classe, Porto, 1973.
tização de Heidegger, a breve consideração da última
obra de Sartre, etc.
161 Insisto em que Lukács jamais utilizou, explicita­
mente, a categoria de miséria da razão. A sua tema­
tização específica deve-se a Carlos Nelson Coutinho,
que afirma: «Por miséria da razão queremos significar
o radical empobrecimento agnóstico das categorias
racionais, reduzidas a simples regras formais intelec­
tivas que operam na praxis manipuladora» (cfr. Estruc­
turalismo y Miséria de la Razon, ed. Era, México, 1973,
p. 13).
162 Ontologia..., ed. cit., p. 25.
163 Idem, ibidem.
164 Cfr. o prefácio de A. Scarponi, Ontologia..., ed.
cit., pp. VIII/IX.
165 Ontologia ..., ed. cit., p. 35.
166 Idem, p. 37. Vale a pena observar que Lukács
assinala a generalização dos modelos manipulatórios.
O período estalinista é, para ele, em si mesmo, a era
da manipulação par excellence do socialismo. Não é
casual que Lukács julgue o estalinismo como «irrupção
do neopositivismo no marxismo» (cfr. Conversazioni
con Lukács, Bari, 1968, p. 189).
167 Ontologia ed. cit., p. 61.

168 Idem, p. 65.

169 Idem, p. 85.

170 Este roteiro cronológico não é exaustivo; procura

apenas fornecer ao leitor uma referência organizada


da actividade de Lukács. Além da listagem dos livros,
relacionei alguns dos ensaios mais importantes de
Lukács não recolhidos em volume. Quanto à tradução
dos títulos, levei sempre em conta a sua versão adop­
tada em edições em línguas neolatinas. Finalmente,
cabe esclarecer que—além da excepcional edição das
Obras Completas de Georg Lukács, ainda em lança­
mento pela ed. Grijalbo, Barcelona/México — ao leitor

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Acabou de se imprimir: em 20 de Fevereiro de 1978
Título: Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa
Editor: Empresa de Publicidade Seara Nova, S. A. R. L.
Autor: J. Paulo Netto
Oficinas: E. P. N. C: — Oficinas gráficas
Tiragem: 3200 ex.

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