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Mais uma vez, estou aqui, escrevendo relatos de casos que solucionei... ou não.
Dessa vez, registro não propriamente um caso meu, mas um evento passado á muitos
anos, nos tempos em que os negros eram escravos e o Brasil vivia sob o governo de D.
Pedro I.
Um dia, enquanto investigava um caso de casa mal assombrada no interior da
Bahia, tive conhecimento de uma história de vingança sobrenatural. Fui à biblioteca
local ler alguns livros e, quando saí, encontrei à porta do local, um senhor muito velho,
de rosto enrugado e cãs abundantes. Tinha um chapéu de palha caído sobre os olhos e
era um perfeito modelo dos povos africanos, com pele muito escura, lábios polpudos e
rubros e dentes alvos que chegavam a brilhar.
- Boa noite, “seu” frade! – cumprimentou-me, tirando o chapéu.
- Boa noite, amigo!
- Antes de tudo, queria que o senhor me desse sua benção.
Eu atendi ao pedido dele e acompanhei-o à sua casa: uma choupana feita de
varas e coberta de barro em um sítio próximo. Dentro do casebre, ele ofereceu-me uma
cadeira pesada e acendeu um cachimbo, sentou-se em uma esteira e começou:
- Trouxe o senhor aqui pra contar uma história que sei que vai te interessar. Sei
que o senhor veio aqui para “mor” de solucionar um caso de “malassombro”. Esse caso
que eu tenho pra contar é verdade verdadeira e gostaria que o senhor ouvisse.
Assenti com a cabeça. Como havia uma garrafa de café em uma mesinha
próxima, servi-me e escutei (uma curiosidade é que ele me chamava ora de monge, ora
de padre):
- Há muito tempo... – começou o preto velho, que era devoto de São Jorge,
rezador e chamava-se João de Deus – Quando “Dão” Pedro I governava o Brasil e os
escravos enchiam as senzalas dos senhores de café, existiu um escravo de nome
Custódio. Certo dia, seu patrão ordenou que ele matasse um grande porco pra uma festa.
Custódio embatucou. É que nós, os negros, sabemos mais que vocês brancos e ele sabia
que num se deve matar um porco, pois ele volta em “isprito” pra assombrar seu
matador. Mas, como ordem é ordem e negro era só propriedade de branco, ele matou o
porco. O pior de tudo é que esse porco era de estima da filha do fazendeiro, da doce
Alice. Era um porco preto e gordo, muito grande. Quando ela “sube” do acontecido,
ficou desesperada e até deixou de falar com o pai. Mas, o pior “tava” por vir...
- Depois da morte do animal, Custódio mudou. Vivia assombrado, de olho
esbugalhado, falando sozinho, nem queria mais trabalhar. O patrão mandou castiga-lo
muitas vezes, mas não adiantou. Botou ele no tronco, deixou ele sem comer, acorrentou
ele que nem bicho e nada adiantou. Então, ele deixou Custódio pra lá. O pobre “tava”
endoidando...
- Ele ia ficando cada vez menos humano. Deixou de falar que nem gente e
começou a soltar uns sons que pareciam grunhidos. Em pouco mais de um mês, ele
vivia andando de quatro pela senzala e pelo campo, fuçando a terra. Todos os negros
sabiam o que acontecia. A “aparença” de Custódio ia mudando mesmo, ele ia
engordando, seu nariz ia “ribitando” e ele ia criando casco no lugar dos pés.
- O pessoal foi se afastando dele, mas um escravo que era muito devoto e tinha
muita fé em Deus ficou acompanhando ele de longe. Certo dia, esse escravo foi até o
lugar onde ele vivia escondido e não viu Custódio, mas um grande porco preto e gordo
que grunhia e fuçava a terra.
- Era o porco, seu monge! O povo negro sabe que, quando se mata um porco
(principalmente, um porco de estima), ele pode voltar e possuir o corpo do assassino até
reviver por meio dele. Foi isso que sucedeu com Custódio. É por isso que o povo fala
em “Isprito de Porco”. O porco voltou e custódio deixou de existir, sumiu da terra pra
sempre...
- Mas, o porco inda fez mais... Alice já tinha ido embora da casa do pai. E o
malvado fazendeiro, vendo o porco que ele mandara matar, vivo de novo, perdeu o
juízo. Os negros tomaram conta da fazenda, mataram a mulher dele e os feitores e
ficaram com as terras. E ninguém – nem branco, nem preto, nem fazendeiro, nem
delegado – teve coragem de tomar a fazenda dos escravos. Eles tinham medo do porco.
Depois de dar mais uma baforada, João de Deus perguntou:
- O senhor acredita nisso?
Dei de ombros. Por que não? Confesso que estava arrepiado com o caso,
especialmente porque, em dado momento, escutei um grunhido bem pertinho da casinha
de sapé. O que me surpreendeu ainda mais foi o rezador saber de tantos detalhes assim
sobre a história. Tomando mais um gole do delicioso café, disse:
- Tudo é possível, meu amigo! Tudo é possível neste mundo cheio de mistérios...
Certamente, essa história foi contada ao senhor por seu pai, que a ouviu de seu avô, que
a ouviu de seu bisavô... Não foi isso?
Na verdade, histórias orais são passadas de boca em boca e cada um conta do
jeito que quer, como se estivesse realmente presente aos eventos. Mas, a resposta de
João de Deus foi mais uma revelação apavorante para mim:
- Sei de tudo e muito mais, “seu” padre... – e ele fitou bem dentro dos olhos,
como que penetrando bem no fundo de minha alma – Pois se eu sou o escravo devoto e
com muita fé em Deus que fiquei de olho em Custódio... Se fui eu o primeiro que vi o
porco revivido dos mortos no lugar do meu amigo... Sim, monge... Eu fui a testemunha
de tudo e fui agraciado por Deus (ou por qualquer entidade do além) a passar as eras
narrando essa história pra os brancos. Essa é a minha obrigação. E, se o senhor inda
duvida do que eu digo, veja só...
Com um assobio, João de Deus chamou “alguém” que estava nos fundos da
casa. Não pude deixar de largar a caneca de café quando vi entrar na sala um grande
porco preto e gorducho, grunhindo e olhando diretamente nos meus olhos.
- Esse é aquele porco, “seu” padre! – e João de Deus aproximou-se com o
animal – Veja o senhor mesmo a marca da machada que Custódio deu no toitiço do
bichinho. Ela aqui ficou pra servir como prova pra os que duvidam do poder do porco e
descreem que exista o “Isprito de Porco”!