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Otto Penzler

Organizador

Mulheres Perigosas

Tradução
Ryta Vinagre... et al

Editora Record
2007
Contracapa

Mulheres perigosas sempre estiveram entre nós. Lembra-se de Dalila?


Os escritores entenderam a atração fatal das mulheres perigosas e as usaram
sem descanso como instrumentos literários. A maioria das grandes
mulheres da história, bem como as figuras literárias femininas mais
significativas, era perigosa.
Talvez não para todo mundo, mas frequentemente para os que se
apaixonaram por elas. Homens mataram por mulheres perigosas, traíram
seus países, traíram seus seres amados e a si próprios, desistiram de tronos e
cometeram suicídio. Algumas vezes as mulheres perigosas podem até valer
isso - podem valer arriscar tudo e desistir de tudo de que gostamos.(...)
Esses gigantes do mundo do romance policial juntaram um bando, um
verdadeiro harém, de mulheres perigosas de todos os tipos. Sexo frágil?
Não me faça rir. E fique de guarda, não deixe que elas peguem seu coração,
porque vão querê-lo. Talvez acompanhado de um bom Chianti."

Orelhas

Ah, as mulheres... Criaturas sedutoras, fêmeas da espécie. O mistério


feminino reside no indizível (ou indivisível?) — os cílios ligeiramente
curvados, a boca vermelha, o modo de rir e espirrar. Sem falar das sedutoras
e lendárias femmes fatales, que habitam a imaginação de muitos. Graças à
complacência de 17 grandes nomes (eles e elas) da literatura policial, elas
aqui estão representadas, ora em saltos agulhas e gloss, ora de cara lavada,
provando que o adjetivo "frágil" anda fora de moda. Vale mesmo, muitas
vezes, é ser sexy e fatal.
Otto Penzler, premiado por sua dedicação à literatura policial, está à
frente desta coletânea de pequenas obras-primas. Em "Terceiro", Jay
Mclnerney nos leva a um passeio alucinado pela noite de Paris, ao lado de
uma garota ávida por festas, velocidade e pecado. Nelson DeMille, afastado
há 25 anos do conto, conduz os leitores à selva vietnamita em "Ponto de
encontro", onde um oficial de infantaria americano relata como sua patrulha
foi dizimada pelo fuzil de uma única mulher. De volta aos EuA, Elmore
Leonard, em "Louly e Bonitinho", apresenta uma adolescente rebelde em
plena Depressão americana, apaixonada por Floyd Bonitinho, com quem
saqueia postos de gasolina. Em "A mil quilômetros de lugar nenhum",
Lorenzo Carcaterra dá voz a uma loura muito esperta, que aproveita todas
as oportunidades à sua frente. Michael Connelly, conhecido de longa data
dos leitores de romances policiais, coloca Harry Bosch e Terry McCaleb
lado a lado em "Ciclo Azul", no qual a dupla descobre que o cadáver de
uma mulher abandonado em uma colina de Los Angeles pode ser algo
perigosíssimo.
Várias outras garotas muito malvadas desfilam em Mulheres perigosas,
conjurando feitiços criminosos, nas vozes de Joyce Carol Oates, Jeffery
Deaver, Ed McBain, Walter Mosley, Ian Rankin, entre outros.
Otto Penzler é proprietário da Mysterious Bookshop na cidade de Nova
York, e fundador da Mysterious Press e da Otto Penzler Books. Escreveu e
organizou diversos livros, entre eles Encyclopedia of Mystery and
Detection e a série Best American Mystery Stories of the Year.
Mulheres perigosas
Vários autores
Organização: Otto Penzler
Título original: Dangerous women
Tradução: Ryta Vinagre... et al.
Coleção Negra
Record, 2007
Tradução de
Luiz Antônio Aguiar, Alves Calado, Roberto Muggiati, Alexandre Raposo e Ryta Vinagre
Capa de Glenda Rubinstein sobre ilustração de Pedro Meyer
EDITORA RECORD - RIO DE JANEIRO • SÃO PAuLO - 2007

Luiz Antônio Aguiar traduziu "Karma", "O que ela ofereceu" e "Seu amo e
senhor";
Alves Calado preparou "Improvisação", "Ponto de encontro", "A mil
quilômetros de lugar nenhum" e "Louly e Bonitinho";
Roberto Muggiati, "Dê-me seu coração", "A bizarria do Sr. Gray" e "Caído
por ela";
os textos "Cielo Azul", "Terceiro" e "Má de nascença" foram traduzidos por
Alexandre Raposo e "Prezado Fórum da Penthouse (um primeiro
rascunho)", "A testemunha", "O último beijo" e "A onda sorrateira", por
Ryta Vinagre.
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
M922 Mulheres perigosas / [organização] Otto Penzler; tradução
Ryta Vinagre... [et al.]. — Rio de Janeiro: Record, 2007. (Coleção Negra)
Tradução de: Dangerous women ISBN 978-85-01-07535-2
06-4570
1. Criminosas — Ficção. 2. Antologias (Conto). I. Penzler, Otto. II. Vinagre, Ryta. III. Série.
CDD — 808.83 CDu — 82-03(082)

Título original norte-americano: DANGEROuS WOMEN


Copyright da organização © 2005 by Otto Penzler. Copyright da introdução © 2005 by Otto Penzler.
"A mil quilômetros de lugar nenhum" de Lorenzo Carcaterra. Copyright © 2005 by Lorenzo
Carcaterra. • "Ciclo azul" de Michael Connelly. Copyright © 2005 by Michael Connelly. • "A bizarria
do Sr. Gray" de John Connolly. Copyright © 2005 by John Connolly. • "O que ela ofereceu" de
Thomas H. Cook. Copyright © 2005 by Thomas H. Cook. • "Má de nascença" de Jeffery Deaver.
Copyright © 2005 by Jeffery Deaver. • "Ponto de encontro" de Nelson DeMille. Copyright © 2005
by Nelson DeMille. • "A testemunha" de J. A. Jance. Copyright © 2005 by J. A. Jance. • "Seu amo e
senhor" de Andrew Klavan. Copyright © 2005 by Andrew Klavan. • "Louly e Bonitinho" de Elmore
Leonard. Copyright © 2005 by Elmore Leonard, Inc. • "Prezado Fórum da Penthouse (um primeiro
rascunho)" de Laura Lippman. Copyright © 2005 by Laura Lippman. • "Improvisação" de Ed
McBain. Copyright © 2005 by Hui Corporation • "Terceiro" de Jay McInerney. Copyright © 2005 by
Bright Lights, Big City, Inc. • "Karma" de Walter Mosley. Copyright © 2005 by Walter Mosley. •
"Dê-me seu coração" de Joyce Carol Oates. Copyright © 2005 by Joyce Carol Oates. • "A onda
sorrateira" de Anne Perry. Copyright © 2005 by Anne Perry. • "Caído por ela" de Ian Rankin.
Copyright © 2005 by John Rebus Ltd. • "O último beijo" de S. J. Rozan. Copyright © 2005 by S. J.
Rozan.
Publicado mediante acordo com Warner Books, Inc., Nova York, Nova York, EuA.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer
meios.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 2585-2000 que se reserva a
propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
ISBN 978-85-01-07535-2
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RI — 20922-970
Sumário

Ed McBain - Improvisação
Michael Connelly - Cielo Azul
Joyce Carol Oates - Dê-me seu coração
Walter Mosley - Karma
Laura Lippman - Prezado Fórum da Penthou-se (um primeiro rascunho)
Nelson DeMille - Ponto de encontro
Thomas H. Cook - O que ela ofereceu
Andrew Klavan - Seu amo e senhor
John Connolly - A bizarria do Sr. Gray
Lorenzo Carcaterra - A mil quilômetros de lugar nenhum
J. A. Jance - A testemunha
Ian Rankin - Caído por ela
Jay McInerney - Terceiro
S. J. Rozan - O último beijo
Anne Perry - A onda sorrateira
Elmore Leonard - Louly e Bonitinho
Jeffery Deaver - Má de nascença
Introdução

O que torna uma mulher perigosa? Sem duvida há incontáveis opiniões,


dependendo da experiência do homem ou da mulher que responde.
Pessoalmente acho que as mulheres mais perigosas são as irresistíveis.
Cada um de nós pode ter uma fraqueza especial, um calcanharde-aquiles
que escapa aos outros, ou podemos compartilhar sensibilidades universais
que todo mundo entende. Talvez seja a grande beleza de uma mulher que
domine nosso coração, ou seu charme, sua inteligência. Pode ser o modo
como ela afasta o cabelo dos olhos, ou como ri, ou como espirra.
Ela pode ter consciência de seu poder ou uma inocência absoluta com
relação a ele. Uma irá usá-lo como uma arma afiada, outra como um
aconchegante cobertor de segurança.
A intenção não aumenta nem diminui o poder, e esse é o perigo terrível
para quem for escravo dele.
O poder é perigoso. Podemos conhecê-lo, até mesmo temê-lo, mas se
quisermos o calor daquela chama arriscaremos tudo para chegar o mais
perto possível.
Mulheres perigosas sempre estiveram entre nós. Lembra-se de Dalila?
Os escritores entenderam a atração fatal das mulheres perigosas e as usaram
sem descanso como instrumentos literários. A maioria das grandes
mulheres da história, bem como as figuras literárias femininas mais
significativas, era perigosa. Talvez não para todo mundo, mas
frequentemente para os que se apaixonaram por elas. Homens mataram por
mulheres perigosas, traíram seus países, traíram seus seres amados e a si
próprios, desistiram de tronos e cometeram suicídio. Algumas vezes as
mulheres perigosas podem até valer isso — podem valer arriscar tudo e
desistir de tudo de que gostamos.
Muitos detetives da literatura foram sensíveis à mulher perigosa. Sam
Spade se apaixonou por uma, Brigid O'Shaughnessy, e Philip Marlowe e
Lew Archer costumam ser perseguidos por elas; algumas vezes se deixaram
ser apanhados.
Sherlock Holmes, mesmo tendo-se permitido se apaixonar por Irene
Adler ("a coisinha mais deliciosa sob um toucado neste planeta"), tinha
aversão notoriamente forte pela maioria dos membros do sexo oposto.
"Nunca se deve confiar totalmente nas mulheres — não nas melhores",
declarou Holmes em O signo dos quatro. "Garanto que a mulher mais
vitoriosa que conheci foi enforcada por ter envenenado três criancinhas em
troca do dinheiro do seguro."
Ainda que Archie Goodwin goste de mulheres, seu chefe, Nero Wolfe,
geralmente fala e se comporta como misógino. "A gente pode contar com as
mulheres em tudo, menos na constância", disse ele. Mais adiante, num
humor particularmente ofensivo, declarou: "As vocações para as quais elas
são mais bem adaptadas são a astucia, o sofisma, a autopromoção, a
adulação, a mentira e a incubação."
E nem Holmes nem Wolfe jamais encontraram as mulheres perigosas
que estão nestas páginas. Ficariam chocados e sem reação. Mas, como
prevejo com relação a você, também fascinados. Ficariam indefesos diante
do desejo de saber o que elas estavam tramando, aonde chegariam, que
truquezinhos adoráveis tinham nas mangas.
Está claro, pelo sucesso duradouro de Hammett, Chandler, Mcdonald,
Doyle e Rex Stout, que eles entendiam muito, inclusive o modo de atrair,
das mulheres perigosas.
Os autores deste livro se mostraram não menos hábeis em fornecer uma
quantidade de femmes fatales para deliciar você — e fazê-lo estremecer de
alívio por elas não serem mulheres importantes em sua vida. Pelo menos,
para o seu bem, esperamos que não sejam.
Lorenzo Carcaterra é autor de seis livros, inclusive o controvertido
Sleepers: Vivendo um pesadelo, que se tornou bestseller numero um do
New York Times em a vingança Adormecida, estrelado por Brad Pitt,
Robert DeNiro, Dustin Hoffman, Kevin Bacon e Minnie Driver. Atualmente
é escritor e produtor da série da NBC Lei e Ordem.
Depois de uma bem-sucedida carreira de jornalista, Michael Connelly
passou para a ficção escrevendo e produzindo The Black Echo, que
apresentou o detetive do DPLA Hieronymous Bosch e ganhou o prêmio
Edgar Allan Poe, do Mystery Writers of America. Em seguida vieram mais
três romances com Bosch: Black Ice, A loira de concreto e O último coiote,
depois escreveu um policial à parte, O poeta. Como um dos autores mais
amados do mundo, seus livros se tornaram bestsellers instantâneos em
muitos países.
O jovem escritor irlandês John Connolly trabalhou como barman,
funcionário publico, garçom, faz-tudo na loja de departamentos Harrods e
jornalista. O ex-policial Charlie Parker foi apresentado em 1999 em Every
Dead Thing, e surgiu depois em Dark Hollow, The Killing Kind e The
White Road. O romance mais recente de Connolly, Bad Men, é um policial
que não faz parte da série. Nenhum escritor atual combina melhor o
romance de detetives com elementos do sobrenatural.
Quando o Mystery Writers of America deu a Thomas H. Cook o prêmio
Edgar Allan Poe por O caso da escola Chatham, em 1997, foi uma honra
merecida para um dos melhores escritores policiais dos Estados unidos.
Anteriormente ele fora indicado para o Edgar em duas outras categorias,
Melhor Romance de Estreia e Melhor História Policial Real, e ganhou o
prêmio Herodotus de Melhor Conto Histórico do Ano por "Fatherhood".
Jeffery Deaver trabalhava como jornalista quando decidiu cursar direito
para se tornar escritor de temas jurídicos. Em vez disso exerceu o direito
por vários anos e, enquanto fazia as longas jornadas de ida e volta para o
trabalho, começou a escrever ficção de suspense com sucesso
extraordinário. Foi indicado para quatro Edgars e ganhou três vezes o
prêmio Ellery Queen Reader's de melhor conto do ano. Seus romances com
Lincoln Rhyme são marcos nas listas de bestsellers; O colecionador de
ossos foi filmado com Denzel Washinghton no papel do ex-perito forense e
Angelina Jolie como a jovem policial que ajuda a levar um assassino em
série à justiça.
Poucos escritores vendem tantos livros quanto Nelson DeMille, cujos
policiais passaram de 30 milhões de exemplares em todo o mundo. Notável
por suas tramas impecáveis e estilo literário notável, dentre seus bestsellers
estão The Lion's Game, A ilha do medo, Spencerville, A costa dourada,
Palavra de honra e A filha do general, um puro romance de detetive filmado
com sucesso e estrelado por John Travolta com roteiro de William
Goldman. "Ponto de encontro" é seu primeiro conto em 25 anos.
J. A. Jance não teve facilidade para se tornar autora bestseller.
Negaram-lhe a participação num programa de escrita criativa porque o
professor achava que mulheres deveriam ser professoras ou enfermeiras, e
seu marido alcoólatra concordava. Depois do divórcio e da morte dele aos
42 anos por intoxicação alcoólica aguda, ela passou a escrever das quatro da
madrugada às sete da manhã, antes de mandar os filhos para a escola. Sua
série sobre o detetive J. P. Beaumont começou modestamente, publicada em
livros de bolso, mas agora é frequentadora regular da lista de bestsellers.
Escrevendo como Andrew Klavan e usando o pseudônimo de Keith
Peterson, o autor ganhou dois Edgars, sem entretanto chegar às listas de
bestsellers, mas teve grande sucesso em Hollywood. Clint Eastwood dirigiu
e estrelou Crime Verdadeiro (True Crime), sobre um jomalista que tenta
salvar um homem inocente; também participaram do filme Isaiah
Washington, James Woods, Denis Leary e Lisa Gay Hamilton. Dois anos
depois Michael Douglas e Famke Janssen estrelaram outro filme baseado
num romance de Klavan, Refém do Silêncio.
Considerado o melhor escritor policial vivo (segundo a Newsweek,
talvez o melhor de todos os tempos), Elmore Leonard teve vinte bestsellers
consecutivos, inclusive Mr. Paradise, Tishomingo Blues, Pagan Babies e a
coletânea de contos Quando as mulheres saem para dançar. Numerosos
filmes foram feitos a partir de sua obra: Hombre, 3:10 to Yuma, Guerra de
Contrabandistas, um Homem Destemido, Cheque Sem Fundo, O Nome do
Jogo, Romance Perigoso e Jackie Brown. Recebeu o título de Grande
Mestre do Mystery Writers of America pela obra completa.
Três dos primeiros quatro livros que Laura Lippman escreveu foram
indicados a prêmios Edgar Allan Poe, feito não igualado na história do
Mystery Writers of America; Charm City venceu. A série de romances
policiais apresentando Tess Monaghan também ganhou os prêmios Shamus,
Agatha e Anthony, do Private Eyes Writers of America e das convenções
Malice Domestic e Bouchercon, respectivamente.
Evan Hunter e Ed McBain são dois romancistas bestsellers que vivem
no mesmo corpo. O primeiro romance adulto de Hunter, The Blackboard
Jungle, chocou o país, bem como o filme de enorme sucesso feito a partir
dele. Como McBain, escreveu mais de cinquenta livros, inclusive os
notáveis romances da Delegacia 87, que essencialmente definiram os
procedimentos policiais durante meio século. Hunter também escreveu o
roteiro de Os Pássaros, de Alfred Hitchcock. Tem um Grand Master e foi o
primeiro americano a receber uma Adaga de Diamante pela obra completa,
dada pela Crime Writers Association da Inglaterra.
Se um único escritor pudesse ser elevado à condição de personificação
do que havia de mais chique nos anos 1980, seria Jay McInerney, que saltou
para o estrelato instantâneo com seu primeiro livro, Bright Lights, Big City.
Ainda que raramente tenha se aventurado no mundo da ficção policial (a
não ser que você conte o uso e abuso das drogas), seu conto "Con Doctor"
foi escolhido para a coletânea Best American Mystery Stories 1998.
Mesmo que Bill Clinton não tivesse contado à mídia que Walter Mosley
era seu escritor policial predileto, a série de Easy Rawlins teria tido sucesso.
Ela estreou com O Diabo vestia azul, que foi indicado para um Edgar e
depois filmado com Denzel Washington e Jennifer Beals (O Diabo Veste
Azul). Como uma das vozes mais originais no mundo da ficção policial,
Mosley viu seus romances com Rawlins, como Black Betty e A Little
Yellow Dog, chegarem à lista de bestsellers do New York Times. Ele é ex-
presidente do Mystery Writers of America.
Dentre os autores vivos mais notáveis, sem duvida Joyce Carol Oates
está entre os maiores a não ganhar o Prêmio Nobel, ainda que sobrem
rumores de que esteve na lista por várias vezes. Ela produziu uma obra
ampla e variada num ritmo prodigioso, e parece improvável que qualquer
escritor americano vivo tenha recebido mais elogios e prêmios, em numero
grande demais para serem citados aqui, mas dentre eles estão seis
indicações para o National Book Award (inclusive o vencedor, Them, em
1970) e três indicações de finalista para o Prêmio Pulitzer. Dentre seus
livros mais recentes estão Take Me, Take Me With You, Rape: A Love
Story e The Tattooed Girl.
Rejeitado por vinte anos, o primeiro romance de Anne Perry, O
estrangulador de Cater Street, só foi publicado em 1979. Desde então ela
produziu uma média de mais de um livro por ano, principalmente os
amados romances de detetives da era vitoriana que a colocaram na lista de
bestsellers. A primeira série era sobre o inspetor Thomas Pitt e sua mulher
Charlotte, e a segunda é uma série mais sombria sobre o inspetor William
Monk. Ela ganhou o Edgar pelo conto "Heroes", em que aparecia o
professor universitário e capelão Joseph Ravley, então fazendo parte de uma
nova série que se inicia com No Graves As Yet.
Não são muitos os autores policiais que entram para o Guinness, mas
Ian Rankin chegou lá quando teve sete bestsellers ao mesmo tempo na lista
do London Times.
Ele ganhou três Adagas da Crime Writers Association da Inglaterra,
duas por contos e uma por Black and Blue, este também indicado para um
Edgar. Seus romances sobre o inspetor Rebus, começando com Knots and
Crosses em 1987, serviram de base para uma série de televisão da BBC.
Além disso, foi um dos primeiros ganhadores do prestigioso prêmio
ChandlerFulbright.
Os romances de S. J. Rozan sobre Lydia Chin e Bill Smith estão entre
os mais homenageados dos últimos anos, com prêmios Shamus, Anthony,
Macavity e Edgar: Winter and Night ganhou o Edgar de Melhor Romance
em 2003 para se juntar à estatueta de Poe que ela recebeu por melhor conto.
Lydia é uma detetive particular sinoamericana cujos casos se originam
principalmente na comunidade chinesa, ao passo que Smith é um
investigador mais velho e experiente que mora em cima de um bar em
Tribeca.
Os dois trabalham juntos em tramas cuidadosamente construídas (afinal
de contas, a autora é arquiteta) e se revezam como protagonista de um livro
para outro.
Esses gigantes do mundo do romance policial juntaram um bando, um
verdadeiro harém, de mulheres perigosas de todos os tipos. Sexo frágil?
Não me faça rir. E fique de guarda, não deixe que elas peguem seu coração,
porque vão querê-lo. Talvez acompanhado de vagens e um bom Chianti.

OTTO PENZLER
***
Improvisação
Ed McBain

— Por que a gente não mata alguém? — sugeriu ela. Era loura, é óbvio,
alta e esguia, usando um vestido de noite, preto e grudado no corpo, com
um corte alto na perna e baixo no decote.
— Isso é coisa velha — disse Will. — Já fiz. Os olhos dela se
arregalaram, um azul brilhante em contraste espantoso com o preto do
vestido.
— Na Guerra do Golfo — explicou ele.
— Não é a mesma coisa. — Ela pegou a azeitona do martíni e pôs na
boca. — Estou falando de assassinato.
— Assassinato, é. Em quem você está pensando?
— Que tal aquela mulher sentada ali no balcão?
— Ah, uma vítima aleatória. Mas em que sentido isso é diferente de
uma guerra?
— Uma vítima aleatória específica — disse ela. — Vamos matar ou
não?
— Por quê?
— Por que não?
Will conhecia a mulher havia uns vinte minutos, no máximo. De fato
nem sabia o nome dela. A sugestão de que matassem alguém tinha vindo
em resposta a uma cantada padrão que ele já havia usado com bons
resultados muitas vezes: "O que a gente pode fazer pra agitar essa noite?"
E a loura respondeu: "Por que a gente não mata alguém?"
Não tinha sussurrado as palavras, nem mesmo baixado a voz. Apenas
sorriu por cima da borda da taça de martíni e disse na voz normal: "Por que
a gente não mata alguém?"
A vítima aleatória específica que ela havia escolhido era uma mulher de
aparência comum, usando casaco marrom comum sobre uma blusa de seda
marrom e saia marrom mais escura. Havia nela um ar de arquivista com
trabalho demais ou secretária de nível inferior, o cabelo castanho cor de
rato, olhos que não piscavam por trás dos óculos grandes, a boca de lábios
finos e com a arcada superior um tanto proeminente. Uma mulher
totalmente comum. Não era de espantar que estivesse sentada sozinha
acalentando uma taça de vinho branco.
— Digamos que a gente mate mesmo a mulher — disse Will. — O que
a gente faz pra agitar depois?
A loura sorriu. E cruzou as pernas.
— Meu nome é Jessica. E estendeu a mão. Ele a apertou.
— Sou Will.
Ele presumiu que a palma da mão de Jessica estivesse fria por causa da
bebida gelada que estivera segurando.
Nessa noite gelada de dezembro, três dias antes do Natal, Will não tinha
absolutamente nenhuma intenção de matar a pequena arquivista que estava
na ponta do balcão, nem ninguém, por sinal. Tinha matado sua cota de
pessoas há muito tempo, muito obrigado. Todas vítimas aleatórias
específicas, pois usavam uniforme do exército iraquiano, o que fazia delas o
inimigo. Isso era o mais específico possível em tempos de guerra, supunha
ele. Era o que justificava assassiná-las, independentemente da pequena
distinção que Jessica fazia entre assassinato e guerra.
De qualquer modo Will sabia que isso era apenas um jogo, uma
variação do ritual de acasalamento que acontecia em todos os bares de
solteiros de Manhattan em qualquer noite do ano. Você dava uma cantada
inteligente, recebia uma resposta indicando interesse e partia daí. De fato
imaginou quantas vezes, em quantos bares antes desta noite, Jessica teria
usado seu bordão do "Por que a gente não mata alguém?". Podia-se admitir
que era uma abordagem aventureira, talvez até mesmo perigosa — imagine
que ela mostrasse aquelas pernas estupendas para alguém que fosse Jack, o
Estripador?
E se pegasse um cara que realmente acreditasse que seria divertido
matar aquela garota sentada sozinha na outra ponta do balcão? Ei, grande
ideia, Jess, vamos nessa! O que, de fato, era o que ele havia indicado
tacitamente, mas claro que ela sabia que os dois estavam apenas fazendo
um jogo, não é? Ela certamente devia perceber que os dois não planejavam
um assassinato de verdade.
— Quem vai fazer a abordagem? — perguntou ela.
— Acho que deveria ser eu.
— Por favor, não use sua cantada "O que a gente pode fazer pra agitar
essa noite?"
— Puxa, achei que você tinha gostado.
— É, na primeira vez em que ouvi. Há cinco ou seis anos.
— Achei que eu estava sendo totalmente original.
— Tente ser mais original com a pequena Alice, certo?
— Você acha que o nome dela é esse?
— Qual você acha que é?
— Patricia.
— Certo, eu serei Patricia. Diga como vai ser.
— Com licença, senhorita — disse Will.
— Grande início!
— Por acaso minha amiga e eu notamos você sentada sozinha aqui e
imaginamos se gostaria de se juntar a nós.
Jessica olhou em volta como se procurasse a amiga de que ele falava a
Patricia.
— Como assim? — perguntou ela, com expressão de surpresa.
— Aquela loura linda sentada ali — disse Will. — O nome dela é
Jessica.
Jessica sorriu.
— Loura linda, é? — perguntou.
— Loura estupenda.
— Sujeito de fala doce — disse ela, e pôs a mão sobre a dele, no
balcão.
— Então digamos que a mocinha decida se juntar a nós. E aí?
— Nós a enchemos de elogios e álcool.
— E aí?
— Levamos a algum beco escuro e batemos nela até matar.
— Eu tenho um vidrinho de veneno na bolsa. Não seria melhor?
Will estreitou os olhos como um gângster.
— Perfeito — disse ele. — Vamos levá-la até um beco escuro e matá-la
com veneno.
— Um apartamento em algum lugar não seria melhor?
E de repente ocorreu a Will que talvez eles não estivessem falando de
assassinato, fosse de brincadeira ou não.
Seria possível que Jessica estivesse pensando em transar a três?
— Vá falar com a moça — disse ela. — Depois disso vamos improvisar.
Will não era muito bom em pegar mulheres em bares.
De fato, afora sua cantada "O que a gente pode fazer pra agitar essa
noite?", ele não tinha muitas outras abordagens no repertório. Sentiu-se um
pouco mais ousado com o movimento de cabeça encorajador feito por
Jessica, na outra ponta do balcão, mas mesmo assim estava um tanto tímido
ao ocupar o banco vazio ao lado de Alice, Patricia ou qualquer que fosse o
nome.
Segundo sua experiência, as mulheres comuns reagiam menos ao elogio
do que as que eram realmente lindas de morrer. Achava que era porque
esperavam mentiras e tinham cautela para não ser enganadas e se
desapontar mais uma vez. Alice, Patricia ou Sei-lá-o-quê não foi exceção a
essa observação geral sobre as garotas comuns. Will ocupou o banco ao
lado do dela, virou-se e disse:
— Com licença, senhorita — exatamente como havia ensaiado com
Jessica, mas antes que pudesse dizer qualquer palavra ela se encolheu como
se tivesse levado um tapa.
Olhos arregalados, aparentemente surpresa, disse:
— O quê? O que é?
— Desculpe se assustei você...
— Não, tudo bem. O que é?
A voz dela era aguda e gemida, com um sotaque que ele não conseguiu
identificar. Os olhos por trás das lentes grossas e redondas eram de um
castanho muito escuro, ainda arregalados de medo ou desconfiança, ou as
duas coisas. Olhando-o sem piscar, ela esperou.
— Não quero incomodar você — disse ele — mas...
— Tudo bem, verdade. O que é?
— Minha amiga e eu não pudemos deixar de ver...
— Sua amiga?
— A moça sentada ali adiante. A loura na outra ponta do balcão, está
vendo? — disse Will apontando para Jessica, que obedientemente levantou
a mão, cumprimentando.
— Ah. Sim — disse ela. — Sei.
— Nós não pudemos deixar de ver você sentada aqui, bebendo sozinha.
Imaginamos se gostaria de se juntar a nós.
— Ah.
— Você acha que gostaria? De se juntar a nós?
Houve um momento de hesitação. Os olhos castanhos piscaram,
suavizaram-se. Um sorriso minusculo se formou na boca de lábios finos.
— Acho que gostaria, sim — respondeu ela. — Gostaria.
Sentaram-se a uma mesa pequena, a alguma distância do balcão, num
canto mal iluminado. Susan — e não Patricia ou Alice, como se viu —
pediu outro Chardonnay. Jessica se ateve aos martínis. Will pediu outro
bourbon com gelo.
— Ninguém deveria estar sentada sozinha três dias antes do Natal —
disse Jessica.
— Ah, concordo, concordo — respondeu Susan. Susan tinha um jeito
irritante de dizer tudo duas vezes. Fazia parecer que havia um eco no lugar.
— Mas esse bar fica no caminho da minha casa — disse ela. — E eu
pensei em parar para tomar uma taça de vinho.
— Pra afastar o frio — concordou Jessica, assentindo.
— É, exatamente. Pra afastar o frio.
Ela também repetia as palavras dos outros, notou Will.
— Você mora aqui perto? — perguntou Jessica.
— É. Logo ali na esquina.
— De onde você é?
— Minha nossa, ainda dá para notar?
— Notar o quê? — perguntou Will.
— O sotaque. Minha nossa, ainda dá para notar? Depois de todas as
aulas? Que coisa!
— De onde é o sotaque? — perguntou Jessica.
— Alabama. Montgomery. Alabama — respondeu ela, fazendo parecer
"Mon'gommy, Alabama".
— Não percebo sotaque nenhum — disse. — Você detecta algum
sotaque, Will?
— Bom, na verdade é um dialeto regional — explicou Susan.
— Parece que você nasceu aqui mesmo, em Nova York — disse Will,
mentindo na maior cara de pau.
— É muita gentileza de vocês, realmente. Realmente, é muita gentileza.
— Há quanto tempo você está aqui? — perguntou Jessica.
— Seis meses. Cheguei no fim de junho. Sou atriz.
Atriz, pensou Will.
— Eu sou enfermeira — disse Jessica.
Uma atriz e uma enfermeira, pensou Will.
— Não brinca! — exclamou Susan. — Você trabalha em algum
hospital?
— No Beth Israel.
— Achei que isso era uma sinagoga — disse Will.
— É hospital também — explicou Jessica, assentindo, e se virou de
novo para Susan.
— Será que a gente já viu você em alguma coisa?
— Bem, a não ser que vocês tenham ido a Montgomery. — Susan
sorriu. — À margem da vida. Conhece À margem da vida? Tennessee
Williams? A peça de Tennessee Williams? Eu fiz Laura Wingate na
produção do Paper Players, lá. Aqui ainda não fiz nada. Na verdade estou
trabalhando de garçonete.
Garçonete, pensou Will. A enfermeira e eu estamos para matar a
garçonete mais comum da cidade de Nova York. Ou pior, vamos levá-la
para a cama.
Mais tarde ele achou que podia ter sido Jessica quem sugeriu que
comprassem uma garrafa de Moët Chandon e levassem ao apartamento de
Susan para uma saideira, já que o apartamento era tão perto e coisa e tal,
bem ali na esquina, como a própria Susan havia mencionado antes. Ou
talvez o próprio Will tivesse feito a sugestão, já tendo consumido quatro
doses grandes de Jack Daniels e estando um pouco mais ousado do que
normalmente. Ou talvez Susan é que tenha convidado os dois ao
apartamento, que ficava no coração do bairro teatral, na esquina perto do
Flanagan's, onde ela própria havia consumido três ou quatro copos de
Chardonnay e começado a fazer para eles toda a cena em que o Cavalheiro
Caller quebra o pequeno unicórnio de vidro e Laura finge que não é uma
grande tragédia, fazendo os dois papéis para eles.
O que, Will teve certeza, levou o barman a anunciar o fechamento dez
minutos antes da hora.
Ela era uma atriz terrível. Mas, ah, tão inspirada! No minuto em que
chegaram à rua ela ergueu os braços ao céu, com os dedos abertos, e gritou
em seu pavoroso sotaque sulista:
— Olhem só! A Broadway! O Grande Caminho Branco! — Então fez
uma espécie de pequena pirueta, girando e dançando na rua, os braços ainda
acima da cabeça.
— Meu Deus, vamos matá-la depressa! — sussurrou Jessica a Will. Os
dois explodiram numa gargalhada. Susan deve ter pensado que estavam
compartilhando sua exuberância.
Will achou que ela não sabia o que a esperava. Ou talvez soubesse.
Nessa hora da noite as prostitutas já haviam começado a andar pela Oitava
Avenida, mas nenhuma sequer levantou a sobrancelha para Will,
provavelmente achando que ele era um cliente já duplamente ocupado, com
uma em cada braço. Numa loja de bebidas ele comprou uma garrafa não de
Moët Chandon, mas de Veuve Clicquot, e continuaram andando juntos pela
avenida, de braços dados.
O apartamento de Susan era uma quitinete no terceiro andar de um
prédio sem elevador, na esquina da Quarenta e Nove com a Nona. Subiram
a escada atrás dela e Susan parou diante do apartamento 3A, procurou as
chaves na bolsa, encontrou-as finalmente e destrancou a porta. O lugar era
mobiliado com o que Will chamava de Brechó — Jovem Atriz Aspirante.
Uma cozinha minuscula à esquerda da entrada. Uma cama de casal
junto à parede mais distante, uma porta dando no que Will achava que seria
o banheiro. Um sofá, duas poltronas e uma penteadeira com espelho. Havia
uma porta na parede da entrada, que dava num armário. Susan pegou os
casacos deles e pendurou.
— Vocês se importam se eu ficar mais à vontade? — perguntou e entrou
no banheiro.
Jessica ergueu as sobrancelhas. Will entrou na cozinha, abriu a geladeira
e esvaziou duas fôrmas de gelo numa tigela que encontrou num armário do
alto. Também pegou três copos de geleia que achou que deveriam servir.
Jessica sentou-se no sofá olhando-o enquanto ele começava a abrir o
champanha. Um estalo alto se ouviu no instante em que outra loura saiu do
banheiro.
Ele demorou um instante para perceber que era Susan.
— Maquiagem e figurino são ótimos para montar um personagem —
disse ela.
Agora era uma jovem magra com cabelo louro curto e liso, belos seios
aparecendo no decote amplo de uma blusa vermelha, saia preta curta e
justa, boas pernas com sapatos pretos muito altos. Na mão direita estava
pendurada a peruca castanho-rato que estivera usando no bar, e, quando
abriu a mão esquerda e estendeu para ele, Will viu a prótese dentária que
lhe dera o maxilar superior proeminente. Pela porta aberta do banheiro ele
pôde ver o conjunto marrom pendurado na haste do boxe.
Os óculos estavam na pia do banheiro.
— Um pouquinho de enchimento na cintura me deixou mais gordinha
— disse ela. — Nós temos todos esses adereços na aula.
Não havia mais sotaque sulista, notou ele. Nem olhos castanhos,
também.
— Mas os seus olhos... — disse ele.
— Lentes de contato — respondeu Susan.
Os olhos verdadeiros eram tão azuis quanto... bem, os de Jessica. Na
verdade as duas poderiam passar por irmãs. Ele disse isso em voz alta.
— Vocês duas poderiam passar por irmãs.
— Talvez porque somos — disse Jessica. — Mas enganamos você, não
foi?
— Cacete — disse ele.
— Vamos experimentar aquele champanhe — disse Susan, e entrou na
cozinha onde agora a garrafa estava na tigela de gelo. Ela pegou-a, serviu a
bebida em três copos de geleia e os levou de volta aninhados entre os dedos.
Jessica soltou um dos copos. Susan entregou um a Will.
— A nós três — brindou Jessica.
— E à improvisação — acrescentou Susan. Todos beberam. Will achou
que aquela seria uma tremenda noite.
— Nós fazemos o mesmo curso de teatro — disse Jessica.
Ela ainda estava sentada no sofá, pernas cruzadas. Pernas esplêndidas.
Will estava numa das poltronas. Susan na poltrona diante dele, as pernas
também cruzadas, também esplêndidas.
— Nós duas queremos ser atrizes — explicou Jessica.
— Achei que você era enfermeira.
— Ah, claro. Do mesmo modo que Sue é garçonete. Mas nossa ambição
é interpretar.
— Um dia vamos ser estrelas. — As Irmãs Carter — disse Jessica.
— Susan e Jessica! — completou a irmã.
— Vou beber a isso — disse Will. Todos beberam de novo.
— Na verdade não somos mesmo de Montgomery, você sabe — contou
Jessica.
— Bem, agora percebo. Mas sem duvida foi um bom sotaque, Susan.
— Dialeto regional — corrigiu ela.
— Somos de Seattle.
— Onde chove o tempo todo — disse Will.
— Ah, não é verdade — explicou Susan. — Chove menos em Seattle do
que em Nova York, isso é fato.
— Um fato provado estatisticamente — disse Jessica, assentindo para
concordar e terminando de esvaziar o copo. — Tem mais borbulhante aí?
— Ah, um monte — respondeu Susan, e se levantou da poltrona
expondo uma boa quantidade de coxas enquanto ficava de pé. Will lhe
entregou seu copo vazio também.
Sem duvida esperava que as damas não bebessem muito. Havia
negócios sérios a fazer esta noite, improvisações sérias.
— Então, há quanto tempo vocês moram em Nova York? — perguntou.
— Era verdade o que você disse no bar? São apenas seis meses?
— Isso mesmo — disse Jessica. — Desde o fim de junho. — Desde
então estamos fazendo aulas de teatro.
— Você fez mesmo À margem da vida? Com o Paper Players? O Paper
Players existe?
— Ah, sim — respondeu Susan, voltando com os copos cheios. — Mas
em Seattle.
— Nunca estivemos em Montgomery. — Isso fazia parte do meu
personagem — disse Susan. — O personagem que fiz no bar. Suziezinha
Triste.
As duas riram. Will riu com elas.
— Eu fiz Amanda Wingate — explicou Susan. — Quando fizemos a
peça em Seattle. A mãe de Laura. Amanda Wingate.
— Na verdade eu sou a mais velha — disse Jessica. — Na vida real.
— Ela tem trinta — completou Susan. — Eu tenho vinte e oito.
— Aqui, sozinhas na cidade grande — disse Will.
— É, sozinhas aqui — concordou Jessica.
— É ali que vocês dormem? — perguntou Will. — Naquela cama do
outro lado do cômodo? Vocês duas sozinhas naquela cama grande e má?
— Epa — disse Jessica. — Ele quer saber onde a gente dorme, Sue.
— É melhor ter cuidado — respondeu Susan.
Will achou que deveria recuar um pouquinho, ir um pouco mais
devagar.
— E onde é essa escola de teatro que vocês frequentam?
— Na Oitava Avenida. — Perto do Biltmore — disse Susan. —
Conhece o teatro Biltmore?
— Não, não conheço. Desculpe.
— Bem, é perto de lá — disse Jessica. — Madame D'Arbousse, conhece
o trabalho dela?
— Não, sinto muito, não conheço.
— Bem, ela é famosa — disse Susan.
— Desculpe, não sou familiarizado com...
— A Escola D'Arbousse? Nunca ouviu falar da Escola de Teatro
D'Arbousse?
— Desculpe, não.
— É apenas mundialmente famosa — disse Susan. Agora ela parecia
estar fazendo beicinho, quase petulante. Will achou que estava perdendo
terreno. Depressa.
— Então... é... por que a ideia de colocar figurino esta noite? —
perguntou. — Ir ao bar como uma... bem... espero que me perdoe... Uma
aquivistazinha malvestida, foi o que pensei que você era.
— Foi tão bom assim, hein? — perguntou Susan, sorrindo. Seu sorriso,
sem a prótese dentária, era na verdade muito lindo. A boca também não
parecia mais ter lábios tão finos. É espantoso o que um pouquinho de batom
podia fazer para engrossar os lábios de uma garota. Imaginou aqueles lábios
nos seus, na cama do outro lado do cômodo. Imaginou os lábios da irmã
sobre os dele, também. Imaginou todos os lábios emaranhados,
entrelaçados...
— Isso fazia parte do exercício — explicou Susan.
— Exercício?
— Encontrar o lugar — disse Jessica.
— O lugar do personagem — disse Susan.
— Para um momento privado — explicou Jessica. — Encontrar o lugar
para o momento privado de um personagem.
— Nós achamos que poderia ser o bar. — Mas agora acho que poderia
ser aqui.
— Bem, será aqui — disse Jessica. — Assim que o criarmos.
Elas deixaram Will meio perdido. Mais importante, sentia que estava
perdendo-as. Aquela cama, a uns cinco metros do outro lado do cômodo,
parecia recuar até uma distância inalcançável. Precisava recolocar a coisa
nos trilhos.
Mas ainda não sabia bem como. Pelo menos enquanto elas ficavam
arengando sobre... o que elas estavam falando, afinal?
— Desculpe — disse ele —, mas o quê, exatamente, vocês estão
tentando criar?
— O momento privado de um personagem — respondeu Jessica.
— É este o lugar que vamos usar? — perguntou Susan.
— Acho que sim, é. Você não acha? Nosso próprio apartamento. Um
lugar de verdade. Para mim parece muito real. Não parece real para você,
Sue?
— Ah, sim. É, parece. Parece muito real. Mas ainda não parece privado.
Você se sente num momento privado?
— Não, ainda não.
— Com licença, moças...
— Moças! uuu, huu — disse Susan, e revirou os olhos.
— Mas... podemos ficar numa situação muito mais privada aqui, se é
isso que as moças estão procurando.
— Estamos falando de um momento privado — explicou Jessica. — O
modo como nos comportamos quando ninguém está olhando.
— Ninguém está olhando agora — disse Will, encorajando. — Podemos
fazer o que quisermos e ninguém vai...
— Acho que você não entende — disse Susan. — Os sentimentos e
emoções privados de um personagem é o que estamos tentando criar aqui,
esta noite.
— Então vamos começar a criar todos esses sentimentos e emoções —
sugeriu Will.
— Esses sentimentos têm de ser reais — disse Jessica.
— Têm de ser absolutamente reais — insistiu Susan. — Para podermos
aplicá-los à cena que estamos fazendo.
— Ah-ha! — disse Will.
— Acho que ele entendeu — reagiu Jessica.
— Minha nossa! Ele entendeu.
— Vocês estão ensaiando uma cena juntas.
— Bravo!
— Que cena?
— Uma cena do Macbeth — respondeu Susan.
— Onde ela o manda forçar sua coragem até o ponto de impasse. —
disse Jessica.
— Lady Macbeth. — Diz ao Macbeth. Quando ele está começando a
hesitar quanto ao assassinato de Duncan.
— Force a coragem até o ponto de impasse — disse Jessica de novo,
desta vez com convicção. — E não falharemos.
Ela olhou para a irmã.
— Isso foi muito bom — disse Susan. Will achou que talvez estivessem
de volta aos trilhos.
— Forçar a coragem, hein? — disse ele, e sorriu como quem sabia das
coisas. Em seguida tomou outro gole da bebida.
— Ela está dizendo para ele não ser tão molenga — disse Susan.
— O negócio é que os dois estão tramando matar o rei, você sabe —
explicou Jessica.
— Estão avaliando o que vão fazer. — Estão planejando um assassinato,
veja bem.
— Qual é a sensação? — perguntou Susan.
— O que se passa dentro da sua cabeça? — completou Jessica.
— Aquele momento privado dentro da sua cabeça. — Quando você está
avaliando a morte de alguém. O cômodo ficou em silêncio por um instante.
As irmãs se entreolharam.
— Alguém quer mais champanhe? — perguntou Susan.
— Eu adoraria — respondeu Jessica.
— Eu pego — disse Will, e começou a se levantar.
— Não, não, eu vou — disse Susan, em seguida pegou o copo dele e
levou os três, vazios, para a cozinha. Jessica cruzou as pernas. Atrás, dele,
na cozinha, Will pôde ouvir Susan enchendo os copos. Olhou o pé de
Jessica balançando, o sapato meio calçado, meio descalçado, seguro apenas
pelos dedos.
— Então aquele negócio todo no bar fazia parte do exercício, certo? —
perguntou Will. — Sua sugestão de matarmos alguém? E depois a escolha
de sua irmã como vítima?
— Bom, mais ou menos.
O sapato caiu. Ela se curvou para pegá-lo, abrindo as pernas, com o
vestido preto subindo alto pelas coxas. Cruzou uma perna sobre a outra,
recolocou o sapato, sorriu para Will. Susan estava de volta com os copos
cheios.
— Ainda tem um pouquinho lá — disse ela, e entregou os copos.
Jessica ergueu o seu, num brinde.
— A partir deste momento — disse ela — reconheço vosso amor. —
Saude — disse Susan, e bebeu.
— O que quer dizer isso? — perguntou Will, mas bebeu também.
— Faz parte da cena — respondeu Jessica. — Na verdade é o começo
da cena. Quando ele está começando a hesitar. No fim da cena ela o
convenceu de que o rei deve morrer.
— Um rosto falso deve esconder o que revela o coração falso — disse
Susan, e assentiu. — É a última fala de Macbeth. No fim da cena.
— Foi por isso que você se vestiu de arquivista? um rosto falso deve
esconder.. como foi que você falou?
— O que revela o coração falso — repetiu Susan. — Mas não, não era
por isso que eu estava usando figurino.
— Então por quê?
— Era o meu modo de tentar criar um personagem.
— Talvez ele não tenha entendido, afinal de contas — disse Jessica.
— Um personagem capaz de matar — explicou Susan.
— Você precisava se tornar uma pessoa malvestida?
— Bem, eu precisava me tornar outra pessoa. Alguém diferente de mim.
Mas só isso não bastava.
Eu precisava encontrar também o lugar certo.
— O lugar é aqui — disse Jessica.
— E agora — completou Will. — Então, moças, se ninguém se
importa...
— Uuu, huu, moças de novo — disse Susan, e revirou os olhos outra
vez.
— ... podemos sair por um momento desse negócio de atuar...?
— Que tal o seu momento privado? — perguntou Susan.
— Eu não tenho momentos privados.
— Você nunca peida sozinho no escuro? — perguntou Jessica. —
Nunca toca punheta no escuro? — perguntou Susan.
A boca de Will se escancarou.
— Esses são momentos privados — disse Jessica.
Por algum motivo ele não conseguiu fechar a boca.
— Acho que está começando a fazer efeito — observou Susan.
— Tire o copo da mão dele, antes que ele largue — disse Jessica. Will
ficou olhando-as com os olhos e a boca escancarados.
— Aposto que ele acha que é curare — disse Jessica.
— Onde é que a gente iria conseguir curare? — Nas selvas do Brasil?
— Venezuela?
As duas mulheres riram. Will não sabia se era curare ou não. Só sabia
que não conseguia falar nem se mexer.
— Bem, ele sabe que nós não iríamos até a Amazônia para conseguir
veneno — disse Jessica.
— Isso mesmo, ele sabe que você é enfermeira.
— Do Beth Israel, pode apostar. — Com acesso a um monte de drogas.
— Até drogas sintéticas de curare. — Tem muito disso por lá.
— Faça uma lista para ele, Jess.
— Não quero chateá-lo, Sue. — Curare precisa ser injetado, Will, você
sabia? — Os nativos mergulham os dardos nele. — Atiram os dardos com
zarabatanas. — As vítimas ficam paralisadas. — Impotentes. — A morte é
resultado da asfixia. — Isso significa que você não consegue respirar. —
Porque os musculos respiratórios ficam paralisados. — Já está tendo
problema para respirar, Will?
Ele não achava que tivesse problema para respirar.
Mas o que elas estavam falando? Estavam falando que o tinham
envenenado?
— Os sintéticos são em forma de comprimidos — disse Susan. Fáceis
de pulverizar. — Fáceis de dissolver. Há um monte de usos legítimos para
as drogas sintéticas de curare.
— Desde que você tenha cuidado com a dose. — Nós não fomos
particularmente cuidadosas com a dose, Will. — Seu champanhe estava um
pouquinho amargo?
Ele queria balançar a cabeça dizendo que não. O gosto do champanhe
tinha sido bom. Ou será que estava bêbado demais para saber o gosto? Mas
não podia balançar a cabeça e não podia falar.
— Vamos observá-lo — disse Susan. — Estudar suas reações.
— Por quê?
— Bem, pode ser util. — Não para a cena que estamos fazendo. —
Matar alguém.
— Matar alguém, é. Dããã, Susan. Me matar, pensou Will. Na verdade
elas estão me matando. Mas, não... Garotas, pensou, vocês estão
cometendo um erro. Este não é o modo de fazer.
Vamos voltar ao plano original. O plano original era estourar uma
garrafa de champanhe e pular juntos na cama. O plano original era
compartilhar essa bela noite três dias antes... na verdade agora são dois dias,
já passava bem da meia-noite... dois dias antes do Natal, compartilhar
juntos esta noite doce e descomplicada, uma transazinha a três é o que
deveria ser. Então como é que a coisa ficou séria de repente? Não havia
motivo para vocês levarem a sério esse negócio de aulas de teatro e
momentos privados, verdade, esta noite deveria ser de diversão e jogos.
Então por que tiveram de jogar veneno no meu champanhe? Puxa, meu
Deus, garotas, por que tiveram de fazer isso quando estávamos nos dando
tão bem?
— Está sentindo alguma coisa? — perguntou Susan.
— Não — disse Jessica. — E você?
— Achei que eu iria me sentir...
— Eu também.
— Não sei... sinistra, ou algo assim.
— Eu também.
— Quero dizer, matar alguém! Achei que seria uma coisa especial. Em
vez disso...
— Sei o que você quer dizer. É só como olhar alguém... não sei, cortar o
cabelo ou algo assim.
— Talvez a gente devesse ter tentado outra coisa.
— Quer dizer, não veneno?
— Algo mais dramático.
— Algo mais apavorante, sei o que você quer dizer.
— Conseguir algum tipo de reação dele. — Sentado ali que nem um
drogado, morrendo.
As garotas se inclinaram sobre Will e espiaram seu rosto. O rosto delas
parecia distorcido, tão perto do dele e coisa e tal. Os olhos azuis pareciam
saltar das cabeças.
— Faça alguma coisa — disse-lhe Jessica. — Faça alguma coisa,
babaca.
Continuaram olhando-o.
— Acho que não é tarde demais para esfaquear o cara — disse Jessica.
— Você acha?
Por favor, não me esfaqueiem, pensou Will. Eu tenho medo de facas.
Por favor, não me esfaqueiem.
— Vamos ver o que há na cozinha — disse Jessica.
De repente ele estava sozinho. Atrás dele... Não podia virar a cabeça
para vê-las. ...atrás dele podia ouvi-las remexendo no que ele achava que
eram as gavetas da cozinha, podia ouvir o barulho dos utensílios...
Por favor, não me esfaqueiem.
— Que tal esta? — perguntou Jessica.
— Parece enorme para o serviço.
— Cortar direitinho a porra da garganta dele. — Jessica gargalhou.
— Então vamos ver se ele fica ali sentado feito um drogado.
— Vamos provocar algum tipo de reação nele.
— Ajudar a gente a sentir alguma coisa.
— Agora você entendeu, Sue. Esse é o ponto.
O peito de Will apertava. Ele estava começando a ter dificuldade de
respirar.
Na cozinha as garotas riram de novo. Por que estavam rindo? Teriam
dito alguma Coisa que ele não pôde ouvir? Iriam fazer outra coisa com a
faca, outra coisa que não cortar sua garganta? Gostaria de poder respirar
fundo. Sabia que iria se sentir muito melhor se pudesse respirar fundo.
Mas... não... não parecia... capaz de...
— Ei! — disse Jessica. — Você aí! Não deixe a gente na mão!
Susan olhou-a. — Acho que ele já era.
— Merda! — exclamou Jessica.
— O que você está fazendo?
— Tomando a pulsação dele. Susan esperou. — Nada — disse Jessica, e
largou o pulso. As irmãs ficaram olhando Will, sentado frouxo na poltrona,
a boca ainda aberta, os olhos arregalados.
— Sem duvida ele parece morto — disse Jessica. — É melhor tirá-lo
daqui. — Vai ser um bom exercício. Nos livrarmos do corpo.
— Nem fale. Aposto que ele pesa pelo menos uns oitenta e cinco quilos.
— Não falei que era um exercício bom, Sue. Eu disse um bom
exercício. Um bom exercício de interpretação.
— Ah, certo. A sensação de se livrar de um cadáver. Certo.
— Então vamos fazer — disse Jessica. Começaram a levantá-lo da
cadeira. Na verdade ele era muito pesado.
Meio o carregaram, meio o arrastaram até a porta da frente.
— Diga uma coisa — pediu Susan. — Você... você sabe... já está
sentindo alguma coisa?
— Nada — disse Jessica.

***
Cielo Azul
Michael Connelly

Na subida, o ar-condicionado do carro pifou pouco antes de Bakersfield.


Era setembro e fazia calor enquanto eu avançava pelo interior do estado.
Logo senti a camisa grudando no banco de vinil. Tirei a gravata e
desabotoei o colarinho. Para começo de conversa, nem sabia por que pusera
gravata. Não estava a serviço e não ia a lugar algum que pedisse gravata.
Tentei ignorar o calor e me concentrei em como lidaria com Seguin.
Mas aquilo era como o calor. Sabia que não havia como lidar com ele. De
algum modo, sempre fora o contrário. Seguin tinha controle sobre mim,
fazia minha camisa grudar nas costas. De um modo ou de outro, aquilo
acabaria naquela viagem.
Girei o pulso ainda segurando o volante e verifiquei a data no meu
Timex. Exatamente vinte anos desde aquele dia em que eu conhecera
Seguin. Desde que olhara nos olhos verdes e frios de um assassino.
O caso começara em Mulholland Drive, uma estrada sinuosa como uma
cobra que segue o espinhaço das montanhas Santa Mônica. Um grupo de
secundaristas parara na beira da estrada para beber cerveja e observar de
cima a fumarenta cidade dos sonhos. Um deles viu o corpo, aninhado entre
a vegetação da montanha e as latas de cerveja e tequila atiradas por pessoas
que estiveram ali anteriormente. A mulher estava nua, pernas e braços
abertos, uma exibição grotesca de sexo e assassinato. Eu e meu parceiro,
Frankie Sheehan, recebemos a chamada. Na época trabalhávamos na
divisão de roubos e homicídios da polícia de Los Angeles.
A cena do crime era traiçoeira. O corpo estava preso em uma vertente
com mais de 60 graus de inclinação. Um escorregão e era possível cair pela
encosta e acabar dentro da hidro ou no pátio de alguém lá embaixo.
Vestindo macacões de pára-quedismo e com a ajuda de arneses de couro,
fomos baixados até o corpo por bombeiros do 58° Batalhão.
A cena era clara. Sem roupas, sem identidade, sem prova física,
nenhuma pista sobre a mulher morta. Também não encontramos fibras que
pudessem ser uteis. Aquilo era incomum em um homicídio.
Estudei a vítima de perto e dei-me conta que mal era uma mulher:
provavelmente era ainda adolescente. Mexicana, ou descendente de
mexicanos, tinha cabelo e olhos castanhos, e pele escura. Dava para ver que
fora bela quando viva. Morta, era de partir o coração. Meu parceiro sempre
me dissera que as mulheres mais perigosas eram como aquela. Belas em
vida, e de partir o coração quando mortas. Podiam assombrá-lo, mexer com
você, mesmo que encontrássemos o monstro que tirou tudo dela.
Fora estrangulada. As marcas dos polegares de seu matador eram
claramente visíveis em seu pescoço, os pequenos vasos sanguíneos
rompidos garantindo-lhe um ruge mórbido ao redor dos olhos. O rigor
mortis viera e se fora. Estava flácida. Aquilo nos dizia que estava morta
havia mais de 24 horas.
O mais provável é que tivesse sido jogada ali na noite anterior, com a
cumplicidade da escuridão. Aquilo significava que estivera morta em algum
outro lugar durante 12 horas ou mais. O outro lugar era a verdadeira cena
do crime. Era o lugar que precisávamos encontrar.
Quando virei o carro em direção à baía, o ar finalmente começou a
esfriar. Segui para leste em direção a Oakland e então atravessei a ponte
para São Francisco.
Antes de cruzar a Golden Gate parei para comer um hamburguer no
Balboa Bar & Grill. Vou a São Francisco duas ou três vezes por ano para
resolver casos. Sempre como no Balboa. Daquela vez, comi no bar, olhando
ocasionalmente para a televisão para ver os Giants jogando em Chicago.
Estavam perdendo.
Mas o antigo caso não saía da minha cabeça. Era um caso encerrado
agora, e Seguin jamais voltaria a ferir alguém. A não ser a si mesmo. Sua
última vítima seria ele mesmo. Mas ainda assim o caso me incomodava.
Um assassino fora pego, julgado e condenado, e agora seria executado por
seus crimes. Mas ainda havia uma pergunta não respondida que me
incomodava. Era o que me fazia seguir para San Quentin em meu dia de
folga.
Não sabíamos o seu nome. As digitais do cadáver não combinavam
com nenhum de nossos registros computadorizados. Sua descrição não
combinava com nenhum caso de pessoa desaparecida no condado de Los
Angeles ou no registro nacional de crimes. Um esboço de seu rosto,
veiculado nos noticiários e nos jornais impressos, não rendeu qualquer
chamado de parente ou conhecido. Os esboços enviados para quinhentas
delegacias de polícia do sudoeste e para a Polícia Estadual Judicial no
México de nada adiantaram. A vítima continuava não-reclamada e não-
identificada, o corpo repousando no refrigerador do laboratório do médico-
legista enquanto Sheehan e eu trabalhávamos no caso.
Era difícil. A maioria dos casos começa com uma vítima. Quem era a
pessoa e como vivia se tornavam o centro da roda, o ponto de apoio. Tudo
vinha do centro. Mas não tínhamos isso e não tínhamos a cena do crime.
Nada tínhamos e não íamos a lugar algum.
Tudo isso mudou com Teresa Corazon. Ela era a segunda legista do
caso, oficialmente conhecido como Maria Ninguém n° 90-91. Enquanto
preparava o corpo para a autópsia chegou à pista que nos levaria primeiro a
McCaleb e, então, para Seguin.
Corazon descobriu que o corpo da vítima aparentemente fora lavado
com um limpador industrial antes de ser descartado na encosta. Era uma
tentativa do assassino de destruir as pistas. Contudo, aquilo por si só era
uma prova e uma pista consistente. O agente de limpeza poderia ajudar a
levar à identidade do criminoso ou ajudar a ligá-lo ao crime. Contudo, foi
outra descoberta feita por Corazon que virou o caso para nós. Enquanto
fotografava o corpo, a segunda legista percebeu uma marca na pele do
quadril esquerdo anterior da vítima. A lividez post-mortem indicava que o
sangue no corpo se acumulara na metade esquerda, o que queria dizer que o
corpo estivera deitado sobre o lado esquerdo no tempo entre a parada do
coração e sua desova na encosta de Mulholland. A prova indicava que,
durante o tempo que o sangue se assentou, o corpo ficara apoiado sobre o
objeto que deixara a marca em seu quadril.
Usando luz oblíqua para examinar a marca, Corazon descobriu que
podia claramente discernir o numero 1, a letra J e parte de uma terceira letra
que podia ser a haste superior esquerda de um H, de um K ou de um L.
— Uma placa de automóvel — disse eu quando ela me chamou à sala
de autópsia para ver a descoberta. — Ele a deitou sobre uma placa de
automóvel.
— Exatamente, detetive Bosch — disse Corazon. Sheehan e eu
rapidamente formulamos a teoria de que, fosse lá quem tivesse matado a
mulher sem nome, teria escondido o corpo no porta-mala de um carro até
ficar suficientemente escuro e seguro para desová-lo em Mulholland. Após
limpar cuidadosamente o corpo, o assassino o colocou no porta-malas,
deitando-o sem querer sobre parte de uma placa de automóvel que fora
tirada do carro e também colocada ali. Esta parte da teoria sugeria que a
placa teria sido removida e possivelmente substituída por uma placa
roubada como mais uma medida de segurança que ajudaria o assassino a
evitar a sua identificação, caso seu carro fosse visto por algum passante
desconfiado no mirante Mulholland.
A marca na pele não indicava qual estado emitira a placa. Mas o uso do
mirante Mulholland sugeria que estávamos procurando alguém
familiarizado com a região, um morador. Começamos com o Departamento
de Veículos Motorizados da Califórnia e obtivemos uma lista dos carros
registrados no condado de Los Angeles que tivessem a placa que começasse
com 1JH, 1JK e 1JL.
A lista continha mais de mil nomes de donos de automóveis.
Descartamos quase 40 por cento desses por serem de mulheres. Os nomes
que sobraram foram verificados no computador do Índice Nacional de
Crimes e conseguimos uma lista de 36 homens com registros criminais que
iam de pequenas infrações até as mais extremas.
A primeira vez que estudei a lista de 36 tive a certeza. Um daqueles
nomes pertencia ao assassino da mulher sem nome.
A Golden Gate fazia jus ao nome sob o sol vespertino. Estava lotada de
carros trafegando em ambos os sentidos e o desvio turístico no lado norte
tinha uma placa que dizia: LOTADO. Continuei em frente, através do tunel
pintado com as cores do arco-íris que cruzava a montanha. Logo podia ver
San Quentin à direita. Lugar agourento em uma paisagem idílica, abrigava
os piores criminosos que a Califórnia tinha a oferecer. E eu estava a ponto
de me encontrar com o pior dos piores.
— Harry Bosch? Voltei-me da janela onde observava as pedras brancas
do cemitério dos veteranos em Wilshire. Um homem de camisa branca e
gravata marrom mantinha aberta a porta que levava aos escritórios do FBI.
Parecia ter os seus 35 anos, tinha compleição esbelta e aparência saudável.
Sorria.
— Terry McCaleb?
— Eu mesmo. Apertamos a mão e ele me convidou a entrar, guiando-
me através de um labirinto de escritórios e corredores revestidos de painéis
de madeira, até chegarmos ao dele. Parecia ter sido um armário de faxineiro
anteriormente. Era menor que uma cela solitária e tinha espaço apenas para
abrigar uma escrivaninha e duas cadeiras.
— Creio que foi uma boa ideia meu parceiro não ter querido vir também
— disse eu, me espremendo no cubículo.
Frankie Sheehan se referia aos perfis criminais como "buromerda" e
"charlatanismo de Quantico". Quando, havia uma semana, decidi entrar em
contato com McCaleb, o residente autor de perfis do escritório do FBI de
Los Angeles, nós discutimos. Mas eu era o encarregado-chefe daquele caso
e fiz a ligação.
— É, as coisas são um tanto apertadas aqui — disse McCaleb. — Mas
ao menos tenho um espaço privativo.
— A maioria dos policiais que conheço gostam de ficar na sala comum.
Gostam da camaradagem, creio eu.
McCaleb apenas meneou a cabeça e disse: — Gosto de ficar só.
Apontou para a cadeira vaga e eu me sentei. Notei a foto de uma
adolescente pregada na parede sobre a escrivaninha. Parecia apenas alguns
anos mais jovem que a vítima. Achei que, caso a menina fosse filha de
McCaleb, seria uma pequena vantagem para mim. Algo que o faria dar um
pouco mais de atenção ao meu caso.
— Não é minha filha — disse McCaleb. — É um caso antigo, na
Flórida.
Apenas olhei para ele. Não seria a última vez que ele pareceria ler os
meus pensamentos como se eu os estivesse dizendo em voz alta.
— Então, sem identificação de sua vítima, certo?
— Não, nada ainda.
— Isso sempre complica.
— Em sua mensagem você disse que viu o arquivo?
— Sim, vi.
Eu lhe enviara cópias do registro do assassinato e todas as fotos da cena
do crime na semana anterior. Mas não tínhamos feito uma gravação, o que
aborreceu McCaleb. Mas consegui uma fita de tomadas da cena do crime
com um repórter de tevê. O helicóptero da emissora sobrevoava o local,
mas não transmitira qualquer imagem devido à natureza chocante de seu
conteudo.
McCaleb abriu um arquivo em sua escrivaninha e consultou-o antes de
dizer:
— Antes de mais nada, está familiarizado com nosso programa
Apreensão de Criminosos Violentos (APCVI)?
— Sei do que se trata. É a primeira vez que submeto um caso.
— Sim, você é uma raridade do DPLA. A maioria de vocês não quer ou
não confia em nossa ajuda. Mais alguns sujeitos como você e talvez eu
conseguisse um escritório maior.
Meneei a cabeça. Não diria a ele que era a desconfiança e a suspeita
institucional que evitavam que a maioria dos detetives do DPLA buscassem
a ajuda do FBI. Era uma determinação implícita que vinha do próprio chefe
de polícia. Diziam que o chefe costumava xingar em voz alta em seu
escritório toda vez que ouvia notícias de prisões feitas pelo FBI nos limites
da cidade. Era bem sabido no departamento que o esquadrão de roubo de
banco rotineiramente monitorava as transmissões de rádio do esquadrão de
roubo de banco do FBI e frequentemente prendia suspeitos antes de os
federais terem oportunidade de fazê-lo.
— É, bem, eu só queria esclarecer o caso — disse eu.
— Realmente não me importo se você é um psicótico ou Papai Noel. Se
tiver algo que me ajude, eu o ouvirei.
— Bem, creio que tenho, sim. Virou uma página do arquivo e pegou
uma pilha de fotos da cena do crime. Não eram as fotos que eu lhe enviara.
Eram ampliações das fotos originais da cena do crime. Ele as fizera por
conta própria. Aquilo me deu certeza de que McCaleb certamente perdera
algum tempo com o caso. E me fez pensar que aquilo o fisgara do mesmo
modo que a mim. Uma mulher sem nome deixada morta em uma encosta.
Uma mulher que ninguém apareceu para reclamar. Uma mulher com quem
ninguém se importava. Do tipo perigoso. No fundo de meu coração, eu me
importava e a reclamava para mim. Agora, talvez McCaleb também a
estivesse reclamando.
— Deixe-me apenas começar dando-lhe uma visão geral do que acho
que temos aqui — disse McCaleb.
Folheou as fotos por um instante, parando em uma imagem tirada do
vídeo do noticiário. Era uma tomada aérea do corpo nu, braços e pernas
escancarados na encosta.
Tirei um cigarro do maço.
— Você pode já ter chegado a essas mesmas conclusões. Se o fez, peço
desculpas. Não quero que perca tempo. A propósito, não é permitido fumar
aqui.
— Não se preocupe com isso — disse eu, afastando o cigarro. — o que
tem para mim?
— A cena do crime é muito importante por nos dar uma visão do modo
de pensar do assassino. O que vejo aqui sugere o trabalho daquilo que
chamamos de assassino exibicionista. Em outras palavras, este é um
assassino que queria que seu crime fosse visto, que se tornasse publico, para
instilar horror e medo na população de modo geral. Desta reação do publico
ele tira sua satisfação. Ele é alguém que lê jornais e vê os noticiários em
busca de informação ou atualização sobre a investigação.
Assim, ao encontrá-lo, creio que encontraremos recortes de jornal e
talvez vídeos com noticiários de tevê sobre o caso. Provavelmente estarão
em seu quarto porque seriam uteis para ele compor as suas fantasias
masturbatórias.
Notei que ele dissera "nós" referindo-se aos investigadores do caso, mas
não reagi. McCaleb continuou como se estivesse falando para si mesmo e
não houvesse ninguém mais no escritório.
— Um componente da fantasia exibicionista do assassino é o duelo.
Exibir o seu crime ao publico implica exibi-lo para a polícia. Em verdade,
está lançando um desafio.
Está dizendo: "Sou melhor que vocês, mais esperto e astuto. Mostre-me
que estou errado, se puder. Pegue-me, se puder." Viu? Ele está duelando
com você na arena da mídia publica.
— Comigo?
— Sim, com você. Neste caso em particular você está na linha de frente
da mídia. É o seu nome que os jornais citam.
— Sou encarregado do caso. Fui eu quem conversou com os repórteres.
McCaleh meneou a cabeça.
— Tudo bem — disse eu. — Tudo isso é bom para compreender que
esse cara é louco. Mas o que tem para mim que aponte o cara certo?
McCaleb meneou a cabeça.
— Sabe como os corretores de imóveis vivem dizendo: locação,
locação, locação? É o mesmo comigo. O lugar que ele escolheu para deixá-
la é significativo pelo fato de denunciar as suas tendências exibicionistas.
Ali são as Hollywood Hills. Você tem o Mulholland Drive e a visão da
cidade. Esta vítima não foi jogada ali por acaso. Este lugar foi escolhido,
talvez tão cuidadosamente quanto ela foi escolhida como vítima. A
conclusão é que o lugar da desova é familiar a nosso assassino devido à
rotina de sua vida, mas não foi escolhido por uma questão de conveniência.
Ele escolheu este lugar, ele queria este lugar, porque era o melhor para
anunciar o seu trabalho para o mundo. Era parte do quadro. Isso quer dizer
que pode ter percorrido uma longa distância para jogá-la ali. Ou que pode
ter vindo de algumas quadras de distância.
Percebi o uso do pronome "nosso" em "nosso assassino". Sabia que se
Frankie tivesse vindo comigo já teria estourado. Eu deixei rolar.
— Viu a lista de nomes que acrescentei?
— Sim, vi tudo. E acho que seus instintos são bons. Os dois suspeitos
potenciais que você destacou se encaixam no perfil que construí para este
assassino. Vinte e tantos anos, com uma história de crimes em escalada
crescente.
— O faxineiro do Woodland Hills tem acesso rotineiro a limpadores
industriais. Podemos comparar o agente de limpeza usado no corpo. É dele
que mais desconfiamos.
McCaleb meneou a cabeça mas nada disse. Parecia estar estudando as
fotografias, que agora se espalhavam por sua mesa.
— Você acha que foi o outro sujeito, não é mesmo? O construtor de
palcos de Burbank.
McCaleb me encarou.
— Sim, acho. Seus crimes, embora menores, se encaixam melhor nos
modelos de maturação de um predador sexual que conhecemos. Creio que
devamos nos certificar de falar com ele em sua casa. Teremos uma ideia
melhor ao seu respeito. Nós saberemos.
— Nós?
— Sim. E precisamos fazê-lo logo. Apontou para as fotos que cobriam a
sua mesa. — Isso não foi um caso único. Seja ele quem for, vai fazê-lo
novamente... se já não tiver feito.
Fui responsável por muitos homens enviados a San Quentin mas nunca
estivera ali antes. Nos portões, mostrei a minha identidade e recebi
instruções impressas que me conduziram a um estacionamento para
veículos de policiais. Através de uma porta ali perto onde se lia APENAS
AGENTES DA LEI atravessei o muro alto da prisão e minha arma foi
tomada e guardada em um cofre. Deram-me uma etiqueta de plástico
vermelho com o numero sete impresso.
Após meu nome ser inserido no computador e o passe confirmado, um
guarda que não se incomodou em se apresentar levou-me através de um
pátio recreativo até um edifício de tijolos que escurecera com o tempo até
assumir o aspecto enegrecido de uma lareira. Era a casa da morte, lugar
onde Seguin receberia uma injeção letal na semana seguinte.
Cruzamos uma porta de segurança e um detector de metais e fui passado
para um outro guarda, que abriu uma sólida porta de aço e apontou para um
corredor.
— Última à direita — disse ele. — Quando quiser sair, acene para uma
das câmaras. Estaremos de olho.
Ele me deixou ali e fechou a porta de aço com um estrondo que pareceu
reverberar dentro de meus ossos.
Frankie Sheehan não gostou muito mas eu era o encarregado-chefe do
caso e o chamei. Permiti que McCaleb se juntasse a nós nas entrevistas.
Começamos com Victor Seguin. Era o primeiro na lista de McCaleb,
segundo na minha. Mas havia algo na intensidade dos olhos e das palavras
de McCaleb que me fizeram concordar em entrevistar Seguin primeiro.
Seguin era um construtor de cenários que vivia em Screenland Drive,
Burbank. Era uma casa pequena repleta de peças em madeira, como era de
se esperar que fosse a casa de um carpinteiro. Parecia que, quando Seguin
não trabalhava no cinema, ficava em casa construindo belas molduras de
janelas e vasos decorativos.
O Ford Taurus com placa com início 1JK estava estacionado no acesso
de veículos. Segurei o gorro do casaco enquanto subimos pelo acesso de
veículos até a porta da casa. Estava frio.
Às 20h, justo quando escurecia, bati à porta da frente. Seguin atendeu
vestindo jeans e uma camiseta. Sem sapatos. Vi os seus olhos se
arregalarem ao me ver. Sabia quem eu era antes mesmo de eu ter mostrado
o distintivo e dito o meu nome. Senti o dedo frio da adrenalina descendo-
me ao longo das costas. Lembrei-me do que McCaleb dissera sobre o
assassino acompanhar o trabalho da polícia. Eu estivera na tevê falando
sobre o caso. Eu estivera nos jornais.
Sem nada demonstrar, eu disse:
— Sr. Seguin, sou o detetive Harry Bosch do DPLA. Aquele carro é
seu?
— Sim, é meu. Por quê? O que está acontecendo?
— Precisamos fazer algumas perguntas, se não se importa. Podemos
entrar por alguns minutos?
— Bem, não, primeiro gostaria de saber o que...
— Obrigado. Avancei através do umbral da porta, forçando-o a recuar.
Os outros me seguiram.
— Ei, espere um instante, o que é isso? Havíamos combinado aquilo
antes de chegarmos. Eu conduziria a entrevista. Sheehan era o segundo.
McCaleb disse que só queria observar.
A sala de estar era um exagero de carpintaria, estantes embutidas nas
três paredes. Um consolo de madeira que era grande demais para a sala fora
construído ao redor de uma pequena lareira de tijolos. Um gabinete de tevê
que ia do chão ao teto era usado como divisória entre a área de estar e o que
parecia um pequeno escritório.
Meneei a cabeça em aprovação.
— Belo trabalho. Tem muita folga em sua profissão?
Seguin meneou a cabeça, relutante.
— Fiz a maior parte disso durante uma greve há alguns anos.
— O que você faz?
— Sou construtor de cenários. Então, o que tem meu carro? Você não
pode ir entrando aqui assim. Eu tenho direitos.
— Por que não senta, Sr. Seguin, e eu explico. Acreditamos que seu
carro possivelmente foi usado na execução de um crime grave.
Seguin deixou-se cair em uma cadeira macia posicionada para ver
melhor a tevê. Dei-me conta de que McCaleb inspecionava o outro lado da
sala, estudando as estantes de livros e as diversas quinquilharias sobre o
consolo e outras peças da mobília. Sheehan sentou-se no sofá à esquerda de
Seguin. Ele o encarou friamente, sem palavras.
— Qual crime?
— Assassinato. Esperei a palavra surtir efeito. Mas me pareceu que
Seguin havia se recobrado do choque inicial e estava endurecendo. Já vira
aquilo antes. Tentaria se livrar.
— Alguém mais dirige o seu carro, Sr. Seguin?
— Às vezes. Se eu o empresto.
— E quanto a três semanas atrás, 15 de agosto, você o emprestou para
alguém?
— Não sei. Terei de verificar. Não creio que deseje responder a mais
perguntas e acho que quero que vocês saiam.
McCaleb sentou-se à direita de Seguin. Permaneci de pé. Olhei para
McCaleb e ele meneou a cabeça ligeiramente, e apenas uma vez. Mas sabia
o que ele estava me dizendo. Este é o cara.
Olhei para meu parceiro. Sheehan não vira o sinal de McCaleb porque
não tirava os olhos de Seguin. Tinha de fazê-lo perceber. Agir de acordo
com o sinal de McCaleb ou recuar. Olhei de volta para McCaleb. Ele me
olhou, os olhos mais intensos que eu já vira até então.
Fiz sinal para Seguin se levantar.
— Sr. Seguin, preciso que se levante. Eu o estou prendendo por suspeita
de assassinato.
Seguin levantou-se lentamente e então fez um movimento subito em
direção à porta. Mas Sheehan, que estava preparado para aquilo, o derrubou
e apertou a cabeça do suspeito contra o tapete antes que este pudesse dar
três passos. Frankie puxou-lhe os braços para trás e o algemou. Então,
ajudei a levantar Seguin e o levamos para o carro, deixando McCaleb para
trás.
Frankie ficou com o suspeito. Voltei para a casa e descobri McCaleb
ainda sentado na cadeira.
— O que faz aí?
McCaleb estendeu o braço para a estante mais próxima. — Esta é a
cadeira de leitura dele — disse ele.
Tirou um livro da estante.
— E este é o livro favorito. O livro estava muito usado, o dorso
quebrado e as páginas gastas por leituras repetidas. Enquanto McCaleb
folheava as páginas, percebi que parágrafos e frases haviam sido
sublinhados. Aproximeime de modo que pudesse ler a capa. Chamava-se O
colecionador.
— Já leu? — perguntou McCaleb.
— Não. Sobre o que é?
— É sobre um cara que sequestra mulheres. Ele as coleciona. Ele as
mantém em casa, no porão.
Meneei a cabeça.
— Terry, precisamos sair daqui e conseguir um mandado de busca.
Quero fazer isso direito.
— Eu também.
Seguin estava sentado na cama em sua cela olhando para um tabuleiro
de xadrez armado sobre a privada. Não ergueu a cabeça quando me
aproximei das grades, embora pudesse ver que minha sombra atravessava o
tabuleiro.
— Com quem está jogando? — perguntei.
— Com alguém que morreu há 65 anos. Ele põe seu melhor momento,
este jogo, em um livro. E ele revive. Ele é eterno.
Olhou para mim então, os olhos ainda os mesmos: olhos frios e verdes
de assassino em um corpo que se tornou lívido e fraco após 12 anos em
ambientes pequenos e sem janelas.
— Detetive Bosch. Não esperava vê-lo antes da semana que vem.
Balancei a cabeça.
— Não virei na semana que vem.
— Não vai assistir ao espetáculo? Testemunhar a glória dos justos?
— Não me agrada. Quando usavam o gás, talvez valesse a pena ver.
Mas ver um babaca em uma mesa de massagem receber uma injeção e
então embarcar para a Terra do Nunca-Nunca? Não, vou assistir aos
Dodgers jogarem contra os Giants nesse dia. Já tenho meu ingresso.
Seguin se ergueu e se aproximou das grades da cela. Lembrei-me das
horas que passamos na sala de interrogatório, assim tão perto. O corpo
estava gasto, mas não os olhos. Estes permaneciam imutáveis. Aqueles
olhos eram a melhor assinatura do mal que jamais conheci.
— Então, o que o traz aqui hoje, detetive?
Ele sorriu para mim, dentes amarelados, gengivas cinza como as
paredes. Sabia que a viagem fora um erro. Sabia que ele não me daria o que
eu queria para poder me libertar.
Duas horas após termos posto Seguin no carro, dois outros detetives da
divisão de roubos e homicídios chegaram com um mandado de busca para a
casa e para o carro.
Por estarmos na cidade de Burbank, rotineiramente notifiquei as
autoridades locais de nossa presença, e uma equipe de detetives de Burbank
e dois policiais fardados chegaram ao local. Enquanto os policiais vigiavam
Seguin, o restante de nós começou a revista.
Nos espalhamos. A casa não tinha porão. McCaleb e eu ficamos com o
quarto principal e Terry imediatamente notou as rodas no pé da cama.
Ajoelhou-se, afastou a cama e lá estava um alçapão no chão de madeira,
trancado com um cadeado.
Enquanto McCaleb procurava a chave, peguei as minhas gazuas dentro
da carteira e trabalhei na fechadura. Eu estava a sós no quarto. Ao tentar
abrir o cadeado eu o bati contra o fecho de metal e pensei ter ouvido um
ruído atrás da porta em resposta. Era distante e abafado, mas para mim
soava como terror na voz de alguém.
Senti um frio no estômago e pavor e esperança simultaneamente.
Trabalhei na fechadura com toda a minha habilidade e em trinta
segundos ela se abriu.
— Consegui! McCaleb, consegui!
McCaleb voltou correndo até o quarto e abrimos o alçapão, que revelou
uma lâmina de compensado com travas nos quatro cantos. Nós a abrimos e
ali, debaixo do chão, estava uma menina: vendada, amordaçada e com as
mãos amarradas às costas. Estava nua sob um sujo cobertor cor-de-rosa.
Mas estava viva. Ela se virou e se jogou contra o isolamento acústico
que revestia a caixa, que se assemelhava a um ataude. Era como se ela
estivesse tentando escapar. Dei-me conta de que a menina deveria estar
achando que quem abrira o alçapão fora ele novamente. Seguin.
— Está tudo bem — disse McCaleb. — Estamos aqui para ajudar.
McCaleb meteu a mão dentro da caixa e gentilmente tocou-a no ombro. Ela
se retraiu como um animal mas então se acalmou.
Então, McCaleb deitou-se no chão e voltou a estender os braços para
dentro da caixa para começar a remover a venda e a mordaça.
— Harry, chame uma ambulância.
Eu me levantei e me afastei um pouco. Senti o peito apertar e uma
subita clareza de raciocínio tomar conta de mim. Em todos os meus anos
como policial, muitas vezes falara em nome dos mortos. Eu vingava os
mortos. Estava em casa com os mortos. Mas nunca tivera participação no
salvamento de uma pessoa, tirando-a das mãos estendidas da morte. E,
naquele momento, sabia que havíamos acabado de fazer exatamente isso. E
eu sabia que qualquer coisa que acontecesse depois e para onde quer que a
vida me levasse, eu sempre teria aquele momento como uma luz capaz de
me guiar para fora dos tuneis mais escuros.
— Harry, o que está fazendo? Chame uma ambulância. Olhei para ele.
— É, agora mesmo.
A cela do carpinteiro era toda de concreto e aço. Fazia uma década que
ele não tocava em madeira. Aproximei-me das grades e olhei para ele.
— Seu tempo está acabando. Você esgotou as suas apelações, temos um
governador que precisa mostrar que é severo com o crime. É isso aí, Victor.
Daqui a uma semana você vai tomar uma injeção.
Esperei uma reação, mas nada aconteceu. Apenas me olhou e esperou
por aquilo que ele sabia que eu perguntaria.
— Hora de passar as coisas a limpo. Diga-me quem era ela. Diga-me de
onde a tirou.
Ele se aproximou das grades e chegou perto de mim o bastante para eu
sentir a podridão de seu hálito. Não recuei.
— Todos esses anos, Bosch. Todos esses anos e ainda precisa saber. Por
quê?
— Apenas preciso.
— Você e McCaleb.
— O que tem ele?
— Ah, ele também veio me ver.
Sabia que McCaleb estava fora de serviço. O trabalho custara-lhe o
coração. Fizera um transplante e mudara-se para Catalina. Administrava um
charter de pesca.
— Quando ele esteve aqui?
— Oh, deixe-me ver. É difícil ter noção do tempo aqui. Faz alguns
meses. Terry veio bater papo comigo com seu coração novo. Disse que
estava pelas redondezas. Não gostou de minha opinião do filme. O que você
achou? Ele falava de um filme no qual Clint Eastwood fazia o papel de
McCaleb.
— Eu não vi. O que ele queria quando veio até aqui?
— Queria saber a mesma coisa. Quem era a menina, de onde veio... Ele
me disse que você lhe deu um nome na época do julgamento. Cielo Azul.
Isso é realmente muito bonito, detetive Bosch. Céu Azul. Por que escolheu
este nome?
— Ele lhe disse isso?
— Sim, exatamente aí onde você está agora. Isso não é nada
profissional, não é, detetive Bosch? Ficar assim tão perto. Seria perigoso
deixar uma mulher chegar assim tão perto. Morta ou viva.
Tive vontade de ir, de me afastar dele.
— Então, Seguin, vai me dizer ou não? Ou vai levar isso com você? Ele
sorriu e afastou-se das grades. Caminhou até o tabuleiro e pareceu estar
considerando um movimento.
— Sabe, costumavam me deixar ter um gato aqui dentro. Sinto saudade
daquele gato.
Pegou uma das peças de plástico mas então hesitou e devolveu-a ao
mesmo lugar. Ele voltou-se para mim.
— Sabe o que eu acho? Acho que vocês dois não conseguem suportar o
fato de aquela menina não ter um nome, não ter uma casa com papai e
mamãe e um irmãozinho. A ideia de ninguém estar se importando ou
sentindo falta dela deixa vocês vazios, não é?
— Só quero encerrar o caso.
— Oh, mas está encerrado. Você não está aqui por causa dele. Está aqui
por conta própria. Admita, detetive. Assim como McCaleb veio por conta
própria. A ideia daquela coisinha linda (por falar nisso, se acha que ela era
linda morta, então deveria tê-la visto antes), a ideia de ela estar repousando
sem ser reclamada em uma tumba sem nome durante todo esse tempo
arruina tudo o que você faz, não é mesmo?
— É uma coisa não-resolvida. Não gosto de coisas não-resolvidas.
— É mais do que isso, detetive. Eu sei.
Nada disse, esperando que, caso continuasse a falar, ele cometesse
algum erro.
— Seu rosto era angelical — disse ele. — E aqueles longos cabelos
castanhos... sempre babei por aquele tipo de cabelo. Ainda me lembro do
cheiro. Ela me disse que usava xampu de morango. Eu nem sabia que
punham essas coisas no xampu, cara.
Ele estava debochando de mim. A ideia de ter ido até ele para que me
dissesse o nome dela então parecia-me absurda.
— Ela era uma daquelas mulheres, você sabe.
— Não, não sei. Por que não me diz?
— Bem, ela tinha aquela coisa, aquele poder. Foi por isso que eu a
escolhi.
— Que poder?
— Você sabe, ela podia feri-lo apenas com o olhar. Rosto de anjo mas
corpo de... Já se deu conta como os carros vermelhos parecem estar
correndo mesmo quando estão parados? Ela era assim. Era perigosa. Ela
tinha de morrer. Se eu não fizesse, ela o faria conosco. Com um bocado de
nós.
Ele me olhou e eu sabia que ainda tinha controle da situação. Não
estava me dando nada, só tentando me provocar.
— Ei, Bosch?
— O quê?
— Se uma árvore cai na floresta e ninguém ouve, ela faz barulho? Seu
sorriso se abriu ainda mais. — Se uma mulher é assassinada em uma cidade
e ninguém se importa, isso importa?
— Eu me importo.
— Exato. Aproximou-se das grades. — E você precisa de mim para se
livrar daquele fardo dando-lhe um nome, uma mãe e um pai que se
importem.
Ele estava a trinta centímetros de mim. Podia estender o braço através
das grades e agarrá-lo pela garganta. Mas era isso que ele queria que eu
fizesse.
— Bem, não vou libertá-lo, detetive. Você me colocou nesta gaiola. Eu
o ponho nessa.
Ele se afastou e apontou para mim. Olhei para baixo e vi que minhas
mãos agarravam firmemente as barras de aço da cela. Minha cela.
Olhei para ele e seu sorriso estava de volta, inocente como um bebê.
— Engraçado, não é mesmo? Lembro-me daquele dia há 12 anos.
Sentado no banco traseiro do carro enquanto vocês policiais brincavam de
herói. Tão cheios de si por a terem salvado. Aposto que nunca pensaram
que acabaria assim, não é? Salvou uma, mas perdeu a outra.
Baixei a cabeça.
— Seguin, você vai queimar. Você vai para o inferno.
— Sim, creio que sim. Mas ouvi dizer que é um calor seco.
Ele gargalhou e eu olhei para ele.
— Sabe, detetive? Você tem de acreditar no céu para crer no inferno.
Voltei-me abruptamente dando as costas às grades e fui em direção à
porta de metal. Logo acima, vi uma câmera. Fiz um gesto pedindo que
abrissem a porta e apressei o passo ao me aproximar. Precisava sair dali.
Ouvi a voz de Seguin ecoando nas paredes atrás de mim.
— Vou tê-la perto de mim, Bosch! Vou estar com ela bem ao meu lado!
Eternamente juntos! Eternamente minha!
Quando cheguei à porta de aço bati com ambos os punhos até ouvir um
ruído da trava eletrônica e o guarda começar a abri-la.
— Tudo bem, cara, tudo bem. Qual a pressa? — Apenas me deixe sair
daqui — disse eu ao passar. Ainda ouvia a voz de Seguin ecoando pela casa
da morte quando voltei a atravessar os muros e saí em campo aberto.

***
Dê-me seu coração
Joyce Carol Oates

Caro Dr. K—: Faz muito tempo, não? Vinte e três anos, nove meses e
onze dias. Desde que nos vimos pela última vez. Desde que me viu,
"desnuda" sobre seus joelhos nus. Caro Dr. K—! A saudação formal não é
usada como lisonja, muito menos como chacota, por favor entenda. Não
estou escrevendo depois de tantos anos para lhe implorar um favor
despropositado (espero), ou para fazer exigências, simplesmente para
perguntar se, em seu julgamento, eu deveria me submeter à formalidade, e
ao trabalho, de me candidatar a ser a feliz recipiente do seu órgão mais
precioso, o seu coração. Se posso esperar colher o que me é devido, depois
de tantos anos. Fiquei sabendo que você, o renomado Dr. K—, é um
daqueles que generosamente assinaram um "testamento em vida" doando
seus órgãos para aqueles necessitados. Não caberia ao Dr. K— um funeral e
enterro antiquado num cemitério, nem mesmo uma cremação.
Bom para você, Dr. K—! Mas só quero seu coração, não seus rins, seu
fígado ou seus olhos. Abro mão destes, para que outros mais necessitados
se beneficiem deles. Claro, quero fazer a minha inscrição como outros
fazem, em situações médicas semelhantes às minhas. Não esperaria
favoritismo. A inscrição, na verdade, seria feita por meu cardiologista.
Mulher branca de meia-idade juvenil, atraente, inteligente, otimista apesar
de um coração deficiente – excetuando isso, em perfeita saude. Nenhuma
menção seria feita de nossa antiga relação, da minha parte, pelo menos.
Embora você, caro Dr. K—, como potencial doador do coração, pudesse
indicar sua preferência, certo? Tudo isso transpiraria quando você morresse,
Dr. K, quero dizer. Claro! Nem um momento antes.
(Acho que não tem noção de que está destinado a morrer em breve?
Neste ano? Num acidente "trágico" – "grotesco" – como virá a ser
chamado? Num final "irônico" – "inenarravelmente feio" para uma "carreira
brilhante"? Lamento que não possa ser mais específica sobre tempo, local,
condições; até mesmo se vai morrer sozinho ou com um membro da família
ou dois. Mas tal é a natureza do acidente, Dr. K—. É uma surpresa.) Dr. K
—, não franza tanto a testa! É um homem bonito ainda, e ainda vaidoso,
apesar dos cabelos grisalhos e esparsos que, como outros homens que
perdem os cabelos, vem penteando de banda sobre o domo reluzente da sua
cabeça; imaginando que, como não pode ver essa artimanha no espelho, ela
não pode ser vista pelos outros.
Mas eu posso ver.
Desajeitado, vira a última página desta carta para ver minha assinatura –
"Angel" – e é forçado a se lembrar, subitamente... Com uma pontada de
culpa.
Ela! Ainda está... viva? Isso mesmo, Dr. K—! Mais viva do que nunca.
Naturalmente, você imaginaria que eu teria desaparecido. Eu tinha deixado
de existir. Como você tinha deixado há muito tempo de pensar em mim.
Está assustado. Seu coração, aquele órgão culpado, começou a bater.
Numa janela do segundo andar de sua casa em Richmond Street
(dispendiosa restauração vitoriana, ripas em cinza-pálido com margens em
azul-escuro, "graciosas" – "dignas" – entre outras do seu tipo na antiga e
exclusiva vizinhança a leste do Seminário Teológico), você olha
ansiosamente para... o quê? Não para mim, obviamente. Não estou ali. De
qualquer modo, não estou à vista. No entanto, como o céu que empalidece
parece pulsar com uma intensidade sinistra! Como um grande olho
observando. Dr. K—, não lhe quero nenhum mal! Sinceramente. Esta carta
não é de modo algum uma exigência por seu coração (póstumo), nem
mesmo uma "ameaça verbal". Se decidir, tolamente, mostrála à polícia, eles
lhe garantirão que é inofensiva, que não é ilegal, é apenas um pedido de
informação: deveria eu, o "amor de sua vida" que não vê há vinte e três
anos, candidatar-me a ser o recipiente do seu coração? Quais são as chances
de Angel? Só desejo colher o que é meu. O que me foi prometido muito
tempo atrás. Eu fui fiel ao nosso amor, Dr. K—! Você ri, cruamente.
Incredulamente. Como pode responder a "Angel" quando "Angel" não
incluiu nenhum sobrenome e nenhum endereço? Vai ter de me procurar.
Para se salvar, me procure.
Você amarrota esta carta na mão e a joga no chão. Afasta-se, foge aos
tropeços, quer esquecer, obviamente não consegue, as páginas amarrotadas
da minha carta escrita a mão no chão do – será o seu escritório? – no
segundo andar da velha e digna casa vitoriana no 119 da Richmond Street?
– onde alguém poderia descobri-las e apanhá-las para ler aquilo que você
não desejaria que outra pessoa lesse, especialmente não alguém "íntimo"
seu. (Como se nossas famílias, especialmente nossos consanguíneos, sejam
nossos "íntimos" na verdadeira intimidade do amor erótico.) Então,
naturalmente, você volta, com os dedos muito trêmulos apanha as páginas
espalhadas, as alisa e continua a ler.
Caro Dr. K—! Por favor entenda: não estou amarga, não alimento
obsessões. Não é da minha natureza. Tenho minha própria vida e cheguei
até a ter uma carreira (moderadamente bem-sucedida). Sou uma mulher
normal do meu tempo e local. Sou como a delicada aranha preta-e-prateada
com a cabeça em forma de diamante, a chamada aranha "feliz"; a única
subespécie da Araneida que teria a liberdade de tecer teias parcialmente
improvisadas, tanto ovaladas como afuniladas, e correr o mundo à vontade,
sentindo-se igualmente bem nos gramados umidos como nos interiores
secos, escuros e protegidos dos lugares feitos pelo homem; rejubilando-se
num (relativo) livre-arbítrio dentro das inevitáveis restrições do
comportamento da Araneida; com um ferrão aguçado e venenoso, às vezes
letal para seres humanos, especialmente crianças.
Como a cabeça-de-diamante, eu tenho muitos olhos. Como a cabeça-de-
diamante, eu posso ser considerada "alegre" – "jovial" – "exultante" – aos
olhos dos outros. Pois este é o meu papel, a minha interpretação.
É verdade, durante anos fiquei estoicamente reconciliada com minha
perda, na verdade, com minhas perdas. (Não que eu o culpe por estas
perdas, Dr. K—. Embora um observador neutro pudesse concluir que meu
sistema imunológico foi lesado em consequência do meu colapso físico e
mental que se seguiu ao modo abrupto como me expulsou de sua vida.)
Então, em março último, vendo sua fotografia no jornal – EMINENTE
TEÓLOGO K— PRESIDE SEMINÁRIO – e, poucas semanas depois,
quando foi nomeado para a Comissão Presidencial de Religião e Bioética,
eu reconsiderei minha posição. O tempo de anonimato e silêncio acabou,
pensei. Por que não tentar, por que não tentar colher o que ele lhe deve.
Lembra-se do nome de Angel agora? Aquele nome que, durante vinte e
três anos, nove meses e onze dias você não desejou pronunciar.
Procure meu nome em qualquer catálogo telefônico, não vai encontrá-
lo. Provavelmente meu numero não está na lista, provavelmente não tenho
telefone. Provavelmente meu nome mudou. (Legalmente.) Provavelmente
moro numa cidade distante numa região distante do continente; ou
provavelmente, como a aranha cabeça-de-diamante (tamanho adulto,
aproximadamente aquele da unha do seu polegar direito, Dr. K—) eu moro
quietamente debaixo do seu telhado, tecendo minhas delicadas teias entre os
caibros do seu porão, ou num nicho entre sua bela escrivaninha antiga de
mogno e a parede ou, um pensamento delicioso, na caverna sem ar debaixo
da cama antiga de dossel de latão que você e a segunda Sra. K— dividem
no melancólico final da meia-idade. Tão perto estou e, no entanto, invisível!
Caro Dr. K—! Certa vez você ficou maravilhado com minha pele de um
"Vermeer imaculado" e dos cabelos "tecidos em ouro" caindo em cascatas
por minhas costas que você acariciava e fechava em seus punhos. Já fui sua
"Angel" – sua "amada". Banhei-me no seu amor, pois eu não o questionava.
Eu era virginal de espírito, assim como de corpo, e não teria
questionado o mundo de um homem eminente mais velho que eu. E no
paroxismo do ato do amor, quando se entregava profundamente a mim, ou
pelo menos parecia assim, como você poderia ter... enganado? Dr. K— do
Seminário Teológico, erudito e autoridade bíblica, protegido de Reinhold
Niebuhr e autor das exegeses "brilhantes" – "revolucionárias" – dos
Manuscritos do Mar Morto, entre outros assuntos esotéricos.
Mas eu não fazia ideia, você protesta. Não dei a ela nenhum motivo
para acreditar, para esperar...
(Que eu acreditasse em suas declarações de amor? Que eu "confiasse na
sua palavra"?) Minha querida, você tem meu coração. Sempre, eternamente.
Sua promessa! Nos dias de hoje, Dr. K—, minha pele não é mais
"imaculada". Tornou-se a pele franca, maculada de uma mulher de meia-
idade que não faz esforço para disfarçar a idade. Meus cabelos, que já
foram de um louro-morango brilhante, agora estão descorados, secos e
quebradiços como palha de vassoura; eu os corto sempre curtos, como os
cabelos de um homem, com a tesoura, mal olhando no espelho enquanto
vou podando, podando, podando! Meu rosto, embora ainda atraente,
suponho, é, na verdade, um borrão para a maioria dos observadores,
especialmente para os americanos de meia-idade; você me viu, e viu através
de mim, caro Dr. K—, em mais de uma ocasião recente, não reconhecendo
mais sua "Angel" do que teria reconhecido um prato cheio de comida que
havia devorado vinte e três anos atrás com um apetite avassalador ou uma
velha fantasia sexual da adolescência, há muito tempo exaurida e
descartada.
Para o seu controle: eu era a mulher de capa impermeável cáqui e
chapéu combinando que esperou pacientemente na livraria da universidade
enquanto uma fila de seus admiradores avançava lenta mente, para que o
Dr. K— assinasse exemplares de A vida ética: desafios do século XXI. (um
esguio tratado teológico, não um mega' bestseller, claro, mas um respeitável
bestseller, mais popular nas comunidades universitárias e nos bairros
residenciais de classe alta.) Eu sabia que seu livro "brilhante" desapontaria,
apesar disso o comprei e li avidamente para descobrir (ainda uma vez) o
fato intrigante: você, Dr. K—, o homem, não é o indivíduo que aparece em
seus livros; os livros são espertas fachadas, estruturas artificiais que criou
para habitar temporariamente, como um indivíduo aleijado e deformado
poderia habitar uma estrutura de beleza incomparável, olhando por suas
janelas, orgulhando-se de possuí-la como seu dono, mas só
provisoriamente. Sim? Não é esta a pista para o renomado "Dr. K"? Para o
seu controle: vários domingos atrás, você e eu nos cruzamos bem de perto
no Museu Estadual de História Natural; você agarrava a mão de sua neta de
cinco anos ("Lisle", eu suponho? — nome adorável) e não prestou mais
atenção a mim do que teria prestado a qualquer estranho passando pelos
íngremes degraus de mármore, descendo do Salão dos Dinossauros no
sinistro quarto andar enquanto você subia; debruçou-se para falar sorridente
a Lisle e foi naquele momento que notei a tola e tocante trama na sua
maneira de pentear os cabelos (encobrindo as áreas calvas), vi o rosto suave
e surpreso de Lisle (pois a criança, ao contrário do seu avô míope, me viu e
"reconheceu" num lampejo); senti uma exaltação de triunfo: pois com que
facilidade eu o teria matado então, empurrado escada abaixo naqueles duros
degraus de mármore, minhas mãos firmes nos seus ombros agora
arredondados, a força da minha raiva superando qualquer resistência que
você, um homem balofo, de barriga frouxa, pesando noventa quilos, no fim
da meia-idade, poderia ter reunido; imediatamente você perderia o
equilíbrio, caindo para trás, com uma expressão de terror incrédulo, e ainda
agarrando a mão de sua netinha teria arrastado a criança inocente para trás
com você, rolando pelos degraus de mármore com um grito: concussão,
fratura do crânio, hemorragia cerebral, morte! Por que não tentar, por que
não tentar colher o que ele me deve? Óbvio, Dr. K—, não fiz isso! Não
naquela tarde de domingo. Caro Dr. K—! Surpreende-se ao saber que o seu
amor perdido dos cabelos "tecidos em ouro" e dos "seios-suaves-como-
seda" conseguiu se recuperar da sua crueldade e aos vinte e nove anos de
idade começou a se dar bem na sua carreira, em outra parte do país? Nunca
seria eu tão renomada como você, Dr. K—, desnecessário dizer, mas à custa
de empenho e esforço, à custa de sacrifício e esperteza, eu progredi num
campo tradicionalmente dominado por homens e conquistei o que se
poderia chamar um "sucesso" menor, local. Ou seja, nada tenho do que me
envergonhar e, talvez, do que me orgulhar, se fosse capaz de ter orgulho.
Não serei mais específica, Dr. K—, mas vou dar uma pista: meu campo
é aparentado com o seu, embora não erudito ou "intelectual". Meu salário é
muito menor do que o seu, claro. Não tenho identidade publica, nenhuma
reputação e nenhum desejo de tê-la. Estou num campo de serviço, há muito
tempo aprendi a servir. Onde as fantasias dos outros, principalmente
aquelas dos homens, estão em jogo, tornei-me bastante chegada a servir.
Sim, Dr. K—, é possível que eu até o tenha servido. Indiretamente,
quero dizer. Por exemplo: eu poderia trabalhar num laboratório médico, ou
supervisioná-lo, para o qual o seu médico envia amostras de sangue,
amostras de tecido para biópsia, etcetera, e um dia ele manda a nosso
laboratório um espécime extraído do corpo do renomado Dr. K—. Cuja vida
poderá depender da precisão e boa fé das investigações do nosso
laboratório.
Apenas um exemplo, Dr. K—, entre muitos! Não, caro Dr. K—, esta
carta não é nenhuma ameaça. Como, declarando minha posição tão
abertamente e, portanto, tão inocentemente, poderia eu ser uma ameaça?
Ficou chocado ao saber que uma mulher pode ser uma "profissional" – pode
ter uma carreira razoavelmente compensadora – e, no entanto, ainda sonhar
com justiça depois de vinte e três anos? Ficou chocado ao saber que uma
mulher poderia ser casada, ou ter casado, e ainda assim continuar
assombrada por seu cruel e traiçoeiro primeiro amor, que a privou não só da
sua virgindade, mas da sua fé na humanidade? Gostaria de imaginar sua
abandonada "Angel" como uma solteirona solitária e amargurada, sim?
Escondendo-se no escuro, tecendo teias feias e pegajosas com suas vísceras
venenosas, e no entanto o que ocorre é o contrário: assim como existem
aranhas "felizes", observadas por entomólogos como exibindo uma
capacidade para (relativa) liberdade, tecendo teias com uma certa variedade
e originalidade, assim também existem mulheres "felizes" que sonham com
justiça e vão garantir que um dia degustarão a sua doçura. Brevemente.
(Dr. K—! Que sorte tem de contar com uma neta como Lisle! Tão
delicada, tão bonita, tão... angelical. Não tive uma filha, confesso. Não terei
uma neta. Se as coisas fossem diferentes entre nós, "Jody", poderíamos
compartilhar Lisle.) "Jody" – que emoção foi para mim, aos dezenove anos
de idade, chamá-lo por aquele nome! Enquanto outros se dirigiam a você
formalmente como Dr. K—. Que aquilo fosse segredo, ilícito, tabu – como
chamar o próprio pai por um nome de amante – era parte da emoção,
naturalmente.
"Jody", espero que sua ansiosa primeira mulher E— nunca tenha
descoberto certas provas incriminadoras nos bolsos de suas calças, na
carteira, na pasta, onde eu as escondia. Bilhetes de amor, de expressão
infantil. Amor amor amor meu Jody. MeuJODYGRANDÃO.
Você não é JODY GRANDÃO com muita frequência hoje em dia, é, Dr.
K—? "Jody" feneceu com os anos, fiquei sabendo. Com os cabelos
espessos e robustos, pretos como os de um cigano, aqueles olhos claros e
vivos, a postura orgulhosa e o seu pênis eriçado para se rejuvenescer, se
reinventar com impressionante frequência. (No começo do nosso caso, pelo
menos.) Qualquer garota estudante de dezenove anos chamá-lo de "Jody"
hoje seria obsceno, risível.
Hoje em dia o que você mais adora é ser chamado de "Vovô!" – na voz
de Lisle.
No entanto, nos meus sonhos, às vezes ouço meu próprio sussurro
desavergonhado, Jody, por favor não deixe de me amar, por favor me
perdoe, só quero morrer, mereço morrer se você não me amar como nos
filetes de sangue que saíam no banho quente dos meus antebraços
desajeitadamente lacerados; mas foi o Dr. K—, não "Jody", quem falou
bruscamente ao telefone informando-me Esta não é a hora. Adeus. (Deve
ter feito investigações, Dr. K—. Deve ter sabido que fui encontrada ali na
sangrenta água do banho, inconsciente, próxima da morte, por uma amiga
preocupada que havia tentado telefonar para mim. Deve ter sabido, mas
prudentemente guardou sua distância, Dr. K—! Todos estes anos.) Dr. K—,
não só conseguiu me apagar da sua memória, mas imagino que tenha
olvidado sua ansiosa primeira mulher E—, "Evie". A filha do ricaço. Uma
mulher dois anos mais velha do que você, sem nenhuma autoconfiança, um
tanto simplória, sem estilo. Amando-me, preocupava-se em tornar "Evie"
desconfiada, não porque gostasse dela, mas porque teria deixado seu pai
rico desconfiado também. E era muito apegado ao pai rico, não? Poucos
membros da faculdade do Seminário podem se dar ao luxo de morar perto
do Seminário. Na elegante e antiga Zona Leste da nossa cidade
universitária. (Era do que se vangloriava gratificado. Como se assistisse a
uma ironia do destino e não a uma consequência de suas próprias manobras.
Enquanto, sorrindo, beijava minha boca e passava um dedo indicador ao
longo dos meus seios, através do meu ventre trêmulo.) Pobre "Evie"! Sua
morte "acidental" por atropelamento, um veículo misterioso derrapando
num pavimento encharcado de chuva, sem testemunhas... Eu o teria ajudado
no seu luto, Dr. K—, e sido uma madrasta amorosa para seus filhos, mas
àquela altura já me havia banido de sua vida.
Ou pelo menos assim acreditava. (Para o seu controle: não estou
insinuando que tive algo a ver com a morte da primeira Sra. K—. Não se dê
ao trabalho de ler e reler estas linhas para determinar se existe algo "entre"
elas – não existe.) E então, Dr. K—, viuvo com dois filhos, você foi embora
para a Alemanha. Um ano sabático que se estendeu para dois anos. Eu
fiquei aqui de luto em seu lugar. (Luto não da desafortunada "Evie" mas de
você.) A morte de sua mulher foi considerada uma "tragédia" em certos
círculos, mas eu preferia pensar nela como puramente um acidente: uma
conjunção de tempo, local, oportunidade. O que é o acidente senão uma
precisão do tempo? Dr. K—, eu não o acusaria de hipocrisia gritante
(acusaria?), menos ainda de fraude, mas posso compreender por que, sob
intenso terror da família da sua primeira mulher (à qual se sentia
intelectualmente superior), apesar de tudo se casou de novo, dentro de
dezoito meses, uma mulher muito mais jovem do que você, quase tão jovem
quanto eu, o que deve ter chocado e enfurecido seus sogros. Não é? (Ou
deixou de se importar com o que eles pensariam? Já havia arrancado
bastante dinheiro do sogro, àquela altura?) Sua segunda mulher, V—, seria
poupada de uma morte acidental e sobreviverá a você por muitos anos.
Nunca senti nenhum rancor pela voluptuosa – agora um tanto gorducha –
"Viola", que entrou na sua vida depois que eu saí dela. Talvez, de algum
modo, eu sinta uma certa simpatia pela jovem, adivinhando que, com o
tempo, você a trairia também. (E não traiu? um sem-numero de vezes?) Não
esqueci nada, Dr. K—. Enquanto você, para sua desvantagem fatal,
esqueceu quase tudo. Dr. K—, "Jody", devo confessar: guardava segredos
de você até naquela época. Mesmo quando lhe parecia transparente,
translucida. Na medula dos meus ossos, um desejo de pôr um fim ao nosso
amor ilícito. Um final digno de uma grandiosa ópera, não mero melodrama.
Quando me fazia sentar nua – "desnuda" era o seu termo preferido – e me
comia com os olhos. "Beleza! Não é uma belezinha!" – mesmo então eu
exultava em meus pensamentos secretos. Você me parecia às vezes
embriagado de amor – paixão? – por mim, beijando, passando a língua,
focinhando, sugando... sugando alimento de mim como um vampiro. (O
estresse da paternidade e de manter uma pose de genro bem-comportado,
bem como de "renomado teólogo" o estava exaurindo, agastando em sua
vaidade masculina. Claro, na minha ingenuidade eu não tinha a menor
ideia.) No entanto, pousando minha mão na pele quente da sua nuca eu "vi"
uma lâmina de barbear presa entre meus dedos, e os primeiros esguichos
assustados do seu sangue, com tamanha vividez que posso vê-lo agora.
Comecei a desmaiar, meus olhos rolaram nas órbitas, você me apanhou em
seus braços... e pela primeira vez (imagino que foi a primeira vez) percebeu
seu anjo de cabelos tecidos em ouro como uma preocupação, um risco, um
fardo não diferente do fardo de uma esposa neurótica e ansiosa. Querida, o
que é que você tem? Está brincando, querida? Garota bonita, não é
divertido me assustar quando a adoro tanto.
Agarrando meus dedos gelados entre seus dedos quentes e duros e
apertando minha mão contra o seu grande coração que bate com força.
Por que não? Por que não? Tentar colher? — aquele coração. Que me
pertence. Como estou inspirada, compondo esta carta, Dr. K—! Venho
escrevendo febrilmente, mal parando para respirar. É como se um anjo
guiasse minha mão. (um daqueles anjos da vingança altos com asas rijas,
com ferozes rostos medievais que a gente vê nas xilogravuras alemãs!) Reli
alguns de seus trabalhos publicados, Dr. K—, incluindo o tratado forrado de
notas de pé-de-página sobre os Manuscritos do Mar Morto que estabeleceu
sua reputação como um jovem erudito ambicioso no início da casa dos
trinta. No entanto, tudo parece tão estranho e ultrapassado, coisa do século
XX, quando "Deus" e "Satã" eram de certo modo mais reais para nós, como
objetos domésticos... Tenho lido sobre nossas origens religiosas primitivas,
como "Deus-Satã" eram certa vez conjugados mas estão agora, na nossa
tradição cristã, sempre separados. Fatalmente separados. Pois nós cristãos
não podemos acreditar em nenhum mal em nossa divindade, não O
poderíamos amar assim.
Dr. K—, enquanto escrevo esta carta meu coração de funcionamento
precário, com seu misterioso "murmurio" ora acelera, ora bate mais lento,
ora dá um salto, no conhecimento excitado de que você está lendo estas
palavras com um sentimento crescente da justiça que encerram. Uma chuva
forte começou a cair, tamborilando no telhado e nas janelas do lugar onde
moro, a chuva idêntica (será?) que tamborila no telhado e nas janelas da sua
casa a apenas algumas (ou serão muitas?) milhas de distância; a não ser que
eu more numa parte do país a milhares de milhas de distância, e a chuva
não seja idêntica. E, no entanto, posso chegar até você a qualquer momento.
Sou livre para ir e vir; para aparecer e desaparecer. Pode ser até que eu
tenha contemplado a fachada encantadora da CrecheEscola Abelhinha
Esperta da sua preciosa neta, assim como fui comprar sapatos na companhia
de V—, embora a mulher de rosto cheio de papadas com maquilagem
carregada e pés tamanho quarenta não se desse conta da minha presença,
claro.
E justamente no último domingo: revisitei o Museu de História Natural,
sabendo que havia uma possibilidade de que você voltasse. Pois pareceu
possível que me houvesse reconhecido nos degraus e me mandou um sinal
com os olhos, sem que Lisle notasse; estava pedindo que eu voltasse para
me encontrar com você, a sós. O profundo laço erótico entre nós nunca será
rompido, você sabe: penetrou em meu corpo virginal, tirou minha
inocência, minha juventude, minha própria alma. Meu anjo! Perdoe-me,
volte para mim, vou recompensá-la pelo sofrimento que teve por minha
causa.
Esperei, mas você não voltou. Esperei e meu senso de missão não
esmoreceu, mas ficou mais seguro.
Eu me vi a única visitante no sinistro quarto andar, no Salão dos
Dinossauros. Meus passos ecoavam levemente no gasto piso de mármore.
Um vigia do museu de cabelos brancos com uma barriguinha igual à sua me
olhou através das pálpebras rebaixadas; estava sentado numa cadeira de
lona, mãos nos joelhos. Como um boneco de cera.
Como um daqueles manequins trompe l'oeil. Você sabe: aquelas figuras
estranhas com aparência de gente viva que vemos em coleções de arte
contemporânea, só que a figura encurvada não estava coberta por ataduras
brancas. Silenciosamente passei por ele como um fantasma o teria feito.
Minha mão (enluvada) dentro da bolsa e meus dedos agarrando uma lâmina
de barbear que já sabia a esta altura empunhar com habilidade e coragem.
Furtivamente circulei pelo Salão dos Dinossauros à sua procura, mas em
vão; furtivamente me aproximei por trás do guarda sonolento, sentindo a
batida errática do meu coração acelerar com a emoção da caçada... mas
naturalmente deixei o momento passar, não era para nenhum vigia de
museu, mas para o renomado Dr. K— que eu reservava a lâmina de barbear.
(Embora eu não tivesse a menor duvida de que poderia ter usado a arma
contra o velhote, simplesmente por frustração de não o ter encontrado e pela
raiva feminina diante de séculos de maus-tratos e exploração; poderia ter
cortado a sua artéria carótida e rapidamente me afastado sem que uma única
gota de sangue respingasse sobre minhas roupas; enquanto a vida do
velhote sangrava sobre o piso de mármore gasto, eu teria descido ao quase
deserto terceiro andar do museu, e depois ao segundo, para me misturar sem
ser notada aos visitantes dominicais amontoados diante de uma nova mostra
de computação gráfica. Tão fácil!) Eu me vi perdida entre borrachosas
réplicas de dinossauros, alguns enormes como o Tyrannosaurus rex, alguns
do tamanho de bois e outros menores, de dimensões humanas; admirei os
répteis voadores, com seus longos bicos e asas dotadas de garras; numa
superfície refletida sobre a qual uma destas criaturas préhistóricas voava,
admirei meu rosto pálido de pele quente e os flutuantes cabelos
acinzentados. Minha querida, você sussurrou, eu sempre a adorarei. Aquele
sorriso angelical! Dr. K—, vê? Ainda estou sorrindo. Dr. K—! Por que está
parado aí, tão duro, numa janela do andar de cima de sua casa? Por que se
encolhe, tomado por um medo doentio? Nada lhe acontecerá que não seja
justo. Que não mereça.
Estas páginas em suas mãos trêmulas, você gostaria de rasgá-las em
pedacinhos – mas não ousa. Seu coração bate forte, com terror de ser
arrancado do seu peito! Desesperado, pensa – mas vai se decidir contra isso
– em mostrar minha carta à polícia. (Envergonhado do que a carta revela do
renomado Dr. K-!) Pensa também – mas vai se decidir contra isso – em
mostrar minha carta à sua esposa, pois já teve exaustivas sessões de debate
emocional, confissão e expiação com ela, inumeras vezes. Já viu o nojo nos
olhos dela. Não mais! E não tem estômago para se contemplar no espelho,
pois já não aguenta mais ver o seu próprio rosto, com aqueles olhos
tomados pela culpa. Enquanto eu, a venenosa aranha, com a cabeça de
diamante, contentemente teço a minha teia diáfana entre os caibros. Dê-me
seu coração do seu porão, ou no nicho entre a sua escrivaninha e a parede,
ou na caverna sem ar debaixo de sua cama conjugal ou, perspectiva mais
deliciosa! — dentro do colchão da cama da criança em que, quando visita
os avós na casa de Richmond Street, a bela e pequenina Lisle dorme.
Invisível de dia como de noite, tecendo a minha teia, a partir das minhas
vísceras, incansável e fiel — "feliz".

***
Karma
Walter Mosley

Leonid McGill estava sentado à sua mesa, no sexagésimo sétimo andar


do Empire State Building, lixando as unhas e contemplando Nova Jersey.
Eram três e quinze. Leonid havia prometido a si mesmo que faria seus
exercícios esta tarde, mas agora que estava na hora sentia-se letárgico.
"Foi aquele sanduíche de pastrami", pensou. "Amanhã, vou comer
alguma coisa leve, talvez peixe, então posso ir ao Gordo e me exercitar um
pouco." O Gordo era um ginásio de boxe no terceiro andar de um prédio na
Rua 32. Quando Leonid tinha trinta anos a menos, e era quase trinta quilos
mais leve, ia ao Gordo todo dia. Por algum tempo, Gordo Packer havia
insistido que o detetive particular se tornasse um profissional.
— Vai ganhar mais dinheiro no ringue do que se passar a vida se
matando de farejar gente aí pelas ruas — afirmara o treinador, que não
aparentava a idade que tinha.
McGill gostou da ideia, mas gostava também de cigarros e de cerveja.
— Não consigo me forçar a correr a não ser que esteja sendo perseguido
— disse ao Gordo. — E sempre que alguém me machuca, quero mesmo é
acabar com a raça dele.
Você sabe que se um sujeito me nocauteasse no ringue, provavelmente
eu ia esperar por ele, de tocaia, com a barra do macaco do carro na mão, lá
nos fundos do Madison Square, logo na saída da luta. Os anos se passaram
e Leonid continuou treinando no saco pesado duas ou três vezes por
semana. Mas parou de pensar na carreira de boxeador. Gordo desinteressou-
se por Leonid, como um lutador em potencial, mas continuaram amigos.
— Como um negro pode se chamar Leonid McGill? — perguntou certa
vez Gordo ao detetive.
— Meu pai era um comunista e o bisavô do meu avô foi um senhor de
escravos que veio da Escócia — Leo respondia com a maior naturalidade.
Você sabe que a árvore genealógica dos negros é na maior parte suas raízes.
O que você enxerga acima do chão é apenas uma pista da verdadeira
história. Leo ergueu-se da cadeira e fez uma tentativa de tocar os dedos dos
pés. Seus dedos chegaram até mais ou menos a metade das canelas, mas sua
barriga bloqueou qualquer esforço além disso.
— Que merda! — exclamou o detetive.
Então, retornou à sua cadeira e voltou a lixar as unhas. E foi o que ficou
fazendo até que o relógio na parede, com seu amplo mostrador, marcasse
04h07. Então, a campainha soou. Um toque alto, longo. Leonid amaldiçoou
o fato de não ter fixado a câmera de segurança, para poder ver quem estava
na porta. Com um toque como esse, poderia ser qualquer pessoa. Devia
quatro mil e seiscentos dólares aos irmãos Wyant. A conta estava atrasada e
Leonid ainda esperava que algum dinheiro caísse do céu. Mas os irmãos
Wyant poderiam não se importar com seus problemas de caixa. Entretanto,
também poderia ser um cliente em potencial, na porta. Um cliente de
verdade. Alguém com um empregado que o estivesse roubando. Ou talvez
com uma filha sendo influenciada por uma turminha da pesada. Mas
também poderia ser um dos trinta ou quarenta maridos furiosos querendo
vingança por terem sido flagrados em seus passatempos extraconjugais. E
havia sempre Joe Haller — o pobre idiota. Mas Leonicj nunca havia sequer
se encontrado com Joe Haller. Não havia como aquele imbecil vir dar na
porta do seu escritório. A campainha soou de novo. Leonid levantou-se de
sua cadeira e atravessou o comprido corredor que levava à sua sala de
recepção. Então, chegou junto da porta da frente. A campainha soou uma
terceira vez.
— Quem é? — gritou McGill com um sotaque sulista que usava vez por
outra.
— Sr. McGill? — perguntou uma mulher.
— Não está.
— Ah, e você acha que ele volta hoje?
— Não — respondeu Leonid. — Não. Ele está trabalhando num caso
fora da cidade. Lá na Flórida. Se quiser me dizer do que se trata, posso
deixar um recado para ele.
— Posso entrar? — A voz soava jovem e inocente, mas Leonid não
queria se arriscar a que o fizessem de idiota.
— Sou só o zelador do prédio, querida — disse ele. — Não tenho
permissão para deixar ninguém entrar em nenhum escritório aqui do prédio.
Mas vou tomar nota do seu nome e telefone, e deixar sobre a mesa dele, se
você quiser.
Leonid já usara essa tática antes. Não havia argumento contra isso. O
zelador não poderia assumir responsabilidades.
Fez-se silêncio no outro lado da porta. Se a garota tinha um cumplice,
ele estaria sussurrando para ela um jeito de como lidar com o seu truque.
Leonid pôs o ouvido na porta, mas não conseguiu ouvir coisa alguma.
— Karmen Brown — disse a mulher. Ela acrescentou um numero
telefônico com o prefixo 646. "Provavelmente um celular", pensou ele.
— Espere, deixe eu pegar um lápis — ele pediu. — Brown, foi o que
você disse?
— Karmen Brown — repetiu ela. — Karmen com K. — Então, deu de
novo o numero.
— Vou colocar em cima da mesa dele — prometeu Leonid. — Ele vai
ler o recado no instante em que voltar à cidade.
— Obrigada — disse a mulher.
Houve alguma hesitação em sua voz. Se era uma garota inteligente,
poderia estar se perguntando como um zelador saberia do paradeiro de um
detetive particular. Mas, depois de um momento ou dois, ele pôde escutar os
saltos altos produzindo estalidos no assoalho ao descer o corredor. Leonid
retomou ao seu escritório e decidiu permanecer um pouco ali para o caso de
a moça ou de seu possível cumplice estarem esperando que ele saísse. Não
se incomodava de dar um tempo no escritório. Seu apartamento sublocado
não era nem de perto tão agradável nem tão silencioso, e pelo menos ele
poderia ficar sozinho. Os aluguéis comerciais haviam despencado depois do
11 de setembro. Ele ficou com o escritório no Empire State por uma
ninharia. Não que tivesse pagado o aluguel nos últimos três meses. Mas
Leonid Trotter McGill não se preocupava tanto assim com dinheiro. Sabia
que conseguiria dar algum jeito, se precisasse. Havia Pessoas demais com
segredos demais. E segredos eram a mercadoria mais valiosa em Nova
York.
Às 05:39, a campainha soou novamente. Mas, dessa vez, foram dois
toques longos seguidos de três curtos. Leonid desceu o corredor e abriu a
porta da frente sem perguntar quem era.
O homem parado de pé ali fora era pequeno, branco, já ficando careca e
magro. Vestia roupas caras com abotoaduras de verdade numa camisa
branca, razoavelmente bem engomada no colarinho e nos punhos.
— Leon — disse o homenzinho branco.
— Tenente. Entre.
Leonid conduziu o garboso homenzinho através da recepção, depois
pelo corredor (que tinha três portas ao longo do seu comprimento) e
finalmente para dentro do seu escritório.
— Sente-se, tenente.
— Belo escritório. Onde estão seus funcionários? — perguntou o
visitante.
— Somente eu, por enquanto. Estou numa fase de transição. Sabe como
é, tentando desenvolver um novo método de trabalho.
— Entendo.
O magro homem branco sentou-se numa cadeira diante da mesa de
Leonid. Dali, podia avistar a penumbra começando a descer sobre Nova
Jersey. Passou o olhar da janela para o seu anfitrião. L. T. McGill, detetive
particular. Leonid era pequeno, com pouco mais do que um metro e setenta,
uma barriga proeminente e queixo grande. Sua pele tinha a cor do bronze
sujo e ele era coberto de sardas escuras. Havia um palito saindo do canto
direito da sua boca. Vestia um terno amarronzado que ficara tempo demais
sem ser lavado. Sua blusa era verde-limão e a grossa aliança de ouro em seu
mindinho esquerdo pesava 60 ou 80 gramas. Leonid McGill tinha mãos
muito fortes e respiração pesada. Tinha olhos desconfiados e sempre
aparentava ter dez anos a mais do que sua idade real.
— O que posso fazer por você, Carson? — perguntou o detetive.
— Joe Haller — disse Carson Kitteridge.
— Quem? — Leonid contraiu o rosto, fingindo ignorância, se não
inocência.
— Joe Haller.
— Nunca escutei esse nome. Quem é ele?
— Um gigolô que gosta de bater. E agora estão tentando me convencer
de que é também um ladrão.
— Você está querendo me contratar para achar alguma coisa contra ele?
— Não — respondeu o tira. — Não. Ele está em Tombs, nesse
momento. Nós o agarramos com a mão na massa. Estava com trinta mil
bem no seu armário. Numa maleta que levava todo dia para o trabalho.
— Então, essa ficou fácil — disse Leonid. E se concentrou na sua
respiração, algo que aprendeu a fazer sempre que estava sendo interrogado
pela lei.
— Era para ser, não era? — perguntou Carson.
— Algum problema com o caso?
— Você foi visto conversando com Nestor Bendix, no dia 4 de janeiro.
— Fui?
— Foi. Sei disso porque o nome de Nestor surgiu no roubo de uma
companhia chamada Amberson's Financial, dois meses atrás.
— É mesmo? — exclamou Leonid. — Mas o que tem isso a ver com
esse Joe não-sei-de-quê?
— Haller — disse o tenente Kitteridge. — Joe Haller. O dinheiro que
estava na maleta dele era do carro blindado que tinha acabado de
descarregar na Amberson's.
— Um carro blindado descarregou trinta mil dólares nesse lugar?
— Mais, cerca de trezentos mil! — corrigiu Kitteridge. — Era de seus
caixas automáticos. Parece que a Amberson's entrou pesado no negócio de
caixas automáticos naquela vizinhança. Controlam sessenta máquinas na
parte central da cidade.
— Que coisa, hein? E você acha que Joe Haller e Nestor Bendix as
roubaram?
O tenente Kitteridge ficou em silêncio por algum tempo, seus olhos
cinzentos cravados no detetive de aspecto truculento.
— O que você e Nestor andaram conversando? — perguntou o tira.
— Nada — disse Leonid, soerguendo um ombro num gesto desdenhoso.
— Foi numa pizzaria perto do porto, se estou bem lembrado. Passei por lá
para comer uma calzone e vi o Nestor. Já fomos amigos, nos tempos em que
Hell's Kitchen era ainda Hell's Kitchen.
— E o que ele falou?
— Nada mesmo. Juro. Foi só um encontro casual. Sentei na mesa dele
para me empanturrar e descobrir que ele tem dois filhos na universidade e
dois na cadeia.
— Conversaram a respeito do roubo?
— Eu nem sequer havia escutado falar desse tal roubo até agora. Você
foi o primeiro a comentar comigo sobre isso.
— Esse tal Joe Haller — disse o policial. — Ele pratica o que se
costuma chamar de modo de vida alternativo. Gosta de mulheres casadas. É
como você talvez chame isso. Ele encontra senhoras direitas e as põe fora
da linha. Dizem que ele tem um pau do tamanho de um cavalo.
— Ah, é?
— É. E ele costuma convencer as senhoras a se encontrarem com ele
em hotéis perto de onde ele trabalha e ensina a elas como os seus vinte
centímetros funcionam.
— Já nem sei do que você está falando, tenente — disse Leonid. —
Quer dizer, a menos que alguma vigilante da Amberson's seja uma das
garotas do Haller.
O elegante policial balançou a cabeça suavemente.
— Não, não... Vou lhe dizer o que estou pensando, Leon — disse o
policial.
Ele avançou o corpo sobre a cadeira e entrelaçou os dedos.
— Nestor fez o roubo mas alguém deu com a língua nos dentes e eu e
minha equipe partimos para cima dele. Assim, ele chamou você para achar
alguém para pagar o pato por ele, e você entregou o Haller para ele. Não me
pergunte como. Não sei mesmo. Mas você aprontou para cima do Romeu e
agora ele está com tudo para pegar vinte anos na Attica.
— Eu? — exclamou Leonid, pressionando seus dez dedos contra o
peito. — Mas como diabos você acha que eu seria capaz de fazer algo
assim?
— Você seria capaz de roubar um ovo de debaixo de uma águia
chocando no ninho, e ela nem ia perceber — disse Kitteridge. — Estou com
um homem na cadeia e a amiguinha dele, que deveria ser seu álibi, diz que
nunca ouviu falar nele. Tenho um sujeito que praticou um roubo a mão
armada rindo de mim e um detetive particular, mais bandido do que
qualquer bandido que eu já tenha prendido, mentindo na minha cara.
— Carson — disse Leonid. — Irmão, você me julga muito mal. Estive
mesmo com o Nestor, por uns poucos minutos. Mas isso é tudo, homem.
Nunca nem passei perto desse tal lugar, a Amberson's, e nunca escutei falar
de Joe Haller nem da namorada dele.
— Chris — disse Kitteridge. — Chris Small. O marido já a deixou. É
tudo o que descobrimos até agora.
— Bem que eu queria ajudar você, cara, mas está enganado comigo. Eu
nem mesmo sei como aprontar uma cilada dessas para algum otário por um
crime que já foi cometido.
Carson Kitteridge encarou tranquilamente o detetive e o sombrio estado
vizinho. Ele sorriu, então, e disse:
— Você não vai se sair bem dessa, Leon. Não pode zombar da lei dessa
maneira e vencer.
— Não sei nada de coisa alguma, tenente. Talvez o sujeito que você
agarrou seja mesmo o ladrão.
Katrina McGill fora linda, no seu tempo. Esbelta, cabelos muito negros,
nascida na Letônia ou na Lituânia — Leonid nunca se lembrava qual dos
dois países. Tinham três filhos, dos quais pelo menos dois não eram de
Leonid. Ele nunca fez o teste para saber. Por que se incomodar com isso? A
beleza do Leste Europeu logo o deixou por um leão das finanças. Mas ela
engordou e o paizinho que ela arrumou foi à falência, e, assim, a turma
inteira (menos o paizinho) vivia à custa de Leonid.
— O que tem pra jantar, Kat? — ele perguntou, ofegante depois de subir
cinco lances de escadas até a porta do seu apartamento.
— O Sr. Barch telefonou — respondeu ela. — Disse que ou você paga
até sexta-feira ou ele vai dar entrada na ação de despejo.
Era o formato quadrado de seu rosto e a flacidez em torno de seus olhos
que a tornavam feia. Enquanto fora jovem, a gravidade manteve tudo no
lugar, mas ela devia ter percebido a tempo o pano baixando. Os filhos
estavam na sala. A tevê estava ligada, mas ninguém a assistia. O filho mais
velho, o ruivo Dimitri, lia um livro. Ele tinha pele ocre e olhos verdes. Mas
tinha a boca de Leonid. Shelly, a garota, parecia mais chinesa do que
qualquer outra coisa. Tinham tido um vizinho chinês quando moravam em
Staten Island. Trabalhava com os joalheiros indianos do Queens. Shelly
estava cerzindo um dos casacos de Leonid. Amava o pai e nunca questionou
nada de sua mãe, nem sobre o próprio rosto no espelho.
Shelly e Dimitri tinham dezoito e dezenove anos. Iam ao City College e
viviam em casa. Katrina não queria nem ouvir falar em mudança. E Leonid
gostava de tê-los próximos. Sentia que eles o mantinham ancorado a
alguma coisa, impediam que saísse flutuando pela rua 42 abaixo e
mergulhasse no Hudson.
Twill era o mais novo. Dezesseis anos e escolhera o próprio apelido.
Tinha acabado de voltar para casa depois de um período de três meses no
reformatório para adolescentes perto de Wingdale, Nova York. A única
razão pela qual continuava no colégio era porque isso fazia parte do acordo
para sua soltura. Twill foi o único que sorriu quando Leonid entrou na sala.
— Ei, papai! — disse ele. — Adivinhe. O Sr. Tortolli quer me contratar
para trabalhar em sua loja.
— Ei, mas que bom! — Leonid teria de telefonar para o vendedor de
ferramentas e avisá-lo que Twill iria arrombar a porta de fundos da loja e
limpar o seu estoque em menos de três semanas.
Leonid o amava, mas Twill era um ladrão.
— E o Sr. Barch? — perguntou Katrina.
— E o meu jantar?
Katrina sabia cozinhar. Serviu frango com molho de vinho tinto e os
mais macios pasteizinhos que ele já havia comido. Havia também brócolis e
pão de amêndoas, abacaxi assado e um molho escuro de peixe que se podia
comer com uma colher.
Cozinhar havia se tornado difícil para Katrina desde que sua mão
esquerda ficara parcialmente paralisada. O especialista disse que
provavelmente isso fora causado por um derrame sem maior gravidade. Ela
ficava o tempo todo preocupada. Seus namorados haviam deixado de ligar
para ela fazia anos.
Mas Leonid cuidava dela e dos filhos. Ele até mesmo pedia de vez em
quando para fazer sexo com ela, porque sabia o quanto Katrina detestava
isso.
— Alguém mais ligou? — perguntou quando os garotos universitários
já haviam ido para seus quartos e Twill estava de volta às ruas.
— Um homem chamado Arman.
— O que ele queria?
— Tem um restaurantezinho francês na Décima com Décima Sétima.
Ele quer ver você lá às dez. Avisei que não sabia se você ia poder.
Quando Leonid adiantou-se para beijar Katrina, ela inclinou-se para trás
e ele riu.
— Por que você não me deixa? — ele perguntou.
— Quem ia criar nossos filhos, se eu fosse embora? Isso fez Leonid rir
ainda mais.
Ele chegou ao Banquete de Babette às nove e quinze. Pediu um
expresso duplo e ficou olhando para as pernas de uma mulher madura,
sentada no balcão do bar. Ela tinha pelo menos quarenta anos, mas estava
vestida como se tivesse quinze. Leonid sentiu os sinais da primeira ereção
que tinha em uma semana. Talvez tenha sido por isso que telefonou para
Karmen Brown em seu celular. Sua voz soou como se ela estivesse metida
num vestido como aquele. Quando a chamada foi atendida, Leonid
percebeu que ela estava na rua.
— Alô! — Senhorita Brown?
— Sim.
— Aqui é Leo McGill. Você deixou um recado para mim.
— Sr. McGill, pensei que estivesse na Flórida — o rumor de um motor
quase abafou suas palavras. — Sinto muito se está difícil de me escutar —
disse ela. Era uma motocicleta descendo a rua.
— Tudo bem. Em que posso ajudá-la?
— Estou com um problema e, bem, é uma coisa muito particular.
— Sou um detetive, senhorita Brown. Escuto coisas particulares o
tempo todo. Se quer que eu vá me encontrar com você, tem de me dizer do
que se trata.
— Richard — ela disse. — Mallory. Meu noivo, eu acho que ele anda
me traindo.
— E você quer que eu investigue isso?
— Quero — disse ela. — Não posso me casar com um homem que me
trata dessa maneira.
— Como chegou a mim, senhorita Brown?
— Olhei no catálogo. Quando vi onde era o seu escritório, achei que
deveria ser competente.
— Posso encontrar com você em alguma hora, amanhã.
— Preferia que fosse esta noite. Acho que não vou conseguir dormir até
resolver esse assunto.
— Bem — o detetive hesitou. — Tenho um encontro às dez, e depois
vou ver minha namorada. — Era uma piada somente sua, algo que a jovem
senhorita Brown jamais entenderia.
— Mas talvez eu possa me encontrar com você antes que vá ver sua
namorada — sugeriu Karmen. — Só deve levar alguns minutos.
Combinaram num pub da Houston, dois quarteirões a leste da rua
Elizabeth, onde Gert Longman morava.
Bem no instante em que Leonid desligava o telefone, Craig Arman
entrava no bistrô. Era um homem grande, branco, com um rosto largo e
simpático. Até mesmo o nariz quebrado o fazia parecer mais vulnerável do
que Perigoso. Vestia jeans desbotados e uma camiseta por baixo de um
largo suéter de tricô. Havia uma pistola escondida em algum lugar Por
debaixo de toda aquela roupa. Leonid sabia disso. O contador de rua de
Nestor Bendix jamais andava desarmado.
— Leo — disse Arman.
— Craig. A pequena mesa que Leonid havia escolhido era atrás de um
pilar, afastada do restante dos frequentadores do bistrô popular.
— Os tiras receberam a encomenda — disse Arman. — Nosso homem
levou dez minutos apenas para sair e entrar da casa dele. Depois, um
telefonema rápido e agora ele está em Tombs. Bem como você disse.
— Isso quer dizer que vou poder pagar o aluguel — replicou Leonid.
Arman sorriu e Leonid sentiu algo — pesando algumas dezenas de
gramas — sendo colocado sobre sua coxa por baixo da mesa.
— Bem, tenho de ir — disse Arman, então. — Durmo cedo, você sabe.
— Ah, é — concordou Leonid. A maioria dos homens de Nestor não
costumava lidar com homens das raças negras. A única razão para Nestor
tê-lo chamado foi que ele era o melhor no seu ramo. Leoníd pegou um táxi
na Sétima Avenida que o levou ao Barney's Clover, em Houston.
A garota sentada na extremidade do balcão do bar era tudo que um dia
Katrina fora, exceto por ser loura e porque sua beleza jamais se apagaria.
Tinha um rosto de porcelana com feições pequenas e adoráveis. Nenhuma
maquiagem, a não ser por um quase imperceptível brilho para os lábios.
— Sr. McGill?
— Leo.
— Estou tão aliviada por ter aceitado me encontrar — disse ela.
Estava vestindo calças de montaria marrons e uma blusa coral. Havia
uma capa de chuva branca dobrada sobre seu colo. Seus olhos eram de um
tom de castanho que um artista poderia chamar de vermelho. Seus cabelos
estavam cortados curtos — um corte masculino, mas sexy. Seus lábios
coloridos eram perfeitos para beijar bundas de nenês e para rir. Leonid
respirou fundo e disse:
— Cobro quinhentos dólares por dia, mais as despesas. Isso quer dizer
transporte, aluguel de equipamentos e alimentação, por oito horas diárias no
serviço. Havia acabado de receber doze mil dólares de Craig Arman, mas
negócios eram negócios.
A garota lhe entregou um grosso envelope pardo.
— Aí tem o nome completo dele e seu endereço. Também coloquei aí
uma fotografia e o endereço do escritório onde ele trabalha. Tem também
oitocentos dólares aí dentro. Provavelmente você não vai precisar de mais
do que isso porque tenho quase certeza de que ele vai vê-la amanhã à noite.
— Quer beber alguma coisa? — perguntou o barman, um rapaz asiático
muito bonito de rosto.
— Água mineral com gás — pediu o detetive. — Sem gelo.
O barman sorriu, ou talvez tenha sido uma careta de deboche, Leonid
não conseguiu saber. Ele queria um uísque junto com a água borbulhante
mas a ulcera em seu estômago iria doer por metade da noite, se bebesse
isso.
— Por quê? — perguntou Leonid à bela moça.
— Por que quero saber?
— Não. Por que você acredita que eles vão se encontrar amanhã à
noite?
— Porque ele me disse que tinha de ir com o patrão assistir a Flauta
Mágica no Camegie Hall. Só que não tem ópera nenhuma na programação.
— Parece que você já arranjou tudo por sua própria conta. Para que
precisa de um detetive?
— Por causa da mãe de Dick — Karmen Brown disse. — Ela me disse
que eu não estava à altura do filho dela. Disse que eu era vulgar e grosseira
e que somente o estava usando.
A raiva deformou o rosto de Karmen a ponto de tornar em algo feio sua
beleza etérea.
— Tudo o que você quer é esfregar isso na cara dela? — perguntou
Leonid. — Por que ela não ficaria satisfeita por seu menino encontrar outra
namorada?
— Acho que a mulher que ele está vendo é casada e mais velha, bem
mais velha. Se eu puder obter fotos deles, então quando eu romper o
noivado, pelo menos ela não vai me olhar de um jeito tão pedante.
Leonid ficou se perguntando se aquilo seria o bastante para magoar a
mãe de Dick. Também se perguntou por que Karmen suspeitava que Dick
estivesse vendo uma mulher mais velha e casada. Tinha muitas perguntas,
mas não fez nenhuma. Por que questionar alguém que lhe pagava
adiantado? Afinal de contas, tinha dois aluguéis para pagar.
O detetive passou os olhos pelas informações que recebia e no dinheiro,
presos por um enorme clipe de papel, enquanto o jovem bartender colocava
a água a sua frente.
A fotografia era de um homem que ele supôs que fosse Richard
Mallory. Era jovem, branco, e o rosto parecia inacabado. Tinha um bigode
que não era espesso o bastante e um cabelo castanho emaranhado que
desafiaria qualquer pente. Parecia pouco à vontade, ali de pé diante do
centro de patinação do Rockefeller Center.
— Certo, senhorita Brown — disse Leonid. — Vou pegar o caso. Pode
ser que ambos tenhamos sorte e tudo esteja terminado amanhã à noite.
— Karma — ela disse. — Pode me chamar de Karma. Todo mundo me
chama assim.
Leonid desceu a Elizabeth Street um pouco depois das dez e trinta.
Tocou a campainha de Gert e gritou seu nome no interfone. Teve de elevar a
voz para que ela o escutasse por causa do ronco de uma motocicleta
passando na rua.
Gert Longman vivia num pequeno apartamento no terceiro andar de um
edifício de estuque construído nos anos cinquenta. O teto era baixo mas o
ambiente era bem grande e Gert o havia arrumado com bom gosto. Havia
um sofá vermelho e uma mesinha de café de mogno com armários de
cerejeira que corriam ao longo da parede oposta. Ela não tinha cozinha, mas
havia uma frigobar num canto com uma máquina de fazer café e uma
torradeira em cima. Gert também tinha um CD-player. Quando Leonid
chegou, estava tocando Ella Fitzgerald, cantando canções de Cole Porter.
Leonid gostava desse tipo de musica e disse isso.
— Gosto disso — Gert replicou, de alguma maneira recusando o
cumprimento de Leonid.
Era uma mulher de pele escura, cuja mãe viera do lado espanhol de
Hispaniola. No entanto, Gert não falava com sotaque. Nem ao menos falava
espanhol. Na verdade, Gert não sabia coisa alguma sobre sua história. Tinha
orgulho de dizer que era tão americana como qualquer Filha da Revolução
Americana.
Ela se sentou no extremo sul do sofá.
— Nestor já pagou? — perguntou Gert.
— Sabe que estou com saudades de você, Gert — disse Leonid,
pensando na pele sedosa dela e na mulher quarentona vestida como
adolescente no bistrô francês.
— Isso acabou, Leo — disse Gert. — Acabou faz muito tempo.
— Mas você ainda deve ter suas necessidades.
— Não de você.
— Já houve tempo em que você dizia que me amava — replicou
Leonid.
— Isso foi depois de você me dizer que não era casado. Leonid sentou-
se a alguns centímetros de distância dela. Tocou-lhe os nós da mão com
dois dedos.
— Não — disse Gert.
— Tenha dó, garota! A coisa já está dura feito um furúnculo.
— E eu estou seca feito um osso. ...but to a woman a man is life, Ella
cantava. Leonid recostou-se e enfiou a mão direita no bolso da calça.
Depois que Karmen Brown o deixara no Bamey's Clover, Leonid meteu-se
no banheiro e separara os três mil de Gert, dos doze que Craig Arman
deixara em seu colo. Ele tirou o pacote do bolso.
— Você poderia pelo menos dar um beijinho no meu furúnculo por isto
aqui — ele disse.
— Poderia também lancetá-lo.
Leonid soltou uma risadinha sem graça e Gert sorriu. Nunca mais
haviam ido para a cama, mas ela gostava do jeito dele. Leonid podia
enxergar isso nos olhos dela.
Talvez devesse ter deixado Katrina. Ele lhe passou o bolo de notas de
cem dólares e perguntou:
— Alguém poderia encontrar uma pista qualquer que levasse de você a
Joe Haller?
— Hum! Não! Trabalhei num escritório totalmente diferente do dele.
— Como descobriu aquele registro?
— Corri uma lista de prováveis empregados da companhia e fiz uma
pesquisa de currículo de cerca de vinte deles.
— Da sua mesa?
— Do terminal de computador da biblioteca publica.
— E não podem rastrear você por aí? — Leonid perguntou.
— Não! Abri uma conta com um cartão de crédito que peguei com
Jackie P. É uma pobre coitada de St. Louis. Ninguém tem como rastrear
isso. Qual é o problema, Leo?
— Nada! — respondeu o detetive. — Só estou sendo cuidadoso.
— Haller é um cachorro — Gert acrescentou. — Tem caçado as garotas
de lá há meses. E quando o marido de Cynthia Athol descobriu e foi atrás
dele, Joe deu uma surra tão braba no coitado que ele foi parar no hospital.
Quebrou a clavícula dele. E deu uma surra na Chris Small com um cinturão,
faz só duas semanas.
Quando Nestor pediu a Leonid que encontrasse um otário para levar a
culpa de um crime cometido à luz do dia, Leonid procurou Gert e ela foi
trabalhar como funcionária temporária na Amberson's Financiais. Tudo o
que ela tinha de fazer era encontrar um sujeito com um currículo que
levasse a crer que ele poderia ter tomado parte no assalto; um sujeito que
ninguém poderia ligar a Nestor.
Ela fez melhor ainda. Encontrou um sujeito do qual ninguém gostava.
Haller havia assaltado uma loja de conveniências doze anos atrás,
quando tinha dezoito anos. Agora era um gigolô e faixa-preta em alguma
coisa. Gostava de impressionar as secretárias com seus musculos e seu pau
grande. Não se incomodava se seus maridos ou namorados descobrissem,
porque acreditava que seria capaz de bater em qualquer homem.
Gert soube que ele uma vez disse: "Qualquer mulher com um homem de
verdade não ia me deixar ganhá-la assim tão fácil."
— Não se preocupe — Gert disse. — O cara merece tudo o que vai
acontecer com ele e nunca vão conseguir encontrar nenhuma pista que leve
a mim.
— Ok! — disse Leonid. Ele tocou a mão dela de novo.
— Não...
Leonid deixou seus dedos subirem até o pulso dela.
— Por favor, Leo. Não quero ter de sair no tapa com você. A respiração
de Leonid era rápida e a ereção estava pressionando suas calças. Mas ele se
afastou.
— É melhor eu ir embora — disse ele.
— É, sim — concordou Gert. — Volte para sua mulher.
Não demorou muito para passar pela segurança do Empire State
Building. Leonid trabalhava até tarde pelo menos três vezes por semana.
Não queria voltar para casa, depois de Gert o haver chutado mais uma
vez.
Nunca soube por que aceitou Katrina de volta. Nunca sabia por que
fazia qualquer coisa, a não ser que tivesse a ver com trabalho. Leonid se
tornou um detetive particular porque era baixo demais para se candidatar a
entrar para o Departamento de Polícia de Nova York, quando era
qualificado para isso. Mudaram as exigências logo depois, mas, então, ele já
havia sido preso por invasão de domicílio. Ele não se importou com isso. O
setor privado era mais lucrativo e poderia trabalhar no horário que quisesse.
Encontrou no catálogo um Richard Mallory que tinha o mesmo
endereço que Karmen Brown havia datilografado na folha em que forneceu
os dados sobre seu noivo. Leonid discou um numero. Alguém atendeu no
terceiro toque.
— Alô — disse uma trêmula voz de homem.
— BobbiAnne está? — perguntou Leonid com um de seus doze
sotaques.
— Como?
— BobbiAnne. Ela está aí?
— Numero errado, meu senhor.
— Ah, ok, então — disse Leonid, e desligou.
Por doze minutos, sob o relógio na parede, Leonid refletiu acerca da voz
do homem que poderia ser Richard Mallory. Leonid achava que podia
adivinhar como era o caráter de qualquer pessoa, apenas conversando com
ela quando tivesse acabado de acordar de um sono profundo.
Eram 2:34 da manhã. E Richard, se aquele era Richard, tinha uma voz
que soava como um sujeito direito, trabalhador, alguém que não atravessava
a linha para se atirar na Vida.
Isso era importante para Leonid. Não queria sair seguindo um sujeito
que poderia se virar e estourar a cabeça dele.
Às três e meia, ele telefonou para Gert. "Seis, dois, zero, nove", disse a
mensagem eletrônica que atendeu depois de cinco toques. "No momento,
não posso atender, mas, se você deixar um recado, eu ligo de volta sem
falta."
— Gertie, é Leon. Sinto muito por esta noite. Tenho saudades de você,
querida. Quem sabe a gente possa jantar juntos amanhã? Você sabe... vou
compensar você por tudo.
Ele não desligou, ficou alguns segundos na linha, com a esperança de
que Gert, escutando a mensagem, atendesse.
A campainha acordou-o. No relógio havia acabado de dar nove horas.
A janela estava coberta de nuvens — Uma neblina esbranquiçada, fofa,
feito um véu de gaze, que não permitia uma visibilidade maior do que dez
centímetros à frente.
A campainha invadiu de novo sua mente entorpecida. Mais um toque
comprido. Mas, dessa vez, Leonid não estava acordado o suficiente para ter
medo. Ele percorreu cambaleante o corredor, vestindo o mesmo terno que
vinha usando nas últimas vinte e quatro horas.
Quando abriu a porta da frente os dois capangas enfiaram-se para
dentro.
Um deles era negro, careca, com óculos de aros dourados, enquanto o
outro era branco, com cabelos espessos e oleosos.
Ambos tinham pelo menos mais dez centímetros do que Leonid.
— Os Wyants querem quatro mil e novecentas pratas — disse o negro.
Sua boca por dentro tinha a coloração de gengivite. Seus olhos por trás das
lentes tinham um tom amarelado.
— Quatro mil e seiscentas — corrigiu Leonid, com voz grogue.
— Isso foi ontem, Leo. E os juros, seu sacana?
O negro fechou a porta e o branco avançou para a esquerda de Leonid.
O hooligan branco sorriu, Leonid sentiu todo o ódio que havia em seu
coração, e que era mais velho do que o seu avô comunista.
O homem branco tinha cabelos crespos, castanho-escuros, que haviam
sido tosados, mais do que cortados. Seus olhos eram algo entre azul e
castanho, e seus lábios eram rachados como se ele tivesse passado uma
parte da sua vida, anos antes, dando beijos de língua num leopardo dentuço.
— Que pena, acordamos você — respondeu o cobrador negro, tendo
acabado de lembrar-se de ser educado.
— Mais ou menos — disse Leonid, espreguiçando-se.
— Como vai, Bilko?
— Muito bem, Leon. Esperamos que você esteja com o dinheiro
porque, se não, vamos dar uma surra em você! O homem branco mal
conteve um risinho, já antecipando seu divertimento. Leonid enfiou a mão
no bolso junto ao peito e tirou o grosso envelope que havia recebido na
noite anterior.
Enquanto estava contando as quarenta e nove cédulas de cem dólares,
Leonid teve uma sensação familiar: o sentimento de nunca ter tanto
dinheiro quanto pensava que tivesse. Depois de pagos a dívida e os juros
para os Wyants, o aluguel do mês e do anterior do seu apartamento, depois
das despesas da casa que entregava à esposa e de suas próprias contas,
estaria duro de novo e ainda sem dinheiro para pagar os três meses de
aluguel do escritório.
Isso o deixou muito mais zangado. Ele precisaria do dinheiro de
Karmen Brown e mais ainda, se fosse para manter a cabeça acima da água.
E aquele idiota branco continuava rindo, a cabeça dele balançando como
um pino de boliche querendo cair.
Leonid passou o dinheiro para Bilko, que o contou devagar, enquanto o
idiota branco umedecia os lábios arruinados.
— Acho que você devia nos dar uma gorjeta por precisarmos vir de
longe até aqui para receber o dinheiro, Leon — disse o homem branco.
Bilko ergueu os olhos e sorriu:
— Leon não dá gorjetas, Norman. É um cara orgulhoso!
— Arranco esse orgulho dele a pancada bem rápido — disse Norman.
— Queria ver você tentar fazer isso, branquelo — desafiou Leonid.
Então, olhou para Bilko para ver se teria de enfrentar um ou dois.
— Fica só entre vocês — o capanga negro disse, erguendo as mãos,
uma vazia e a outra com a grana de Leonid.
Norman era mais rápido do que parecia. Soltou um punho carnudo
contra o queixo de Leonid, fazendo o detetive de meia-idade cambalear
para trás dois passos.
— Eeepa! — gritou Bilko.
Os lábios rachados de Norman se curvaram num sorriso. Ele ficou
parado, de pé, olhando para Leonid, esperando que ele caísse no chão! Esse
era o erro de todos os sparrings que Leonid enfrentara nos treinos no
ginásio do Gordo. Pensavam que o homem gordo não ia aguentar levar um
murro. Leonid avançou, por baixo e com toda força, atingindo o grandalhão
branco três vezes na linha da cintura. O terceiro soco fez Norman se curvar
o bastante para se abrir todo para uma combinação um-dois de uppercuts. A
única coisa que impediu Norman de cair foi a parede. Ele a atingiu com
força, erguendo as mãos, por reflexo, para se proteger contra o ataque que já
sabia que viria. Leonid conseguiu dar três bons murros na cabeça de
Norman, antes que Bilko o afastasse.
— Chega por hoje, garoto! — disse Bilko. — Chega! Preciso dele de pé
para fazer nosso serviço aí nas ruas.
— Então, leve esse babaca embora daqui, Bilko! Leve ele daqui ou
acabo com a raça dele!
Com muito jeito, Bilko ajudou o seminocauteado homem branco, já
sangrando bastante, a desencostar-se da parede. Apontou para ele a porta e,
então, voltou-se para Leonid:
— Vejo você no mês que vem, Leon — disse.
— Não — replicou Leonid, respirando pesado por causa do esforço. —
Nunca mais vai me ver outra vez.
Bilko riu, enquanto conduzia Norman para os elevadores. Leonid bateu
a porta às costas dele. Ainda estava com raiva. Depois de tudo o que havia
pagado, ainda estava duro e sempre pressionado por idiotas como Bilko e
Norman. Gert não atendia seus telefonemas e ele nem sequer tinha uma
cama onde pudesse dormir sozinho. Ele teria matado aquele idiota branco,
se não fosse Bilko. Leonid Trotter McGill soltou um rugido e com um chute
abriu um buraco na divisória de madeira do cubículo de sua inexistente
recepcionista. Então, pegou o telefone e pediu três roscas de geleia e um
copo grande de café com creme. Telefonou de novo para Gert, mas ela não
atendeu.
Era um pequeno escritório no terceiro andar, logo acima do restaurante
japonês de dois andares chamado Gai. Não havia elevadores, e assim
Leonid subiu pelas escadas.
Bastaram aqueles vinte e oito degraus para deixá-lo sem fôlego. Se
Norman tivesse conseguido reagir, Leonid se dava conta agora, ele levaria
uma surra de matar.
A recepcionista não pesava nem quarenta e cinco quilos, isso toda
vestida, e não se apresentava ali nem perto de estar toda vestida. Tudo o que
usava era uma combinação preta, tentando passar-se por vestido, e sandálias
de papel sem salto. Seus braços não tinham musculos. Tudo naquela garota
era pré-adolescente, exceto os olhos, que encaravam o corpulento detetive
particular com profunda desconfiança.
— Richard Mallory — Leonid disse para a morena.
— E você é...?
— Alguém procurando por Richard Mallory — cortou Leonid.
— Que negócios veio ver com o Sr. Mallory?
— Não é da sua conta, querida. Papo de homens! A mandíbula de pouco
mais de cem gramas da jovem se retesou, enquanto ela continuava com
olhar fixo em Leonid.
Ele não se perturbou. Não gostou da garota, vestida daquele jeito tão
sexy e falando com ele com tanta intimidade.
Ela pegou o telefone e sussurrou algumas palavras zangadas, então
afastou-se de seu posto e entrou pela porta atrás de sua cadeira, deixando
Leonid parado ali, barrado pela mesa à altura de sua cintura. No espelho da
parede, refletindo a janela às suas costas, Leonid via a Madison Avenue.
Via também o inchaço no lado direito de seu queixo, onde Norman o
atingira.
Poucos momentos depois, um homem alto com um bigode esparso
surgiu na recepção. Vestia calças pretas e um casaco de linho marrom.
Tinha aquela mesma expressão pouco à vontade da fotografia que Leonid
trazia em seu bolso.
Leonid também o odiou logo de cara.
— Sim? — disse Richard Mallory para Leonid.
— Estou procurando por Richard Mallory — disse Leonid.
— Sou eu.
O detetive particular respirou fundo, alargando as narinas. Sabia que
tinha de se acalmar, se pretendia fazer direito seu trabalho. Tomou mais
outro fôlego, bem profundo.
— O que aconteceu com o seu queixo — perguntou o jovem de boa
aparência para o boxeador amador.
— Edema — respondeu Leonid sem constrangimento. — É coisa que
peguei da família do meu pai.
Richard Mallory ficou um pouco perplexo. Leonid raciocinou que ele
talvez não soubesse o significado da palavra.
— Quero conversar sobre negócios com você, Sr. Mallory. Algo que
pode fazer nós dois ganharmos dinheiro.
— Não estou entendendo, senhor... — disse Mallory com a mais afável
das expressões que alguém poderia ter no rosto. Leonid sacou um cartão do
bolso do paletó, no qual se lia: Van Der Zee Serviços Domésticos e
Similares Arnold DuBois, Representante
— Eu não entendo, Sr. Dubois —, disse Mallory, usando a pronuncia
francesa do pseudônimo de McGill.
— Du bois! — disse Leonid. — Represento a firma Van Der Zee.
Acabamos de nos estabelecer aqui em Nova York. Originalmente, somos de
Cleveland. O que queremos é colocar nosso pessoal como empregados
domésticos, acompanhantes de idosos, para passear com cães e babás, nos
edifícios mais classe A. Nosso pessoal tem ótima aparência e é
extremamente profissional. E são muito dedicados também.
— E você quer que eu o ajude no negócio — perguntou Mallory, um
pouco desconfiado.
— Pagaremos mil e quinhentos dólares por cada apresentação exclusiva
que o senhor fizer para nós — disse Leonid. Já nessa altura, havia
esquecido seu desagrado com a recepcionista e com Mallory. Não estava
mais sequer zangado com Norman.
A menção de mil e quinhentos dólares por apresentação (o que quer que
fosse isto) fez Dick Mallory entrar em ação.
— Por favor, me acompanhe, senhor DuBois — disse, pronunciando o
nome de acordo com a preferência de Leonid. O genuíno corretor de
imóveis conduziu o falso agenciador de empregos por um corredor de
cubículos ocupados por vários outros agentes.
Mallory levou Leonid até uma pequena sala de reuniões e fechou a
porta às costas deles. Havia uma mesa redonda de pinho e três cadeiras
iguais. Mallory indicou uma com um gesto e ambos se sentaram.
— Agora, qual é exatamente a sua proposta, Sr. DuBois?
— Temos uma jovem — disse Leonid. — Uma belezinha. Ela monta
uma mesa pequena na portaria de qualquer prédio que você nos indicar.
Conversa com os locatários sobre todos os tipos de serviços domésticos de
que eles possam querer. Alguém pode precisar de um auxiliar duas vezes
por semana para ajudá-lo com arquivos e com as compras. Eles podem já
ter um auxiliar mas precisam de alguém para passear com seus mascotes
quando estiverem viajando. Quando alguém contrata um de nossos
empregados, temos certeza de que vai contratar outros, sempre que
necessário. Tudo o que queremos é o seu consentimento e instalamos a
mocinha. Logo a seguir lhe pagamos os mil e quinhentos dólares.
— Por cada prédio em que entrarem?
— Em dinheiro.
— Em dinheiro?
Leonid assentiu com a cabeça. O outro homem chegou mesmo a lamber
os lábios.
— Se já puder nos garantir um saguão num edifício de alta classe, posso
pagar a você hoje mesmo à noite.
— Mas tem de ser tão assim em cima?
— Sou um representante das Empresas Van Der Zee que recebe por
comissão, Sr. Mallory: Para ganhar, tenho de produzir. Não sou o único por
aí tentando fazer contatos. Quer dizer, pode me telefonar quando resolver,
mas se não puder me garantir um saguão de prédio para o final do dia, então
vou ter de seguir adiante na minha lista de contatos.
— Mas...
— Escute — disse Leonid, cortando qualquer lógica que Richard
Mallory pudesse estar tentando agarrar. Ele pescou de dentro do bolso três
notas de cem dólares. Colocou-as em cima da mesa, entre os dois.
— Aí tem um quinto do pagamento, bem na sua frente. Trezentos
dólares para que você me encontre uma portaria de prédio onde possamos
colocar Arlene trabalhando já amanhã bem cedo.
— Amanhã... — Isso mesmo, Richard. A Van Der Zee vai me dar o
controle de toda a operação em Manhattan se eu for o primeiro a aparecer
com um saguão de prédio.
— Então, já fico com esse dinheiro?
— E mais mil e duzentos, pagos às oito da noite, se já tiver um saguão
disponível para mim.
— Às oito? Por que às oito? — Acha que é o único sujeito com quem
estou conversando, Richard? Tenho mais quatro reuniões para esta tarde.
Quem vier me procurar às oito horas, com tudo em cima, vai ficar com pelo
menos parte do ganho. Ou quem sabe, fique com a coisa toda?
— Bem, tenho um encontro com uma garota esta noite...
— É só me ligar, Richard. Diga onde está e eu levo o dinheiro. Levo
também a carta para o condomínio para que Arlene possa montar sua mesa.
— Uma carta?
— Ora, você não acha que eu vou lhe entregar mil e quinhentos dólares
por semana em dinheiro sem uma carta ao condomínio que eu possa
mostrar ao meu chefe? Ou acha? — disse Leonid, serenamente. — Não se
preocupe, não vamos mencionar o dinheiro, somente que a Van Der Zee
pode instalar sua mesa no saguão e oferecer nossos serviços.
— Mas e se alguém reclamar?
— Você sempre pode dizer a seus patrões que estava pensando por
conta própria, tentando oferecer um serviço. Não vão saber da grana
envolvida. No máximo, vamos ser expulsos de lá, mas isso depois de uns
dois ou três dias, e a Arlene é muito boa em distribuir nossos folhetos.
— Vão ser mil e quinhentos dólares em dinheiro por semana?
— Duas vezes por semana, se encontrarmos outra Arlene e você puder
arranjar para a gente tantos negócios quanto me disseram que podia.
— Mas vou sair esta noite — reclamou Mallory.
— E daí? É só me ligar. Me dê o endereço. Eu dou uma passada com a
carta pronta. Vão ser apenas dez minutos e por mil e duzentos dólares.
Richard tocou no dinheiro. Depois, hesitante, apanhou as células.
— Posso mesmo ficar com isto aqui?
— Pode pegar. E vai ganhar o resto esta noite, e a mesma coisa uma vez
por semana pelos próximos quatro ou cinco meses — Leonid sorriu.
Richard dobrou o dinheiro e o pôs no bolso.
— Qual é o numero do seu telefone, Sr. DuBois?
Leonid telefonou para sua esposa e lhe disse para passar seu terno
marrom e deixá-lo pronto para a hora em que ele chegasse em casa.
— Sou sua empregada agora? — perguntou ela.
— Estou com o aluguel e as despesas aqui no bolso — Leonid grunhiu.
— Tudo o que estou pedindo é um pouco de cooperação.
O detetive particular telefonou então para a operadora do seu celular.
Quando a voz no outro lado da linha disse para gravar outra mensagem,
Leonid falou: "Alô. Aqui é Amold DuBois, agente de empregos da Van Der
Zee Enterprises. Depois do sinal diga o que tem para mim."
Quando ele chegou em casa, encontrou o terno dobrado sobre a cama.
Katrina havia saído. Sozinho em casa, preparou um banho e se serviu de um
copo de água com gelo. Queria muito um cigarro, mas o médico havia dito
que seus pulmões mal conseguiam suportar o ar de Nova York. Recostou-se
dentro da velha banheira, abrindo e fechando a água quente com os dedos
dos pés. Sua mandíbula doia e estava quase duro outra vez. Mas já tinha
uma boa entrada com o tal Richard Mallory e isso fez o detetive feliz.
— Pelo menos, sou bom naquilo que faço —, disse para ninguém. —
Pelo menos isso.
Depois do banho, Leonid telefonou de novo para Gert. Dessa vez, o
telefone tocou sem interrupção. Era muito estranho. Gert tinha programado
o telefone para a secretária eletrônica atender quando ela estivesse na linha.
Havia ocasiões em que ele não falava com Gert por meses seguidos. Ela
havia deixado claro que não queria mais intimidades físicas com ele. Mas
Leonid ainda sentia alguma coisa por Gert. E queria ter certeza de que
estava tudo bem com ela. Quando Leonid chegou na casa de Gert, por volta
das quatro horas, viu que a porta de entrada do prédio fora arrombada. A
porta da frente dela estava lacrada por fitas amarelas da polícia.
— Você a conhece? — Uma voz perguntou.
Era uma mulher de baixa estatura, de pé numa porta, mais para baixo no
corredor. Era velha, tinha cabelos grisalhos e usava roupas cinzentas. Tinha
olhos lacrimejantes e um chinelo diferente em cada pé. Havia um anel de
graduação no colégio com uma esmeralda, no indicador da mão direita, e o
lado esquerdo da sua boca pendia um pouco.
Leonid reparou em tudo isso na vã tentativa de afugentar o medo que
crescia em seu íntimo.
— O que aconteceu?
— Dizem que ele deve ter vindo na noite passada — disse a mulher. —
Já era depois da meia-noite; é o que o zelador está dizendo. O cara matou-a
sem mais nem menos. Não roubou nada. Somente atirou nela com uma
arma dessas que faz menos barulho que um tiro de espoleta, é o que dizem.
Você sabe, ninguém está mais seguro nem na própria cama hoje em dia. As
pessoas aí na rua enfiam alguma ideia maluca na cabeça e daí a gente morre
sem nem saber por quê. A boca de Leonid ficou seca. Ele fitou a mulher
com tanta intensidade que ela parou de resmungar e foi para dentro do seu
apartamento, fechando logo a porta. Ele apoiou-se no batente da porta,
olhos secos, mas atônito. Leonid jamais havia chorado. Nem quando seu pai
o havia deixado pela revolução. Nem quando sua mãe foi se deitar e nunca
mais ergueu-se da cama. Nunca.
Havia um bartender diferente servindo drinques no Bamey Clover
naquela tarde. Uma mulher com tatuagens azuis desbotadas nos punhos. Era
magra, olhos castanhos e passava dos quarenta.
— O que vai ser?
— Uísque de centeio. Sirva sem parar.
Estava na sexta dose quando seu celular tocou. O toque havia sido
programado por seu filho Twill. Começava com o som de um rugido de
leão.
— "Alô?
— Sr. DuBois? É o senhor?
— Quem fala?
— Richard Mallory. Está doente, Sr. DuBois?
— Olá, Dick. Sinto não ter reconhecido a sua voz. Recebi notícias bem
ruins, hoje. Um velho amigo morreu.
— Lamento muito. O que aconteceu?
— Uma enfermidade muito demorada — disse Leonid, terminando uma
dose e fazendo um sinal pedindo outra.
— Seria melhor telefonar para o senhor mais tarde?
— Você tem um saguão para mim, Dick?
— Bem, sim, tenho. Um edifício bastante grande em Sutton Place
South. O síndico do prédio é um amigo e prometi a ele quinhentos dólares.
— É assim que se faz negócios, Dick. Dividindo a riqueza. É o que eu
sempre fiz. Onde você está?
— Num restaurante brasileiro na Vinte e Seis Oeste. No segundo andar,
entre a Sexta e a Broadway. Não sei o endereço certo.
— Tudo bem. Pego com o telefone de informação. Vejo você mais ou
menos às nove horas. Parece que vamos fazer negócios, eu e você.
— OK! Bem, sinto muito por sua perda, Sr. DuBois. Mas, por favor,
não me chame de Dick. Odeio esse nome.
O Umberto's era um restaurante elegante numa rua repleta de
atacadistas indianos de bijuterias, comida e roupas. Leonid estava sentado
dentro de seu carro, um Peugeot 1963, estacionado junto à calçada oposta.
Já passava das dez e o detetive gordo estava bebendo numa pequena garrafa
de bourbon, no banco da frente. Pensava na primeira vez em que encontrara
Gert, sobre como ela sabia exatamente o que dizer.
— Você não é um homem tão mau assim — disse a tentadora
novaiorquina. — Acontece apenas de estar fazendo suas próprias regras há
tanto tempo que ficou um pouco confuso.
Passaram a noite juntos. Ele de fato não sabia que ela ficaria perturbada
quando descobrisse sobre Katrina. Katrina era sua esposa, mas não havia
nada de bom nisso. Ele lembrava a expressão magoada no rosto de Gert,
quando ela finalmente descobriu tudo. Depois disso, surgiu uma raiva
gélida que passou a dirigir contra ele dali para frente. Continuaram amigos,
mas ela jamais o beijou de novo. Não permitiria que ele chegasse a seu
coração. Mas trabalhavam bem juntos. Gert atuara em segurança privada
por doze anos antes de se conhecerem. Ela apreciava seus casos suspeitos,
como os chamava. Gert não acreditava que a lei era justa e não se importava
em ludibriar o sistema se isso fosse a coisa certa a ser feita.
Talvez Joe Haller não tivesse roubado a Amberson's, mas ele surrara e
humilhara tanto um homem quanto sua mulher, para satisfazer seus apetites
sexuais pervertidos.
Leonid se perguntava se Nestor Bendix poderia ter algo a ver com o
assassinato de Gert. Mas ele jamais contara a ninguém o nome dela. Talvez
Haller tivesse sido solto e, sabe-se lá como, rastreara a armadilha que
haviam aprontado contra ele até chegar a Gert. Talvez. Um leão rugiu em
seu bolso.
— Sim?
— Sr. McGill? É Karma.
— Olá! Estou trabalhando no caso. Ele está tendo um encontro, mas
ainda não botei os olhos nela. Vou ter as fotos para você amanhã à tarde. A
propósito, tive de gastar trezentos dólares para conseguir este endereço.
— Acho que tudo bem — disse ela. — Pago por isso também, se você
me trouxer a prova de que ele tem uma namorada.
— Certo, então. Deixe-me ir agora. Telefono para você quando tiver
certeza de alguma coisa.
Leonid desligou o telefone, uma colônia inteira de macacos começou a
matraquear.
— Alô!
— Você conhecia Gert Longman, não é? — perguntou Carson
Kitteridge.
O gelo se formou no baixo intestino de Leonid. Seu reto apertou-se.
— É.
— O que quer dizer isso?
— Você me perguntou se eu conheço alguém e eu respondi, é, conheço.
Fomos próximos, há algum tempo.
— Ela está morta. Leonid permaneceu em silêncio por um quarto do
percurso circular do ponteiro de segundos em seu Timex de segunda mão.
Era tempo o bastante para parecer que ele estava chocado com a notícia.
— Como aconteceu?
— Tiro.
— Quem?
— Um cara com uma pistola calibre 22 cano longo.
— Tem algum suspeito?
— É esse o tipo de pistola que você gosta de usar, não é, Leon? Por um
momento, Leonid acreditou que o tenente estava apenas jogando verde,
tentando fazê-lo se trair. Mas, então, recordou uma arma que havia perdido.
Fora há dezessete anos. Nora Parsons o procurara morta de medo de que
seu marido, que fora solto sob fiança antes de receber a sentença em seu
julgamento por desfalque, viesse atrás dela para assassiná-la. Leonid dera a
ela sua arma e depois que o marido, Anton, foi sentenciado, ela lhe disse
que tivera medo de ficar com uma arma em casa e assim a havia atirado
num lago.
Era coisa passada. Nada mais.
— E então? — perguntou o detetive Kitteridge.
— Não tenho uma arma há vinte anos, cara. E nem mesmo você ia
acreditar que eu usaria minha própria arma para matar alguém.
Mesmo assim, pensou que deveria dar uma ligada para Nora Parsons.
Talvez.
— Gostaria que você se apresentasse voluntariamente para ser
interrogado, Leon.
— No momento, estou ocupado. Me telefone mais tarde — disse
Leonid, e desligou.
Não pretendia ser tão rude com um representante da lei de Nova York,
mas Richard estava saindo pela porta da frente do Umberto's Brazilian
Food. Estava acompanhado pela atrevida recepcionista da imobiliária.
Agora, ela vestia uma camisola vermelha e sapatilhas pretas com uma
estola diáfana sobre seus ombros nus. Tinha penteado para cima seus
cabelos castanhos escorridos. Richard olhou em volta, examinando a rua,
provavelmente procurando o Sr. DuBois, então parou um táxi.
Leonid ligou o motor. Viu quando o táxi parou para pegá-los. O
motorista vestia um turbante indiano.
Subiram a Trinta e Dois, tomaram a direção leste, para a Park, depois
subindo para as ruas na altura da Setenta. Desceram num prédio com
grandes portas de vidro e dois porteiros uniformizados.
Quase como se estivessem fazendo pose, pararam na rua e colaram os
lábios num longo beijo de língua. Leonid vinha tirando fotografias desde
que desligara na cara do tira. Tinha fotos da placa do táxi, do motorista, da
frente do prédio e do casal conversando, de mãos dadas, duelando com as
línguas, agarrando-se. Lembravam Gert a Leonid, de quanto ele a desejava.
E agora ela estava morta. Ele baixou a sua câmera e deixou a cabeça pender
por um momento. Quando a ergueu, Richard Mallory e a recepcionista
tinham desaparecido.
— Está acordada? — Leonid sussurrou na cama, junto de Katrina.
Era cedo para ele, apenas uma e meia. Mas ela estava há horas
acordada. Ele sabia disso.
Nos velhos tempos, ela sempre estava na rua até depois das três ou
quatro. Por vezes, não voltava até o sol já estar alto — cheirando a vodca,
cigarros e homens.
Talvez, se a tivesse deixado e ficado com Gert, talvez, Gert ainda
estivesse viva.
— O que foi? — disse Katrina.
— Quer conversar?
— São quase duas horas.
— Uma pessoa com quem tenho trabalhado nos últimos dez anos
morreu esta noite — disse Leonid.
— Você está encrencado?
— Estou triste. Por uns poucos momentos, Leonid ficou escutando a
respiração pesada dela.
— Pode segurar minhas mãos? — o detetive pediu a sua esposa.
— Minhas mãos estão doloridas — disse ela.
Por um longo tempo depois disso, ele ficou deitado de costas,
observando a escuridão abaixo do teto. Não havia nada em que pudesse
pensar que não o atormentasse. Não havia nada que tivesse feito que
conseguisse recordar com orgulho.
Talvez uma hora depois, Katrina disse:
— Você ainda está acordado?
— É.
— Você tem uma apólice de seguro de vida? Só estou preocupada por
causa das crianças.
— Tenho algo melhor do que isso. Tenho uma filosofia de seguro de
vida.
— O que é isso? — perguntou Katrina.
— Enquanto eu valer mais vivo do que morto, não tenho de me
preocupar com cascas de banana e comida estragada.
Katrina soltou um suspiro e Leonid se levantou da cama. Justamente
quando ia para a pequena sala de tevê, Twill entrou pela porta da frente.
— São três da manhã, Twill — disse Leonid.
— Desculpa, pai. Mas eu saí com as irmãs Torcelli e o Bingham. Era o
carro dos pais deles, então eu tive de esperar até que todo mundo quisesse ir
para casa. Disse a eles que estava em condicional, mas nem ligaram, e...
— Você não tem de mentir para mim, garoto. Venha cá, vamos nos
sentar.
Sentaram-se um em frente ao outro, com uma mesinha baixa de café
entre eles. Twill acendeu um cigarro mentolado e Leonid desfrutou da
fumaça por tabela.
Twill era magro e mais para baixo, mas tinha pose de quem se achava o
maioral. Os garotos maiores o deixavam em paz e as garotas estavam
sempre ligando. O pai, fosse quem fosse, tinha algum sangue negro, e
Leonid era grato por isso. Twill era o filho de quem ele mais gostava.
— Algum problema, papai?
— Por que está perguntando?
— Porque não está me dando bronca. Aconteceu alguma coisa?
— Alguém de quem eu gostava morreu esta noite.
— Um cara?
— Não... Uma mulher chamada Gert Longman.
— Quando é o enterro?
— Bem, eu não sei — disse Leonid, dando-se conta de que nem sequer
havia se perguntado sobre quem iria providenciar o funeral de sua ex-
amante. Os pais dela estavam mortos. Os dois irmãos, na prisão.
— Vou com você, papai. É só me dizer quando é e eu mato aula. Depois
de dizer isso, Twill se levantou e foi para o seu quarto. Na porta, ele parou e
se virou.
— Ei, papai!
— O que é?
— O que aconteceu com o cara que deu um murro no seu queixo?
— Saiu carregado.
Twill fez sinal de positivo com o polegar para o seu pai afetivo e então
penetrou na escuridão para além da porta.
Leonid estava no trabalho às cinco horas. Estava escuro em Manhattan
e em Nova Jersey, do outro lado do rio. Ele colocara dois mil e quinhentos
dólares na carteira de Katrina, deixou o filme numa loja de revelação rápida
e comprou um sanduíche de ovo com cebolas das Bermudas e queijo
americano. Não acendeu as luzes. A madrugada desfez-se num amanhecer
que lentamente invadiu sua sala. O céu clareou e então se abriu — depois
de um instante, tornou-se azul.
Carson Kitteridge bateu na sua porta pouco depois das sete. Leonid
conduziu-o aos fundos do escritório, onde ocuparam as cadeiras de sempre.
— Você e Gertie tiveram uma briga, Leo? — perguntou o tira.
— Não. Na verdade, não. Quer dizer, acho que fiquei um pouco
atrevido e ela teve de me mostrar a porta da rua, mas me arrependi depois.
Queria levá-la para jantar. Você não é estupido o bastante para pensar que
eu teria matado Gert, não é?
— Se alguém me desse a informação de que você esteve envolvido com
o sujeito que assassinou Lincoln, eu ia dar uma checada cuidadosa no
assunto, Leon. É isso o que eu penso de você.
— Escuta, cara, eu nunca matei ninguém. Nunca puxei um gatilho,
nunca mandei matar ninguém. Eu não matei Gert.
— Você telefonou para ela — disse Kitteridge. — Telefonou para ela
bem desse telefone aí em cima da sua mesa, e justamente quando ela estava
sendo morta. Isso fala a favor da sua inocência, mas a gente pode pensar
coisas, por exemplo, o que você tinha para conversar com ela àquela hora
da madrugada? Do que estava se desculpando?
— Já disse a você... fiquei um pouco atrevido.
— E aí eu pensei, bem, ele tem uma esposa.
— Escute aqui, ela era minha amiga. Gostava dela... Um bocado. Não
sei quem fez isso, mas se eu descobrir, pode estar certo de que vou contar a
você.
Kitteridge bateu palmas silenciosas.
— Agora, que merda! Dê o fora do meu escritório — disse Leonid.
— Tenho mais umas perguntas.
— Faça todas elas para as paredes do corredor aí fora. — Leonid
ergueu-se da cadeira. — Enchi de você!
O policial aguardou um momento. Talvez tivesse pensado que Leonid
iria se sentar de volta. Mas, à medida que os segundos avançavam no
relógio da parede, começou a ficar claro para ele que os sentimentos de
Leonid estavam de fato feridos.
— Está falando sério? — ele perguntou.
— Tão sério quanto um ataque do coração. Agora, tire essa sua bunda
daqui e só volte com um mandado, se tiver vontade de conversar comigo de
novo.
Kitteridge ficou de pé. — Não sei qual é o seu jogo nesse negócio, Leon
— disse. — Mas não pode botar essa banca toda com a lei.
— Mas posso fazer isso com um babaca sem um mandado. O tenente
aguardou mais um momento e só então começou a se mover.
Leonid o acompanhou descendo o corredor até a porta, que ele bateu
com força às costas do homem da lei. Abriu mais um buraco na divisória de
madeira com um chute e marchou de volta para o seu escritório, onde suas
entranhas começaram a doer por conta do uísque e da bile.
— Sim, senhorita Brown — estava dizendo Leonid a sua cliente, no
telefone, já à tarde daquele dia. — Estou com as fotografias bem aqui
comigo. E não era uma mulher mais velha, como você suspeitava.
— Mas era uma mulher.
— Mais uma garota.
— Há alguma duvida sobre... o tipo de relacionamento deles?
— Não. Não há nenhuma duvida sobre a intimidade do relacionamento
deles. O que quer que eu faça com estas fotos e como vamos acertar as
contas?
— Pode trazê-las para mim? Ao meu apartamento? Vou estar com o
dinheiro para pagar a você e há mais uma coisa que quero que faça por
mim.
— Claro que posso ir até aí, se é o que você deseja. Qual é o endereço?
Karmen Brown morava no sexto andar. Ele apertou o botão do número
que ela havia lhe dado, sessenta e dois, e a encontrou esperando por ele na
porta.
Jovem recatada, ela vestia uma saia de couro marrom-escura que não
preservaria seu recato, se ela se sentasse sem cruzar as pernas. Sua blusa
estava com as três casas de cima desabotoadas. Não era uma garota de seios
grandes, mas o que tinha estava bastante visível. Suas feições delicadas
mostravam-se sérias, mas Leonid não diria que ela estava de coração
partido.
— Entre, Sr. McGill. O apartamento era pequeno, como o de Gert.
Havia uma mesa no meio com uma pasta de papel pardo sobre ela. Leonid
tinha uma pasta igual em sua mão direita.
— Sente-se — disse Karmen, indicando um sofá azul.
Em frente ao sofá havia uma mesa pequena com um decantador um
líquido âmbar até a metade e dois copos baixos. Leonid abriu a pasta e
pegou as fotografias que havia tirado.
Ela ergueu a mão para detê-lo.
— Você bebe comigo um drinque, primeiro? — perguntou a jovem
sereia.
— Acho que vou aceitar.
Ela serviu a bebida e ambos a beberam de um só gole. Ela serviu nova
dose. Depois de três doses bebidas de um só gole e com mais uma em seu
copo, Karmen disse:
— Eu o amo mais do que qualquer coisa no mundo, sabe?
— É mesmo? — disse Leonid, seus olhos passeando da fenda entre seus
seios para suas pernas cruzadas.
— Para mim, pareceu um idiota. — Eu morreria por ele — disse ela,
olhos fixos nos olhos de Leonid. Ele tornou a pegar a duzia e pouco de
fotos que havia tirado.
— Por este babaca? Ele nem mesmo tem respeito por você, ou por ela
— Leonid sentia o uísque por trás de seus olhos e debaixo da sua língua. —
Olhe para ele, e a mão dele por baixo do vestido dela, bem descarado.
— Olhe então isto aqui! — replicou ela.
Leonid ergueu os olhos e viu seu farto monte de pêlos púbicos. Karmen
havia arregaçado a saia, mostrando que não vestia nada por baixo.
— Vai ser minha vingança — ela disse. — Você quer?
— Sim, senhora! — respondeu Leonid, raciocinando que esta seria a
outra coisa que ela queria que ele fizesse.
Ele já estava semi-ereto, desde a noite anterior, quando viu Gert. Não
que estivesse sexy, mas preso ao apetite sexual. O uísque liberou esse
apetite.
Ela ficou de joelhos sobre o sofá azul e Leonid baixou as calças. Não se
lembrava da última vez em que estivera tão ávido por sexo Sentia-se como
um adolescente.
Mas, excitado do jeito que estava não conseguiu meter-se dentro dela.
Finalmente, ela disse:
— Espere um instante, papai — e virou-se para lubrificar a ereção dele
com sua própria saliva. Depois da primeira investida, bem firme, ele já
sabia que ia gozar. E não tinha como evitar.
— Isso, papai! Isso! — gritou ela.
Leonid pensou em Gert, dando-se conta naquele momento de que
sempre a amara, e em Katrina, para quem ele nunca fora bom o bastante.
Pensou na pobre criança tão apaixonada por aquele homem, que
precisara se vingar dele entregando-se a um detetive vagabundo, gordo e de
meia-idade.
Tudo isso passou pela sua cabeça, mas nada pôde impedir o ritmo
pulsante. Estava golpeando o traseiro magro de Karmen Brown. Ela estava
gritando. Ele estava gritando.
Então, tudo terminou — sem mais nem menos. Leonid nem sentiu a
ejaculação. Tudo se misturou em seu ataque violento e espasmódico.
Karmen ficou atirada no assoalho. Estava chorando. Ele estendeu o
braço para ajudá-la, mas ela o afastou.
— Me deixe sozinha — disse ela. — Me deixe em paz.
Ela estava encolhida no chão, com a saia em torno da cintura e um
grudento filete de porra descendo por suas coxas.
Leonid suspendeu as calças. Sentia algo que poderia ser culpa por ter
feito sexo com a garota. Ela era afinal apenas alguns anos mais velha do
que a filha de sua mulher e do joalheiro chinês.
— Você ainda me deve trezentos dólares — ele disse.
Talvez, algum dia no futuro, contasse a alguém que o melhor rabo que
já comera pagara a ele trezentos dólares por ter usufruído do privilégio.
— Está no envelope sobre a mesa. Tem mil dólares nele. Isso mais o
anel e a pulseira que ele me deu. Quero que devolva a ele. Pegue tudo e vá
embora! Fora!
Leonid rasgou o envelope para abri-lo. Encontrou o dinheiro, um anel
com um grande rubi e uma pulseira incrustada de diamantes de um quarto
de quilate.
— O que quer que eu diga a ele? — perguntou Leonid.
— Nada, nem uma palavra.
Leonid teve vontade de dizer alguma coisa, mas não disse. Atravessou a
porta, decidido a descer pelas escadas em vez de esperar pelo elevador.
No primeiro lance de degraus, pensou em Karmen Brown, primeiro
implorando por sexo, e depois chorando tão amargurada. No terceiro,
começou a pensar em Gert. Teve ímpeto de esticar o braço e tocá-la, mas
ela tinha desaparecido.
No primeiro andar, passou por um jovem com tatuagens, esperando
junto à porta dos elevadores.
Quando Leonid olhou para ele, o rapaz desviou o rosto. Estava usando
luvas de couro. Leonid deixou o prédio e tomou a direção oeste. Deu quatro
passos, cinco.
Seguiu até o final do quarteirão e foi então, quando teve necessidade de
tirar o casaco por causa do calor, que ficou se perguntando por que alguém
estaria usando luvas num dia quente. Pensou nas tatuagens e a imagem de
uma motocicleta penetrou em sua mente.
Estava estacionada bem diante do prédio de Karmen Brown.
Apertou todos os botões na parede até que alguém deixou-o entrar.
Estava pronto para subir em disparada as escadas, mas o elevador estava no
térreo e com as portas abertas.
Na subida, tentou raciocinar sobre a coisa toda. As portas do elevador
deslizaram se abrindo e ele se atirou em direção à porta do apartamento de
Karmen.
O rapaz com os braços tatuados estava saindo. Deu um salto para trás e
levou a mão ao bolso, mas Leonid pulou sobre ele e o golpeou. O murro
pegou em cheio o rapaz, mas ele continuou segurando a pistola. Leonid
agarrou sua mão e os dois se atracaram, executando uma intrincada dança,
confrontando suas forças e disputando a arma.
Quando o garoto livrou a pistola da mão de Leonid, o homem mais
gordo soltou seu peso e eles caíram no chão. O rapaz largou a arma.
Leonid sentiu uma pontada forte justamente no lugar onde ficava seu
fígado. Ele saltou para trás, afastando-se do motociclista, agarrando a
barriga. Havia sangue na parte inferior de sua camisa.
— Merda! — gritou ele.
Seu pensamento foi para novembro de 1963. Tinha quinze anos e estava
arrasado por causa do assassinato de Kennedy. Então Oswald foi baleado
por Ruby. Atingido no fígado sofreu uma dor excruciante.
Foi aí que Leonid se deu conta de que sua dor havia passado. Ele se
virou para o seu oponente e viu que ele estava deitado de costas, tentando
desesperadamente sorver ar. Então, com um semiengasgo, parou de respirar.
Dando-se conta de que o sangue em suas roupas era do rapaz, Leonid se
pôs de pé.
Karmen estava caída no chão, no canto, despida. Seus olhos estavam
abertos e muito, muito injetados de sangue. Sua garganta ficava escura por
causa do estrangulamento.
Mas ela não estava morta. Quando Leonid se curvou sobre ela, aqueles
olhos destruídos o reconheceram. Um gorgolejar subiu lá do fundo da sua
garganta e ela tentou golpeá-lo. Ela coaxou um xingamento alto e
incompreensível, e chegou mesmo a se sentar. O esforço foi demasiado.
Morreu sentada, a cabeça pendendo sobre os joelhos.
Não havia sangue debaixo de suas unhas. "Por que está nua?",
perguntou-se Leonid. Ele foi para o banheiro checar a banheira — mas
estava seca. Pensou em chamar o hospital, mas... O rapaz estava usando
uma pistola calibre 22. Leonid tinha certeza de que era a pistola que Nora
Parsons dissera que havia perdido, dezessete anos atrás.
Na sua carteira, a garota morta tinha uma licença de motorista no nome
de Lana Parsons.
Foi então que Leonid sentiu como se aquelas joias e o dinheiro dela
queimassem em seu bolso. O assassino carregava uma mochila. Continha
dois envelopes selados.
Um era endereçado a um advogado chamado Mazer e o outro a Nora
Parsons, em Montclair, Nova Jersey.
A carta para a mãe dela continha ainda as fotos que Leonid havia tirado
de Richard Mallory e de sua namorada.

Mamãe, Enquanto você esteve nas Bahamas com Richard, no ano


passado, fui a sua casa procurar alguma coisa que pudesse ter pertencido ao
papai. Você sabe o quanto eu o amava, e pensei que você poderia ter alguma
coisa que ficasse de lembrança dele para mim.
Encontrei uma velha caixa de metal enferrujada na garagem. Você ainda
tinha a chave, na caixa de ferramentas. Acho que não me surpreendeu que
você tivesse contratado um detetive para provar que o papai estava
roubando da sua própria companhia: Ele deve ter contado a você e você
calculou que poderia ficar com o dinheiro e continuar com seus namorados,
enquanto ele apodrecia na prisão.
Esperei um longo tempo até conseguir ter um plano sobre o que poderia
fazer. Finalmente, para partir de vez seu coração, decidi usar o homem que
você contratou para matar o papai. Aqui está uma foto do seu precioso
Richard e da verdadeira namorada dele. O garoto que você diz que ama. O
garoto para quem você pagou os estudos, na universidade. E agora, o que
acha disso, mamãe?
Peguei o relatório que Leonid McGill fez do papai. Estou enviando-o
para meu advogado. Talvez ele possa provar algum tipo de conspiração.
Tenho certeza de que você planejou tudo para incriminar o papai e, se o
advogado puder prová-lo, talvez mandem vocês dois para a prisão. Talvez
até mesmo o Sr. McGill acabe testemunhando contra você.
Vejo você no julgamento. Com amor, sua filha, Lana.

Para o advogado, ela mandara o relatório amarrotado e amarelado que


Leonid havia feito muitos anos atrás. O relatório detalhava que o marido de
Nora mantinha uma conta secreta com o dinheiro que desviara de um fundo
que administrava. Leonid se lembrava da reunião com a Sra. Parsons. Ela
lhe havia dito que não podia confiar num homem que era um ladrão. Leo
não quis discutir com ela. Somente estava ali para receber seu cheque.
Lana havia colocado uma cópia da carta à sua mãe no envelope do
advogado. Pedia a ele para ajudá-la a conseguir justiça para o seu pai.
Leonid lavou as mãos com cuidado e a seguir removeu todos os indícios de
que estivera no apartamento da garota.
Limpou todas as superfícies e o copo em que bebera. Recolheu o
material que havia trazido e as cartas não postadas, então abotoou o casaco
por sobre a camisa ensanguentada e fugiu da cena do crime.
Twill estava vestindo um terno azul-escuro com uma camisa amarelo-
pálida e uma gravata castanho-avermelhada com uma linha ondulada azul
orbitando em seu centro.
Leonid ficou pensando onde seu filho poderia ter arranjado um terno tão
bom, mas não fez a pergunta.
Havia apenas duas pessoas na pequena capela funerária onde Gert
Longman repousava num caixão aberto de pinho. Ela parecia menor do que
fora em vida. Seu rosto rígido parecia ter sido moldado em cera.
Os irmãos Wyant lhe haviam emprestado cinco mil e quinhentos dólares
para o funeral. Deram a ele sua taxa preferencial de juros de dois por cento
por semana.
Leonid ficou parado junto do caixão e Twill a seu lado, meio passo atrás
dele.
Mais atrás, duas fileiras emparelhadas de cadeiras dobráveis,
aguardando como se fosse uma plateia muda. O diretor havia preparado a
sala para uma cerimônia religiosa, mas Leonid não sabia se Gert era
religiosa. E também não conhecia nenhum amigo dela.
Depois dos quarenta e cinco minutos pelos quais haviam arrendado a
sala, Twill e Leonid deixaram a funerária em Little Italy. Saíram para o sol
brilhante da Mott Street.
— Olá, Leon — chamou uma voz atrás dele.
Twill se voltou, mas, Leon, não. Carson Kitteridge, vestido num terno
dourado-escuro, encaminhou-se para eles.
— Tenente, conhece meu filho Twill?
— Não tem aula hoje, filho? — perguntou o tira.
— Ganhei folga para vir a um funeral! — Twill disse, sem embaraços.
— Até mesmo a prisão libera os detentos nesses casos. — O que você
quer, Carson? — disse Leonid. Leonid ergueu os olhos acima da cabeça do
detetive. O céu era aquilo que Gert costumava chamar de azul
deslumbrante.
Isso era no tempo em que eles ainda eram amantes.
— Achei que você ia querer saber a respeito de Mick Bright.
— Quem?
— Recebemos uma chamada anônima, cinco dias atrás — Carson disse.
— Era a respeito de uma confusão num prédio de apartamentos lá pelos
lados do Upper East Side.
— E daí?
— Quando os policiais chegaram lá, encontraram uma garota morta,
chamada Lana Parsohs. E esse tal Mick Bright... morto também.
— Quem matou eles? — perguntou Leonid, controlando sua respiração.
— Parece que foi estupro e roubo. O garoto era um viciado. Conhecia a
garota do colégio. Cursaram Artes Performáticas juntos.
— Mas você disse que ele também estava morto?
— Disse, não foi? A maioria dos detetives diria que ele estava dopado e
caiu sobre a própria arma. A arma disparou e a bala varou seu coração.
Enquanto ia dizendo isso, Carson encarava fixamente McGill. Twill deu
uma olhada para o pai, depois desviou a cabeça.
— Acontece cada coisa estranha! — disse Leonid.
Já fazia tempo que Leonid compreendera que Lana havia encontrado a
pistola na caixa de metal de sua mãe. Ele sabia por que ela havia matado
Gert e por que havia mandado que Bright a matasse. Lana queria feri-lo e
depois mandá-lo para a cadeia, como ele fizera com o pai dela.
Era uma cilada tão boa que ele próprio poderia tê-la planejado. O
advogado iria colocar as cartas nas mãos da polícia. Se suspeitassem de
Leonid, iriam comparar o sêmen dele com o que houvessem encontrado na
garota. Ela esperava que ele guardasse para si as joias, que valiam bastante
dinheiro. Roubo, estupro e assassinato, e ele seria totalmente inocente,
como Joe Haller. "Eu morreria por ele", disse ela. Estava falando do seu pai.
— Sei desse caso há dias — disse Kitteridge. — O nome da garota ficou
na minha cabeça, então me lembrei que Lana Parsons era filha de Nora
Parsons. Já ouviu falar dela?
— Já. Descobri algumas informações sobre o marido dela. Estava
pensando em se divorciar.
— Isso mesmo — disse Kitteridge. — Mas ele não estava pulando a
cerca. Estava desviando dinheiro de sua própria empresa. Foi mandado para
a cadeia, por causa da sujeirada que você escavucou.
— Isso mesmo. — Ele morreu na prisão, não foi?
— Não saberia dizer.
Leonid queimou as cartas com as quais Lana tinha a intenção de
incriminá-lo.
Seu trabalho para a mãe de Lana havia levado a garota ao assassinato e
ao suicídio. Por algum tempo, ele pensou em mandar as fotos de Richard e
de sua namorada para a mãe de Lana. Pelo menos, estaria realizando uma
das coisas que ela tinha a intenção de fazer. Mas decidiu não mandá-las. Por
que magoar Nora, quando ele era tão culpado quanto ela?
Guardou uma foto, no entanto, na gaveta de cima de sua mesa. A foto
de Richard com a mão por baixo do vestido vermelho da recepcionista, em
plena Park Avenue, depois de um banquete de comida brasileira. Junto a
ela, guardou um recorte que havia tirado do New York Post. Era um artigo
minusculo sobre um prisioneiro da Ryker's Island chamado Joe Haller. Ele
havia sido preso por roubo. Enquanto aguardava julgamento, enforcou-se na
sua cela.

***
Prezado Fórum da Penthou-se
(Um primeiro rascunho)

Laura Lippman

Vocês não vão acreditar, mas foi o que realmente aconteceu comigo no
outono passado, e só porque cheguei cinco minutos atrasado, o que na
época pareceu uma tragédia.
"São só cinco minutos", foi o que fiquei dizendo à mulher por trás do
balcão, que nem se incomodou em tirar os olhos da tela do computador e
olhar para mim. O que é muito ruim, porque eu não preciso ser charmoso,
mas preciso de alguma coisa com que lidar.
Aliás, o que essas operadoras de passagens tanto fazem com um
teclado? O que há no computador que as deixa tão carrancudas? Eu tinha o
printout de minha passagem eletrônica e fiquei empurrando pelo balcão, e
ela continuava empurrando de volta para mim com a ponta de uma caneta,
como eu fazia com as cuecas sujas de meu colega de quarto Bruce quando
estávamos na faculdade. Eu as recolhia com o bastão de hóquei e as enfiava
num canto, só para abrir caminho para nosso quarto. Bruce era uma droga
de porcalhão.
— Lamento — disse ela, dando estocadas no teclado sem parar. —
Nesta noite não há nada que eu possa fazer por você.
— Mas eu tenho uma reserva. Andrew Sickert. Não tem nada aí?
— Sim — disse ela, sibilando o "s" de uma forma meio molhada, como
um assovio, como uma estudante do primeiro grau com aparelhos novos
nos dentes.
Meu Deus, como os homens mais velhos conseguem? Eu simplesmente
não entendo, em especial se for mesmo mais difícil conseguir que suba à
medida que se envelhece, e nem isso eu consigo entender. Mas já que fica
mais difícil, não seria necessário um visual melhor?
— Comprei essa passagem há três semanas. — Na verdade foram duas,
mas eu procurava alguma vantagem, desesperado para entrar naquele avião.
— Seu printout diz que não há garantia nenhuma se o senhor não estiver
no portão trinta minutos antes da partida. — A voz dela era de ah-que-
chatice, a voz de uma pessoa que simplesmente está adorando ver você
sofrer. — Tivemos um voo lotado esta tarde e havia uma dezena de pessoas
na lista de espera. Como o senhor não chegou para o check in às 9:25,
demos seu lugar a outro.
— Mas agora são só 9:40 e eu estou sem bagagem. Eu conseguiria, se a
fila da segurança não estivesse tão grande. Mesmo que seja o último portão,
eu consigo. Eu simplesmente preciso pegar esse voo. Eu tenho... Tenho... —
Eu quase podia sentir minha imaginação se esticando, pulando pela minha
cabeça, procurando por alguma coisa que esta mulher achasse válida. —
Tenho um casamento.
— O senhor vai se casar?
— Não! — Ela franziu o cenho para minha voz, estridente por reflexo.
— Quero dizer, não, é claro que não. Se fosse o meu casamento, eu já
estaria lá há uma semana. É do... do meu irmão. Sou o padrinho dele.
A hesitação foi infeliz.
— O casamento vai ser em Providence?
— Em Boston, mas é mais fácil pegar o avião para Providence do que
para o Logan.
— E será amanhã, na sexta-feira?
Merda, ninguém se casa numa sexta à noite. Até eu sabia disso.
— Não, mas vai haver um jantar de ensaio, sabe como são essas coisas.
Mais cliques.
— Posso colocá-lo no voo das sete da manhã se o senhor prometer
aparecer no check in com noventa minutos de antecedência. O senhor
chegará a Providence às 8h30. Tenho que pensar que é bastante tempo. Para
o ensaio e essas coisas. A propósito, este voo custa mais 35 dólares.
— Tudo bem — eu disse, pegando um cartão Visa que estava
perigosamente perto de estourar, mas eu relutava em abrir mão de meu
dinheiro, do qual precisaria muito na sexta à noite. — Acho que dá bastante
tempo.
E agora eu nada tinha a não ser tempo para gastar no aeroporto mais
monótono, o Baltimore-Washington International, no suburbio mais
monótono, Linthicum, de toda a Costa Leste. Não poderia ir para casa. O
trem Light Rail não estava mais operando e eu não podia gastar trinta
dólares numa corrida de táxi de volta ao norte de Baltimore. Além disso, eu
tinha que estar na fila às 5:30 da manhã para garantir meu lugar, e isso
significava acordar às quatro. Se eu ficasse ali, pelo menos não ia perder
meu avião.
Fiquei perambulando pela área de passagens, mas estava morta, todos
os balcões prestes a fechar. Acalentei uma cerveja, mas a última chamada
foi às 11 da noite e eu não podia ir até as lojas e restaurantes do outro lado
dos detectores de metal porque não tinha passe de embarque. Fiquei perto
das escadas por algum tempo, vendo as pessoas saindo dos terminais, os
rostos exaustos mas felizes porque a viagem havia acabado. Era quase
como se fossem dois aeroportos — "Embarque", esta cidade-fantasma em
que eu estava preso, e "Desembarque", com pessoas jorrando dos portões e
subindo as escadas rolantes, lutando por sua bagagem e depois se atirando
nas pistas gradeadas do nível inferior, indo para casa, saindo dali. Eu devia
estar fazendo a mesma coisa, a uns 650 quilômetros de distância.
Meu avião estaria tocando o chão agora, os rapazes à minha procura
prontos para partir. Tentei ligar para eles, mas meu celular ficara sem
bateria. Era essa a noite que eu estava tendo.
Eu me estiquei em um dos bancos acolchoados que ficam de frente para
meu balcão de passagens e ensaiei uma soneca, mas um velho empurrava
um aspirador de pó bem perto da minha cabeça, o que parecia meio
agressivo. Ainda assim, fechei os olhos e tentei não pensar no que estava
perdendo em Boston. Os rapazes deviam estar no bar agora, virando
algumas cervejas. Pelo menos eu participaria das principais festividades na
noite seguinte. Não foi uma mentira completa, a do casamento.
Eu estava indo para a despedida de solteiro de um amigo, embora não
tivesse sido convidado para o casamento propriamente dito, mas isso
porque havia muita hostilidade entre mim e a noiva. Ela disse a Bruce que
eu sou um imbecil, mas a verdade é que tivemos uma coisinha quando eles
estavam meio rompidos no último ano da faculdade e ela morria de medo
de que eu contasse a ele. E além disso, eu acho, porque ela gostou, curtiu o
velho Andy, que contribuiu muito mais para o espírito de aventura do que
Bruce poderia fazer. Não estou criticando meu amigo pelas costas, mas eu
morei com o cara por quatro anos. Sei como ele lidava com as coisas,
psicologicamente falando.
Por trás de meus olhos fechados, pensei naquela semana, dois anos
atrás, em que ela veio ao meu quarto sabendo que Bruce estava no trabalho,
trancou a porta depois de entrar e, sem nenhum preâmbulo, só se ajoelhou
e...
— Está com problemas? Eu me sentei sobressaltado, sentindo como se
tivesse sido pego em algum flagrante, mas felizmente eu não estava muito
desarrumado. Havia uma mulher de pé ao meu lado, mais velha, entre trinta
e quarenta anos, com um daqueles terninhos práticos e o cabelo esticado
para trás, levando uma pequena mala de rodinhas. De onde eu estava, não
pude deixar de perceber que tinha pernas lindas, pelo menos dos tornozelos
aos joelhos. Mas o efeito geral era formal, extraordinariamente de senhora.
— É. Meu avião estava lotado, e só vou poder pegar outro de manhã,
mas estou muito longe de casa.
— Ninguém devia dormir num banco. Basta uma noite para que suas
costas fiquem desalinhadas pelo resto da vida. Está precisando de dinheiro?
Provavelmente pode pegar um quarto nos hotéis do aeroporto pela ninharia
de 50 dólares. O Sleep-Inn é barato.
Ela pegou uma carteira na bolsa e, embora esse tipo de detalhe não seja
o meu forte, me pareceu uma carteira cara e o compartimento das notas
estava grosso de dinheiro.
Na maior parte do tempo, eu não me angustio com dinheiro — só tenho
23 anos, estou começando no mundo, vou ganhar o meu quinhão muito em
breve — mas foi difícil ficar olhando todas aquelas notas e pensando no
abismo entre nós. Por que eu não devia pegar os 50 dólares? Estava claro
que não ia fazer falta a ela.
Mas por algum motivo eu não consegui.
— Não. Nunca vou poder te pagar. Quer dizer, eu vou poder, quando
conseguir um emprego. Mas eu me conheço. Vou perder seu endereço ou
coisa assim e nunca vou te devolver o dinheiro.
Ela sorriu, o que transformou sua fisionomia. Definitivamente entre
trinta e quarenta, porém mais perto do final dos trinta, agora que eu a
olhava bem. Os olhos dela eram cinza, a boca era grande e recurvada, mais
cheia no lábio superior, então os dentes dela se projetavam um pouco para
fora. Gosto muito de uma certa dentucinha.
E o terninho era meio uma camuflagem, pelo que percebi, no bom
sentido. A maioria das mulheres se veste para esconder os defeitos, mas
algumas usam as roupas para cobrir as virtudes. Ela tentava esconder as
melhores qualidades, mas eu podia ver os volumes por baixo das roupas —
tanto em cima quanto atrás, onde seu traseiro se erguia quase desafiando o
casaco feito sob medida e a saia reta. É impossível esconder uma boa
bunda.
— Não seja tão cavalheiro — disse ela. — Não estou oferecendo um
empréstimo. Estou fazendo uma boa ação. Gosto de fazer boas ações.
— É que simplesmente não parece certo. — Não sei por que eu estava
tão seguro disso, mas acho que era porque ela era meiga. Eu não podia
deixar de pensar que nos veríamos novamente, e eu não ia querer ser
lembrado como o cara que tirou 50 dólares dela.
— Bom... — aquele sorriso de novo, desta vez maior. — Estamos num
impasse.
— Acho que sim. Mas, se quiser chegar em casa hoje, é melhor descer
para o ponto de táxi. Tem umas vinte pessoas na fila. — Olhamos pelas
vidraças, para o andar inferior, que estava um caos. Ali em cima estava
silencioso e reservado, o homem do aspirador de pó finalmente tinha saído,
os balcões todos fechados.
— Eu tenho sorte. Estou de carro.
— Acho que quem tem sorte é o cara que está esperando por você em
casa.
— Ah. — Ela ficou alvoroçada, o que a deixou ainda mais sensual. —
Não tem nenhum... Quero dizer... Bom, eu sou solteira.
— É difícil acreditar nisso. — A besteira automática a dizer, mas eu fui
sincero. Como é possível que alguém como aquela operadora de passagens
caquética tivesse uma aliança no dedo e esta mulher andasse solta por aí?
— É um problema do tipo o ovo ou a galinha.
— Hein?
— Sou solteira porque sou viciada em trabalho ou sou viciada em
trabalho porque sou solteira?
— Ah, essa é fácil. A primeira. Sem dúvida. Seu rosto pareceu se
iluminar e eu juro que vi os olhos dela ficarem baços, como se estivesse
prestes a chorar.
— Essa foi a coisa mais bonita que já me disseram na vida.
— Então você precisa sair com pessoas melhores.
— Olha... — Ela pôs a mão na minha, e estava fria e macia, o tipo de
mão que era emplastrada de creme regularmente, a mão de uma mulher que
cuidava de cada parte do corpo. Eu sabia que ela estava lisa de tão depilada
por baixo do terninho conservador, que pintava as unhas dos pés e que seu
cheiro só podia ser bom.
— Tenho um apartamento de dois quartos no sul da cidade, só a
algumas quadras dos grandes hotéis. Você pode passar a noite no meu
quarto de hóspedes e pegar o primeiro trem de Hyatt às cinco. São só 15
dólares, e você terá onde descansar e não terá cãibras.
O engraçado é que eu me sentia protetor com relação a ela. Era quase
como se eu fosse duas pessoas — Um cara que queria mantê-la longe de um
sujeito como eu, o cara que queria entrar no apartamento dela, arrancar
aquele terninho e ver o que ela resguardava do resto do mundo.
— Não posso fazer isso. É um favor ainda maior do que me dar 50
dólares para um quarto de hotel.
— Não sei. Me parece que há outras maneiras de você me retribuir, se
pensar bem no assunto.
Ela não sorriu, nem arqueou uma sobrancelha, nem fez nada com o
rosto que confirmasse o que tinha acabado de me oferecer. Ela
simplesmente se virou e começou a puxar a mala para as portas deslizantes
de vidro. Mas nunca na vida eu tive tanta certeza de que uma mulher me
queria. Eu me levantei, peguei minha mala e a segui, nossas rodas
arranhando em uníssono. Ela me levou a um BMW preto no
estacionamento expresso. Nenhum de nós disse uma só palavra, nós mal
nos olhamos, mas eu levantei a saia dela até a coxa enquanto ela entregava
duas pratas ao atendente do estacionamento.
Ele sequer se incomodou em olhar para baixo, só passou o troco a ela,
entediado com a própria vida. É surpreendente o que as pessoas não veem,
mas afinal... As pessoas não viam a ela, esta mulher maravilhosa. Porque
era baixa e recatada, ela passava pelo mundo sem ser reconhecida. Eu
estava feliz por não ter cometido o erro de não ver o que havia ali.
O apartamento dela ficava apenas a vinte minutos de distância e, se
fossem vinte e cinco, acho que eu a teria feito parar no acostamento ou
correria o risco de um acidente. Agora eu havia puxado a saia dela acima da
cintura, e no entanto ela mantinha o controle do carro e os olhos fixos na
frente, o que me deixou ainda mais louco por ela. Depois que estacionou,
não se incomodou em abrir a mala do carro e naquele momento não fiquei
preocupado com a minha bagagem. Eu não ia precisar de roupa nenhuma
até de manhã. Ela subiu a escada correndo e eu a segui.
O prédio era baixo e se localizava em um bairro mais duvidoso do que
eu esperava, mas em geral aqueles lofts ficavam em partes estranhas da
cidade. Ela me empurrou para uma sala de estar escura e trancou a porta
atrás de mim, passando o ferrolho como se eu pudesse mudar de ideia, mas
esse risco não existia.
Eu não tive tempo nem disposição para olhar O ambiente, embora tenha
percebido que a sala era pouco mobiliada — nada além de um sofá, uma
mesa com um laptop aberto e um aparador enorme com jarros de tampa
dourada e brilhante, pareciam aqueles vidrões de pimenta que a gente vê em
delicatessens, embora não fossem iguais. Não pude deixar de pensar que era
um projeto dela, que talvez fossem vasos distorcidos pela luz da lua.
— Você é artista? — perguntei enquanto ela dava um passo para trás e
começava a tirar a roupa, revelando um corpo que era ainda melhor do que
eu esperava.
— Sou do ramo.
— Quer dizer, como hobby? — Eu inclinei a cabeça para o aparador,
enquanto tentava tirar as calças sem rasgar.
— Eu faço conservas.
— Como é? — Não que eu realmente me importasse com a resposta,
porque agora minhas mãos estavam nela. Ela me deixou beijar e tocar o que
eu pudesse alcançar, depois ficou de joelhos, como se só quisesse me dar
prazer. Bem, ela havia dito que gostava de fazer boas ações, e eu tinha feito
a minha no carro dela.
— Faço conservas — disse ela, seu hálito quente e úmido. — Coloco
frutas, legumes e outras coisas também, assim posso desfrutar de tudo
durante todo o inverno.
— E depois ela parou de falar porque tinha...

Maureen se interrompeu, franzindo a testa para o que havia escrito. Será


que dominava o gênero? Esta era sua sexta carta e, embora o argumento
estivesse ficando mais fácil, a prosa tornava-se mais difícil. Parte do
problema é que os homens oferecem muito pouca variação ao final da
barganha, obrigando-a a ser ainda mais inventiva com a vida e a missão
deles. Mesmo quando eles a faziam contar fragmentos de suas histórias do
passado, como esta, Andy é tão entediante, tão banal. Tarde da noite no
aeroporto, uma conexão perdida, sem dinheiro suficiente para fazer outra
coisa que não seja dormir em um banco, blablablá. Ah, mas ela não tinha o
luxo de pegá-los para ter material. Ela precisou descobrir a matéria-prima e
modelar de acordo com as necessidades.
Até agora, os editores da Penthou-se não publicaram nenhuma de suas
cartas — descrições demais, ela imaginava, o que também significava
preliminares demais, no que dizia respeito a ela. Ah, a diferença entre
homens e mulheres, o abismo intransponível. Um lado quer a sedução, o
outro quer ação. É também por isso que os roteiros dela nunca vendem.
Descrições demais, narrativa demais. E, francamente, ela sabe que suas
cenas de sexo são ruins. Parte do problema é que na vida real Maureen
quase nunca completa o ato que tenta descrever na ficção; ela fica ansiosa
demais para chegar à parte preferida. Então, sim, ela tem seus próprios
problemas com as preliminares.
Não, Maureen definitivamente tinha problemas de voz nesta carta. Será
que um jovem se lembraria do silvo que fazem os aparelhos odontológicos,
ou ela simplesmente revelava demais sua própria inabilidade? Um homem
de 23 anos reconheceria uma carteira cara? Ou usaria a palavra
"extraordinariamente"?
Além disso, ela devia ter cuidado para não ser factual demais. O
estacionamento de dois dólares — Uma pessoa mais sagaz, alguém que não
estivesse subindo a mão pela saia de uma mulher, vasculhando como se
procurasse por moedas atrás da almofada do sofá, poderia se perguntar por
que a volta de uma viagem de negócios só custou uma hora de
estacionamento. Ela também devia refazer a descrição do apartamento,
torná-lo mais sofisticado, da mesma forma que aperfeiçoou o Nissan Sentra
para um BMW preto reluzente. Por falar nisso, ela precisa levar o carro para
dar um polimento, só para garantir, e mudar o nome de Andy nos rascunhos
subsequentes.
Ela não se preocupava que os investigadores da homicídios lessem a
seção Fórum da Penthou-se em busca de pistas de casos abertos, mas eles
quase certamente a liam.
Enquanto isso, a mala dele se fora, atirada em uma caçamba de lixo
atrás do Sleep-Inn, perto do aeroporto, e Andy também se fora.
Bem — ela olhou para a fila de jarros, que ela precisava fechar
novamente dentro do armário do aparador, mas eles ficavam tão bonitos à
luz da lua, quase como uma lâmpada de lava feita em casa. Bem, ela
lembrou a si mesma. A maior parte de Andy se fora.

***
Ponto de encontro
Nelson DeMille

Como aprendi nas aulas de biologia do segundo grau, a fêmea da


espécie costuma ser muito mais perigosa do que o macho. Lembro-me de
ter pensado que isso talvez fosse verdade no reino animal, mas entre os
seres humanos o macho era mais perigoso.
Mudei de ideia quando cruzei o caminho de uma mulher muito mortal
com um fuzil, disposta a me matar e a todo mundo ao meu redor.
Eu era um jovem oficial da infantaria de serviço no Vietnã em 1971-72.
Depois de alguns meses de combate cometi o erro de me oferecer como
voluntário para um trabalho de merda. Peguei-me liderando uma Patrulha
de Reconhecimento de Longo Alcance, conhecida como Prela.
Estava perto do fim do meu período de serviço, tendo feito doze
patrulhas, e só conseguia pensar em voltar para casa vivo.
Estávamos patrulhando perto da fronteira do Laos, a oeste de Khe Sahn,
uma área montanhosa de densa floresta semitropical interrompida aqui e ali
por vastas áreas de taboas que cresciam até a altura da cabeça e bambuzais.
A população local de tribos montanhesas havia fugido há muito dessa zona
de tiro livre, em troca da segurança de fortificações a oeste.
Eu tinha a sensação — que era ilusão total — de que eu e meus nove
homens éramos os únicos seres vivos naquele lugar esquecido por Deus. A
realidade é que havia milhares de soldados inimigos se movendo ao redor
de nós, mas não os tínhamos visto e eles não tinham nos visto, e esse era o
nome do jogo.
Nossa missão era não travar batalha com o inimigo, e sim encontrar e
mapear a ardilosa Trilha Ho Chi Mihn — na verdade uma rede de estradas
estreitas usadas pelo inimigo para infiltrar soldados e suprimentos no Vietnã
do Sul. Também deveríamos informar esses movimentos através de rádio
para que a artilharia, os helicópteros de ataque e os caças-bombardeiros
americanos pudessem dar o desincentivo adequado ao inimigo.
Era julho, estava quente, úmido e cheio de insetos. As cobras e os
mosquitos adoravam a água. À noite podíamos ouvir a conversa dos
macacos e o rosnado dos tigres.
Em geral as patrulhas de reconhecimento de longo alcance duravam
umas duas semanas. Com mais de duas semanas as rações ficavam
reduzidas e a coragem da patrulha sumia. Só se pode ficar um certo tempo
na selva, em território controlado por inimigo, em número menor do que as
forças hostis, que podiam acabar com uma patrulha de dez homens num
instante, se a descobrissem.
Levávamos dois rádios — PRC-25, chamados de Prick Dois Cinco —
para mantermos contato com o quartel-general longe, bem longe, fazer
relatórios, chamar a artilharia ou os bombardeiros e em última instância
combinar nosso resgate por helicóptero quando a missão estivesse
terminada ou comprometida; isto é, se e quando os vietcongs estivessem
soltando bafo no nosso cangote.
Algumas vezes os rádios falham. Ou se estragam. Algumas vezes as
frequências de rádio não funcionam. Algumas vezes os vietcongs estão
ouvindo a gente no rádio deles, de modo que há um plano de contingência
para o caso de os rádios não serem mais uma opção. Havia três pontos de
encontro definidos, marcados no meu mapa da região, com três horários
combinados para encontro com os helicópteros. Eram chamados de Pontos
de Encontro Alfa, Bravo e Charlie. Se você não vir seu helicóptero no Alfa
no momento designado, vai até o Bravo, e se esse encontro falhar, vai para
o Charlie. Se esse falhar, você volta ao Alfa. Em seguida está por conta
própria.
E, como dizem nossos amigos viets, Xin Loi. Boa sorte.
As coisas que provocavam falha no encontro combinado eram o clima e
a atividade inimiga na área. Até agora o tempo estava limpo e não tínhamos
visto nem ouvido o inimigo. Mas ele estava ali. Víamos marcas novas de
pneus e de pés na rede de trilhas e encontramos acampamentos recém-
abandonados, e à noite sentíamos cheiro de fogueiras de cozinhar. Ele
estava ao nosso redor, mas era invisível, assim como eu esperava que
também estivéssemos.
Isso tudo mudou no Dia Dez. Estávamos patrulhando uma área que me
causava alguma preocupação; era um lugar que já fora coberto de florestas
luxuriantes, mas agora era uma vastidão de troncos queimados por napalm,
com os cumprimentos da Força Aérea dos EUA. Nosso trabalho ali era
informar os efeitos do recente ataque aéreo, e eu estava tentando
compreender e avaliar o que via: cinza preta, caminhões queimados e
duzias de corpos grotescamente contorcidos e incinerados, dentes brancos
se projetando de rostos de carvão. Precisávamos fazer uma contagem de
veículos e corpos.
O problema com esse lugar, além do óbvio, era que oferecia pouca ou
nenhuma cobertura para mim e meus homens.
Falei num sussurro com o operador de rádio atrás de mim, um cara
chamado Alf Muller.
— Rádio. — Levei a mão às costas para pegar o radiofone, mas ele não
foi posto na mão como deveria.
Virei-me e vi Alf caído de cara na cinza preta, o rádio preso às costas e
os braços esticados para os lados, uma das mãos segurando o fone na ponta
do fio.
Demorei meio segundo para perceber que ele fora acertado. Gritei:
— Atirador! — e mergulhei no chão rolando na cinza com o resto do
pessoal. Ficamos ali caídos, esperando parecer algo inanimado em meio ao
entulho preto da terra explodida.
Atirador de elite. A coisa mais apavorante no campo de batalha, onde
sobram coisas apavorantes. Eu não tinha escutado o tiro e também não
ouviria o próximo. Nem veria o atirador, mesmo que estivesse vivo depois
do próximo tiro. O atirador de elite atua de longa distância — cerca de cem
ou duzentos metros — e tem um fuzil muito bom, equipado com mira
telescópica, silenciador e supressor de clarão. Usa roupas camufladas e o
rosto é enegrecido como a cinza em que eu estava deitado.
É a Morte Ceifadora que colhe os vivos.
Ninguém se mexeu, porque se mexer significava morte. Não havia
como saber de onde o tiro viera, portanto não podíamos nos esconder atrás
de alguma coisa porque poderíamos nos colocar na linha de tiro. Não
podíamos correr porque poderíamos estar correndo direto para o atirador.
Virei a cabeça lentamente para Alf. Seu rosto estava caído na cinza e
não havia sinal de respiração.
Na medida em que eu não tinha nenhum pensamento além do terror, me
perguntei por que o atirador havia pegado Alf, o homem do rádio, e não eu;
o sujeito ao lado do homem do rádio é o oficial ou o sargento: o principal
alvo no combate. Era como tirar o técnico do time. Estranho. Mas não
reclamei.
Não existe uma coisa melhor a se fazer nessa situação, mas a segunda
melhor é não fazer nada. Meus homens eram treinados e sabiam que
deveriam manter a calma e permanecer imóveis. Se o atirador disparasse
outra vez e alguém fosse acertado — presumindo que soubéssemos que
alguém foi acertado — não teríamos escolha além de nos espalhar e
aproveitar a chance de que o atirador só conseguiria acertar alguns alvos
móveis antes que outros estivessem fora do alcance.
Eu era pago para tomar decisões, por isso decidi que o atirador estava
longe demais para nos ouvir. Precisava de uma contagem de cabeças, e
chamei:
— Dawson. Informe. O sargento da minha patrulha, Phil Dawson,
gritou de volta:
— Landon foi acertado. Estava se mexendo, mas acho que morreu.
O médico da patrulha, Peter Garcia, gritou:
— Vou tentar chegar a ele.
— Não! — gritei. — Fique parado. Todo mundo informe presença.
Os homens informaram a presença na ordem dos numeros respectivos
na patrulha.
— Smitty aqui. — Depois: — Andolotti aqui — seguido por — Johnson
aqui.
— E depois de alguns longos segundos Markowitz e Beatty
responderam.
O sargento Dawson, cujo trabalho é contar cabeças, prestou contas:
— Nove responderam, tenente. O senhor está com Muller?
Gritei de volta:
— Muller está morto.
— Merda — disse Dawson.
Então estávamos com os dois operadores de rádio mortos. O que não era
coincidência. Mas era um enigma.
Eu precisava chegar ao rádio e pedir helicópteros de observação e de
ataque para formar um círculo de fogo em volta de nós e talvez pôr o filho-
da-puta para fora.
Olhei para Muller, a uns dois metros de distância. Estava com o
radiofone na mão direita, mais distante ainda de mim.
Bem, pensei, podemos ficar aqui sentados e ser apanhados um a um,
podemos aguardar o pôr-do-sol e esperar que o atirador não tenha visor
noturno, ou eu poderia merecer um pouco daquele pagamento extra por
combate. Minha ideia, baseada em um ano desse tipo de merda, era que o
atirador tinha ido embora. Achava isso porque esse negócio de se fingir de
morto não significava grande coisa, considerando como estávamos expostos
nesse terreno queimado. Então, se o atirador ainda estava ali, já teria dado
mais alguns tiros. Gritei:
— Informe. Todo mundo que estava vivo há alguns minutos continuava
vivo.
Respirei fundo e rolei duas vezes, depois uma terceira passando sobre o
corpo de Alf e me imobilizei em cima de seu braço estendido. Peguei o
radiofone em seus dedos que iam se enrijecendo e pus no ouvido, esperando
o tiro que explodiria meu cérebro.
Apertei o botão de fala e disse no bocal:
— Pato Real Seis, aqui é Fuinha Preta. — Soltei o botão de fala e
apertei o fone no ouvido, mas houve um silêncio mortal. Tentei de novo,
mas não havia sequer um zumbido de rádio nem estática no fone. O rádio
estava tão morto quanto Alf Muller.
Esperei o impacto da bala em algum lugar do corpo. Quase podia sentir
o aço quente me rasgando. Esperei. Fiquei puto da vida. Levantei-me e
gritei para a patrulha:
— Se eu cair, espalhem-se! Fiquei ali parado e nada aconteceu. Ordenei
de novo:
— Informe. Os sete outros sobreviventes responderam de novo.
Olhei para Alf Muller e agora vi o buraco de bala em seu rádio. Andei
pela fila da patrulha e vi meus homens deitados na cinza preta, as cabeças
se virando para mim, e alguns deles dizendo:
— Deite-se, tenente! Está maluco? Você tem um sexto sentido de que
aquele não é o seu dia, que agora está bem, que o destino o poupou para
alguma coisa pior, mais tarde.
Encontrei Landon de rosto no chão, como Muller, e como em Muller
havia um único buraco na parte de cima de seu rádio. A bateria fica
embaixo; as entranhas em cima.
O atirador sabia disso e conseguiu pôr uma única bala no circuito
eletrônico e na espinha dos dois operadores de rádio.
O que não entendi foi por que o atirador não matou pelo menos alguns
outros caras. Certamente teve tempo, tinha o alcance, tinha um campo de
tiro limpo e obviamente era bom de mira.
Na verdade eu sabia a resposta. O sujeito estava brincando conosco.
Não havia outro motivo para seus atos. Um pouquinho de guerra
psicológica, jogada com um fuzil mortal em vez de panfletos de propaganda
ou transmissões da Rádio Hanói.
Uma mensagem aos americanos. E o jogo não estava acabado.
Os atiradores de elite pensam e agem de modo diferente das pessoas
normais, e os nossos atiradores de elite, alguns deles eu conhecera, também
gostavam de jogos.
É tedioso esperar horas, dias ou semanas por um alvo. A mente do
atirador faz coisas estranhas durante as esperas longas e silenciosas, de
modo que quando um alvo finalmente aparece em suas lentes telescópicas o
atirador se torna um comediante e faz coisas engraçadas. Engraçadas para
eles, não para os alvos. Uma vez um atirador americano me disse que
arrancou com um tiro o cachimbo de haxixe da boca de um soldado
inimigo.
Pensei em compartilhar esses pensamentos com meus homens, mas, se
eles ainda não tinham deduzido, não precisavam saber, ou saberiam logo.
Hora da decisão. Falei:
— Certo, vamos deixar esses caras para uma equipe de resgate de
corpos e vamos indo. Não houve muito movimento entusiasmado até que
finalmente o sargento Dawson se levantou e disse:
— Vocês ouviram o tenente. Andem!
Todo mundo se levantou devagar, cabeças e olhos girando como presas
acuadas. Os homens fizeram uma limpeza nos corpos dos dois operadores
de rádio, removendo tudo que pudesse ser util para o inimigo: fuzis,
munição, cantis, medalhas de identificação, rações, bussolas, botas,
mochilas e assim por diante.
Dawson me perguntou:
— E os rádios?
— Vamos levar — respondi. — Talvez possamos fazer um rádio bom a
partir de dois.
Saímos rapidamente da área desflorestada e chegamos a um bambuzal
denso que oferecia algum abrigo, mas nos revelava pelo movimento das
hastes altas e folhosas enquanto abríamos caminho com machadinhas.
Passamos a noite em meio aos bambus, formando um perímetro
defensivo, e nos permitimos a crença de que tínhamos despistado o atirador.
Alguns caras tentaram montar um rádio vivo com os dois mortos, mas
os que sabiam sobre rádios estavam seis quilômetros atrás e sem condições
de ajudar.
Ao amanhecer tínhamos desistido dos rádios e os enterramos com
nossas ferramentas de abrir trincheiras, para não entregar nada ao inimigo.
Não tínhamos podido fazer o relatório de situação durante a noite, de
modo que agora nosso chefe, o coronel Hayes, também conhecido como
Pato Real Seis, sabia que sua patrulha, conhecida como Fuinha Preta, tinha
problema. Problema de rádio, estaria pensando ele, ou talvez problema de
captura, ou problema de morte. Essas coisas acontecem com patrulhas de
reconhecimento de longo alcance. Num minuto você está lá, no outro se foi
para sempre.
Arrumamos as coisas e fomos para as coordenadas no mapa onde ficava
o Ponto de Encontro Alfa.
Saímos do bambuzal e entramos num belo trecho de floresta. Chegamos
a um riacho pedregoso que tínhamos de atravessar e paramos. Os riachos
são como galerias de tiro. Dawson se ofereceu para ir na frente, em seguida
passou correndo pelo rio com água pelos joelhos e subiu na margem oposta,
jogando-se no chão em posição de tiro, varrendo rio abaixo e rio acima com
a mira de seu fuzil M-16.
Dois homens com fuzis, Smitty e Johnson, foram em seguida e
chegaram ao outro lado. Depois o médico, Garcia, carregando sua grande
sacola médica às costas, correu pelo riacho e foi ajudado pelos outros. O
cara que carregava o lançador de granadas, Beatty, respirou fundo e foi tão
depressa que achei que ele estava andando sobre a água. Outro com fuzil,
Andolotti, esperou cinco segundos e correu tão rápido que quase alcançou
Beatty.
Markowitz e eu ficamos na outra margem e eu lhe disse:
— Sua vez.
Ele sorriu e respondeu:
— Ele está esperando o senhor, tenente. A vez é sua. — Eu fico na
retaguarda. Boa sorte — falei.
— Vejo o senhor do outro lado. — Markowitz correu pelo riacho e,
mais ou menos na metade, escorregou e caiu. Esperei que se levantasse e
continuasse, mas ele não parecia capaz de se firmar. Então vi a água ficar
escura ao seu redor. Ele caiu de novo e ficou ali, submerso, mas ainda se
mexendo.
— Atirador! Garcia, o médico, e eu corremos simultaneamente das
margens opostas em direção a Markowitz. Os caras da outra margem
abriram fogo automático, acertando a linha das árvores rio acima e rio
abaixo.
Garcia e eu alcançamos Markowitz ao mesmo tempo, cada um pegou
um braço e o arrastamos correndo para a margem mais distante. Olhei o
ferido e vi sangue e espuma branca saindo de sua boca.
Estávamos a uns quatro metros das árvores que cresciam ao longo da
margem quando o pulso de Markowitz foi arrancado de minha mão. Virei-
me e vi Garcia caído de rosto para cima no riacho pedregoso, com um
buraco gigantesco no lado esquerdo da cabeça, o que significava um furo de
saída, e que o tiro viera da direita.
Joguei-me de cara na água e me arrastei até uma rocha pequena que me
daria um pouco de cobertura se eu ficasse bem encolhido.
Olhei rio acima, na direção de onde viera o tiro, não esperando ver
nada, mas ali, numa curva do riacho a uns cem metros de distância, havia
um cara vestido de preto ajoelhado entre as pedras. Olhei e o sujeito
pareceu me olhar de volta. De onde meus homens estavam, em meio aos
arbustos, não podiam ver o que eu via do riacho.
Tirei lentamente meu binóculo do estojo e focalizei o cara. Ele não
parecia ter um fuzil, o que era bom, e estava usando o tradicional pijama
vietnamita, de seda preta. Focalizei mais e vi que não era um cara; era uma
mulher com cabelos pretos compridos. Uma jovem, talvez com vinte e
poucos anos, malares proeminentes e olhos que não piscavam, me
encarando diretamente.
Tive dois pensamentos totalmente contraditórios: era o atirador; não
podia ser o atirador. Só por segurança, tirei o fuzil do ombro, mas antes que
pudesse colocá-lo em posição de disparo ela balançou a cabeça e ficou de
pé. Agora dava para ver um fuzil em sua mão, uma arma comprida,
provavelmente um fuzil russo de elite, Draganov, com lentes telescópicas.
Olhei para ela através do binóculo e soube que, se me movesse ou se
movesse meu fuzil, aquele Draganov estaria nas mãos dela e eu, morto. Eu
estava ao seu alcance, como atestariam Markowitz ou Garcia, se pudessem,
e sem duvida ela sabia atirar.
Os caras na margem do riacho continuavam disparando às cegas, e
através do fogo eu conseguia ouvi-los gritando para mim:
— Venha, tenente! Saia daí! Temos de sair daqui! Venha, venha!
Olhei de novo a mulher parada na curva do riacho e ela pareceu muito à
vontade. Talvez estivesse desapontada por não sermos um grande desafio.
Encarei-a. Ela ergueu a mão com quatro dedos estendidos, depois
fechou o punho e apertou para mim. Meu sangue esfriou. Ela se virou e
desapareceu nos arbustos.
Pulei de pé e corri pelo riacho, subindo a margem lamacenta, puxado
por mãos que se estendiam dos arbustos.
Ofeguei: — Uma atiradora! Eu vi! Rio acima. Vamos! — Comecei a
correr por um caminho paralelo ao riacho sinuoso, na direção em que a vira
pela última vez.
Dawson correu atrás de mim e me puxou pela mochila. Disse num
sussurro alto:
— Que diabo o senhor está falando?
— Eu vi! É uma mulher! Está rio acima. A uns cem metros. Os outros
quatro caras nos alcançaram e eu expliquei rapidamente o que tinha visto.
Devo ter parecido meio maluco, porque eles ficaram trocando olhares. Por
fim entenderam.
Como eu disse, eles são profissionais, e o instinto de sobrevivência de
um profissional não significa fugir; significa correr em direção ao que está
tentando nos matar, para matá-lo primeiro.
De qualquer modo precisávamos correr porque tínhamos revelado nossa
posição com todo aquele tiroteio e estávamos enfiados em território
inimigo, de modo que, quando a gente atira, precisa dar no pé depressa.
Ninguém gosta de deixar mortos para trás, mas aquele não era um combate
regular onde a gente resgata os mortos e feridos a todo custo; aquela era
uma patrulha de reconhecimento de longo alcance, e ser deixado para trás é
definitivamente uma possibilidade.
Corremos uns cem metros pelo caminho e Andolotti gritou:
— Podemos estar indo direto para uma emboscada.
Dawson respondeu entre respirações arfantes:
— Eu preferiria isso a ser apanhado depois. Anda!
Chegamos à curva do riacho e eu corri até a margem, onde vi um
cartucho de latão brilhando ao sol. Peguei-o e vi que era de uma bala de
7,62 milímetros, provavelmente de um Draganov. Não precisava de provas,
mas de algum modo encontrar aquele cartucho me deu mais certeza de que
não tinha alucinado. Pus o cartucho no bolso.
Voltamos rapidamente ao caminho, onde vimos algumas pegadas no
solo umido. Com relutância, mas com o conhecimento de que era ela ou
nós, fomos em frente.
Seguimos meio correndo por cerca de uma hora, mas nesse ponto
sabíamos que não iríamos encontrá-la. Ela iria nos encontrar.
Vínhamos nos afastando do Ponto de Encontro Alfa, que poderíamos
alcançar nos três dias que restavam até a hora do resgate, se nada desse
errado.
Nunca se deve retornar pela trilha percorrida, por isso entramos na
floresta e abrimos caminho pelo mato até cruzarmos uma trilha que ia na
direção geral em que precisávamos seguir.
Fomos o mais depressa que podíamos, mas o calor, a fadiga e vinte e
cinco quilos de equipamento nos retardavam.
Parávamos alguns minutos a cada hora e seguimos até o escurecer, sem
falar muito, mas tenho certeza que todo mundo, inclusive eu, estava
pensando em por que a mulher não havia me estourado na água. Eu
imaginava algumas respostas, que tinham menos a ver com uma compaixão
subita da parte dela e mais com foder com nossas cabeças.
O sol havia baixado no Laos — e o inimigo se move à noite. Ouvimos
caminhões e tanques rugindo em algum lugar à direita, depois ouvimos
homens conversando e rindo não muito longe. Se eu tivesse um rádio teria
chamado a artilharia para eles. Na verdade, se tivesse um rádio, teria
chamado os helicópteros para nos tirar dali logo depois de Muller e Landon
serem acertados. Mas a dama havia nos deixado mudos e surdos ao mundo
lá fora.
Afastamo-nos mais rapidamente dos movimentos de tropas inimigas e
cerca de uma hora depois encontramos uma pequena colina coberta de
taboas altas onde estabelecemos um perímetro defensivo, se é que isso
adiantava alguma coisa. Éramos seis homens mal armados, rodeados por
enorme numero de soldados inimigos. E além disso uma atiradora que sabia
que estávamos ali, mas que queria nos manter para ela.
Comemos ração desidratada reconstituída nas bolsas com água tépida
dos cantis. Ninguém falou grande coisa.
Depois da meia-noite nos revezamos dormindo e mantendo vigilância;
dois acordados e quatro dormindo. Mas ninguém dormiu muito. Perto do
amanhecer eu estava de guarda com o sargento Dawson, um sujeito velho
aos trinta anos, em seu segundo período de serviço, e provavelmente o
último.
Ele me disse em voz baixa:
— Tem certeza que é uma mulher?
Assenti e grunhi.
— Tem certeza? Viu os peitos e coisa e tal?
Quase gargalhei. — Eu vi com o binóculo. Era uma mulher. —
Acrescentei: — Elas dão boas atiradoras de elite.
Ele assentiu. — Encontrei uma em Quang Tri uma vez. Matou quatro
caras antes de arrebentarmos com ela usando foguetes. — E acrescentou: —
Encontramos a cabeça dela.
Não respondi.
Ele perguntou o óbvio:
— Por que ela não acertou o senhor?
— Não sei. — Talvez seja como... talvez ela tenha um limite de dois
caras por dia na licença de caça.
— Não é engraçado.
— Não. Não é engraçado. Acha que a gente despistou ela?
— Não.
— Também não acho. E esse foi o fim da conversa.
Saímos às primeiras luzes da manhã e fomos para o sul, em direção ao
Ponto de Encontro Alfa.
Por volta do meio-dia começamos a acreditar que talvez tivéssemos
conseguido. Não havia mais grandes riachos a atravessar, só alguns
pequenos regatos entupidos de arbustos bons para cobertura, e no mapa não
havia áreas abertas que não pudéssemos evitar. Mas então notamos que as
árvores e os arbustos começaram a parecer um tanto doentios, e em meia
hora percebemos que estávamos numa área desfolhada por Agente Laranja,
que não estava marcada no mapa.
Logo passávamos por uma zona morta, de árvores nuas e arbustos
marrons, ressequidos, que não ofereciam esconderijo.
— Tenente — disse Dawson —, temos de voltar e rodear este
desfolhamento.
— Não sabemos qual é o tamanho da área — respondi. — Pode ser um
desvio de um dia inteiro, então não conseguiremos chegar ao Alfa.
Ele assentiu e olhou em volta.
— Pelo menos o inimigo não está aqui. Eles não gostam de áreas
desfolhadas.
— Nem eu. Paramos, espalhamo-nos e nos abaixamos, procedimento
operacional padrão quando uma patrulha é interrompida.
Smitty pegou uma barra energética na mochila e mordeu um pedaço do
suposto chocolate com gosto de giz. Disse:
— Aquela vaca. — Queria falar da atiradora, claro. — Aquela vaca
poderia ter acabado com todos nós lá na área do napalm. Poderia ter
acabado pelo menos com o senhor, tenente, no riacho, e talvez mais alguns
de nós. Qual é a porra do jogo dela?
Não respondi, e ninguém respondeu. Eu estava com uma sensação ruim
naquele lugar, por isso me levantei, pus a mochila às costas e disse:
— Peguem as coisas e vamos indo.
Todo mundo se levantou. Andolotti abriu a braguilha e disse:
— Esperem aí. Preciso dar uma mijada rápida.
Mais ou menos no meio do jorro ele se sacudiu para trás e caiu de costas
com um som oco, ainda segurando seu negócio que continuava soltando
mijo amarelo.
Gritei: — Adolotti! Não houve resposta. Virei os olhos para ele. Seu
peito estava arfando e vi sangue em volta da boca. Ele arfou pela última vez
e ficou imóvel.
Pelo modo como tinha sido jogado para trás eu soube que ele fora
acertado bem no peito, por isso sabia de onde o tiro viera. Através da
vegetação morta pude ver uma pequena elevação no terreno uns cem metros
a oeste. Gritei:
— Sigam minhas traçantes!
Mirei deitado de barriga para baixo e disparei uma longa rajada em
direção ao ponto elevado. Cada sexta bala era uma traçante vermelha que
parecia um feixe de laser apontando para o suposto alvo.
Dawson, Smitty e Johnson se juntaram em longas rajadas de fogo de M-
16 e rasgamos o morro, enquanto Beatty, que tinha o lançador, disparou três
granadas de fósforo contra o morro, incendiando a vegetação morta.
Gritei: — Fora daqui!
Recuamos depressa, agachados, disparando para cobrir a retirada.
Beatty pôs outra granada de fósforo no lançador e já ia fazer um disparo
da altura dos quadris quando o lançador voou de suas mãos e ele caiu para
trás como se tivesse sido acertado por um caminhão.
Dawson gritou: — Beatty foi acertado!
— Para trás! — gritei. — Para trás!
Eu estava a uns dez metros de Beatty e dava para ver que ele continuava
vivo. Caí no chão e comecei a me arrastar para ele, então vi seu corpo se
sacudir em três movimentos rápidos. Um quarto tiro acertou seu lançador
de granadas e um quinto lançou terra em meu rosto. Entendi o recado e me
mandei dali.
Juntei-me a Dawson, Smitty e Johnson. Corremos como o diabo até
chegarmos a uma vala seca, onde nos jogamos. Seguimos agachados pela
vala durante algumas centenas de metros até que dei ordem de parar. Esta
não era a direção em que precisávamos ir, por isso ordenei que todo mundo
saísse da vala e seguimos rapidamente para o sul, em direção ao ponto de
encontro, que ainda estava a uns trinta quilômetros de distância.
Saímos da área desfolhada e entramos num lugar que fora totalmente
bombardeado por aviões B-52. A floresta fora transformada em lascas pelas
bombas de duzentos e cinquenta e de quinhentos quilos. Crateras do
tamanho de casas se espalhavam na paisagem.
Ao redor havia pedaços retorcidos de aço, quase irreconhecíveis como
coisas que tinham sido veículos. Pedaços de cadáveres apodrecendo se
espalhavam em toda parte, e as árvores sobreviventes estavam cheias de
pedaços de corpos pendurados. Aves carniceiras se refestelavam e mal nos
notaram.
O sol ia baixando e estávamos próximos de nosso limite físico e da
resistência mental, por isso ordenei que entrássemos numa cratera de
bomba. Ficamos deitados nas paredes inclinadas da cratera, recuperamos o
fôlego e bebemos água dos cantis. O lugar fedia a carne podre.
Dawson pegou um braço e o jogou para fora da cratera, então fez a
piada padrão:
— Então contamos os braços e as pernas, dividimos por quatro e temos
o número de mortos.
Ninguém riu. Ele terminou um cantil de água e nos disse:
— Duas coisas ruins com as áreas de bombardeio. Uma, o inimigo vem
procurar material e pedaços de pessoas para enterrar. Duas, algumas vezes
os B-52 voltam ao mesmo lugar para pegar os caras que estão procurando
coisas. — Acrescentou, desnecessariamente: — Temos de sair daqui.
Concordei e disse:
— Cinco minutos, depois vamos indo. Peguei meu mapa e o examinei.
— Ei, tenente — disse Smitty —, por que ela sempre deixa de acertar o
senhor?
Não respondi.
Johnson perguntou:
— O senhor acha que ela ainda está atrás de nós?
Continuei olhando o mapa. — Presumo que sim.
Subi à borda da cratera e olhei pelo binóculo.
Varri a área num ângulo de 360 graus, parando a cada dez graus para
focalizar qualquer movimento possível, qualquer brilho de metal, um fiapo
de fumaça ou qualquer coisa que não parecesse fazer parte do ambiente.
Eu era um alvo fácil, mas nos últimos dias tinha desenvolvido uma
atitude fatalista; ela estava me guardando para o final.
A atiradora pegaria Smitty e Johnson em qualquer ordem que desejasse,
depois o sargento Dawson, que havia identificado como um líder, depois eu.
Visualizei-a tocaiando como um grande felino, lenta e paciente, então
atacava. Os sobreviventes corriam e ela corria atrás de nós. Era muito
rápida, com pés firmes e silenciosa, e sabia a que distância podia chegar
sem ficar perto demais. As chances de montarmos uma emboscada não
eram boas. Agora só podíamos correr.
Voltei para a cratera e disse:
— Parece limpo. — Olhei o relógio. — Faltam trinta minutos para
escurecer. — Desdobrei o mapa e o examinei à luz fraca. — Certo, se nos
apressarmos podemos fazer cinco quilômetros antes de escurecer e isso vai
nos levar a uma área de deslizamento de pedras onde podemos passar a
noite.
Todo mundo assentiu. As áreas rochosas eram como fortificações
naturais, oferecendo cobertura e esconderijo, e em geral serviam como bons
campos de tiro. Um bônus extra era que o inimigo evitava o terreno rochoso
aberto por causa de nossos helicópteros de reconhecimento, portanto não
iríamos encontrá-lo lá. E, com sorte, nosso pessoal poderia nos ver do ar.
O único lado ruim era a mulher armada. Ela possuía um mapa, ou então
conhecia o terreno, e era inteligente o bastante para saber para onde íamos.
Mesmo que a despistássemos, ela poderia adivinhar onde nos encontraria.
Mencionei isso particularmente a Dawson.
— Talvez o senhor esteja dando crédito demais a ela — respondeu ele.
— Talvez você não esteja.
Ele deu de ombros. — Gosto de ter rochas ao redor e gosto de
helicópteros no alto, que podem nos ver e nos tirar dessa porra de lugar.
— Certo... preparando para ir. Todo mundo colocou as mochilas. Com
intervalos de dez segundos saímos da cratera em pontos diferentes e nos
reunimos depressa no lado sul do buraco, depois nos afastamos em marcha
acelerada da área de bombardeio.
Meia hora depois o terreno começou a se elevar, rochas lisas e brancas
se projetavam da terra umida e cheia de arbustos, como degraus que fossem
até um antigo templo coberto pela selva.
Dez minutos depois estávamos numa área de deslizamento de rochas
com pouca vegetação. A oeste ficavam morros altos e uma crista que havia
desmoronado há algum tempo formando o campo de pedras.
Encontramos um ponto elevado rodeado por pedregulhos de bom
tamanho e montamos um pequeno perímetro defensivo. Na verdade seria
possível se defender de um exército ali, se tivéssemos comida, água e
munição suficientes. Tínhamos comida extra, água e munição graças a
Muller e Landon.
Acomodamo-nos para uma noite longa. Não podíamos acender cigarros
nem os tabletes para ferver água para as rações desidratadas. Por isso
misturamos aquela coisa com água dos cantis, e Dawson e Johnson, que
eram fumantes, saciaram o vício mastigando o fumo dos cigarros. Por volta
da meia-noite assumi o primeiro turno de vigia e os outros três dormiram.
Peguei meu visor noturno na mochila e examinei o terreno elevado a
oeste, onde a crista acabava. O visor noturno é alimentado por bateria e
produz uma imagem esverdeada amplificando a luz ambiente das estrelas e
da lua.
Notei uma pequena cachoeira cascateando por cima da laje de rocha a
cem metros de distância. Então vi movimento, focalizei com intensidade e
firmei os cotovelos na pedra lisa à frente.
Ela estava agachada num afloramento ao lado da cachoeira, e era fácil
de ver porque estava completamente nua. Estava bebendo nas mãos em
concha, depois chegou mais perto da cachoeira e deixou a água correr pelo
corpo enquanto passava a mão pelos cabelos, depois pela cintura e as
pernas, em seguida subiu-as de volta até o traseiro, depois o ventre.
Fiquei olhando hipnotizado. Aquilo era muito sensual fora do contexto,
mas dentro do contexto era grotesco, como olhar um tigre languidamente se
lambendo depois de uma refeição.
Levei a mão atrás e puxei meu fuzil M-16 para a pedra, olhei uma
última vez e depois juntei o visor noturno com o fuzil. Pelo tato, como
havia aprendido, montei a visão no fuzil e mirei.
Ela continuava lá, tinha posto o pé direito sob o jorro de água e o
manteve ali por alguns segundos antes de trocar o pé.
A mira de visão noturna, com ampliação quádrupla, fazia-a parecer a
vinte metros de distância, mas a verdadeira distância de cem metros era
grande para o fuzil M-16, feito para espalhar balas a distâncias menores.
Coloquei-a nas linhas cruzadas e firmei a mira. Só poderia dar um tiro.
Um tiro muito alto, já que não tinha silenciador. Acertando ou errando
teríamos de dar o fora dali.
Ela se virou de costas para a cachoeira e pude ver que estava colocando
os pés nas sandálias. Ficou ali parada, em nudez frontal, com minha mira no
coração.
Por algum motivo precisei olhar seu rosto de novo, para guardá-lo na
memória, gravá-lo a fogo na mente. Olhei ligeiramente por cima das linhas
cruzadas, para enxergar o rosto, e vi aquela mesma expressão distante,
desinteressada, que vira na margem do riacho.
Ela levou a mão atrás e trouxe o cabelo comprido e preto por cima do
ombro direito e espremeu a água dele.
Focalizei de novo entre os seios e apertei o gatilho. No instante em que
ela se abaixou para pegar o pijama preto.
O estrondo do fuzil soou muito alto na noite silenciosa e ecoou entre as
pedras. Pássaros e outros animais noturnos começaram a guinchar e o três
caras atrás de mim estavam de pé antes que o som do tiro sumisse nas
colinas distantes.
Olhei uma última vez, mas ela havia sumido.
Dawson falou agitado:
— Que diabo... — Era ela.
— Puta que o pariu! — disse Smitty.
— O senhor acertou? — perguntou Johnson.
— Talvez...
— Talvez? — disse Dawson. — Talvez? Talvez a gente devesse dar o
fora daqui.
— Certo. Vamos pegando as coisas. Juntamos nosso material e, como
dormíamos com as botas calçadas, estávamos prontos para andar em um
minuto.
Fui na frente descendo a encosta sul do campo rochoso. A caminhada
era lenta e traiçoeira no escuro. Uma fatia de lua iluminava debilmente as
pedras brancas e também nos iluminava. Não escutei o tiro porque foi com
silenciador, mas ouvi o estalo de um ricochete numa pedra próxima.
Jogamo-nos no chão, depois nos agachamos e fomos meio tropeçando,
ziguezagueando, rolando, fazendo tudo para nos tornarmos um alvo difícil.
Outro tiro ricocheteou em algum lugar à direita, depois outro e outro.
Visualizei-a ajoelhada nua por trás de alguma coisa, focalizada na mira
telescópica, procurando movimentos e sombras do luar, tentando adivinhar
nossa linha de movimento e de vez em quando dando um tiro com seu fuzil
russo só para sabermos que ela pensava em nós.
Chegamos a um lugar onde o deslizamento de pedras penetrava numa
linha de árvores e corremos a toda velocidade para o abrigo da floresta. Fui
na frente e seguimos o mais depressa possível pela floresta negra como
piche.
Chegamos a uma trilha ampla onde muitos pneus, esteiras de tanques e
sandálias haviam passado recentemente. Contra a intuição, virei-me na
direção do movimento das tropas inimigas e seguimos a trilha para o sul.
Cerca de uma hora depois pude ouvir o som gutural de um grande motor
a diesel à frente e o chacoalhar de esteiras de tanques.
Reduzimos o passo e seguimos a distância, esperando que eles não
parassem devido a alguma quebra inesperada.
Viajamos pela noite seguindo o exército inimigo que mantinha um ritmo
moderado. Eu sabia que antes do amanhecer aqueles veículos e homens
iriam se espalhar na selva para se esconder de nossos aviões e helicópteros.
Precisávamos fazer um desvio ao redor de seu acampamento diurno, por
isso guiei minha patrulha para o leste através da floresta. Encontramos um
regato que descia dos morros para o litoral e o seguimos durante uma hora,
depois viramos para o sul de novo, esperando rodear o inimigo que agora
estava se espalhando na floresta de copas triplas.
Ao amanhecer paramos num bambuzal e descansamos. Estávamos tão
exaustos que simplesmente ficamos ali, onde paramos, e caímos no sono
entre os bambus e as víboras dos bambus.

O sol e o calor do meio da manhã me acordaram e eu me sentei, com o


suor escorrendo pelo rosto e o pescoço.
O sargento Dawson também estava acordado e bebendo o que parecia
café instantâneo no copo de seu cantil.
Ele me perguntou: — Como o senhor pôde errar? E por que atirou?
— Errei porque errei; e atirei porque tomei a decisão de atirar. Você tem
problema com isso?
Ele deu de ombros.
Estudei meu mapa do terreno e Dawson perguntou:
— A que distância estamos do Alfa?
Guardei o mapa.
— Não sei onde estamos, portanto não sei onde está o Alfa.
Ele não gostou da resposta, por isso falei:
— Quando nos movermos vou achar alguma característica do terreno e
localizar nossa posição. Não se preocupe, sargento.
— Sim, senhor.
É preciso estabelecer quem está no controle, se você quiser sobreviver,
por isso falei:
— Acorde os homens e vamos indo.
Vamos comer marchando. Já ficamos muito tempo aqui.
— Sim, senhor.
O sargento Dawson acordou Smitty e Johnson, e em um minuto
estávamos indo para o sul através da floresta de bambus, que deu lugar a
árvores espalhadas, depois a um denso bosque subtropical de arbustos de
palmeiras que cortavam nossos braços, as mãos e o rosto.
Em uma hora pude nos localizar no mapa e anunciei: — O Ponto de
Encontro Alfa está a uns vinte quilômetros a sul e oeste. Não chegaremos
durante o dia, mas precisamos estar lá para o encontro às seis da manhã.
Todo mundo assentiu. Ainda que não com entusiasmo, pelo menos com
um pouco de otimismo. Mais um dia e uma noite infernais, e às primeiras
luzes estaríamos no tapete mágico, e meia hora depois no acampamento-
base no litoral, tomando banho de chuveiro, comendo ovos e bacon de
verdade e prestando informações, não necessariamente nessa ordem. Talvez
tudo ao mesmo tempo, se eu conseguisse fazer valer minha vontade.
Para mim restavam exatamente vinte e nove dias nesse buraco de
merda, e segundo o costume ninguém sai em patrulha faltando menos de
trinta dias para ir embora.
Esta era minha última patrulha, de um modo ou de outro.
Seguimos por uma floresta de copas triplas onde a falta de luz do sol
mantinha um mínimo de mato baixo, e deveríamos fazer um bom tempo,
mas mal conseguíamos pôr um pé na frente do outro. Todos tínhamos
queimaduras de sol, assaduras na virilha, feridas da selva, cortes inflamados
e bolhas grandes como cebolas nos pés.
Minha sensação era que mal fazíamos dois quilômetros por hora.
Na floresta ficou escuro muito antes do pôr-do-sol, e às 19 horas,
quando ainda deveria haver luz, estava ficando sombrio, mas de vez em
quando a luz do sol surgia inclinada no oeste.
Fomos em frente: eu, o sargento Dawson, Smitty e Johnson, os
sobreviventes da patrulha sem rádio conhecida pelo código de rádio Fuinha
Preta. Tínhamos localizado movimentos de tropas mas não podíamos
informá-los. Tínhamos escapado de grande numero de inimigos mas não
conseguíamos escapar de uma única mulher que assumira um interesse
obsessivo por nós. Se, de fato, eu acabasse comendo ovos mexidos
enquanto era interrogado pelo Pato Real e o pessoal da inteligência, só
podia pensar em dizer que era melhor eles mandarem uma boa equipe de
atiradores de elite antes de enviar mais alguém. E que não ficassem
surpresos se não tivessem notícias das duas primeiras equipes.
Entramos num longo trecho de luz do sol que contrastava com uma área
escura e sombria mais adiante, e meus sentidos entraram em alerta máximo.
Já ia dizer "Espalhem-se e encontrem sombra" quando um movimento
adiante atraiu meu olhar.
Mesmo com o supressor de clarão vi o cuspe de fogo no alto da selva de
copas triplas, a não mais de setenta e cinco metros de distância. Johnson
soltou um grunhido alto atrás de mim e eu o ouvi batendo no chão. Tombei
numa posição de tiro ajoelhado e esvaziei um pente inteiro na direção em
que tinha visto o clarão sair do cano.
Enquanto disparava para onde ela deveria estar, captei outro movimento
à esquerda e me virei. Percebi um comprido cipó balançando num arco de
volta à direção em que eu mandava minhas balas. Ela não se encontrava no
cipó, mas tinha estado nele e agora estava numa árvore em algum lugar à
minha esquerda.
Dawson e Smitty tinham disparado rajadas na mesma direção que eu, e
antes que eu pudesse mudar meu fogo para onde pensei que ela havia ido
com o cipó, Smitty gritou de dor, depois ficou de pé, deu alguns passos e
desmoronou de cara no chão. Vi seu corpo se sacudir como se ele tivesse
sido acertado de novo.
Mudei os tiros para onde achei que ela estava, mas Dawson continuou
disparando para o local anterior e eu gritei com ele:
— Macaco no cipó! Ele entendeu e mudou a direção dos tiros para se
cruzarem com os meus. Traçantes vermelhas cortaram a copa da selva.
Folhas, galhos e frondes de palmeiras caíram no chão.
Recuamos agachados, disparando ao mesmo tempo, e nos reagrupamos
a uns quinze metros na trilha. Depois entramos no mato baixo.
Dawson estava visivelmente abalado pela primeira vez desde que eu o
conhecera. Ficava dizendo:
— Jesus Cristo. Ah, meu Deus. Ah, meu Deus.
— Quieto — disse eu.
Ele se deixou cair de pernas cruzadas no chão, depois começou a
balançar para trás e para a frente, murmurando algo.
Falei em voz baixa:
— Controle-se, sargento. Controle-se agora.
Ele não pareceu me ouvir, mas de repente se animou e disse:
— Nós acertamos ela. Sei que acertamos.
Vi quando ela caiu. Nós arrebentamos aquela vaca.
Eu não achava, mas era um belo pensamento.
— Levante-se — falei.
Ele se levantou.
— Venha atrás de mim.
Andei uns cem metros, encontrei outra área de mato denso e disse:
— Vamos ficar aqui até a meia-noite, depois vamos para o ponto de
encontro. Entendido?
Ele confirmou com a cabeça. Ficamos sentados imóveis até escurecer,
depois tomamos um pouco d'água e comemos alguns biscoitos de casa, que
havíamos achado no corpo de Landon.
O sargento Dawson tinha recuperado o controle, e para compensar o
lapso disse:
— Vamos pegar ela. O senhor tem o visor noturno. Ela não tem visor
noturno, certo? Nós podemos enxergar no escuro, ela não pode.
Ouvi como se estivesse considerando essa insanidade, depois respondi
pensativo:
— Acho que o melhor curso de ação é ficarmos quietos, por enquanto.
Acho que consigo encontrar o Alfa a partir daqui, mesmo no escuro. Se
formos atrás dela vamos nos desorientar e perder o encontro. O que acha?
Ele fingiu pensar nisso e confirmou com a cabeça.
— É. Precisamos voltar e informar o que aconteceu. Eles precisam
colocar alguns antiatiradores de elite contra essa vaca.
— Certo. Vamos deixar por conta dos profissionais.
— É.
— Podemos dar umas dicas a eles.
Por um momento Dawson não respondeu, depois disse em voz baixa:
— Nós não vamos conseguir, tenente. Dá para entender? Ela é boa
demais. Não vai deixar que a gente consiga.
Fiquei quieto um tempo, depois lhe dei uma notícia boa e uma notícia
ruim que eu sabia que acabaria dando.
— Um de nós vai conseguir. Ela quer que um de nós, o líder ou o
sargento da patrulha, volte e conte a eles. Caso contrário toda essa merda
foi por nada. Ela poderia ter acabado com todos nós em qualquer ponto,
desde o primeiro dia, mas não fez isso. Fez a gente mijar nas calças, apertar
o cu, suar frio e correr quente. Arriscou a vida para fazer a gente se cagar de
medo e não fez isso para uma plateia totalmente morta. Um de nós — você
ou eu — vai entrar naquele helicóptero de manhã.
E se for você, quero que informe com exatidão o que aconteceu aqui. E
garanta que os mortos fiquem com boa imagem e os homenageie. Depois
você — ou eu — se apresenta como voluntário para voltar aqui e resolver o
jogo. Entendeu?
Ele não respondeu por longo tempo, depois disse:
— Entendi.
— Bom. — Estendi a mão e ele a apertou.
Andamos pela noite e eu me orientei do melhor modo possível, usando
a bússola e contando os passos.
Uma hora antes do amanhecer a terra se inclinou íngreme para baixo e
eu soube que estávamos nas vizinhanças do Ponto de Encontro Alfa, uma
depressão em forma de tigela com cerca de um quilômetro de diâmetro,
cheia de taboas.
Tínhamos menos de vinte minutos para chegar ao centro aproximado do
lugar, e deveria ser fácil, se simplesmente continuássemos descendo.
Muito simples, tinha dito o Pato Real. Como você pode errar o fundo de
uma tigela, mesmo no escuro?
Olhei o brilho luminescente do relógio. Faltavam alguns minutos para
as seis horas e eu não ouvia nenhum helicóptero, e não sabia se estava no
fundo daquela depressão.
Normalmente não importaria se estivéssemos até mesmo a cem metros
de distância porque poderíamos usar um espelho de sinalização ou estourar
um marcador de fumaça como último recurso... Mas o gênio que escolheu o
lugar não tinha levado em conta a névoa matinal junto ao solo que havia se
assentado na depressão. A boa notícia era que a mulher com a arma, se
estivesse em algum lugar na borda da depressão, não podia nos ver. Talvez
nós dois conseguíssemos.
Em algum lugar acima da névoa o sol ia subindo, e do alto o terreno
estaria suficientemente claro para os helicópteros encontrarem esta tigela de
sopa de ervilha.
Dawson e eu decidimos que tínhamos chegado a um local onde o
terreno subia de todos os lados, por isso paramos e tentamos ouvir as pás do
helicóptero, que esperávamos escutar acima da respiração ofegante.
Esperamos. Eram dez minutos depois da hora do encontro, mas isso não
significava preocupação. Os pilotos de helicóptero sempre tinham cuidado
com esses resgates no meio de lugar nenhum e tendiam a esperar e fazer um
bom reconhecimento. Haveria dois Hueys para pegar dez homens, ainda
que fôssemos apenas dois, e mais dois Cobra armados voando acima. Se
eles atraíssem fogo, tentariam suprimi-lo. Algumas vezes desciam sob fogo.
Mas nem sempre.
Agora passavam quinze minutos da hora do encontro, e Dawson disse:
— Eles não vêm. Não tiveram notícias nossas, por isso não vêm. —
Estamos aqui no local combinado porque eles não tiveram notícias nossas.
— É, mas... — Eles não vão nos deixar aqui. — É, eu sei... mas... talvez
estejamos no lugar errado.
— Eu sei ler a porra de um mapa.
— É? Deixe-me ver o mapa.
Entreguei-lhe o mapa e ele o examinou atentamente. O sargento
Dawson tinha um monte de boas habilidades, mas a navegação terrestre não
era uma delas.
Falou: — Talvez a gente devesse ir para o Bravo.
— Por quê?
— Talvez os helicópteros tenham visto inimigos no chão.
— A não ser que estejam levando tiros, eles vêm. Fique frio.
Esperamos.
Dawson perguntou:
— O senhor acha que ela está por aí?
— Vamos descobrir.
Esperamos e prestamos atenção. Às seis e meia ouvimos o bater nítido
de pás de helicóptero contra o ar frio da manhã. Olhamos um para o outro e
pela primeira vez em muito tempo conseguimos dar um sorriso.
Ouvimos os helicópteros chegando mais perto e eu soube que os pilotos
estavam preocupados em descer numa área coberta de névoa onde não
podiam ver o chão. Mas tinham sido informados que o solo era coberto de
tabuas, fácil de pousar, e o ar deslocado pelas pás dos helicópteros limparia
a névoa para eles. Mesmo assim não tínhamos contato por rádio, de modo
que eles não saberiam quem estava esperando-os no chão. Pensei em
estourar uma lata de fumaça verde, o que significava barra limpa, ou
amarela, que significava cautela. Isso lhes diria que estávamos esperando,
mas também anunciaria nossa presença a pessoas que não precisavam saber
que estávamos ali.
— Vou estourar uma fumaça — disse Dawson. — Escolha a cor.
— Espere. Eles precisam chegar mais perto. Não querem mais de três
minutos entre a fumaça e o resgate, caso contrário ficam irritados e vão
embora.
Ouvi os helicópteros se aproximando, contei até sessenta e estourei uma
lata de fumaça amarela. A fumaça se acomodou no chão, no ar umido e sem
vento, depois começou a subir pela névoa. Num determinado ponto deve ter
rompido o topo da neblina cinza porque rapidamente o som dos
helicópteros ficou muito alto. Alguns segundos depois pude ver uma
sombra enorme acima e a névoa começou a redemoinhar como se um
tornado a estivesse atravessando.
O primeiro helicóptero estava a vinte metros, parecendo muito
fantasmagórico na névoa cinza enquanto vinha em direção à terra. O
segundo estava vinte metros mais longe.
Dawson e eu corremos para o primeiro helicóptero, sinalizando com a
mão para a tripulação entender que éramos apenas dois e acenando para o
outro se afastar. Alguém entendeu, porque o segundo subiu antes que
chegássemos junto ao mais próximo. Nosso helicóptero pairava a um metro
e meio do chão e eu bati na bunda de Dawson indicando que ele era o
primeiro. Ele estendeu sua mão e segurou a do chefe da equipe. Seus pés
encontraram o patim do helicóptero e ele estava na cabine em cerca de dois
segundos. Eu estava logo atrás, e acho que na verdade pulei na cabine,
gritando acima do barulho das pás e do motor:
— Só dois! Oito mortos! Vamos! Vamos!
O chefe da equipe assentiu e falou pelo rádio com o piloto. Fiquei
sentado no piso com as pernas cruzadas enquanto o helicóptero subia
rapidamente pela névoa.
Olhei para Dawson, que estava ajoelhado no piso da cabine e já tinha
um cigarro aceso. Encaramo-nos e ele ergueu o polegar. Assim que o
helicóptero saiu da depressão enevoada o cigarro de Dawson voou de sua
boca e ele foi jogado para a frente, com o rosto caindo no meu colo. Gritei:
— Tiro! — enquanto agarrava os ombros de Dawson e o rolava de
costas.
Ele olhou para o teto da cabine, com sangue escorrendo do ferimento de
saída da bala, no peito.
Os dois artilheiros da porta abriram fogo com suas metralhadoras
rasgando a floresta abaixo enquanto o Huey disparava afastando-se da área.
Os helicópteros de ataque Cobra dispararam seus foguetes e suas
metralhadoras Gatling contra o terreno ao redor, mas isso era
principalmente pelas aparências. Ninguém sabia de onde o tiro viera, mas
eu sabia quem o havia disparado.
Cheguei mais perto de Phil Dawson, cara a cara, olhamos nos olhos um
do outro, e eu disse:
— Você está bem. Você vai ficar bem. Vamos direto para o
naviohospital. Só fique firme. Fique firme. Mais alguns minutos.
Ele tentou falar mas não pude ouvir acima do ruído. Encostei o ouvido
em sua boca e o ouvi dizer:
— Vaca.
Depois ele relaxou e morreu. Fiquei sentado ao lado, segurando sua
mão, que ia esfriando. O chefe da equipe e os artilheiros de porta ficavam
lançando olhares para nós, assim como o piloto e o co-piloto.

O tapete mágico pousou primeiro no hospital de campo e os médicos


levaram o corpo do sargento Dawson, depois o helicóptero passou sobre o
acampamento-base e me deixou na área de pouso do quartel-general da
Prela.
O piloto tinha avisado por rádio, e o coronel Hayes — o Pato Real —
estava ali para me receber em seu jipe. Estava sozinho, o que achei um belo
gesto. Ele disse:
— Bem-vindo ao lar, tenente.
Assenti. Ele pediu que eu confirmasse que era o único que restava.
Assenti. Ele bateu nas minhas costas.
Entramos no jipe, que ele dirigiu diretamente à sua cabana, uma
pequena estrutura de madeira com teto de zinco. Entramos e ele me passou
uma garrafa de Chivas. Tomei um gole comprido, depois ele me levou até
uma poltrona de lona.
— Está com vontade de falar? — perguntou.
— Não.
— Mais tarde?
— É. Sim, senhor.
— Bom. — Ele deu um tapinha no meu ombro e foi para a porta do
cômodo único.
— Mulher — falei.
Ele se virou. — O quê?
— Atiradora de elite. Uma mulher muito perigosa.
— Certo... vá com calma. Termine a garrafa. Falaremos quando você
estiver pronto. Na minha sala.
— Vou voltar para pegá-la.
— Certo. Falamos disso mais tarde. — Ele me deu um olhar
preocupado e saiu.
Fiquei ali sentado, pensando em Dawson, Andolotti, Smitty, Johnson,
Markowitz, Garcia, Beatty, Landon e Muller, e finalmente na atiradora.
Depois que fiz meu relatório, a Força Aérea bombardeou a área durante
uma semana. No dia em que o bombardeio terminou mandamos para a área
três equipes, cada uma com dois homens. Eu queria voltar, mas o coronel
Hayes vetou. Tudo bem, já que apenas uma equipe conseguiu retornar.
Mantivemos o pessoal fora da área durante algumas semanas, depois
mandamos uma companhia de infantaria com duzentos homens para
localizar e recuperar os corpos dos oito caras que ficaram para trás, e
também, claro, procurar a mulher com a arma. Eles jamais encontraram os
corpos; talvez as bombas e a artilharia os tenham obliterado. Quanto à
atiradora, também parecia ter sumido.
Fui para casa e tirei aquela coisa toda da cabeça. Ou tentei. Mantive
contato com um bocado de caras da Prela que ainda estavam no Vietnã
quando saí, e de vez em quando eles escreviam e respondiam à pergunta
que eu sempre fazia nas cartas: Encontraram a mulher? Ela pegou mais
alguém?
A resposta era sempre "Não" e "Não". Ela parecia ter sumido ou
morrido em bombardeios ou ataques de artilharia posteriores, ou
simplesmente deu no pé enquanto estava por cima. Dentre os caras que
sabiam da história ela se tornou uma lenda, e o desaparecimento só fez
aumentar sua estatura quase mítica.
Até hoje não tenho ideia do que a motivava, que jogo secreto ela estava
fazendo, ou por quê. Especulei que provavelmente sua família fora morta
pelos americanos, ou que talvez tenha sido estuprada por soldados, ou
talvez estivesse simplesmente cumprindo o dever para com seu país, como
nós.
Ainda tenho o cartucho de latão que peguei na margem do rio. De vez
em quando tiro-o da gaveta da escrivaninha e olho.
Não quero me obcecar com isso, mas à medida que os anos passaram
comecei acreditar que ela continua viva e que vou encontrá-la algum dia,
em algum lugar, mas não sei como nem onde.
Tinha certeza que reconheceria seu rosto — que ainda podia ver com
clareza — e sabia que ela me reconheceria: o cara que ela deixou ir embora
para contar sua história. Agora que a história está contada, se nos
encontrarmos, só um de nós sairá vivo.

***
O que ela ofereceu
Thomas H. Cook

— Está parecendo uma mulher fatal — disse meu amigo. Ele não estava
comigo, no bar, na noite anterior, não a viu sair nem me viu ir atrás dela.
Tomei um gole da minha vodca e olhei pela janela. Lá fora, a luz da
tarde sem duvida estava a mesma de sempre, mas não me parecia mais a
mesma.
— Acho que era mesmo — disse a ele.
— E daí? O que aconteceu? — perguntou meu amigo.
Isso: — eu estava no bar. Eram duas da manhã. O pessoal ao meu redor
era como fitas cassete daquelas do Missão Impossível, só faltava a missão,
eram apenas aviso de autodestruição. Dava quase para escutar aquilo
soando nas cabeças deles, aquela coisa inflexível, obstinada, como no
provérbio chinês: Se você continuar na estrada que está seguindo, vai
chegar no lugar para onde estava indo.
— E para onde estavam indo?
— Como você viu, mais ou menos para a mesma coisa de sempre. Iam
terminar este drinque, esta noite, esta semana... assim por diante. Em certo
momento, iam morrer como animais, depois de uma longa e exaustiva
distância percorrida, zonzos de fadiga, quando finalmente desabassem sob o
peso da carga.
Ou pior, o que eu acredito é que esse bar era o mundo, suas poucas
moscas, que não paravam de zumbir, atores substitutos, fazendo a marcação
de cena pelo restante de nós.
Escrevi sobre esse nós em uma novela atrás da outra. Meu tom era
sempre sombrio. Nos meus livros, não havia final feliz. As pessoas estavam
perdidas e desamparadas, mesmo os espertinhos... especialmente os
espertinhos. Tudo era inutil e tudo era passageiro. As emoções mais fortes
logo desapareciam. Algumas poucas coisas tinham importância, mas
somente porque as fazíamos ter importância de tanto insistir que deveriam
ter. Se precisássemos de alguma prova quanto a isso, poderíamos inventá-la.
Acreditava que houvesse três tipos de pessoas, as que enganavam os
outros, as que enganavam a si mesmas e as que compreendiam que as
pessoas nas duas primeiras categorias eram as únicas que iriam encontrar na
vida. Eu me situei, decidido, na terceira categoria, é claro, o único membro
do meu próprio clube, o único sujeito que entendia que ver as coisas sob luz
total era a maior escuridão que alguém poderia conhecer.
Assim, eu andava pelas ruas e me enfiava nos bares o tempo inteiro, e
era, pelo que eu entendia, o único homem na terra que não tinha nada mais
a aprender.
Então, de repente, ela atravessou aquela porta. Toda de preto,
oferecendo uma única concessão. Um cordão de pequenas pérolas brancas.
Tudo o mais, o chapéu, o vestido, as meias, os sapatos, a pequena bolsa...
tudo o mais era preto. E assim, o que ela oferecia a um primeiro olhar era
nada mais do que o batido estereótipo dos filmes de segunda categoria da
mulher fatal, o chapéu de aba larga que ocultava um dos olhos, saltos altos
batendo na calçada que a chuva tornara escorregadia, cédulas estrangeiras
em uma pequena bolsa preta. Ela se oferecia como a espiã, a assassina, o
chamariz de um passado secreto e, é claro, uma pequena sugestão de perigo
erótico. "Ela sabe como pensam os homens", eu disse a mim mesmo, no
momento em que ela caminhava para a extremidade do bar e sentava-se.
"Ela conhece o modo de pensar deles... e o está usando."
— Então, você achou que ela fosse o quê? — meu amigo perguntou.
Dei de ombros: — Não importa.
Assim, fiquei observando sem maior interesse, enquanto os detalhes
melodramáticos se acumulavam. Ela acendeu um cigarro e o fumou
pensativa, seus olhos se abrindo e se fechando languidamente, com aquele
tipo de exaustão em relação ao mundo que a gente vê nas heroínas dos
velhos filmes em preto-e-branco.
"É isso, sim", disse a mim mesmo. Ela é noir no pior sentido, fina como
as tiras de película, e quase igualmente transparente, nas bordas. Olhei meu
relógio. "Hora de ir embora", pensei, hora de ir para o meu apartamento, me
esticar na cama e me atolar na minha escura superioridade, congratulando-
me mais uma vez por não ter deixado que as coisas que fazem os outros de
idiotas me fizessem de idiota.
Mas era apenas duas da madrugada, cedo demais para mim, então fiquei
no bar e me perguntei, mesmo que apenas vagamente, e com nada mais do
que um interesse momentâneo, se ela tinha algo mais a oferecer além desse
showzinho de eu sou perigosa.
— E daí? — perguntou meu amigo.
— Daí, ela remexeu em sua bolsa, tirou um bloquinho preto, abriu-o,
escreveu alguma coisa e passou-o pelas pessoas sentadas no balcão do bar
para mim.
O papel estava dobrado, é claro. Eu o desdobrei e li o que ela havia
escrito: Sei o que você sabe sobre a vida.
Era bem um nonsense desses o que eu estava esperando, então, de
pronto, rabisquei uma resposta no verso do papel e a mandei de volta para
ela, sobre o balcão.
Ela abriu e leu o que eu havia escrito: Não, não sabe. E nunca vai saber.
Então, sem nem mesmo levantar os olhos, ela escreveu bem rápido uma
resposta e a mandou mais ligeiro ainda por cima do balcão, juntando as
coisas dela às pressas e dirigindo-se para a porta, enquanto o bilhete
passava de mão em mão, de modo que, quando chegou a mim, ela já havia
saído.
Abri o bilhete e li sua resposta: Nota 6. Minha raiva explodiu. Seis?
Como ela se atreveu? Girei no banco e saí correndo do bar. Eu a encontrei
lá fora, recostada, bastante à vontade, na grade de ferro batido que cercava
o lugar.
Sacudi no ar o bilhete para ela:
— Que história é essa? — perguntei irritado.
Ela sorriu e me ofereceu um cigarro:
— Já li os seus livros. São realmente assustadores.
Eu não fumo, mas mesmo assim peguei o cigarro.
— Ah, então você é uma crítica literária?
Ela não deu atenção ao que eu acabara de dizer.
— O texto é lindo — ela disse, enquanto acendia meu cigarro com um
isqueiro de plástico vermelho. — Mas a ideia por trás é muito ruim.
— E que ideia é essa?
— Você tem apenas uma — afirmou ela com toda confiança. — Que
tudo termina mal, não importa o que a gente faça. — O rosto dela se torceu.
— Então, a proposta é a seguinte. Quando escrevi Sei o que você sabe
sobre a vida, isso não era precisamente a verdade. Eu sei mais do que você!
Traguei profundamente o cigarro.
— Então — perguntei, muito calmo. — Estamos tendo um flerte? Ela
balançou a cabeça, e de repente seus olhos ficaram mais escuros e
taciturnos.
— Não — disse ela. — É um caso de amor.
Fiz menção de dizer qualquer coisa, mas ela ergueu a mão e me deteve.
— Eu poderia fazer com você, sabe? — ela sussurrou, sua voz agora
bastante grave. — Porque você sabe quase tanto da vida quanto eu, e eu
quero ir com alguém que saiba tanto assim.
Pelo seu olhar, eu não tinha duvidas do que ela queria "fazer" comigo.
— Precisamos de uma arma — disse a ela, com um sorriso desdenhoso.
Ela sacudiu a cabeça.
— Jamais usei uma arma. Tem de ser com pílulas. — Ela deixou o
cigarro cair.
— E precisamos estar na cama juntos — acrescentou com voz
inalterada.
— Nus, e nos braços um do outro.
— Por quê? Seu sorriso foi tão suave quanto luminoso.
— Para mostrar ao mundo que você estava errado. — O sorriso se
alargou, quase brincalhão. — E que algo pode terminar bem.
— Suicídio? — perguntei.
— Você acha que isso é terminar bem? Ela riu e remexeu de leve em
seus cabelos.
— É o único jeito de terminar bem — disse. E eu pensei "Ela é doida",
mas pela primeira vez em anos eu queria escutar mais.
— Um pacto de suicídio — murmurou meu amigo.
— Foi o que ela me ofereceu. Isso mesmo — disse eu. — Mas não ali
na hora. Ela disse que tinha uma coisa que eu precisava fazer primeiro.
— O quê?
— Eu me apaixonar por ela — respondi, tranquilo.
— E ela tinha certeza disso? — perguntou meu amigo. — Quer dizer,
que você iria se apaixonar por ela?
— Ah, tinha sim! — respondi. Mas ela também sabia que o processo
usual era repleto de vaivéns, uma estrada cheia de buracos e ciladas. Assim,
decidiu deixar de lado o que se chama de fazer a corte, todo aquele negócio
chato de relatar um para o outro montes de informações biográficas triviais.
A intimidade física teria de vir antes de tudo, foi o que ela disse. Era o
portal através do qual entraríamos um no outro.
— Então, vamos agora mesmo para minha casa — concluiu ela, depois
de oferecer uma breve explanação sobre tudo isso. — Temos de trepar.
— Trepar? — eu ri. — Você não é nada romântica, é?
— Você pode tirar minha roupa, se quiser — disse ela. — Se não, eu
mesma tiro.
— Pode ser melhor você tirar — disse eu, debochando. — Assim, não
vou deslocar o seu ombro.
Ela riu: — Fico desconfiada quando um homem faz isso bem. Faz
pensar que ele tem familiaridade demais com aqueles fechos, colchetes e
zíperes tão femininos. Daí, me pergunto se ele talvez ... se vista assim
também vez por outra.
— Deus do céu — resmunguei. — Você fica mesmo pensando nessas
coisas?
Seu tom de voz e a expressão em seu rosto se tornaram mortalmente
sérias.
— Não posso satisfazer todas as necessidades — disse ela.
Havia uma pergunta em seus olhos e eu sabia qual era. Ela queria saber
se eu tinha alguma fixação secreta, uma dessas taras sexuais, qualquer
"necessidade" que ela não poderia "satisfazer".
— Sou desses caras que só pede sorvete de baunilha — garanti a ela. —
Nada de sabores estranhos.
Ela pareceu levemente aliviada.
— Meu nome é Verônica — disse ela.
— Eu estava com medo de que você não fosse me dizer como se chama
— falei. — Ia ser uma daquelas coisas do tipo eu nunca vou saber quem
você é e vice-versa. Sabe como é, coisa de uma noite apenas.
— E seria tão banal — disse ela.
— É, seria.
— Além do mais — acrescentou —, eu já sei quem você é.
— Sim, é claro.
— Meu apartamento é no final do quarteirão.
No final das contas, o apartamento dela era um bocado mais longe do
que somente uma caminhada até o final do quarteirão, mas isso não teve
importância. Eram mais de duas da madrugada e as ruas estavam bem
desertas. Mesmo em Nova York, certas ruas, especialmente em Greenwich
Village, nunca são muito movimentadas, e uma vez que as pessoas já
entraram e saíram do trabalho, parecem ruelas do interior. Naquela noite, as
árvores que ladeavam a Jane Street balançavam suavemente no ar frio do
outono, e eu me permiti aceitar o que achei que ela oferecia, e que, apesar
de toda a conversa perigosa, não seria nada mais, provavelmente, do que
um breve episódio erótico, talvez com um desjejum matinal, um pouco de
conversa durante o café e pãezinhos quentes. Então, ela iria para o seu lado
e eu para o meu, porque um de nós queria que fosse desse jeito e o outro
não se importaria tanto a ponto de contestar isso.
— A vodca está no freezer — disse ela, no que abriu a porta do seu
apartamento, entrou e acendeu as luzes.
Eu fui para a cozinha e Veronica entrou num corredor ali do lado. O
refrigerador era na extremidade oposta, a porta do freezer estava coberta de
fotos de Veronica e um homem baixo, careca, mirrado, que parecia já
beirando os cinquenta anos.
— Esse aí é o Douglas — falou Veronica de algum lugar do final do
corredor. — Meu marido.
Senti uma pontada de apreensão.
— Ele está fora — acrescentou ela.
A apreensão se desfez.
— Tomara que sim — disse, e abri a porta do freezer. O marido de
Veronica me encarou novamente quando fecheia, a garrafa de vodca
incrustada de gelo na minha mão direita. Agora, eu reparei que Douglas era
um pouco rechonchudo, rugas fundas em torno de seus olhos, grisalho nas
têmporas.
"Certo", pensei.
"Talvez cinquenta e tantos anos." Mesmo assim, ele tinha um rosto
juvenil. Nas fotos, Veronica era mais alta do que ele, sua cabeça careca mal
alcançava os ombros largos dela. Ela estava em todas as fotos, os braços
dele sempre afetuosamente passados em torno da cintura dela. E, em todas
as fotografias, Douglas estava sorrindo com uma alegria tão espontânea que
eu soube que toda a felicidade dele vinha dela, de estar com ela, de ser seu
marido, e que, quando estava com ela, ele se sentia alto e com cabelos
negros, um belo homem, esperto, sagaz, e talvez mesmo um tanto elegante.
Era o que ela lhe oferecia, achei eu, a ilusão de que ele a merecia.
— Quando o conheci, ele era um bartender — disse, ao surgir na
cozinha. — Agora, vende softwares. — Ela ergueu um braço direito
inacreditavelmente longo e gracioso até o armário ao seu lado, abriu suas
portas de madeira lisa e retirou dois copos decididamente comuns, que ela
colocou direto sobre o balcão de fórmica lisa antes de se virar para mim:
— Desde o início, eu fiquei completamente à vontade com Douglas —
disse.
Ela não teria como me dizer isso de modo mais claro. Douglas era o
homem com quem decidira se casar porque possuía as características que
ela exigia para se sentir em casa quando estivesse em casa, e plenamente
sentir-se sendo ela mesma quando estivesse com ele. Se tivesse havido
algum grande amor em sua vida, ela teria preferido Douglas porque com ele
poderia viver sem mudanças nem alterações, sem maquiar a sua alma. Por
isso, de repente, vi a mim mesmo vagamente invejoso em relação àquele
homenzinho atarracado, à paz que ele lhe transmitia, à maneira que ela, sem
duvidar de nada, poderia recostar-se com o braço dele passado sobre seus
ombros, respirar devagar e adormecer.
— Ele parece... Um bom sujeito — disse eu. Veronica não deu sinal de
ter me escutado.
— Você bebe puro — disse ela, referindo-se à maneira como bebia meu
drinque, o que evidentemente foi algo em que reparou no bar.
Assenti com a cabeça.
— Eu também.
Ela serviu o drinque e me dirigiu para a sala. As cortinas estavam bem
fechadas e pareciam um pouco empoeiradas. Os móveis haviam sido
escolhidos mais para dar conforto do que por conta de estilo. Havia alguns
vasos de planta, a maioria delas escurecida nas beiradas. Dava quase para
escutá-las implorando por água. Nada de cães. Nada de cachorros. Nada de
peixinhos dourados nem hamsters, nem cobras nem ratos. Quando Douglas
estava fora, pelo que parecia, Veronica vivia sozinha.
A não ser pelos livros, mas eles estavam espalhados por toda a parte.
Enchiam prateleira sobre prateleira, até o teto, ou ficavam empilhados,
quase tombando, ao longo das quatro paredes do ambiente. Os autores eram
os mais variados, dos velhos clássicos aos bestsellers mais recentes.
Stendhal e Dostoiévski lá estavam ombro a ombro com Anne Rice e
Michael Crichton. Alguns dos meus títulos áridos estavam alinhados ali
entre Robert Stone e Patrick O'Brien. Não havia história nem ciências
sociais em sua coleção, nem poesia. Apenas romances, assim como
Veronica parecia um personagem de ficção, que ela inventara e estava
determinada a interpretar até o final. O que ela oferecia, eu acreditava
naquele momento, era uma consistente performance de uma nova-iorquina
excêntrica.
Tocou a borda do seu copo no meu, num brinde, seus olhos muito fixos:
— Ao que vamos fazer! — disse.
— Ainda estamos falando a respeito de cometer suicídio juntos? —
debochei, no que baixei meu copo sem beber. — O que é isso, Veronica?
Alguma versão reescrita de Doce Novembro?
— Não sei do que você está falando — disse ela.
— Sabe, sim, aquele filme estupido em que uma garota que logo vai
morrer arruma um garoto e vive com ele por um mês, antes de...
— Eu jamais viveria com você — interrompeu Veronica.
— Não é disso que estou falando.
— E não estou morrendo — acrescentou Veronica. Sorveu um gole
rápido de sua vodca, colocou o copo sobre a pequena mesa junto ao sofá,
então se levantou, como se atendesse ao chamado repentino de uma voz
invisível, oferecendo-me sua mão.
— Hora de ir para a cama — disse.
— Assim, sem mais nem menos? — perguntou meu amigo.
— Assim mesmo.
Ele me olhou desconfiado: — É tudo fantasia sua, certo? — perguntou.
— Uma história que você inventou.
— O que aconteceu depois ninguém ia conseguir inventar.
— E o que foi?
Ela me levou para o quarto. E nos despimos sem uma palavra. Ela
escorregou para baixo do lençol, que era só o que cobria a cama, e deu
tapinhas no colchão.
— Este lado é o seu.
— Até Douglas voltar — disse eu, e me juntei a ela.
— Douglas não vai voltar — disse ela, então se inclinou sobre mim e
me beijou suavemente.
— Por que não?
— Porque está morto — respondeu ela sem hesitar. — Morreu há três
anos.
E então fui informado sobre a lenta decadência de seu marido, o câncer
que começou em seus intestinos e migrou para o fígado e pâncreas. Levou
seis meses, e Veronica cuidou dele dia após dia. Ela passava para vê-lo pela
manhã, a caminho do trabalho, e voltava para ele à noite, permanecendo ao
seu lado até ter certeza de que ele não acordaria mais, então, finalmente,
retornaria para cá, para esta mesma cama, e dormiria uma ou duas horas,
três no máximo, antes de iniciar toda a rotina outra vez.
— Seis meses! — disse eu. — É um bocado de tempo.
— Uma pessoa morrendo dá muito trabalho.
— Eu sei — disse a ela. — Fiquei ao lado do meu pai, quando ele
estava morrendo. Quando ele finalmente se foi, eu estava exausto.
— Ah, não foi isso que eu quis dizer. A parte física... ficar sem dormir.
Isso nunca foi a parte mais difícil; não em se tratando do Douglas.
— O que era, então?
— Fazê-lo acreditar que eu o amava.
— E não amava?
— Não — respondeu ela, e a seguir me beijou outra vez, um beijo um
pouco mais demorado do que o primeiro, e que me deu tempo para lembrar
que apenas alguns minutos atrás ela havia me dito que Douglas, atualmente,
vendia softwares.
— Softwares — disse eu, afastando os meus lábios dos dela. — Você
disse que ele agora vendia softwares.
Ela assentiu de cabeça: — E ele vende.
— Para clientes também mortos? — ergui meu corpo e apoiei a cabeça
em uma das mãos. — Mal posso esperar para escutar a sua explicação.
— Não há nenhuma explicação — ela disse. — Douglas sempre quis
vender softwares. Assim, em vez de dizer que ele está enterrado ou no céu,
digo apenas que ele está vendendo softwares.
— Sei, você dá à morte um apelido bonitinho — disse. — É uma
maneira de não ter de encará-la.
— Digo que ele está vendendo softwares porque não desejo entrar na
conversa que se segue se eu dissesse que ele está morto — disparou
Veronica, agressiva. — Detesto quando tentam me consolar.
— Então, por que acabou me contando tudo?
— Porque você precisa saber que sou como você — disse ela. —
Sozinha. Ninguém vai chorar por mim.
— Então, estamos de volta à conversa sobre suicídio — disse eu. —
Você sempre volta para esse tema... morte?
Ela sorriu: — Sabe o que La Rochefoucauld disse sobre a morte?
— Não está aqui na ponta da língua, não!
— Ele disse que era como o sol. Não se pode olhar para ele por um
tempo longo sem ficar cego — ela deu de ombros. — Só que eu acho que,
se você fica olhando para ela o tempo todo, e compara com a vida, então
pode escolher.
Puxei-a para os meus braços.
— Você é um pouco estranha, Veronica — disse, brincando.
Ela balançou a cabeça, sua voz bastante decidida: — Não sou — disse
ela.
E reforçou: — Sou a pessoa mais lucida que você já conheceu.
— E era mesmo — disse eu ao meu amigo.
— Como assim?
— Bem, ela me ofereceu mais do que qualquer pessoa que eu já tivesse
conhecido.
— O que ela ofereceu?
Naquela noite, ela ofereceu a meiga e ousada luxuria de sua carne, um
beijo tão impregnado de sensações que pensei que seus lábios iam soltar
faíscas.
Fizemos amor por algum tempo, então, de repente, ela parou e pulou da
cama.
— Hora de conversar — disse, então caminhou para a cozinha e voltou
com mais dois copos de vodca.
— Hora de conversar? — perguntei, ainda desconcertado pela maneira
abrupta como ela se despregou de mim.
— Não tenho a noite toda — disse, me oferecendo o copo.
Peguei a bebida da mão dela: — Quer dizer que não vamos brindar
juntos ao amanhecer?
Ela sentou-se na cama, pernas cruzadas e nua, seu corpo liso e macio
sob a luz azulada: — Você é bom com as palavras — disse, ao bater seu
copo no meu. — Eu também. — Ela se inclinou um pouco para mim, seus
olhos brilhando na escuridão. — Acontece o seguinte — acrescentou. — Se
você é bom demais com as palavras, chega uma hora em que não tem mais
o que dizer. Não sobraram palavras para dizer o que é importante.
Só palavras que saem facilmente. Espertas. Displicentes. É quando você
sabe que chegou ao máximo do que pode ir, quando não tem nada sobrando
para oferecer a não ser conversa fácil.
— Isso é um bocado duro, não acha? — Sorvi um gole da minha vodca.
— Além do mais, qual é a alternativa a falar?
— O silêncio — respondeu Veronica.
Ri: — Verônica, você não fica em silêncio.
— Na maior parte do tempo, fico sim — disse ela.
— E o que esse silêncio esconde?
— Raiva — respondeu ela sem a menor hesitação. — Furia.
Seu rosto ficou tenso e eu achei que a raiva que de repente enxerguei
nela ia pôr seus cabelos em chamas.
— Bem, claro que você pode ficar em silêncio por outras razões —
disse ela. E sorveu um rápido e ríspido gole de seu copo. — Douglas
chegou lá. Mas não por ser bom com as palavras.
— Como, então?
— Sofrendo. Olhei para ver se seus lábios estavam tremendo. Não
estavam. Procurei ver umidade em seus olhos, mas estavam secos e fixos.
— Por estar apavorado — ela acrescentou. Voltou o olhar para a janela e
manteve-o ali por instantes, depois retornou-o para mim.
— Na última semana não me disse sequer uma palavra — contou-me
ela. — Foi quando eu soube que a hora havia chegado.
— Hora do quê?
— Hora de Douglas arranjar um novo emprego.
Senti o meu coração parar de bater.
— Vendendo... softwares? — perguntei. Ela acendeu uma vela e
colocou-a na estreita prateleira acima de nós, depois escancarou a gaveta de
cima de uma mesinha junto à cama, tirou uma caixinha plástica de pílulas e
a agitou para que eu pudesse escutar as pílulas chacoalhando ali dentro.
— Eu tinha planejado dar a ele isto aqui — disse ela. — Mas, não
houve tempo.
— O que você quer dizer com não houve tempo?
— Vi escrito no rosto dele — ela respondeu.
— Douglas estava vivendo como alguém que já estava enterrado.
Alguém lá embaixo, na sepultura, esperando que o ar acabasse. Esse tipo de
sofrimento, o terror. Eu sabia que esse minuto a mais seria exageradamente
longo. Ela colocou as pílulas sobre a mesa, então agarrou o travesseiro
sobre o qual sua cabeça repousava, afofou-o suavemente, pressionou-o
sobre o meu rosto, depois ergueu-o de novo, de um modo que,
estranhamente, me fez sentir como se eu estivesse voltando à vida:
— Era tudo que me restava para oferecer a ele — disse ela,
mansamente, e depois sorveu lentamente um longo gole de sua vodca. —
Temos tão pouco a oferecer.
E eu pensei com uma lucidez subita e devastadora: "A escuridão dela é
real. A minha, é apenas pose."
— O que você fez? — meu amigo perguntou.
— Toquei o rosto dela.
— E o que ela fez?
Ela afastou minha mão quase com violência.
— Isto aqui não é sobre mim — disse ela.
— Neste momento, tudo aqui é sobre você — repliquei eu.
Ela sorriu, com uma careta: — Bobagem!
— Eu estou aqui. Apertei bem o braço em torno dela: — Eu estou aqui
— disse.
Ela se apertou ainda mais contra mim: — Sim.
— Então, você ficou com ela? — perguntou meu amigo.
Eu assenti com a cabeça.
— E ela...?
— Cerca de uma hora depois — disse. — Então, me vesti e fiquei
andando pelas ruas até vir parar aqui.
— Quer dizer, neste exato momento, ela está...
— Morta — cortei, e de repente a imaginei sentada no parque do outro
lado da rua do bar, parada e silenciosa.
— Você não poderia impedi-la?
— Com o quê? — perguntei. — Não tinha nada a oferecer a ela. —
Espiei através da vidraça do bar. — Além disso — acrescentei —, para uma
mulher genuinamente fatal, um homem jamais é uma resposta. É o que a
torna fatal. Pelo menos, para nós. Meu amigo me olhou de um modo
estranho:
— Mas, o que você vai fazer agora? — perguntou.
No extremo oposto do parque, um jovem casal estava gritando um com
o outro, o punho da mulher no ar, o homem balançando a cabeça em
violenta confusão. Eu podia imaginar Veronica virando as costas para eles,
afastando-se em silêncio.
— Vou ficar calado — respondi. — Por um bocado de tempo!
Então, me pus de pé e caminhei para dentro da cidade que rodopiava. A
dissonância de sempre me engolfou, o caos, a balburdia, mas não senti
necessidade de acrescentar minha própria e incipiente discordância ao resto.
Era um sentimento estranhamente acolhedor, foi do que me dei conta
quando me voltei, dirigindo-me para casa abraçando o silêncio.
Lá das profundezas de sua tranquilidade envolvente, Veronica me
ofereceu suas palavras finais.
Eu sei.

***
Seu amo e senhor
Andrew Klavan

Era óbvio que ela o havia matado, mas somente eu sabia por quê. Eu
fora amigo de Jim, e ele me contou tudo. Era uma história chocante, se bem
que um tanto diferente.
Bem, eu a achei chocante, independentemente da maneira como
qualquer outro a visse. Mais de uma vez, quando ele fazia confidências a
mim, senti o suor se acumulando por debaixo do meu colarinho e no meu
peito. Uma irritação na pele e o que, em uma idade mais decorosa, teríamos
chamado de "um desconforto na barriga". Hoje em dia, é claro,
teoricamente podemos falar dessas coisas, e sobre tudo, na verdade. Há
tantos livros, filmes e programas de tevê reivindicando ter quebrado o
último tabu que dá para pensar que não nos restou nenhum de sobra.
Bem, isso eu quero ver. Quero só ver.

Jim e Susan se conheceram no trabalho, e iniciaram um relacionamento


numa festa de seu escritório, do tipo que sempre acontece. Jim era o vice-
presidente encarregado do Entretenimento numa das maiores redes de
emissoras de rádio. "Não sei o que é o meu trabalho", costumava dizer,
"mas, pelo amor de Deus, eu devo estar fazendo-o direito." Susan era uma
assistente de gerente no departamento de pessoal, o que significava que era
a secretária encarregada dos horários de trabalho.
Jim era formado em Harvard, alto, elegante, com 35 anos. No trabalho,
tinha modos comidos, atenciosos, um jeito de quem pensa em cada palavra
que diz. Além disso, um jeito de cravar-se nos olhos de quem falava com
ele, como se cada neurônio estivesse empenhado no assunto que lhe fora
trazido, por mais tedioso que fosse. Fora do expediente, felizmente, se
tornava mais satírico, mais sardônico. Para ser honesto, acho que ele
considerava a maioria das pessoas mais do que meros idiotas.
O que fazia dele um idiota otimista, se pedirem minha opinião.
Susan era dinâmica, morena, enérgica, na casa dos vinte anos. Um
pouco magra e nariguda, para o meu gosto, mas bem bonita, com cabelos
compridos, lisos, e muito, muito negros. Além disso, era uma figura
atraente, pequena, compacta, graciosa, seios e quadris suavemente
arredondados. Tinha uma postura agressiva, divertida, desafiante: Vai ficar
comigo do jeito que eu sou, ou não, cara? O que eu acho que disfarçava
uma certa necessidade de se defender, relacionada ao seu passado no
Queens, sua educação, talvez mesmo a sua inteligência. Seja como for, ela
era capaz de fazer a manhã de qualquer um brilhar, somente dando uma
passada vestindo uma saia curta, ou afastando seu cabelo da boca com uma
unha comprida. Uma Foda de Filtro de Água, esse era o consenso
masculino. Naqueles debates sociológicos nos quais os cavalheiros estão
inclinados a discutir como suas várias colegas e conhecidas deveriam ser
comidas, Susan normalmente era eleita como a garota que todo mundo
gostaria de pegar, prensando-a contra o filtro de água, de pé, e com a equipe
que fazia a faxina durante a noite passando o aspirador de pó no corredor.
Assim, naquela festa num mês de fevereiro, na qual celebramos o
lançamento e o fracasso já certo de algum esquema de gerenciamento
debilóide, assistimos com alegria e inveja a Jim e Susan ficarem juntos,
conversarem e no final saírem da festa juntos. E, também no final das
contas, dormirem juntos. Não vimos essa parte, mas soube de tudo depois.
Sou um editor de noticiário, 38 anos, um divórcio — sete anos, dois
meses e 16 dias atrás. Sexualmente, já sou meio rodado. Bem, acho que
todo mundo já é meio rodado. Vão ter de alargar as ruas para o tráfego de
tanta gente que está sempre por aí, rodando. Assim, o que Jim me contou, a
princípio, me causou nada mais do que um tênue brilho de excitação em
meus olhos, sem mencionar o filete de saliva escorrendo, sem que eu
percebesse, do canto da minha boca.
Ela gostava da coisa com um pouco de violência. Essa era a história.
Agora, pode ser contada.
Nossa Susan apreciava uns tapas acompanhando o tira-e-põe. Jim, bem-
amado de Deus, a princípio ficou meio desconcertado com isso. Mas ele
também já era meio rodado, é claro, se bem que sempre em ruas meio
familiares. E meu palpite é que nunca havia andado por aquelas bandas.
Ao que parece, quando foram para o apartamento dele, Susan entregou
o cinto do roupão de banho felpudo dele e ordenou:
— Me amarra!
Jim esforçou-se para seguir essa instrução tão simples, assim como a
que o mandava agarrar os cabelos negros, muito negros dela, e forçá-la a
descer até a sua boca chegar na altura do que eu polidamente chamarei de
pontuda tumescência. A parte das pancadas vinha mais tarde, depois que ele
a atirasse de bruços sobre a cama e se enfiasse nela por trás. Isso, também,
seguindo exigências específicas feitas por ela.
— Foi meio pervertido — disse Jim.
— Ei, tem meu apoio — disse eu. — O que isso faz de você, apenas o
segundo ou terceiro homem mais sortudo na face da Terra?
— Bem, foi excitante, Jim admitiu.
E não que ele jamais tivesse feito algo parecido antes. Era só que, pela
experiência de Jim, era preciso conhecer uma garota antes de bater nela. Era
íntimo demais, coisa de fantasia, não o que se costuma fazer no primeiro
encontro.
Além do mais, Jim gostava sinceramente de Susan. Gostava daquele
toque dela de garota durona, de superprofissional entusiasmada, aquele jeito
desafiante que ela tinha, meio que de brincadeira, com certa vulnerabilidade
escondida. Queria conhecê-la melhor, ficar com ela, talvez, por um longo
tempo. E, se já haviam começado desse modo, aonde é que iriam chegar?
Mas todo constrangimento, como ficou evidente, era apenas da parte de
Jim. Susan parecia bastante à vontade ao despertar em seus braços na
manhã seguinte.
— Foi muito bom, na noite passada — ela sussurrou, se esticando para
beijar seu rosto com barba crescida.
Ela segurou a mão dele, enquanto paravam um táxi para levála para
casa, de maneira que pudesse trocar de roupa. E ela divertiu-o e o encantou
com sua etiqueta de escritório, sem dar a menor pista a ninguém no mundo
de que havia algo novo entre eles dois, transmitindo-lhe apenas um pequeno
sinal dessa intimidade, quando passavam um pelo outro no corredor, com
um movimento de cabeça e murmurando:
— Meu Deus! Como somos profissionais!
E jantaram juntos na avenida Columbus, no restaurante Morrocan, e ela
falou, de modo hilariante, sobre os tipos que eram gerentes no seu
departamento. E Jim, que usualmente expressava o quanto estava satisfeito
apenas estreitando os olhos e sorrindo levemente, recostou-se todo em sua
cadeira, com os dentes arreganhados, e teve de enxugar as lágrimas de seus
pés-de-galinha com a mão.
Naquela noite, ela exigiu que ele batesse nela com seu cinto de couro.
Jim queixou-se, recatado:
— Será que a gente nunca vai fazer do modo normal?
Mas ela inclinou-se, aproximando-se dele, seus olhos faiscando:
— Faz! Quero que você faça!
— Bem, sabe como é... estou um pouco preocupado com o barulho. Os
vizinhos, entende?
Bem, ele tinha razão nisso. Susan foi para a cozinha e voltou com uma
colher de pau. Ao que parece elas não fazem muito barulho. Jim, sempre
um cavalheiro, amarrou-a na cabeceira da cama.
— Essa mulher está me matando. Estou exausto — ele me confessou,
duas semanas depois.
Enfiei minha mão por debaixo da camisa e comecei a mexê-la para cima
e para baixo, para que ele visse meu coração batendo de pena dele.
— Estou falando sério — ele insistiu. — Quer dizer, tem horas que
estou a fim dessas coisas. Muito sexy, e divertido. Mas, Deus do céu, eu
gostaria de ficar olhando para o rosto dela de vez em quando.
— Ela vai sossegar. Vocês estão no começo, ainda — disse eu. — Quer
dizer que ela gosta disso tudo. Mais pra frente, com toda gentileza, você vai
poder ensinar a ela as alegrias do papai-e-mamãe.
Tivemos naquela conversa numa mesa no McCord's, o último bar
irlandês que não foi estragado, no West Side, já totalmente invadido por
"gente fina". O pessoal da imprensa costumava às vezes aparecer por lá, e
assim já estávamos conversando em voz baixa. Nossas testas quase se
tocavam e ele olhou para os lados, antes de prosseguirmos.
— Acontece que... — disse ele — eu acho que ela leva isso a sério.
— Como assim?
— É que estou nessa por fantasia, coisas desse gênero. Só que eu acho
que ela não está brincando.
— Como assim? — repeti, com voz mais rouca e com um pouco de suor
juntando-se por trás das minhas orelhas.
No final das contas, o relacionamento deles havia avançado para um
ponto no qual dividiam as tarefas de casa. Susan havia distribuído as tarefas
e coube a ela limpar o apartamento de Jim, fazer seu jantar e lavar a louça.
Nua. O trabalho de Jim era forçá-la a fazer essas coisas e chicoteá-la,
espancá-la ou estuprá-la se ela mostrasse qualquer relutância, ou cometesse,
ou fingisse cometer qualquer erro.
Bem, tem sempre um lance de contar vantagens quando homens se
queixam de suas vidas sexuais, mas Jim parecia realmente perturbado com
a sua.
— Não estou dizendo que isso não me excita. Admito, excita, sim. Só
que está começando a ficar meio... feio, agora. Não está?
Umedeci os lábios e recostei bem na minha cadeira. Quando finalmente
consegui parar de ofegar e mexi minha boca, disse:
— Não sei. Cada um na sua. Quero dizer, olha só, se você não gosta
disso, se manda. Entendeu? Se não está legal para você, dá o fora.
Obviamente, essa ideia já lhe tinha ocorrido. Ele assentiu lentamente
com a cabeça, como se estivesse pensando no assunto.
Mas ele não deu o fora. Na verdade, mais uma semana e pouco e, para
todos os efeitos, Susan estava morando com ele.
Daqui para frente, minhas informações começam a ficar menos
detalhadas. Obviamente, um sujeito vivendo com alguém não conversa
muito a respeito de sua vida sexual.
Todo mundo na emissora já sabia que o caso dos dois estava
acontecendo, mas Susan e Jim mantiveram-se inteiramente profissionais e
cada um para o seu lado, no trabalho. Iam a pé para o trabalho juntos, de
mãos dadas. Trocavam um beijo, do lado de fora do prédio. E, depois disso,
só cuidavam do serviço. Nada de conversas em voz baixa nos corredores,
nada de portas de escritórios fechadas. Nas poucas vezes em que saímos
todos juntos para beber depois do trabalho, nem mesmo se sentaram juntos.
Através da vidraça do bar, quando iam embora, víamos Jim pôr o braço
sobre os ombros dela. Mais nada.
A última vez em que Jim e eu conversamos sobre o assunto, antes de ele
morrer, foi de novo no McCord's. Entrei lá numa noite e lá estava ele,
sentado numa mesa de canto, sozinho. Vi logo pelo jeito como se sentava
— corpo duro e ereto, com os olhos semicerrados, nublados, olhando o
nada — que estava bêbado como um gambá.
Sentei em frente a ele e fiz um gesto meio afetado com a mão, dizendo:
— A bebida é por minha conta. — Então, pedi scotch. Se eu fosse
esperto, teria ficado conversando apenas sobre esporte. Os Knicks estavam
sendo trucidados. Os Yanks, depois do campeonato da temporada, lutavam
para se manterem junto do Baltimore na nova temporada. Eu tinha um
bocado de assunto para conversar. Mas fiquei curioso.
Se é "curioso" a palavra que estou querendo usar. "Atiçado", talvez seja
a mais adequada.
Então, perguntei:
— E aí, como estão as coisas com Susan?
E ele respondeu como qualquer um responde sobre algo que leva a
sério:
— Bem. As coisas com Susan vão bem. — Mas, acrescentou: — Sou
seu Amo e Senhor. — Sentado rigidamente ereto, oscilando suavemente,
como um poste de luminária, numa tempestade.
Susan havia detalhado as rotinas deles, mas ele agora as sabia de cor e
as cumpria sem precisar de que lhe dissessem para fazê-lo. Isso,
aparentemente, funcionava melhor porque a deixava livre para suplicar a ele
que parasse. Ele a amarrava, ela começava a implorar, e ele a espancaria
enquanto ela continuava implorando. Ele a sodomizaria e agarraria seus
cabelos, forçando-a a voltar a cabeça para que ela o olhasse fazendo aquilo.
"Quem é o seu Amo e Senhor?", ele dizia. E ela respondia: "Você é o meu
Amo e Senhor. É você." Mais tarde, ela faria as tarefas da casa, nua ou com
uns trajes de renda e ligas que ele lhe comprara.
Normalmente, ela se atrapalharia com alguma coisa que estivesse
manuseando, ou derramaria qualquer coisa, e ele lhe daria uma surra por
isso, que era o suficiente para deixá-lo no ponto de pegá-la outra vez.
Depois de me ter contado isso, seus olhos cerraram-se, seus lábios se
abriram. Ele pareceu dormir por alguns minutos, e a seguir acordou
ligeiramente sobressaltado.
Mas sempre rigidamente ereto na cadeira, sempre com o corpo reto,
levantando e abaixando. Mesmo quando se ergueu para ir embora, sua
postura estava rígida e perfeita.
Ele encaminhou-se para a porta como se fosse um daqueles velhos
professores de boas maneiras. Era um tipo engraçado de bêbado, com ainda
mais dignidade no porte do que quando estava sóbrio, um pouco exagerado,
uma versão cômica de seu reservado e digno eu sóbrio.
Fiquei vendo-o ir embora com um sorriso em meu rosto. Tenho
saudades dele.

Susan esfaqueou-o com um facão de cozinha, daqueles bem grandes.


Um único golpe, bastante nervoso, mas entrou direto, seccionando a veia
cava. Ele sangrou até morrer, caído no chão da cozinha, olhos pregados no
teto, enquanto ela berrava no telefone, chamando uma ambulância. Como
Jim era uma espécie de figurão, foi tudo parar nos noticiários. Então, as
feministas se pegaram no caso, aquelas garotas mais truculentas que
consideram matar o namorado uma maneira de auto-expressão. Elas
queriam que o processo fosse arquivado, sem possibilidade de recurso. E
muita gente achava que elas tinham alguma razão, dessa vez. Susan,
conforme foi descoberto, tinha o torso todo marcado de hematomas e com
sangramentos em diversos orifícios. E Jim estava sem a menor duvida com
um daqueles porretes de sex-shop de aparência horrenda quando ela pegou
a faca. De acordo com a polícia, era um típico caso de maus-tratos
prolongados e defesa própria adiada.
Mas os tiras, por alguma razão, não ficaram convencidos de imediato.
Em geral, os tiras passam tempo o bastante nos subterrâneos da depravação
humana para nunca esquecer que existe algo na vida amorosa real que não é
jamais revelado pelos axiomas políticos.
Assim, o promotor publico de Manhattan ficou entre a cruz e a espada.
Susan arrumou um bom advogado muito rápido e não fez declarações a
ninguém. A polícia suspeitou de que acharia provas de sexo bruto
consensual na vida de Susan, mas, até agora, não apresentaram nada que
prestasse. Nesse meio tempo, a imprensa começava a ligar o nome de Susan
com a palavra suplício, e isso insistentemente, dando sempre as notícias
sobre ela ao lado de pequenos destaques sobre maus-tratos sexuais, o que
era a maneira deles de serem objetivos, quando na verdade se colocava
inteiramente do lado dela. Seja como for, a última coisa que o promotor
publico queria era meter na cadeia a mulher e depois ter de soltá-la. Então,
ele refugou. Retirou as acusações por um dia ou dois, para maiores
investigações, e enquanto isso o principal suspeito era posto em liberdade.

Para mim, tudo era depressão e atordoamento. Jim não era meu irmão,
nem nada do gênero, mas um bom amigo. E eu sabia que era,
provavelmente, o melhor amigo que ele tinha na rede, talvez na cidade, ou
talvez mesmo no mundo. Mesmo assim, houve momentos, assistindo às
feministas na tevê, vendo o advogado de Susan, que fiquei pensando: Como
vou saber? O cara diz uma coisa, a garota diz outra. Como vou saber se
tudo o que o Jim me contou não era uma mentira doida dele, uma dessas
justificativas que ele arranjou para as coisas ruins que fazia com ela?
Claro que, afastando tudo isso, telefonei para a polícia no dia depois do
assassinato, uma sexta-feira, logo que soube da notícia. Telefonei direto
para um contato meu na Homicídios e lhe disse que tinha sólidas
informações sobre o caso.
Eu mais ou menos esperava escutar as sirenes berrando e as patrulhas
vindo me pegar logo que desliguei o telefone. Em vez disso, marcaram uma
entrevista comigo para segunda de manhã, e me pediram para ir à delegacia
para conversar com o detetive encarregado do caso.
E isso me deixou o fim de semana livre. Eu o passei prostrado no sofá,
tomado por uma náusea depressiva. Olhando vagamente para o teto, o braço
dobrado sobre meus olhos. Tentei me forçar a chorar, tentei me culpar,
tentei não me culpar.
O telefone tocou e tocou, mas não atendi. Eram apenas amigos — pude
escutar os recados deles na secretária eletrônica — querendo se pôr a par do
assunto: a solidariedade, o pesar, as fofocas. Todo mundo buscando um
pedaço do assassinato para si. Eu não tinha disposição para brincadeiras.
Na manhã de domingo, finalmente, alguém bateu à minha porta. Moro
no último andar de um edifício caro, e assim era de se esperar que tocassem
o interfone, lá da rua, mas foi direto uma batida na porta e achei que fosse
um dos meus vizinhos, que acabara de ver a notícia na tevê. Gritei
perguntando quem era, enquanto calçava meus sapatos. Enfiei de qualquer
jeito a camisa, ao me dirigir para a porta. E a abri toda, sem nem ao menos
dar uma espiada no olho mágico.
E era Susan. Uma porção de coisas passou pela minha cabeça no
segundo em que a vi. E ela parada ali de pé, combativa e constrangida ao
mesmo tempo. O queixo empinado, beligerante; olhando de lado, tímida.
Pensei: Como devo agir? Como devo me portar? Zangado? Vingativo?
Frio? Distante? Compassivo? Meu Deus, era algo paralisante. No final, só
recuei e a deixei entrar. Ela caminhou até o centro da sala e me encarou
enquanto eu fechava a porta.
Então, deu de ombros para mim. Um ombro nu erguido, um canto da
sua boca erguido, um sorriso cínico. Estava com um vestido primaveril de
cor pálida, as tiras atadas em torno do seu pescoço, num laço mostrava um
bocado de sua pele morena. Notei uma marca em forma de crescente,
descorada, na coxa por baixo da bainha.
— Não tenho certeza de como se deve proceder convenientemente nesta
situação — disse eu.
— É, quem sabe o livro de etiqueta tem um capítulo intitulado
Recebendo em casa a Garota que Matou Seu Melhor Amigo.
Devolvi seu sorriso cínico:
— Não fale demais, certo, Susan? Vou ter de ir ver os tiras na segunda-
feira.
Ela parou de sorrir, assentiu com a cabeça, virou-se:
— E ... aí? Quer dizer, Jim lhe contou tudo? Sobre nós? — ela ficou
brincando com o bloco sobre minha mesinha de telefone.
Eu a fiquei observando. Minhas reações eram sutis, mas intensas. Foi a
maneira como ela se virou, aquilo que ela disse. E me fez pensar no que o
Jim havia me contado.
Fez com que eu descesse o olhar, devagar e longamente, por suas costas.
Fez minha pele arder, meu estômago ficar gelado. Uma combinação
interessante.
Umedeci os lábios e tentei pensar no meu amigo morto.
— Isso mesmo — disse, mal-humorado. — Ele me contou tudo! Susan
riu, por cima do ombro, voltando-se para mim.
— Bem, isso é bem constrangedor.
— Ei, não flerte comigo, certo? Não pode matar meu amigo e vir aqui
flertar comigo.
Ela virou-se para mim outra vez, as mãos comportadamente cruzadas à
frente dela. Olhei com tanta firmeza para o seu rosto que ela não deve ter
adivinhado que eu estava pensando em seus seios.
— Não estou flertando com você — disse ela. — Só quero lhe contar...
— Contar o quê?
— O que ele fazia, que ele me espancava, me humilhava. Tinha o dobro
do meu tamanho. Ponha-se no meu lugar, pense no que você faria se alguém
estivesse fazendo isso com você.
— Susan! — abri meus braços para ela, mãos espalmadas. — Você
pedia a ele que fizesse tudo isso.
— Ah, claro, mais ou menos... Foi ela que pediu, certo? E você
automaticamente acreditou em tudo. Se o seu amigo disse, então deve ser
verdade.
Bufei contrariado.
Fiquei pensando naquilo. Olhei para ela. Pensei em Jim.
— Isso mesmo — disse, finalmente. — Acredito nele. Ele me disse a
verdade.
Ela não discutiu mais sobre aquilo. Foi bem direta:
— Ok, ora, mesmo que fosse verdade, não melhora o que ele fez. Quer
saber de tudo? Quero dizer, você devia ver como aquilo o excitava. Quero
dizer, ele podia ter parado. Eu teria parado. Podia ter mudado o rumo da
coisa toda, quando quisesse. Se quisesse... Mas ele gostava tanto daquilo...
E então estava ele lá, me machucando daquele jeito, e todo excitado com
aquilo. Como você acha que isso faz alguém se sentir?
Não fico muito orgulhoso em admitir que eu efetivamente cocei com
força a cabeça, tão idiota como um macaco.
Susan correu uma unha comprida sobre o bloco de telefone. Desceu os
olhos sobre ele. E eu também.
— Você vai mesmo ver os tiras?
— Vou. Ah, vou, sim — disse.
Então, como se precisasse me desculpar, acrescentei:
— Não é nada que eles não possam escutar de algum outro cara.
Alguém com quem você andou fazendo a mesma coisa. Ele contaria aos
tiras a mesma história.
Ela balançou a cabeça:
— Não. Existe apenas você. Você é o único que sabe. E isso não
deixava mais nada a ser dito. Ficamos ali parados, de pé, calados. Ela
pensando, eu apenas observando-a, observando suas linhas e cores.
Então, finalmente, ela ergueu os olhos para mim e balançou a cabeça.
Ela não deslizou em minha direção, não se aproximou furtivamente,
tocando então meu peito com seus dedos, não se aconchegou a mim de
modo que eu pudesse sentir o calor de seu hálito ou seu perfume. Deixou
isso para os filmes, para as femmes fatales. Tudo o que fez foi ficar ali,
parada daquele mesmo jeito e me dar aquele olhar de Susan, o queixo
empinado, punhos em guarda, sua alma à mostra, quase pulsando na mão da
outra pessoa.
— Isso dá a você um bocado de poder sobre mim, não é? — ela disse.
— E daí? — repliquei.
Ela deu de ombros:
— Você sabe do que eu gosto.
— Fora daqui — disse eu, sem me dar tempo para começar a suar. —
Meu Deus, puta merda, dê o fora daqui, Susan.
Ela encaminhou-se para a porta. Fiquei vendo-a ir embora. Isso, claro,
pensei eu. Tinha poder sobre ela. Imagine! Eu teria poder sobre ela até que
decidissem não apresentar acusações contra ela, até que as manchetes
desaparecessem. E depois, como eu ficaria? Ia ser então seu Amo e Senhor.
Exatamente como Jim.
Ela passou bem junto de mim. Perto o bastante para escutar meus
pensamentos. Ergueu o olhar, surpresa. Riu na minha cara.
— O que é? Acha que vou matar você também?
— Eu teria de imaginar algo assim, não é? — disse eu.
Sempre sorrindo, ela ergueu suas sobrancelhas debochadamente:
— Qualquer coisa que excite você! — disse ela.
Foi o deboche que fez tudo. Não consegui resistir à tentação de apagar
aquele sorriso de seu rosto assassino. Estiquei o braço e agarrei aqueles
cabelos dela. Seus cabelos negros, tão negros.
Eram ainda mais macios do que eu pensei que fossem.

***
A bizarria do Sr. Gray
John Connolly

Era, dizia minha mulher, a coisa mais horrenda que já vira. Eu tinha de
admitir que ela estava certa na sua avaliação. Não se tratava, de um modo
geral, de uma ocorrência típica em nossa relação. À medida que se
aproximava da meia-idade (com toda a graça e lentidão, eu deveria
acrescentar, de um cortejo funebre entrando vacilante num cemitério),
Eleanor se mostrava cada vez mais intolerante para com opiniões que
divergiam das suas. Inevitavelmente, as minhas pareciam divergir na
maioria das vezes, por isso uma concordância, qualquer que fosse, era causa
para uma considerável, embora muda, comemoração.
Norton Hall foi uma aquisição maravilhosa, uma residência no campo
do final do século XVIII, com jardins paisagísticos e cinquenta acres de
terra de primeira. Era uma joia arquitetônica e teria sido um lar
maravilhoso, por ser simultaneamente pequena o bastante para ser
administrada e, no entanto, espaçosa o bastante para permitir que
evitássemos um ao outro durante porções significativas do dia.
Infelizmente, como minha mulher devidamente observou, a bizarria
arquitetônica* na extremidade do jardim era algo totalmente diverso.

* Nos castelos antigos, era comum reservar um espaço para uma extravagância arquitetônica
nos jardins, que podia ser uma gruta artificial, um gazebo (mirante, geralmente na forma de pagode
chinês) ou um templo de gosto bizarro, como o desta história, daí o nome bizarria (folly, "loucura",
em inglês). (N. do T.)

Era feia e brutal, com pilastras retangulares sem adornos e uma cupula
branca e nua encimada por uma cruz. Não havia degraus que conduzissem
até ela e a única maneira de ganhar acesso ao seu interior parecia ser uma
escalada sobre a base. Até os pássaros a evitavam, preferindo tomar posição
num carvalho próximo, onde arrulhavam nervosos entre si como solteironas
num baile paroquial.
Segundo o agente imobiliário, um dos proprietários anteriores de
Norton Hall, o Sr. Gray, construíra aquela bizarria como um memorial para
sua falecida mulher.
Pareceu-me que não gostava muito da mulher, se foi aquilo que
construiu em sua memória. Eu não gostava muito da minha mulher na
época, mas ela não me desgostava a ponto de me levar a erguer uma
monstruosidade daquelas em sua memória. Pelo menos, eu teria aparado
algumas arestas e plantado um dragão no topo como lembrança da querida
falecida. Um pequeno dano na base foi causado a certa altura pelo Sr. Ellis,
o cavalheiro proprietário da casa antes de nós, mas parecia que ele
reconsiderara seu impulso original e a área em questão fora reparada e
pintada de novo.
Pensando seriamente na coisa, era um terrível atentado à estética.
Meu primeiro instinto foi mandar destruir a desgraçada estrutura, mas
nas semanas que se seguiram comecei a achar a bizarria atraente. Não,
"atraente" não é a palavra certa. Na verdade, comecei a achar que ela
obedecia a um propósito que eu ainda não havia percebido e que não seria
sábio me intrometer até que soubesse mais sobre ela. Como cheguei a me
sentir assim só posso atribuir a um incidente particular que ocorreu cinco
semanas depois que ocupamos Norton Hall.
Eu tinha apanhado uma cadeira e a colocara no chão nu da bizarria, pois
fazia um belo dia de verão e a bizarria oferecia a possibilidade tanto de
sombra como um panorama agradável. Estava me sentando com o jornal
quando a coisa mais estranha aconteceu: o chão se mexeu, como se, por um
momento, tivesse se tornado líquido em vez de sólido e alguma maré oculta
tivesse provocado uma onda através de sua superfície. A luz do sol
empalideceu e a paisagem se velou cobrindo-se de sombras. Senti como se
uma faixa de gaze da cama de um doente fosse colocada sobre meus olhos,
pois podia sentir vagamente um odor de deterioração no ar. Levantei-me
subitamente, experimentando uma certa tontura na cabeça, e vi um homem
de pé entre as árvores, observando-me.
— Olá — falei. — Posso dar-lhe alguma ajuda?
Era alto e vestia roupas de tweed: um sujeito com um ar marcadamente
doentio, achei; com um rosto fino e olhos escuros e atraentes. E juro que o
ouvi falar, embora seus lábios não se mexessem. O que disse foi:
— Deixe a bizarria em paz.
Ora, achei aquilo um tanto atrevido, devo admitir, mesmo em minha
condição debilitada. Não sou um homem acostumado a ser tratado de tal
maneira por estranhos absolutos. Mesmo Eleanor tem a gentileza de
prefaciar suas ordens com um "Você se incomodaria de...?" seguida por um
ocasional "por favor" ou "obrigada" para amortecer o golpe.
— Olhe aqui — falei. — Sou o dono desta terra. Não pode entrar aqui
para me dizer o que posso e o que não posso fazer com ela. Quem é você,
afinal?
Mas não é que ele repetiu as mesmas palavras?
— Deixe a bizarria em paz.
E, dito isso, o sujeito simplesmente virou as costas e desapareceu entre
as árvores. Estava para ir atrás dele e escoltá-lo para fora da propriedade
quando ouvi um movimento na grama atrás de mim. Virei-me, meio na
expectativa de vê-lo surgir ali também, mas era apenas Eleanor. Por um
momento, ela era uma parte da paisagem alterada, um espectro entre
espectros, mas gradualmente voltou ao normal e era de novo minha uma
vez amada mulher.
— Com quem estava falando, querido? — perguntou.
— Tinha um sujeito andando por ali — respondi, indicando as árvores
com o queixo.
Ela olhou na direção das árvores e deu de ombros.
— Não tem ninguém ali agora. Tem certeza de que viu alguém? Talvez
o calor esteja mexendo com você, ou algo pior.
Devia procurar um médico.
E lá estava eu. Edgar Merriman: marido, proprietário, homem de
negócios e lunático potencial aos olhos de sua mulher. Neste ritmo, não
demoraria e uma dupla de enfermeiros estaria sentada no meu peito até que
a carrocinha de loucos chegasse, minha mulher talvez deixando cair uma
lágrima de crocodilo enquanto assinava os papéis do meu internamento.
Impressionou-me, não pela primeira vez, que Eleanor parecia ter
perdido algum peso nas semanas recentes, ou talvez fosse simplesmente o
ângulo da luz refletida da bizarria iluminando o seu rosto. Dava-lhe uma
aparência faminta, uma impressão reforçada por um brilho nos seus olhos
que eu não vira antes. Fazia-me pensar numa ave de rapina e, por algum
motivo, o pensamento me dava calafrios.
Segui-a de volta para casa para um chá, mas eu não conseguia comer,
em parte por causa da maneira como ela me olhava por cima dos bolinhos
como um abutre impaciente à espera de que algum sujeito batesse as botas,
mas porque falava incessantemente da bizarria.
— Quando vai mandar demolir esta coisa, Edgar? — começou. —
Quero que faça isso o mais rápido possível, antes que o mau tempo chegue.
Edgar! Edgar, está me ouvindo?
E não é que ela agarrou meu braço com tanta força que deixei cair
minha xícara no susto, fragmentos de porcelana pálida cobrindo o chão de
pedra como os remanescentes de jovens sonhos. A xícara era parte da nossa
porcelana de casamento, mas sua perda não pareceu perturbar minha mulher
como o teria em outra ocasião. Na verdade, ela mal pareceu se dar conta da
xícara quebrada ou do chá lentamente escorrendo pelas rachaduras do piso.
Continuou me segurando o braço com força e suas mãos eram como garras,
longas e finas com unhas duras e aguçadas. Grossas veias azuis corriam
pelas costas de suas mãos como serpentes entrelaçadas, querendo romper de
sua pele. Um odor acre emanava dos seus poros e quase me levava a franzir
o nariz de nojo.
— Eleanor — perguntei —, você está doente? Suas mãos estão tão finas
e posso ver por seu rosto que perdeu peso.
Relutantemente, ela afrouxou o aperto em meu braço e virou o rosto.
— Não seja bobo, Edgar — respondeu. — Estou ótima.
Mas a pergunta pareceu incomodá-la, porque imediatamente se ocupou
entre os guarda-louças, fazendo o tipo de ruído mais associado com raiva do
que com ocupação. Deixei-a em paz, esfregando o braço onde ela o agarrara
e pensando sobre a natureza de mulher com quem eu estava casado.

Naquela noite, por falta de melhor programa, fui até a biblioteca da


casa. Norton Hall fora colocada no mercado por uma irmã do falecido Sr.
Ellis e a biblioteca e a maior parte das mobílias faziam parte da venda. O Sr.
Ellis parecia ter tido um triste fim: segundo os mexericos locais, sua mulher
o deixara e, numa crise de depressão, ele se matara com um tiro num hotel
de Londres. Sua mulher sequer apareceu na missa funebre, pobre criatura.
Na verdade, havia ainda alguma especulação entre nossos vizinhos mais
imaginosos de que o Sr. Ellis dera cabo de sua mulher, embora a polícia
nunca pudesse provar nada contra ele. Toda vez que um punhado de ossos
era encontrado por um cão inquisitivo num terreno baldio ou enterrado
numa margem de rio, o Sr. Ellis e a desaparecida mulher recebiam
invariavelmente uma menção no noticiário dos jornais locais, embora vinte
anos já tivessem passado desde a sua morte.
Um homem mais supersticioso teria hesitado em comprar Norton Hall
em tais circunstâncias, mas eu não era desse tipo. De qualquer maneira,
pelo que sabia do Sr. Ellis, ele parecia um homem inteligente e, portanto, se
tivesse matado a mulher, dificilmente deixaria seus restos numa casa onde
alguém poderia encontrá-los e pensar: "Olá, isso não é correto."
Eu só havia visitado a biblioteca uma ou duas vezes — não sou um
homem chegado a livros, verdade seja dita — e mal chegara a olhar os
títulos e soprar poeira e teias de aranha dos volumes mais velhos. Por isso,
foi uma surpresa para mim encontrar um livro sobre uma mesinha ao lado
de uma poltrona. Pensei inicialmente que Eleanor poderia tê-lo deixado ali,
mas ela lia ainda menos do que eu.
Apanhei-o e folheei a esmo, revelando uma página coberta por elegante
caligrafia miuda. Voltei à folha de rosto e encontrei a inscrição: uma viagem
ao Oriente Médio, J. F. Gray.
Uma pequena fotografia esfarrapada marcava a página e, quando a vi,
não pude deixar de sentir um terrível calafrio. O homem na fotografia,
obviamente o titular J. F. Gray, tinha uma semelhança incrível com o sujeito
que eu vira caminhando por entre as árvores e dando conselhos não
solicitados sobre a bizarria. Mas aquilo não podia ser possível, pensei:
afinal, Gray já estava morto há quase cinquenta anos e provavelmente tinha
outras coisas na cabeça, como coros celestiais ou queimaduras por fogo,
dependendo da vida que levara na terra. Descartei o pensamento e voltei
minha atenção para o livro.
Era, verifiquei, muito mais do que um diário da viagem de Gray ao
Oriente Médio.
Era, na verdade, uma confissão. Parecia que, numa viagem à Síria em
1900, John Frederick Gray tinha adquirido, através de furto, os ossos de
uma mulher que se acreditava ser Lilith, a primeira esposa de Adão.
Segundo Gray, que conhecia alguma coisa dos apócrifos da Bíblia, Lilith
tinha a reputação de ser um demônio, a bruxa original, um símbolo do medo
masculino diante do poder feminino selvagem. Gray ouviu a história dos
ossos contada por um sujeito em Damasco que lhe vendeu parte do que
alegava ser a armadura de Alexandre, o Grande, e que depois o encaminhou
a uma pequena aldeia no extremo norte do país onde se dizia que os ossos
estariam guardados numa cripta lacrada.
A jornada foi longa e difícil, embora tais desafios sempre fossem
atraentes para sujeitos como Gray, que pareciam encarar uma poltrona
confortável e um bom cachimbo como vícios iguais às ações dos sodomitas.
Mas quando Gray chegou à aldeia com seus guias ele se viu hostilizado
pelos nativos. Segundo o seu diário, os aldeãos lhe disseram que a entrada
na cripta era proibida para estrangeiros e, mais especialmente, mulheres.
Pediram a Gray que fosse embora, mas ele acampou à noite a uma pequena
distância da aldeia e ruminou aquilo que lhe tinham dito.
Passava da meia-noite quando um dos vagabundos locais foi até o
acampamento e disse a Gray que, mediante uma paga nada insignificante,
estava preparado para remover o pequeno esquife que continha os ossos e
trazê-lo até ele. Era um homem de palavra. Na hora aprazada voltou e
trouxe consigo um esquife ornado e claramente muito antigo, que segundo
ele continha os restos mortais de Lilith. A caixa tinha quase um metro de
comprimento por sessenta centímetros de largura e trinta centímetros de
altura e estava seguramente trancada. O ladrão contou que a chave estava
sempre em poder do imã local, mas o inglês não se preocupou.
A história de Lilith era um mito, meramente uma criação de homens
medrosos, mas Gray acreditava que podia vender o belo esquife como
curiosidade quando voltasse para casa. Empacotou-o com suas outras
aquisições e não pensou mais nele até voltar à Inglaterra e reencontrar-se
com sua jovem esposa, Jane, em Norton Hall.
Gray começou a notar uma mudança no comportamento de sua mulher
pouco depois que os ossos chegaram a sua casa. Ela ficou estranhamente
magra, quase emaciada, e começou a demonstrar um interesse mórbido
pelos restos mortais guardados no esquife. Então, certa noite, quando
achava que ela estava na cama dormindo, Gray a encontrou remexendo no
cadeado com um formão. Quando tentou tirar a ferramenta dela, ela tentou
acertá-lo brutalmente, antes de dar o golpe final no cadeado, quebrando-o e
fazendo-o cair ao chão em dois pedaços. Antes que pudesse detê-la, ela
havia escancarado a tampa e revelado o conteudo do esquife: velhos ossos
marrons retorcidos sobre si mesmos com pedaços de pele esfarrapada ainda
colada a eles e um crânio quase igual ao de um réptil ou de um pássaro,
estreito e alongado, retendo ainda traços de humanidade semidesenvolvida.
Então, segundo Gray, os ossos se mexeram. Foi apenas uma coisa leve
no início, um leve tremor que poderia ser os ossos se acomodando depois
da subita perturbação, mas rapidamente o movimento se tornou mais
pronunciado. Os dedos se estenderam, como se movidos por musculos e
tendões invisíveis e então os dedos dos pés tamborilaram suavemente
contra os lados do esquife. Finalmente o crânio girou sobre suas vértebras
expostas e aquelas mandíbulas em forma de bico se abriram e fecharam
com um leve dique.
A poeira no esquife começou a se erguer e os restos mortais foram logo
cercados por um vapor avermelhado. Mas o vapor não vinha do esquife,
mas da própria mulher de Gray, emergindo de sua boca numa torrente,
como se o seu sangue tivesse virado pó e agora fosse arrancado de suas
veias.
Enquanto ele observava, ela ia ficando cada vez mais magra, a pele do
seu rosto amarrotando-se e rasgando como papel, seus olhos crescendo
como se a coisa no esquife tivesse sugado a vida dela. Através da névoa,
Gray teve uma visão do mais aterrorizador rosto se reconstituindo. Olhos
verdes-negros redondos o devoraram avidamente, a pele de pergaminho
transformou-se de cinza num preto escamado e as mandíbulas em forma de
bico abriram e fecharam com um som como o de ossos estalando enquanto
aspirava o ar. Gray sentiu o seu desejo, sua crua carência sexual. A coisa o
consumiria e ele seria gratificado por seus apetites, mesmo quando suas
garras o dilacerassem, seu bico o cegasse e seus membros o envolvessem
num abraço final. Sentiu a si mesmo reagindo, aproximando-se cada vez
mais do ser que emergia, justo quando uma fina membrana deslizou através
dos olhos da criatura, como o piscar de um lagarto, e o seu encanto foi
brevemente rompido.
Gray recuperou-se e mergulhou sobre o esquife, fechando a tampa com
força sobre a cabeça da criatura. Podia sentir o ente maligno debatendo-se e
contorcendo-se lá dentro enquanto ele pegava o formão e o enfiava através
das alças da fechadura, fechando e trancando o esquife. O vapor vermelho
desapareceu instantaneamente, os embates da coisa diminuíram e, enquanto
ele observava, sua querida mulher retorceu-se no chão e deu o seu último
suspiro.
Só havia uma página restante na narrativa e ela detalhava as origens da
bizarria arquitetônica: a escavação de seus profundos alicerces, a colocação
do esquife bem no fundo e a construção da bizarria sobre ela num esforço
para conter Lilith para sempre. Era uma história ridícula, naturalmente.
Tinha de ser. Era uma fantasia, a tentativa de Gray de assustar os
empregados ou de ganhar uma menção em alguma revista de terror barata.
No entanto, deitado ao lado de Eleanor naquela noite, não dormi e senti
nela um estado de vigília que me deixou inquieto.
Os dias que se seguiram pouco fizeram para acalmar meu sentimento de
infelicidade ou para melhorar as relações entre mim e minha mulher. Eu me
vi voltando à história de Gray repetidamente, por mais que me parecesse
uma bobagem no começo.
Sonhava com coisas invisíveis batendo na nossa janela e quando, no
meu sonho, me aproximava da vidraça para verificar a causa do ruído, uma
cabeça alongada emergia da escuridão, seus olhos escuros e predatórios
cintilando avidamente enquanto atravessava o vidro e tentava me devorar.
Enquanto a combatia, podia sentir a forma dos seus seios caídos contra mim
e suas pernas me enlaçavam num arremedo do ardor dos amantes.
Então eu acordava para encontrar um pequeno sorriso no rosto de
Eleanor, como se ela conhecesse meu sonho e ficasse secretamente
gratificada com seu efeito sobre mim.
À medida que ficávamos cada vez mais alienados um do outro, comecei
a passar mais tempo no jardim, ou a caminhar sozinho pelos limites da
minha terra, um pouco na esperança de avistar o visitante anônimo que
tanto se assemelhava ao infeliz J.F. Gray. Foi numa destas ocasiões que vi
uma figura numa bicicleta galgando laboriosamente a colina que leva aos
portões de Norton Hall. O policial Hoves avolumou-se diante de mim —
literalmente, pois era um homem grande e sua considerável cintura,
combinada com o efeito embaçado do calor daquele dia, dava-lhe a
aparência de um grande navio negro aparecendo lentamente no horizonte.
Acabou se dando conta da futilidade do seu esforço continuado para
dominar a colina sobre duas rodas quando a gravidade parecia decidida a
frustrá-lo e desmontou devidamente, carregando a bicicleta do seu lado no
percurso restante até os portões.
O guarda Morris era um dos dois policiais lotados no pequeno posto em
Ebbingdon, a aldeia mais próxima de Norton Hall. Ele e o sargento local,
Ludlow, tinham a responsabilidade de manter a ordem não só em
Ebbingdon, mas nas aldeias vizinhas de Langton, Bracefield e Harbiston,
bem como nas áreas das redondezas, uma tarefa que cumpriam usando uma
combinação de uma única viatura policial dilapidada, um par de bicicletas e
a vigilância da população local. Eu só havia falado com Ludlow em poucas
ocasiões e o achava um homem taciturno, mas Morris era um visitante
regular na estrada que levava à nossa propriedade e era mais inclinado a
gastar um momento ocioso para conversar (e recobrar o fôlego) do que o
seu superior.
— Dia quente — comentei. O policial Morris, com o rosto vermelho
dos seus esforços, enxugou a testa com a manga da camisa e concordou
que, sim, era um dia infernal.
Ofereci-lhe um copo de limonada caseira, se desejasse me acompanhar
até a casa, e ele prontamente aceitou. Falamos de questões locais no curto
trajeto do portão e o deixei junto à bizarria enquanto ia até a cozinha para
servir a limonada num copo. Eleanor não estava à vista, mas eu podia ouvi-
la movimentando-se no sótão da casa, fazendo um barulho terrível enquanto
jogava de lado caixas e caixotes espalhados. Preferi não perturbá-la com a
notícia da chegada de Morris.
Do lado de fora, o policial caminhava ociosamente ao redor da bizarria,
as mãos enlaçadas atrás das costas. Dei-lhe a limonada, o gelo tilintando
ruidosamente no copo, e observei-o sorver um longo trago. Havia grandes
manchas de suor debaixo dos seus braços e em suas costas, um azul mais
escuro contra o tom mais leve da sua camisa, como um mapa de relevo dos
oceanos.
— O que acha disto? — perguntei a ele.
— Muito boa — respondeu, acreditando que eu me referia à limonada.
— Exatamente o que o médico recomendou para um dia como o de hoje.
Eu o corrigi.
— Não, eu falava da bizarria.
Morris mudou ligeiramente os pés de apoio e baixou a cabeça.
— Não é bem da minha área, não sei o que falar, Sr. Merriman —
respondeu. — Não posso dizer que seja um entendido em tais assuntos.
— Entendido ou não, deve ter a sua opinião.
— Para ser franco, senhor, não dou grande importância à coisa. Nunca
dei.
— Parece que foi exposto a ela em mais de uma ocasião — falei.
— Por algum tempo — disse, meio cauteloso. — O Sr. Ellis... Fugiu da
questão. Esperei. Estava ansioso para interrogá-lo mais, mas não queria que
pensasse que eu estava interessado apenas em mexerico ocioso.
— Ouvi dizer — falei finalmente — que sua mulher desapareceu e que
o pobre homem se matou pouco depois.
Morris tomou outro gole de limonada e olhou atentamente para mim.
Era fácil subestimar um homem desses, pensei: sua falta de jeito, seu peso,
seus embates com a bicicleta, eram todos cômicos, à primeira vista. Mas o
policial Morris era um homem astuto e o fato de não ter progredido na
carreira não se devia a nenhuma deficiência no seu caráter ou no seu
trabalho, mas a seu próprio desejo de ficar em Ebbingdon e cuidar daqueles
ao seu encargo. Agora era minha vez de trocar o pé de apoio sob o seu
olhar.
— É a história que corre — disse Morris. — Eu ia dizer que o Sr. Ellis
não gostava muito desta bizarria também. Queria demolila, mas então as
coisas mudaram para pior e, ora, o senhor sabe o resto.
Mas é claro que eu não sabia. Eu só sabia o que ouvira através dos
mexericos locais e mesmo isso me fora dispensado, como um recém-
chegado, em doses cuidadosamente medidas. Contei a Morris que fora
assim e ele sorriu.
— Mexericos com discrição — comentou. — Nunca ouvi coisa
parecida.
— Tenho consciência de como as coisas são em pequenas aldeias —
falei. — Imagino que eu poderia deixar netos que ainda seriam encarados
com uma certa desconfiança.
— Tem filhos então, senhor?
— Não — respondi, incapaz de ocultar uma ponta de remorso da minha
voz. Minha mulher não era particularmente maternal e a natureza parece
que concordou com essa avaliação.
— É uma coisa estranha — disse Morris, sem dar nenhuma indicação de
que notara a alteração no méu tom. — Há muitos anos que não se vêem
crianças em Norton Hall, não antes do Sr. Gray. O Sr. Ellis também não
tinha filhos.
Não era um tópico que eu desejasse prosseguir, mas a menção do Sr.
Ellis me permitiu conduzir a conversa para águas mais interessantes e
aproveitei a oportunidade um pouco avidamente demais.
— Dizem, isto é, ouvi dizer que o Sr. Ellis talvez tivesse assassinado
sua mulher.
Imediatamente fiquei embaraçado por falar tão bruscamente, mas
Morris não pareceu se incomodar. Na verdade, pareceu apreciar minha
franqueza ao comentar o assunto tão abertamente.
— Houve essa suspeita — admitiu. — Nós o interrogamos e dois
detetives vieram de Londres para investigar, mas foi como se ela tivesse
desaparecido da face da Terra.
Demos busca em toda a propriedade e em todos os campos e terras das
redondezas, mas nada encontramos. Houve rumores de que ela teria um
amante em Brighton, por isso nós o localizamos e interrogamos também.
Contou-nos que não a vira há várias semanas, se é que se pode confiar na
palavra de um homem que dorme com a mulher de outro. Finalmente,
tivemos de deixar toda a história em paz. Não havia nenhum corpo e, sem
um corpo, não havia assassinato. Então o Sr. Ellis se matou com um tiro e
as pessoas chegaram a suas próprias conclusões sobre o que poderia ter
acontecido com sua mulher.
Sorveu o resto da sua limonada e me passou o copo vazio. — Obrigado
— falou. — Foi muito refrescante.
Eu lhe disse que era sempre bem-vindo e o observei enquanto se
preparava para montar em sua bicicleta de novo.
— Policial?
Fez uma pausa nos seus preparativos.
— O que acha que aconteceu com o Sr. Ellis?
Morris sacudiu a cabeça.
— Não sei, senhor, mas uma coisa eu sei. Susan Ellis não pisa mais
sobre esta terra. Está debaixo dela.
E, dito isso, partiu na sua bicicleta.

Na semana seguinte eu tinha negócios em Londres que não podiam ser


adiados. Peguei o trem e passei um dia muito frustrante discutindo questões
financeiras, frustração agravada por uma sensação de inquietude crescente,
de modo que meu tempo em Londres foi passado com apenas uma fração da
minha atenção concentrada em minhas finanças e o restante devotado à
natureza do mal que parecia ter maculado Norton Hall. Embora não fosse
um homem supersticioso, eu estava cada vez mais preocupado com a
história do nosso novo lar. Os sonhos me assolavam com regularidade
crescente, acompanhados sempre pelo som de garras batendo na vidraça e
mandíbulas estalando e, às vezes, pela visão de Eleanor debruçada sobre
mim quando eu conseguia acordar, seus olhos brilhantes e cientes, as maçãs
do rosto ameaçando irromper como lâminas de punhal através da pele tensa
do seu rosto. O relato que Gray fizera de suas viagens também sumira
misteriosamente e quando perguntei a Eleanor se ela o vira senti que mentia
para mim ao negar qualquer conhecimento do seu paradeiro. Tanto o sótão
como o porão eram uma confusão de caixas remexidas e papéis
descartados, o caos desmentindo as alegações de minha mulher de que
estava meramente "reorganizando" nossos aposentos.
Finalmente, houve mudanças perturbadoras nos aspectos mais íntimos
de nossa vida conjugal. Tais questões deveriam ficar entre um homem e sua
mulher, mas basta dizer que nossas relações se tornaram mais frequentes —
e, pelo menos da parte da minha mulher, assumiram maior ferocidade — do
que jamais tínhamos experimentado.
Agora chegáramos a um ponto em que eu até receava apagar a luz e
comecei a me afastar do quarto de dormir até bem tarde da noite na
esperança de que Eleanor pudesse estar adormecida quando finalmente
ocupava meu lugar ao seu lado.
Mas Eleanor raramente estava adormecida e seus apetites eram terríveis
e insaciáveis.

Estava escuro quando voltei para casa naquela noite, mas ainda podia
ver as marcas deixadas pelos veículos sobre o gramado e um tremendo
buraco onde a bizarria costumava ficar. Os restos da construção jaziam num
monte de concreto e chumbo no cascalho ao lado da casa, deixado ali pelos
homens responsáveis pela demolição, a penuria das suas fundações agora
claramente revelada, pois a estrutura em si era apenas um fingimento, um
meio de cobrir o poço que jazia abaixo dela. Uma figura estava na beira do
buraco, uma lanterna na mão. Ao virar-se para mim, ela sorriu, um sorriso
espectral carregado, parecia-me, de pena e maldade.
— Eleanor! — gritei. — Não!
Mas era tarde demais. Ela virou-se e começou a descer uma escada, a
luz rapidamente desaparecendo de vista. Deixei cair minha maleta e corri
através do gramado, o peito arquejando e um pânico crescente me
apertando as vísceras, até que cheguei à borda do buraco. Eleanor raspava a
terra com as mãos nuas, lentamente revelando a figura retorcida de um
esqueleto de mulher, os restos ainda cobertos por um vestido cor-de-rosa
esfarrapado e eu soube instintivamente que esta era a Sra. Ellis e que o
policial Morris estava certo em suas suspeitas. Ela não fugira do marido.
Fora, sim, enterrada aqui por ele, depois que ela penetrou no fundo da
bizarria, e ele a matou, e depois a si mesmo, num acesso de horror e
remorso. O crânio da Sra. Ellis estava levemente alongado ao redor do nariz
e da boca, como se alguma medonha transformação tivesse sido
interrompida por sua morte subita.
A esta altura, as unhadas de Eleanor tinham revelado um pequeno
esquife, escuro e ornamentado. Desci a escada atrás dela que pegava um pé-
de-cabra e estourava o grande cadeado que Gray colocara no esquife antes
de enterrá-lo. Eu estava nos últimos degraus da escada quando um som... se
ouviu e, com um grito de triunfo, Eleanor escancarou a tampa. Lá,
justamente como Gray havia descrito, estavam os restos retorcidos
encimados por um crânio estranho e alongado. Já a poeira começava a se
levantar e um fino jato vermelho de vapor emergia da boca de Eleanor. Seu
corpo se convulsionou, como se fosse sacudido por mãos invisíveis. Seus
olhos se esbugalharam nas órbitas e suas faces pareciam ser sugadas para
dentro da boca aberta, os contornos do crânio claramente visíveis debaixo
da pele. O pé-de-cabra caiu de suas mãos e eu o agarrei. Empurrando-a para
o lado, ergui a ferramenta acima de minha cabeça e parei diante do esquife.
Um rosto cinza-enegrecido com grandes olhos verde-escuros e orifícios no
lugar das orelhas olhou para mim e suas aguçadas mandíbulas em forma de
bico estalaram enquanto partia para cima de mim. Garras se aferraram às
bordas da sua prisão enquanto a criatura tentava se erguer e seu corpo era
uma zombaria de tudo o que é bonito numa mulher.
Seu hálito cheirava a coisas mortas.
Fechei os olhos e golpeei. Algo gritou e o crânio quebrou-se com um
som oco e umido como a abertura de um melão. A coisa caiu para trás,
sibilando, e fechei a tampa com força. Aos meus pés Eleanor jazia
inconsciente, os traços finais do vapor vermelho coleando lentamente por
entre seus dentes. Assim como Gray fizera antes, peguei o pé-de-cabra e o
usei para travar a fechadura. De dentro do esquife vinham batidas furiosas e
o pé-de-cabra era sacudido instavelmente na sua posição.
A coisa gritou repetidamente, um som longo e agudo como os guinchos
de porcos num matadouro.
Coloquei Eleanor sobre meus ombros e, com alguma dificuldade, subi a
escada até o chão acima, o ruído surdo das batidas no caixão lentamente se
apagando. Levei-a de carro até Bridesmouth, onde a coloquei sob os
cuidados do hospital local. Ficou inconsciente durante três dias e não
lembrava nada da bizarria ou de Lilith quando acordou.
Enquanto ela estava no hospital, organizei as coisas para que
voltássemos permanentemente para Londres e para que Norton Hall fosse
lacrado. E, então, numa tarde luminosa, assisti ao fechamento do buraco no
gramado com cimento reforçado por aço. Mais cimento foi derramado no
buraco, três caminhões inteiros, até o buraco ficar quase cheio. Então os
operários começaram a tarefa de construir uma segunda bizarria para cobrir
o buraco, maior e mais ornada do que a sua predecessora. Custou-me a
renda de meio ano, mas eu não tinha duvida de que valeu a pena.
Finalmente, enquanto Eleanor continuava a convalescer com sua irmã
em Bournemouth, observei quando as últimas pedras da bizarria eram
colocadas e os operários começaram a recolher o seu equipamento do
gramado.
— Quer dizer que a patroa não gostou da outra bizarria, Sr. Merriman?
— disse o mestre-de-obras, enquanto víamos o sol se pôr sobre a nova
estrutura.
— Creio que não combinava muito com o gosto dela — respondi.
O mestre-de-obras me lançou um olhar intrigado. — São criaturas
engraçadas, as mulheres — continuou finalmente. — Se pudessem fazer
tudo o que queriam, mandariam no mundo.
— Se pudessem fazer tudo o que queriam — ecoei. Mas não o farão,
pensei. Pelo menos não no que depender de mim.

***
A mil quilômetros de lugar nenhum
Lorenzo Carcaterra

O homem alto estava sentado com as costas apoiadas na janela de vidro


grosso. Seus olhos estavam fechados, três dedos da mão direita segurando
uma garrafa long-neck de cerveja morna. Num rádio que murmurava em
algum lugar a distância, as Dixie Chicks se esforçavam cantando "Give It
up or Let Me Go". Ele respirou fundo e passou a mão livre pelo topo do
joelho esquerdo, tentando aliviar a dor que anos demais de remédios e três
operações não haviam conseguido diminuir. Estava cansado, sem paciência
de esperar mais uma tempestade de neve no inverno, o barulho do que há
apenas algumas horas fora um movimentado terminal de aeroporto estava
reduzido ao som baixo das equipes de limpeza varrendo e o sono
intermitente dos passageiros presos pelo mau tempo.
Já deveria ter chegado a Nashville há quatro horas, com o serviço
terminado há três e estar na metade de um jantar com costela defumada e
feijão cozido. Em vez disso continuava ali, sentado nos fundos de um bar
cujo nome não sabia, atendido por um barman de meia-idade que se
importava menos com sua próxima cerveja do que ele com o jogo de
lacrosse passando numa televisão sem som, acima. O homem alto abriu os
olhos, virou a cabeça e olhou pelo vidro marcado pela água escorrida.
A neve descia em ângulo, flocos grossos se amontoando em pistas
silenciosas e contra as rodas de jatos Boeing impossibilitados de decolar.
Uma equipe de terra estava borrifando espuma amarela num jato da
American Eagle, numa tentativa inutil de impedir os motores de congelar
em meio ao vento implacável. O homem alto se virou de costas para a
janela e levantou a garrafa de cerveja, terminando-a em dois goles
compridos.
Esta noite não haveria voos.
— Pode me culpar, se tiver vontade — disse a voz da mulher. —
Acontece toda vez que viajo de avião. Saio de casa e o tempo ruim vai
atrás.
Ela estava de pé diante da janela comprida, olhando os flocos pousarem
e deslizarem pelo vidro grosso, uma sacola cinza encostada nos bicos das
botas pretas, cabelo louro comprido escondendo metade do rosto. Um
casaco de couro preto ia até o joelho e fazia pouco para disfarçar seu corpo
esguio, em boa forma. A voz era macia como algodão e a pele branca
brilhava à luz das lâmpadas fracas enfileiradas no salão e dos pesados
holofotes que iluminavam as pistas lá fora.
— Compense isso para mim — disse o homem alto. Ela se virou para
olhá-lo, os olhos escuros soltando um brilho vermelho, um gato apanhado
no clarão de uma lanterna.
— Como?
— Deixe-me pagar uma bebida para você. Graças ao clima que você
trouxe parece que há pouca coisa a fazer além de esperar. E não estou com
muita vontade de ler o jornal... de novo.
A mulher chutou a sacola de lado e desabotoou o casaco de couro.
Jogou o casaco numa cadeira vazia entre os dois, afastou mechas de cabelo
dos olhos, puxou uma cadeira e se sentou diante do homem alto.
— Bourbon — disse ela. — E um copo d'água gelada com limão à
parte.
O homem alto deu um leve sorriso, empurrou a cadeira para trás, pegou
a garrafa de cerveja vazia e foi para o bar. A mulher o olhou se afastando e
depois se virou para a tempestade furiosa, com redemoinhos de pó e
partículas de gelo dançando em círculos sob as luzes quentes.
— Você vai ter de se virar com casca de limão — disse o homem alto
colocando as bebidas do lado da mesa onde ela estava.
Sentou-se de novo e inclinou uma garrafa suada de Heineken na direção
dela. — Saude — disse com um sorriso e uma piscadela, e tomou um gole
comprido da cerveja gelada.
A mulher assentiu e tomou um gole de bourbon, recebendo o calor
familiar na garganta e no peito como se fosse um velho amigo. Recostou-se
e olhou o homem alto do outro lado da mesa. Ele teria uns quarenta e tantos
anos e estava em forma, a parte superior do corpo dura e cinzelada pela
malhação diária, a camisa J.Crew branca, de botões, apertada nos braços e
no pescoço. O rosto era bronzeado e bonito, destacado por olhos gregos cor
de azeitona e cabelos escuros e fartos. Os gestos e movimentos eram
deliberados, jamais apressados, a linguagem corporal calma e livre de
tensão, hábitos de um homem à vontade na própria pele.
— Para que cidade você não vai esta noite? — perguntou ele.
— Los Angeles. — A mulher olhou para o relógio Tiffany de prata em
seu pulso fino. — Se o céu estivesse limpo, eu já estaria no LAX há vinte
minutos.
— O que há por lá?
— Calor, palmeiras, astros de cinema e um oceano onde se pode nadar.
— O que há para você? — perguntou ele inclinando-se para perto, a
garrafa de cerveja ainda na mão direita.
— Tudo isso. Além de uma casa onde posso andar até a praia, um carro
que adora morros sinuosos e dois gatos que sempre ficam felizes em me
ver.
— A praia, um carro e dois gatos. Isso em geral significa nada de filhos
nem de marido.
— Não se pode ter tudo.
— Depende do que você queira que seja o tudo.
— O que é, para você?
O homen tomou um gole de cerveja e deu de ombros.
— Neste momento, isto. Ter uma cerveja, estar sentado diante de uma
mulher linda num aeroporto vazio. Estar no momento e desfrutar dele. Não
ter de me encolher num canto e esgotar uma bateria de celular para dizer
adeus e causar impressão a filhos que nunca vejo o suficiente ou ouvir uma
mulher reclamar de algo que eu nem sabia que era problema e não me
importa a mínima se é. Nada de hipoteca, contas, preocupações. Viver do
mesmo modo como viajo. Com pouca bagagem.
— Você precisa de dinheiro para viver assim. E um emprego ou um pai
rico para fornecer o dinheiro. Qual dos dois?
— Se vou abrir meu coração, seria legal saber para quem é — disse o
homem revelando um sorriso bonito.
— Pode me chamar de Josephine. Mas eu não gostaria muito. Até
quando minha mãe falava esse nome eu me encolhia. A maioria das pessoas
com quem falo simplesmente me chamam de Joey. Desse jeito fica mais
fácil para todo mundo.
— Conheci uma freira chamada Josephine. Ela também não parecia
gostar do nome. Então é Joey.
— E de quem é o coração que vai ser aberto para Joey? — perguntou a
mulher, mais com um risinho do que um sorriso atravessando os lábios, o
copo de bourbon seguro perto da boca.
— Sou Frank. O mesmo nome de meu pai e meu avô. Minha família
gostava de manter as coisas simples.
— E você também, baseado no que ouvi até agora — disse Joey.
— Bastante — respondeu Frank. — Geralmente não há recompensa
quando a gente aumenta a complicação.
— Isso nem sempre é fácil de conseguir.
— Mais motivo ainda para não colocar a nossa no bolo. Sempre há
alguém, em algum lugar, ansioso para complicar alguma coisa simples. E
para isso que essas pessoas vivem, e é isso que me esforço ao máximo para
evitar.
— Na minha linha de trabalho nós as chamamos de advogados de
defesa e juízes.
— É isso que você faz em L.A., quando não está na praia ou em casa
com os gatos? Exerce o direito?
— Não preciso exercer muito — disse Joey. — Praticamente já peguei
tudo que preciso saber.
— O que significa que você é boa.
— O que significa que sou muito boa.
— O que é má notícia para os bandidos, acho — disse Frank engolindo
o resto de espuma da cerveja.
— Não se eles encobrirem seus rastros. — A voz de Joey estava calma e
casual. — Mas a maioria não encobre, motivo pelo qual acabo conhecendo-
os, para começar.
A não ser que cometam o crime perfeito, o crime absolutamente
perfeito, terão de me olhar falando sobre eles num tribunal.
— Você já encontrou algum? um crime perfeito?
— Já ouvi falar de alguns. — Joey tomou um gole comprido de seu
bourbon, enxugando a última gota do lábio com a língua, e respirou fundo e
devagar. — Mas só vi um.
— Foi um dos seus? Joey balançou a cabeça.
— Eu ainda estava na faculdade de direito. No primeiro ano. Uma
garota foi morta no quarto. O apartamento ficava no segundo andar de um
prédio de cinco andares, sem elevador. Não houve invasão, nem pela porta
da frente nem por nenhuma janela. Nada foi roubado, não faltava nada, não
havia impressões, nem DNA, nem cartuchos de bala. Só uma garota morta e
três balas.
— E você acha que foi isso que o tornou perfeito? — perguntou Frank
empertigando-se e se inclinando para perto de Joey. — Não é necessário ser
um gênio para saber que não se deve deixar impressões, DNA ou cartuchos.
Qualquer um que tenha assistido a muitos seriados policiais ou leia muitos
romances jurídicos pode sacar isso.
— Está certo. O que o tornou perfeito é que o criminoso nunca foi
apanhado.
— Os policiais dão pouco ou muito tempo a um caso segundo acham
que ele merece. São como vendedores de carros. Não procuram vender
todos os carros do pátio, só a quantidade que lhes permita manter o
emprego.
— Parece que você já pensou um bocado nisso.
— Na verdade, não. Sou apenas uma dessas pessoas que assistem a
muitos seriados policiais e leem muitos romances jurídicos.
— Eu consegui pegar a ficha do caso dela. Os policiais fizeram um
trabalho bem detalhado, mas não tinham muito com que trabalhar. O
assassinato aconteceu no meio do dia, quando a maioria dos inquilinos
estava fora, trabalhando, na escola, numa academia de ginástica ou fazendo
compras. Ela não morava há muito tempo no apartamento, por isso não
tinha muitos amigos no prédio.
— Como ele entrou? Ou, devo perguntar, como você acha que ele
entrou?
— Não é preciso invadir um lugar para entrar. Ela poderia conhecê-lo,
coisa que duvido. Poderia tê-lo deixado entrar porque ele a forçou, mas
também não creio que seja o caso.
— E o que a Sherlock Holmes de Los Angeles acha que aconteceu? —
perguntou Frank, agora com o sorriso mais frio, os olhos fixos no rosto de
Joey.
— Acho que ele conhecia a rotina dela. A que horas ela acordava. A
que horas ia correr e quanto tempo corria. Qual era o horário de aulas e em
que prédios eram.
Ele a estudou. Fez questão de conhecê-la, sem jamais ter de encontrá-la.
— Se ele fez tudo isso, deve ter tido um motivo. Ou outra pessoa lhe
deu o motivo.
— Os motivos são sempre bem fáceis de encontrar assim que a gente
deduz o melhor local para procurar.
— E o que você conseguiu? Assim que deduziu onde procurar?
— Que alguém pagou para matá-la — disse Joey com os dedos
acariciando o copo d'água.
— Se você cavou o bastante para saber disso, sabe por que ele fez. O
que você encontrou? Era pessoal ou tinha a ver com negócios? Joey
terminou de beber sua água e empurrou o copo vazio na direção de Frank.
— Para começar, eu vivo com sede. Falar me deixa mais sedenta ainda.
Quer outra rodada? É minha vez de pagar.
— É você que está contando a história — disse ele ficando de pé e indo
para o balcão. — Eu forneço a bebida.
Ela o olhou encostar-se no balcão e esperou até que o barman se
abaixasse para pegar outra cerveja e depois enchesse dois copos vazios, um
com bourbon e outro com água e gelo.
— Ela gosta de limão na água — ouviu Frank dizer.
— E eu gostaria de ir para casa — disse o barman, largando três cascas
de limão retorcidas dentro do copo d'água.
— É a última chance. Se quiser mais alguma coisa, peça agora. Vou
fechar em vinte minutos.
— Por que a pressa? Nenhum avião vai sair daqui até de manhã, se é
que vai sair.
— Mas meu carro vai — disse o barman. — Em vinte minutos.
Frank pousou o copo na mesa.
— Antigamente ser barman era melhor do que ser psiquiatra — disse
ele. — Eles se interessavam mais, ou pelo menos ouviam como se tivessem
interesse. Acho que descobrimos um que faltou a essa aula no curso de
barman.
— Talvez ele seja um dos sortudos. Talvez tenha alguém em algum
lugar esperando e preocupado.
Frank se virou para olhar o barman, aninhando a cerveja nas duas mãos.
— Não acho. Acho que você e eu somos toda a companhia que ele vai
ter esta noite.
— Algumas pessoas aprendem a viver sem companhia. Ou família.
Como você.
— Ajuda manter tudo simples — disse Frank olhando de volta para ela,
pousando a cerveja na beira da mesa. — As coisas podem se complicar
muito depressa, praticamente sem motivo, no segundo que você deixa
outras pessoas atravessarem seu radar.
— Não o incomoda viver desse jeito?
— Não sei. Como você acha que eu vivo?
— Você viaja de cidade em cidade e de serviço em serviço — disse Joey
com ar de confiança. — O trabalho paga bastante bem, a julgar pelas roupas
que está usando e pela passagem de primeira classe no bolso da camisa.
— Se você vai se incomodar em gastar tempo com alguma coisa,
garanta que ela pelo menos pague pelo incômodo.
— Mas o seu trabalho não é para ninguém. Pelo menos é o que acho.
— Poucos são.
— Mas deve ter suas recompensas. Todos os bons trabalhos têm.
— Quais são as suas? O que há em ser uma promotora, que faz você
sair da cama de manhã?
— A possibilidade de fazer a coisa parar. Nem que seja para alguns
poucos sortudos.
— Fazer que coisa parar?
— O mal que está do outro lado da mesa. E a dor sentida pelos
inocentes que se sentam ao meu lado no tribunal todo dia, em cada
processo.
O rosto muda a cada julgamento, mas todos me parecem ser o mesmo.
Nem preciso vê-los para saber o que estão sentindo, o que estão pensando,
todos os seus desapontamentos, todas as lágrimas derramadas.
— Colocar um cara numa cela faz com que todos eles se sintam
melhor? — perguntou Frank.
— Na verdade, não. Mas acho que não torna pior conviver com a dor
que sentem por perder alguém que amam. Um crime cometido contra
alguém é sempre uma lembrança compartilhada por muitos.
— Falou mais como vítima do que como advogada.
— Algumas vezes podemos ser as duas coisas.
— Alguma vez você pensa no cara que está no outro lado da mesa? O
cara que você parece tão ansiosa em trancafiar?
— Todo dia. Nos que ajudei a condenar e nos que não pude, e no que
nunca tive chance de levar a julgamento.
— O que você vê quando olha para lá? Alguma vez se dá ao trabalho de
olhar para além dos olhos duros, do corpo malhado na prisão e das mãos
chapadas sobre a mesa de madeira?
— E se eu olhasse? O que veria?
— Depende de quem seja e do que você está procurando. Se estiver,
procurando pena, vai encontrar logo. Todo cara de macacão laranja tem
uma história triste que está ansioso para contar ou vender. Mas se você for
procurar os motivos pelos quais um cara acaba sentado perto de um
advogado a quem não pode pagar, então talvez descubra algo a mais do que
uma história triste do outro lado.
— Isso bastará para fazer com que eu esqueça a vítima? — perguntou
Joey. — Ou que eu perdoe o que foi feito?
— Não se você não quiser. — Todas essas histórias não são mais ou
menos a mesma? Infância abusiva, pais ausentes ou metidos com drogas, se
forem viciados, o crime como a única porta que resta aberta para eles.
Deixei alguma coisa de fora?
— Isso é verdade em nove de cada dez vezes.
— E a décima vez?
— É um bom disfarce para um cara que veio de um lar sólido e uma
família amorosa. Ele frequentou a melhor escola de sua região, jogou
beisebol e futebol na liga infantil e sentava ao lado da mãe todo domingo na
igreja. Tirava boas notas e trabalhava em meio expediente depois da escola,
e com isso podia comprar seus gibis e figurinhas.
— Parece ideal — disse Joey, segurando a bebida perto do rosto, com o
cotovelo na borda da mesa.
— É o modo de vida americano. Mas só se você avaliar pelo que vê na
superfície. Você não vai querer descer abaixo disso.
— E se eu quiser? O que acontece?
— Então talvez veja um conjunto de imagens das quais não vai gostar.
Verá uma mãe usando maquiagem demais numa reunião de pais e
professores para encobrir a bebedeira da noite anterior. Verá um pai que faz
hora extra e viaja longas distâncias a negócios dos quais ninguém fala. Verá
três pistolas carregadas, guardadas na gaveta do meio da escrivaninha do
quarto dele e sacos cheios de notas muito bem dobradas escondidas no
sótão sob uma pequena montanha de edredons de inverno.
— E como isso tudo leva a pessoa a ponto de tirar a vida de outra e não
se importar com isso?
— Esse tipo de vida endurece você. Ensina a manter enterrado tudo que
poderia chegar perto do ponto em que você se importa com alguém. Antes
que sua pele tenha chance de clarear você já aprendeu que as pessoas nunca
são quem dizem que são e que até mesmo a pessoa mais inocente esconde
algum tipo de culpa por baixo. Falando em termos simples, torna muito
fácil não se importar. Com nada e com ninguém.
— Isso inclui as vítimas que são deixadas para trás?
— Especialmente elas. Elas precisam permanecer como sempre
deveriam permanecer. Invisíveis. De fato, se você estiver realmente no
jogo, elas desaparecem no segundo em que o serviço foi feito e ficam fora
da linha de visão. E o nome delas se torna tão fácil para você esquecer
como o tempo que fez ontem. Elas se tornam, lá nas ruas, o que o réu se
torna para alguém como você num tribunal. Um rosto que você tenta afastar
e esquecer.
Joey tomou metade de seu bourbon num só gole, a mão direita tremendo
ligeiramente, irritada pela primeira vez desde que tinha se sentado. Era
muito mais fácil manter as emoções sob controle dentro do tribunal. Lá era
ela que segurava os controles, ou pelo menos sentia-se desse modo. Fazia as
perguntas e esperava receber respostas que queria e precisava escutar. Mas
era muito diferente nos recessos de um bar quente e abafado, a quilômetros
de qualquer palácio de Justiça. O sujeito duro do outro lado da mesa era um
inimigo mais bem equipado do que qualquer um que ela encontrara em
todos os seus anos no tribunal. Era rápido em sentir seus pontos sensíveis e
mais rápido ainda em golpeá-los. E, mais do que qualquer coisa, sentia
prazer com o debate, sem medo diante das perguntas e das respostas
exigidas.
Joey tomou mais um gole, pousou o copo de novo na mesa e massageou
a tensão na base da nuca. Olhou para Frank e pegou-o encarando-a.
— Acho que é isso que acontece quando a gente fica presa pela neve —
disse ela, tentando melhorar o clima um pouquinho, ansiosa para assumir de
novo o controle da conversa.
— Tempo ruim e cerveja gelada — disse Frank, erguendo a garrafa
quase vazia. — Combinação mortal.
— Você seria um bom advogado.
— Você não deduziria isso pelo modo como me visto. Devo ter feito
alguma coisa idiota para lhe dar essa ideia.
— Você defende seu caso bem. Argumenta mas fica longe da emoção.
Mantém tudo sob controle. Frequentemente esse é o único modo de sair
vitorioso.
— Isso não é verdade somente para os advogados. Serve praticamente
para qualquer profissão em que posso pensar, as boas e as ruins. Há
algumas linhas de trabalho em que demonstrar emoções, deixar o coração
vencer o cérebro na corrida para a boca, pode matar a gente mais depressa
do que uma bala.
— Mas só os melhores podem atuar num nível tão alto — disse Joey,
sentindo que estava de volta ao jogo ofensivo, com uma perna cruzada
casualmente sobre a outra.
— E até os melhores perdem essa vantagem, nem que seja por um
minuto. E nesse momento o preço a ser pago é sempre alto. — Se você for
o melhor, quero dizer, realmente o melhor, e não somente pensa ou diz que
é, não importando o que fizer, você não pode se dar ao luxo de perder.
Jamais. Em algumas linhas de trabalho uma perda é tudo que você pode ter.
— Mas acontece. Não importando o quanto a gente planeje, o quanto se
prepare, não importando o quanto a gente se ache preparada, o quanto seja
boa. Acontece.
— Talvez num tribunal ou num ringue de boxe — disse Frank. — A
sorte pode penetrar em você nesses lugares. Mas na maioria das outras
linhas de trabalho, a gente nunca pode abrir espaço para erros ou sorte.
— A não ser que a sorte seja boa — disse Joey, dando um sorriso
caloroso, de novo à vontade, trabalhando dentro de sua área de conforto
auto-imposta.
— Eu jamais conto com a sorte — respondeu Frank com o indicador
batendo na borda da mesa, para dar ênfase. — Não é um risco que valha a
pena correr.
— Que tal isso? Você e eu, sentados aqui, falando um com o outro. Tire
a tempestade e dois voos cancelados e nada disso acontece. Parece sorte.
Pelo menos para mim.
— Sorte, não — disse Frank balançando a cabeça e conseguindo dar um
sorriso débil. — Destino.
— Destino de que nós iríamos nos encontrar?
— Que você iria me encontrar — disse Frank, os olhos dizendo que
sabia quem ela era mesmo antes que ela se sentasse.
Joey se recostou na cadeira, desviou o olhar em direção à tempestade,
cuja furia agora era total.
— Eu sempre soube — sussurrou ela, mas suficientemente alto para que
ele ouvisse. — Nunca achei que não encontraria.
— Eu também — disse Frank encarando-a, olhando para além da
claridade baixa do abajur na mesa. — Sempre soube que você estava por aí,
procurando, fazendo perguntas, nunca a mais do que um, dois passos atrás
de mim.
Joey olhou de novo para Frank e empurrou de lado seu copo d'água.
— Você não tornou a coisa fácil. Toda vez que eu achava estar perto,
você desaparecia, surgia de novo alguns meses depois em alguma outra
cidade, deixando para trás outra pista a ser seguida.
— Parte do que faço implica não ser apanhado — disse Frank dando
ligeiramente de ombros. — Outra parte é saber quem está procurando por
mim.
— Há quanto tempo você sabia? Sobre mim?
Frank engoliu o resto da cerveja e riu, baixinho, o rosto ligeiramente
franzido.
— Provavelmente muito antes de você saber sobre mim. Primeiro lugar
em sua turma, tanto no segundo grau quanto na faculdade. Passou pela
escola de direito como chamas num celeiro velho. Dispensou as grandes
firmas e os dólares maiores ainda, não queria fazer parte desse mundo. Não
era a sua e não a levaria aonde você precisava ir. Ser sócia de uma firma de
advogados não importava. Conseguir prisões era o que queria, e conseguiu
muitas.
— Você poderia ter acabado com tudo — disse ela. — Poderia ter me
apagado do quadro geral. Não seria preciso muita coisa.
— Não havia lucro. E esse fato fazia com que não valesse a pena.
— E qual foi o lucro em matar minha irmã? Joey ficou surpresa em ver
como estava calma, como seu corpo e seus maneirismos estavam relaxados.
Sempre acreditara que esse momento chegaria, mas jamais permitira que o
pensamento a levasse além desse ponto, ao que ela faria quando o momento
se apresentasse, o que diria.
— Alguém achou que ela representava uma ameaça e pagou para
removê-la. Para mim era apenas um pagamento.
— Quanto? Quanto dinheiro minha irmã pôs nos seus bolsos?
— Quinze mil. Mais despesas. Tudo em dinheiro e adiantado. Mais ou
menos a média que você leva para casa quando consegue uma sentença de
vinte e cinco anos em vez da prisão perpétua.
Joey respirou fundo, lutando contra as visões do rosto da irmã,
afastando os sons de seu riso feliz, apagando a visão de suas pinturas
penduradas na entrada da casa dos pais. Engoliu o rugido furioso no
estômago e o ácido que queimava na garganta. Tinha de se manter
emocionalmente distanciada de qualquer sentimento, aliviar a mente da
escuridão sombria de um bar vazio e levá-la para a luz ofuscante de um
tribunal aberto. Tinha a presa na mira, tinha-o no banco de testemunhas,
tinha-o onde ele jamais poderia fugir de novo. Só lhe restava agora, como
fizera tantas vezes, em tantos anos, partir para o bote. Conseguir a
condenação e escutar o veredicto.
— Eles achavam que ela testemunhou um atropelamento com fuga —
disse Joey. — Que ela vira o suficiente para ter uma boa ideia da marca e do
modelo, talvez até uma chance remota de um numero parcial de placa. Mas
estavam errados. Ela estava se afastando do acidente, não ia em direção a
ele. Quando ouviu o estrondo e se virou, a vítima estava caída e morta, e o
carro, a um quarteirão de distância.
— Ela estava no quarteirão — disse Frank. — E foi a única pessoa com
quem os policiais se incomodaram em falar. Era só disso que os clientes
precisavam para fazer contato comigo.
— Um contato que jamais precisaria ser feito. Eles só precisavam pôr as
mãos no relatório da polícia. Minha irmã era o que os policiais chamam de
BSS. Um beco sem saída. Ela não lhes deu nada porque não tinha nada para
dar. Mas esse nada foi mais do que suficiente para marcá-la para morrer.
Uma garota inocente foi escolhida e morta porque algum gângster de Nova
York queria que o filho viciado se livrasse da acusação de assassinato.
— Eu não escolho para quem trabalho. Eles me escolhem.
— Eles o escolhem porque sabem que o serviço será feito. Vai ser limpo
e discreto. E quase impossível de rastrear: você, o dinheiro ou a voz do
outro lado do telefone.
— Não tão impossível. Caso contrário você não estaria aqui sentada.
— Eu me esforcei para encontrá-lo. Fiz disso a minha vida.
— Eu sempre soube que você me encontraria. Todos esses anos soube
que você estava lá e soube que jamais pararia.
— Houve ocasiões em que desejei que você me fizesse parar — disse
Joey com a tristeza delineando a voz. — Que acabasse com isso. Para você
e para mim.
— Eu nunca pensei nisso.
Joey respirou fundo e fechou os olhos por um breve momento. Para ela
esta era sempre a parte mais difícil do interrogatório, fazer as perguntas
curtas, diretas, destinadas a levar a vítima a encarar o juri. Manter as
vítimas vivas, torná-las uma presença num tribunal frequentemente
dominado por um réu charmoso, de boas maneiras, bem comportado, era
sempre a parte mais dolorosa da acusação. "A vítima é uma pessoa que eles
nunca veem que precisam ver", disse-lhe uma vez um velho juiz. "É fácil
demais para o juri esquecer. O trabalho do promotor é manter essa vítima
viva. A solução só pode chegar com um veredicto de culpa e uma
condenação. Nada mais.

O barman desligou a televisão muda e apertou o interruptor das luzes


azuis atrás das fileiras de garrafas de uísque. Olhou para Frank e Joey, seu
rosto de meia-idade cansado e sem expressão. Era baixo, com corpo
atarracado equilibrado por braços largos, uma comprida linha de velhas
tatuagens roxas descendo pelas laterais carnudas.
A cabeça careca brilhava com minusculas gotas de suor e sinais de
oleosidade. Ralph Santo era o tipo de homem que entrava na vida esperando
pouco em troca, e jamais ficava desapontado.
— Por que ela deixou que você entrasse no apartamento? — perguntou
Joey. — Que história você contou para deixá-la confiar a esse ponto?
— Por que não fala o nome dela? — perguntou Frank, respondendo a
pergunta com outra. — Ela não é apenas mais uma vítima. É sua irmã.
— Você não merece ouvir o nome dela — disse Joey, com a voz grave
parecendo um sibilo venenoso.
— A garota tinha bom coração. Como um monte de jovens da mesma
idade. Eu lhe disse que tinha perdido a carteira e precisava dar um
telefonema. Tentar falar com minha namorada e pedir que ela viesse me
pegar.
— Ela confiou em você.
— A maior parte das pessoas confia. Você também teria confiado.
— E se ela não tivesse bom coração? E se simplesmente dissesse não e
continuasse andando, ou se oferecesse para dar dinheiro para o táxi? O que
teria acontecido?
— A coisa nunca chegou a esse ponto. Raramente chega.
— E se tivesse? Você iria matá-la na rua?
— Só se estivesse realmente ansioso para ser apanhado. E não estava.
— Quando ela soube? Que você não queria dar um telefonema?
— Por que está fazendo isso? Você sabe tudo que precisa saber. Deixe
os detalhes de lado. Vai tornar mais fácil viver consigo mesma. Não
importando como esta noite acabar.
— Quando ela soube? — perguntou Joey, a pergunta mais objetiva e
direta desta vez, a raiva quase à tona.
— Estávamos no apartamento e ela me levou à pequena sala de jantar,
virou-se para mim e apontou o telefone. Foi quando viu a arma.
— Ela gritou? Pediu socorro?
— Não.
— Disse alguma coisa?
— Pediu que eu não a estuprasse.
— E foi por isso que você não a estuprou?
— Você sabe que não precisa perguntar isso. Não estuprei porque não
estupro ninguém. Estava lá para fazer um serviço. Fiz e fui embora. Se isso
significa alguma coisa, eu não estava querendo lhe causar nenhuma grande
dor. Fiz o melhor que pude o mais rápido que pude.
— Ela disse alguma coisa antes de morrer?
— Não. Só fechou os olhos e esperou que acontecesse.
— Em algum momento você pensou em não fazer? Ver aquela garota
doce, inocente, estremecendo numa cama, esperando que você cravasse
balas em seu corpo, não o fez simplesmente querer ir embora?
— Que diferença minha resposta faria para você? Não importa o que
pensei ou senti. Só importa o que fiz.
— Você ganhou nome com esse assassinato. Ele o colocou em
evidência. Depois disso os telefonemas vieram constantemente, mais
trabalho do que você poderia fazer.
— Portanto resta o quê?
Joey empurrou a cadeira para trás e se levantou, os olhos chamejando
para Frank.
— A pena de morte. Condeno-o a morrer pelo assassinato de minha
irmã. Não haverá apelações e os vinte anos que se passaram desde que o
crime foi cometido respondem por qualquer protelação de execução que
você poderia ter merecido.
— Só tomei duas cervejas — disse Frank, sorrindo e afastando a dureza
das palavras. — Não é uma grande última refeição.
— Você escolheu o lugar — disse Joey pegando seu casaco de couro
preto.
— Eu, não. Mas eu pago a conta. Um condenado não deveria ter de
pagar por nada além de seu crime. — Você realmente não está seguindo o
procedimento correto. Sempre a considerei fanática pelos detalhes. Mas
aqui estou, condenado a morrer, sem um último banho nem roupas novas.
Ser desmazelada não faz o seu gênero, promotora.
— Tenho de usar o que está disponível — disse Joey jogando o casaco
nos ombros e pegando a bolsa. — Além disso, você não parece precisar de
banho nem de roupas novas. Mas fiz os arranjos para os seus restos mortais.
— Vou ser enterrado ou queimado?
— Isso fica por conta do carrasco. — Ela pegou a bolsa, deu uma última
olhada para Frank e se virou para sair do bar.
— Se ele é profissional, provavelmente vai fazer as duas coisas — disse
Frank, com o olhar não se afastando da mesa.
— Você deve saber disso melhor do que eu — respondeu Joey de
cabeça baixa, indo para a porta aberta do bar.
— Espero encontrá-la de novo, promotora — disse Frank erguendo a
voz um ponto, olhando as costas dela.
Joey parou e largou a bolsa; um som baixo ecoou no bar silencioso e
vazio. Ela baixou a cabeça e fechou os olhos, os dois punhos fechados com
força.
— Acho que não, Frank — disse chamando-o pelo nome pela primeira
vez naquela noite. — Este foi nosso primeiro e único encontro. Tudo
acabou entre nós. O caso está encerrado.
Frank assentiu. Não precisava se virar para saber que fora apanhado no
local perfeito desde que entrara no bar. Não precisou ouvir os passos
abafados vindo em sua direção nem o estalo da nove milímetros que
certamente estava apontada para sua nuca. Sabia que sua corrida havia
terminado.
Olhou para Joey de costas para ele, o corpo imóvel, a cabeça baixa.
Sabia que ela estivera na sua cola durante todos esses anos e imaginava
por que os dois tinham esperado até esta noite para levar o caso ao abrupto
fim. Ficou relaxado e aliviado naqueles poucos momentos silenciosos antes
da primeira bala acertar. Tinha escolhido a vida e agora escolhera o modo
de sair dela. Estava feliz por ter sido Joey, sabia que ela eventualmente
encontraria a coragem para dar o passo seguinte.
Nesse sentido, havia duas pessoas naquele bar naquela noite nevada que
sentiram um peso ser retirado.
Joey ouviu três tiros abafados e, depois, Frank soltar um gemido baixo,
gutural, e escutou um som oco quando a parte superior do corpo dele bateu
na mesa pequena e uma garrafa de cerveja vazia se despedaçou no chão.
Ficou imobilizada, esperando de cabeça baixa enquanto os passos vinham
em sua direção.
— Está feito — ouviu o barman dizer ao lado. — Ele está morto.
— Obrigada.
— Vou limpar o local e me livrar do corpo. Quando a tempestade
amainar ele terá sumido de vez.
— E você também. — Não há lucro em ficar por aqui. Odeio bares e
odeio aeroportos. Este definitivamente não é o meu lugar.
Joey se abaixou e pegou sua bolsa.
— Ele era bom mesmo? — perguntou. — Você sabe?
— Frank Corso era o melhor. Não havia nenhum melhor. Há histórias
sobre ele suficientes para encher uma duzia de livros.
— Mas você acabou com ele. Isso o torna melhor do que ele, agora?
— Acabei porque ele quis. Acredite, se ele não quisesse morrer, meu
corpo é que seria deixado sob um monte de neve.
— Por que ele faria isso? Desistir desse modo?
— Talvez só estivesse cansado do jogo. Isso às vezes acontece. Ou
talvez sentisse que devia a você. Isso também acontece. Ou talvez fosse
outra coisa. Uma coisa que um cara como ele jamais poderia deixar que
acontecesse.
— O quê?
— Talvez Frank estivesse apaixonado por você. Com você perseguindo-
o todos esses anos, ele acabou sabendo tanto sobre você quanto você sobre
ele. Desse jeito a gente fica próximo da pessoa, mais próximo do que de
alguém que a gente vê todo dia na vida. Acaba tendo sentimentos por ela.
Em geral é ódio. Mas uma vez em um milhão a coisa surge como amor.
— Então nunca saberemos.
— Pode pegar um táxi no nível inferior, se quiser. Também há ônibus,
mas talvez você tivesse de esperar o restante da noite até que um a levasse
para a cidade.
— Não estou com pressa — disse Joey saindo lentamente da escuridão
do bar para a claridade suave do terminal ladeado por lojas fechadas.
— Não tenho aonde ir.

***
A testemunha
J. A. Jance

— O que você vai fazer a respeito disso? — perguntei.


Recusando-se a me olhar nos olhos, Mindy Harshaw remexeu a salada
com o garfo, mas não comeu nada. Seu lábio inferior tremia.
— O que eu posso fazer? — perguntou ela sem esperança.
Um ano atrás fui dama de honra do casamento de Mindy. Ela estava
radiante na época.
Alguns meses depois, quando ela, nossa amiga Stephanie e eu fomos
tomar um café na Starbucks, ela sem duvida nenhuma tinha perdido o
brilho. Estava incomumente silenciosa e se escondia atrás de enormes
óculos de sol, alegando complicações decorrentes de conjuntivite. Agora,
depois de ouvir o que Mindy contava, suspeitei de que a história da
conjuntivite não passava disso — Uma história. E a mulher sentada diante
de mim não tinha nenhuma semelhança com a amiga de toda a vida que
apenas alguns meses antes fora uma noiva resplandecente.
Fiquei chocada quando ela se sentou no banco na minha frente. Estava
abatida e pálida, e pensei que tinha perdido mais peso do que poderia. Eu
não disse: "Meu Deus, Min! Você está horrível!" embora provavelmente
devesse ter dito. Mas agora, depois que ela me contou pelo menos parte do
que estava acontecendo, não tive o menor acanhamento em dar minha
opinião.
— O que você vai fazer é desmascarar esse babaca — disse eu. — Você
não é a primeira Cinderela que acorda depois da lua-de-mel e descobre que
se casou com o sapo e não com o príncipe encantado.
Mindy suspirou.
— Não foi o que aconteceu com você e o Jimmy. Isso era verdade. Eu
era uma "senhora" de 38 anos quando fui apresentada a James Drury no
saguão antes de uma apresentação de Donas-de-casa em furia, um musical
de Seattle sobre um grupo de mães frustradas que montam uma banda de
rock e terminam com um sucesso improvável chamado "Coma a Porra dos
Seus Sucrilhos". Como na época eu não era dona-de-casa, não estava com
muita vontade de ir, mas uma amiga da escola me arrastou com ela. James
Drury tinha sido forçado a ir à peça por um amigo do banco em que ele
trabalhava. Jimmy e eu nos entendemos no momento em que nos
conhecemos. De estalo. Nenhum dos dois fora casado antes, e o furacão de
nosso namoro deixou nossos amigos, inclusive Mindy, sacudindo a cabeça.
Jimmy e eu desfrutamos de 11 gloriosos anos juntos até que um motorista
bêbado, andando pela contramão na ponte I-90, acabou com a vida de
Jimmy e destroçou a minha.
Agora já faz três anos. A dor de perdê-lo permanece, mas sua morte já
estava num passado suficientemente distante para que eu ficasse feliz em
aceitar quando Mindy me pediu para ser sua dama de honra. Eu conhecia
Mindy Crawford desde a escola primária. No secundário e na faculdade, ela
sempre procurava pelos homens errados — pelos rebeldes, os que viviam à
margem, os atletas musculosos que praticavam esportes, ficavam ótimos de
jeans e camiseta mas não tinham para onde ascender. Mas nos dias e
semanas que levaram ao casamento de Mindy e Lawrence Miles Harshaw
III, eu tinha certeza de que ela conseguira um vencedor.
Larry tinha dinheiro, boa aparência e inteligência, e não
necessariamente nesta ordem. É óbvio que ter dinheiro não é tudo, mas eu
fiquei grata porque, depois de anos de existência estéril, Mindy finalmente
estaria numa situação em que não viveria ao deus-dará. Pelo que eu podia
ver, Larry era louco por ela. E este é um dos motivos para eu agora estar tão
exasperada com ele. Larry Harshaw trapaceara com Mindy e também
comigo. Mindy tinha uma desculpa — estava apaixonada pelo cara.
Eu passei os últimos 25 anos trabalhando como orientadora educacional
de uma escola secundária e me ressentia terrivelmente por ter sido
ludibriada. Duas décadas e meia de trabalho com crianças-problema me
ensinaram muito mais do que eu queria saber sobre a realidade e capacidade
de penetração da violência doméstica. Preocupava-me que Mindy estivesse
totalmente alheia ao que lhe estava reservado.
— O que você acha que eu devo fazer? — perguntou ela.
— Vamos repassar o que acabou de me contar — eu disse. — Ele lê sua
correspondência, olha seu e-mail. Ele monitora seus telefonemas e verifica
a quilometragem no odômetro sempre que você usa o carro. O que isso lhe
parece?
— Que ele me quer só para ele? — perguntou Mindy docilmente.
— É muito mais grave do que isso — eu disse a ela. — Chama-se
isolamento. Ele está separando você de sua rede de apoio. Estou surpresa
que ele tenha permitido que almoçasse comigo.
— Foi por impulso — admitiu Mindy. — Eu não contei exatamente a
ele.
Nem pediu permissão, pensei. De repente me senti muito mais velha e
mais experiente do que meus 52 anos, e Mindy parecia uma criança
inocente — Um bebê em perigo.
Tentar orientar adolescentes recalcitrantes me ensinara que não se chega
muito longe dizendo às pessoas o que elas precisam fazer. Se eu realmente
quiser ajudar, tenho de conseguir que os alunos venham a minha sala para
que vejam por si mesmos seus problemas e dificuldades. Mindy não era
uma de minhas alunas, mas a mesma coisa era válida para ela. Se ela
quisesse se salvar, teria de se entender sozinha com o que estava
acontecendo em sua vida e seu casamento. Compreender a existência de um
problema era o primeiro passo fundamental para resolvê-lo.
— Eu vi como age Larry Harshaw — eu disse. — Em publico, ele é o
perfeito cavalheiro. Como ele é entre quatro paredes? — Minha pergunta
foi seguida por um silêncio longo e desagradável. — E aí? — alfinetei por
fim. — Vai me contar?
— Não é muito bom — disse Mindy em voz baixa.
— Como assim? — perguntei. — Ele a chama de idiota, por exemplo?
Mindy assentiu. — É, e diz que eu não sou boa com dinheiro. —
Porque... — Porque eu não controlo meu talão de cheques.
— Min, eu nunca soube que você controlasse um talão de cheques... não
até os 40 anos. Mas você já teve um cheque devolvido?
— Não.
— Então, e daí? Não pode ser só o problema com o dinheiro. O que
mais?
— Tem mais do que só o talão de cheques — disse Mindy. — Embora
não seja verdade, estou preocupada que ele pense que eu me casei com ele
por dinheiro. Quando ficamos noivos, todos os amigos dele ficaram dizendo
a ele que a gente precisava de um acordo pré-nupcial. Na época, falei que
ficaria feliz em assinar um contrato, mas ele disse para eu deixar de ser tola.
Que ele me amava e que estava disposto a compartilhar tudo.
Até certo ponto, pensei.
— Tudo bem — disse eu. — Ele trata você como uma prisioneira em
sua própria casa. Ele controla seu ir e vir. Ele a subestima. O que mais?
— Como assim? — perguntou Mindy.
— Ele já a feriu?
— Ele fere meus sentimentos — respondeu ela.
— Ele chegou a bater em você ou ferir fisicamente? — insisti.
— Não verdadeiramente.
— O que quer dizer?
— Fomos esquiar perto do lago Kachess há algumas semanas — disse
ela devagar. — Vinha uma tempestade e tive uma sensação horrível de que
ele ia embora e me deixaria sozinha ali. Que ele ia me deixar congelando
até morrer.
— O que você fez? — perguntei.
— Eu disse que tinha machucado o tornozelo e não ia sair do carro.
Um arrepio involuntário percorreu minha espinha. Eu não tinha duvida
de que o que manteve Mindy longe de seus esquis naquele dia e a deixou
viva por tempo suficiente para que me contasse sua história arrepiante foi
um senso subconsciente de autopreservação.
— Mas ele nunca a atingiu? — perguntei. — Não bateu em você nem a
empurrou?
Mindy sacudiu a cabeça.
— Não — disse ela. — Nada parecido com isso. Mas ela estava usando
um suéter de gola alta. De mangas compridas. Eu sei como funciona a
violência doméstica. Sei o que os agressores espertos podem fazer para não
revelar os hematomas que provocam. Também sei como é difícil para as
mulheres admitir que foram espancadas. Elas pensam que de certa forma
causaram esta terrível calamidade a si mesmas e, ao assumir o que
aconteceu, também estão confessando sua própria culpa implícita.
— Você precisa cair fora — disse eu em voz baixa. — Precisa sair
agora, antes que piore. Porque vai piorar.
— Não posso — disse ela. — Quero dizer, mal terminei de mandar os
cartões de agradecimento pelos presentes de casamento.
— Fodam-se os presentes de casamento — disse eu. — Não deixe que
eles a impeçam...
O celular de Mindy tocou e ela o tirou da bolsa.
— Oi, querido — disse ela, animada demais. — Sim. Parei para
almoçar. Vou chegar daqui a pouco. — Ela encerrou a chamada e
acrescentou: — Desculpe. Tenho de ir. — Ela pegou uma nota de vinte
dólares na carteira e a deixou na mesa ao lado de sua salada praticamente
intacta.
— Ele está mantendo você numa coleira — disse eu. — Está colado nos
seus calcanhares.
— Eu sei — disse ela. — Ainda assim, preciso ir. — E ela partiu.
Fiquei sentada ali por mais alguns minutos antes de pagar a conta e ir
para casa.
Naquela melancólica manhã de sábado, quando Mindy telefonara para
me convidar por impulso para almoçar, eu estava na garagem organizando
as coisas de Jimmy. Era uma tarefa que eu adiara repetidamente. No
começo deixei de lado porque era dolorosa demais.
E depois deixei de lado porque estava cansada demais. Mas agora, três
anos depois, a hora chegara. Eu pretendia viajar um pouco no verão
seguinte. Isso significava que precisava recuperar algum espaço na garagem
para guardar meu Fusca novo e reluzente.
Mas agora, sentindo o peso do que ouvira de Mindy, voltei à tarefa com
o coração pesado. Jimmy tinha comprado a pequena casa antiga cinco anos
antes de eu conhecê-lo e começara a reformá-la. Arrancara e refizera o piso
de tábua corrida. Repintara e instalara sancas em toda parte. Retirara os
velhos armários e o encanamento antigo e os substituíra por canos e
armários modernos de seu próprio desenho e produção. Quando nos
casamos, vendi meu apartamento no centro e me mudei para a casa dele.
Parte do trabalho que eu tinha pela frente consistia em dispor de todas as
ferramentas de carpintaria de Jimmy. Outra parte era organizar suas roupas.
Minha família voltou para Seattle meses depois do enterro. Minha mãe
insistiu em encaixotar as roupas de Jimmy e fez com que meu pai levasse as
caixas para a garagem.
"Faz parte da superação", disse ela. Na época ela teria doado tudo para a
caridade, mas lhe disse que queria arrumar eu mesma e foi o que fiz; isto é,
mais ou menos. O saco plástico contendo o smoking que Jimmy usou em
nosso casamento era o item principal da segunda caixa que abri. Vê-lo foi
demasiado para mim. Desabei e chorei. De novo. Mas depois me enchi de
coragem para encarar a tarefa. Pus o smoking na pilha da caridade e
prossegui.
Não havia nada que James Drury fizesse que não o fizesse direito.
Enquanto eu passava pelas roupas dele, muitas ainda nos sacos da
lavanderia, minha saudade se renovou. Foi só depois que ele partiu que
descobri o quanto ele fora precavido. Havia apólices de seguro que eu nem
sabia que existiam. Uma implicava que agora a hipoteca estava quitada.
Outra deixava um pé-de-meia considerável que me possibilitaria me
aposentar do magistério assim que estivesse qualificada, em vez de ter de
trabalhar por mais tempo do que eu queria.
E era exatamente esse tipo de estabilidade que eu queria também para
Mindy. Eu realmente acreditava que ela por fim encontrara alguém que a
amaria verdadeiramente e lhe daria uma sensação de segurança duradoura.
O contraste entre minha situação e a dela era surpreendente — e
terrivelmente triste.
E assim, muitas vezes, a expectativa de fazer alguma coisa se revela
muito pior do que simplesmente pôr mãos à obra e fazer. Às seis da tarde
daquele dia, estava concluída a tarefa que adiei por anos, por ter julgado
impossível. Enchi minha lata de lixo com o máximo que ela podia suportar
e tinha uma pilha de uma dezena de sacos plásticos pretos organizados e
prontos para a caridade. Um único telefonema a Don Williams, professor de
trabalhos manuais e membro do corpo docente da Franklin High School,
trouxe a promessa animada de que ele viria no dia seguinte com uma picape
para pegar as ferramentas que eu quisesse dar.
Foi quando estava desligando o telefone, depois de falar com Don, que
me lembrei das armas. Não as armas de Jimmy, porque ele não tinha
nenhuma. As armas de Larry Harshaw.
Eu as vira na tarde da festa de noivado deles. Larry estava me
mostrando sua espaçosa casa com vista para a baía Elliot, em Magnolia, um
dos bairros mais elegantes e antigos de Seattle. Ele me levara para seu
estudio revestido de madeira, onde uma extensa coleção de armas era
visível em um armário trancado. Em sua mesa havia um porta-retrato.
Dentro dele, uma carta de reconhecimento da Associação Nacional de
Rifles louvando Larry por seus muitos anos de fiel associação. Era assinada
numa caligrafia firme pelo expresidente da ANR, Charlton Heston em
pessoa.
Na época eu havia acabado de conhecer Larry Harshaw. Ele era noivo
de uma de minhas melhores amigas. Eu queria causar uma boa impressão,
então fingi mais interesse do que realmente sentia por sua coleção de armas.
Desde aquela noite, não tive oportunidade de voltar ao estudio de Larry.
Agora, porém, lembrei-me da presença agourenta de todas aquelas armas. A
probabilidade de que houvesse outras que eu não vira me deu uma sensação
terrível de pavor. E se...?
Peguei o fone e disquei o numero do celular de Mindy. Ela não atendeu,
e não deixei recado. Na meia hora seguinte, andei de um lado a outro de
minha casa, tentando decidir o que fazer. Deveria chamar a polícia? E dizer
o que a eles? Que tinha medo de que alguma coisa acontecesse com uma
amiga — que o marido dela podia estar tentando machucá-la — quando não
tinha prova nenhuma de que isto estava acontecendo?
Por fim, incapaz de deixar a questão de lado, entrei em meu VW e fui
até lá. Como as casas à beira da água em todo o mundo, a frente da casa
existia principalmente por causa da vista. Na verdade os visitantes entravam
na casa por um portão dos fundos que se abria para uma pequena aleia.
Assim que saí do carro, ouvi vozes indo da porta aberta da garagem.
Deixando a porta do meu carro entreaberta, me aprumei e escutei.
— Ah, qual é, Wes — Mindy estava dizendo. — Pode fazer melhor do
que isso. Pegue meus antebraços e aperte com toda a força. Precisamos de
hematomas... hematomas bem visíveis. E depois me dê um soco... bem na
boca. Felizmente Larry é canhoto e você também.
Eu me encolhi quando ouvi a pancada surda de carne contra carne, mas
o golpe evidentemente não foi o suficiente para satisfazer Mindy.
— De novo — ordenou ela. — Você tem de tirar sangue. Ouvi outro
golpe, seguido de uma voz de homem.
— Ai, caramba. Agora sujou minha camisa toda.
— Meu Deus, Wes. Nunca passou pela minha cabeça que você era tão
melindroso. É bom mesmo que não seja você quem vai puxar o gatilho. Vou
cuidar para que tenha muito sangue meu na camisa de Larry também. Agora
dê o fora daqui. Ele deve chegar em casa em alguns minutos. Não quero
que você esteja por perto quando ele aparecer.
— Tem certeza de que isso vai dar certo?
— É claro que vai dar certo — respondeu Mindy. — Assim que os tiras
vieram me procurar, vou mandá-los direto para a Francine. Depois do
monte de besteiras que despejei no ouvido dela hoje à tarde, será legítima
defesa, sem sombra de duvida.
Francine! Eu! Eu é que tinha levado o monte de besteiras no ouvido.
Larry Harshaw não estava se preparando para matar Mindy. Era o contrário,
e eu seria a principal testemunha — da defesa.
Por alguns segundos, fiquei como que enraizada no mesmo lugar. Por
fim consegui me obrigar a andar. Entrei no carro, bati a porta, dei a partida
no motor e disparei para a base da colina. Com medo de que Wes tivesse me
seguido, mergulhei em uma entrada de carros duas casas depois do
cruzamento. Segundos depois a picape Dodge Ram que estava estacionada
ao lado garagem apareceu rugindo na colina. O motorista parou no início da
aleia e pareceu olhar para os dois lados. Prendi a respiração, mas ele não
deve ter visto em que carro eu estava quando saí. Ou não me viu parar ali.
Depois do que pareceu um tempo muito longo, ele finalmente entrou na
rua e partiu. De onde eu estava, não consegui ver a placa do carro e, com
toda certeza, não ia segui-lo para olhar mais de perto.
Eu estava prestes a ligar para a emergência quando outro carro apareceu
na rua, sinalizando que ia entrar na aleia. Com um aperto no coração,
percebi que estava olhando para os faróis do Cadillac de Larry Harshaw.
Girei a chave na ignição e engatei a ré no meu VW. Piscando os faróis,
segui Larry pela colina. Ele parou a meio caminho do topo e saiu do carro.
— Posso ajudar? — gritou ele para mim. — Algum problema?
— Sim — disse. — Um problema terrível. Sou eu, Francine. Francine
Drury. Preciso falar com você, Larry. É importante.
— Bem, vamos até lá em casa — disse ele. — Podemos conversar lá.
— Não — disse eu desesperadamente. — Não podemos ir para a sua
casa.
— Por que não? Qual é o problema? Aconteceu alguma coisa com a
Mindy? Meu Deus, ela está bem?
— Você precisa me ouvir, Larry. Mindy está bem, mas ela tem um
amante. Eles estão planejando matar você e dar a impressão de que foi
legítima defesa. Eu ouvi os dois conversando sobre isso agora pouco.
— Me matar? — disse Larry. — Está brincando? Mindy me ama, e ela
não machucaria uma mosca. Essa foi a coisa mais ridícula que já ouvi. De
onde tirou essa ideia ultrajante? Você não andou bebendo, não é, Francine?
— É claro que não andei bebendo — disse. — Estava do lado de fora do
portão. Ouvi os dois conversando dentro da garagem... Mindy e alguém
chamado Wes.
— Wes Norman, sem duvida — disse Larry com confiança. — Preciso
lhe informar que Wes é um bom amigo meu. Tenho certeza que tudo isso é
um mal-entendido bobo. Vamos lá em casa agora, Francine. Vamos
conversar mais, beber um ou dois drinques e dar umas boas risadas quando
finalmente entendermos o que realmente está acontecendo.
— Você não ouviu o que eu disse? — insisti, desesperada. — Mindy vai
matá-lo e fazer com que pareça que você a atacou.
— Ela não vai fazer isso — disse-me Larry Harshaw. — Agora vamos.
Está começando a chover. Não pretendo ficar parado aqui, me molhando e
discutindo sobre isso. Você vem ou não?
— Não — eu disse. — Mas por favor, não vá.
— Estou indo — disse ele. E foi. Entrei no meu carro, peguei o celular e
liguei para a emergência.
— Patrulha do estado de Washington — disse uma voz. — Qual é a
natureza da emergência? — Meu nome é Francine Drury — eu disse. —
Estou em Magnolia, em Seattle. E alguém está prestes a ser assassinado.
Eu ainda estava no telefone, dando o endereço de Mindy, quando ouvi o
estampido característico de uma arma de fogo, duas vezes. Houve uma
pausa e depois um terceiro estampido.
— Ah, meu Deus! — exclamei ao telefone. — Rápido, por favor. Ela já
fez. Ela atirou nele. Mande uma ambulância também! Fiquei ali tremendo,
encostada no teto de meu Fusca para me apoiar enquanto dois carros azuis
da polícia e uma ambulância, as luzes piscando e as sirenes berrando,
passaram por mim, subindo a colina. Nunca me senti mais inutil na vida. Se
ao menos tivesse conseguido fazer com que Larry acreditasse...
Um terceiro carro encostou atrás de mim e dele saiu um policial
uniformizado.
— Srta. Drury? — perguntou ele. — Foi a senhorita que ligou para a
emergência?
— Sim — consegui dizer. — Sim, fui eu. — Depois caí em prantos. —
Foi tudo minha culpa — balbuciei. — Eu a ouvi dizer que ia matálo. Tentei
alertá-lo, mas ele não me ouviu, e agora ele está morto.
Algo saiu do rádio do policial. Ouvi uma voz truncada, mas não
consegui entender o que dizia.
— Sente-se, por favor — insistiu o policial. — Vamos lhe arranjar água.
Eu me sentei. Estava fraca demais para fazer objeção ou qualquer outra
coisa que não me fosse ordenada. Eu me sentei ali onde ele me indicou.
Agora havia outras pessoas na rua, gritando das casas vizinhas, tentando
entender o que tinha acontecido e o que estava havendo. Momentos depois
a ambulância desceu rugindo a colina. Os espectadores se afastaram para
deixá-la passar.
— A vítima é um homem — explicou o policial, passando-me uma
garrafa de água. O nome no uniforme era sargento Lowrey. — Ela disparou
nele. Ferimento superficial no ombro. Estão levando o homem para
Harborview. Ele vai ficar bem.
— E Mindy? — perguntei. — E ela?
O sargento Lowrey pegou um bloquinho. — É o nome dela? Mindy de
quê?
— Mindy Harshaw — respondi. — E ela?
Lowrey sacudiu a cabeça. — Quando não aconteceu o que ela esperava,
ela virou a arma para si mesma.
— Quer dizer que ela morreu? — gaguejei. — Ela está morta?
O sargento Lowrey assentiu. — Temo que sim — respondeu ele. —
Espero que não seja amiga sua.
— Eu pensei que fosse — eu disse baixinho, lutando com as lágrimas.
— Mas acho que não era mais.

***
Caído por ela
Ian Rankin

Quase toda noite, Dennis Henshall levava trabalho para casa. Não que
alguém notasse. Ele sabia que a maioria dos seus colegas guardiães de
prisão estava se lixando.
Na opinião deles, Dennis era de qualquer modo um esquisitão, que
ficava sentado a maior parte do dia no seu escritório, lendo
correspondência, régua e lâmina de barbear a postos. Tinha de tomar
cuidado com aquelas lâminas: uma das regras do emprego. Ele as mantinha
sob fechadura e chave, a distância de dedos ágeis.
Toda manhã destrancava a gaveta de sua escrivaninha e as contava,
depois tirava uma, sempre a mesma. Quando esta perdia o fio, ele a levava
para casa e jogava na cesta de lixo da cozinha. A gaveta da escrivaninha
ficava trancada o resto do dia e a maior parte do tempo sua porta também
era trancada, exceto quando ele estava na sala. Uma escapada de dois
minutos para fazer pipi, mesmo assim deixava a porta trancada, a lâmina de
volta à gaveta e aquela gaveta trancada, também.
Todo cuidado era pouco. Seu arquivo era protegido por uma barra
vertical que passava por entre os puxadores dos quatro gavetões. A primeira
vez que o diretor da prisão o visitou, não fez nenhum comentário sobre sua
precaução adicional, mas não pôde deixar de olhar o tempo todo para o
arquivo verde e alto durante sua conversa com Dennis.
Os outros guardiães achavam que Dennis escondia muamba: revistas
pornôs e uísque. Escondido no escritório, uma mão no gargalo da garrafa;
outra ocupada dentro das calças. Ele pouco fazia para desmentir o mito,
gostava até que esta sua outra vida fosse inventada para ele. Na verdade, o
arquivo nada mais continha do que correspondência em ordem alfabética:
cartas ligando presidiários a seus amigos e entes queridos do lado de fora.
Eram as cartas que haviam sido consideradas IDR: Impossíveis de Remeter.
Uma carta podia ser considerada IDR se fornecesse informação demais
sobre a rotina da prisão, ou se parecesse ameaçadora. Palavrões e conteudo
sexual, tudo bem, mas a maioria das cartas eram inibidas, a partir do
momento em que se percebia que Dennis, como censor da prisão, leria toda
correspondência antes.
Era a sua tarefa e ele a executava com diligência. Sua régua sublinhava
uma frase controversa e ele partia para o trabalho com a lâmina. Partes
suprimidas eram guardadas no fichário, coladas numa folha de papel com
comentários datilografados incluindo a data, a identidade do presidiário, e a
razão do corte. Cada manhã uma nova leva de correio o aguardava; cada
tarde ele verificava a correspondência que seria postada. Estes envelopes
eram pré-selados e endereçados, mas não enviados até que Dennis
autorizasse o seu conteudo.
Ele abria as cartas que chegavam com uma espátula de madeira que
comprara num brechó de Cockbum Street. Era africana, o punho entalhado
para parecer uma cabeça alongada. Essa espátula, também, ele mantinha
trancada sempre que deixava o escritório. Sua sala nem sempre fora um
escritório. Adivinhou que ela começara a vida como uma espécie de
depósito. Talvez três metros quadrados, duas pequenas janelas com grade
no alto de uma parede. Havia canos de metal no canto oposto ao arquivo e
sons de fora pareciam viajar através deles: vozes distorcidas, ordens
berradas, ruídos batidos e chocalhados. Dennis havia colado dois pôsteres
nas suas paredes.
Um deles mostrava a vastidão sombria de Glencoe — Um lugar onde
nunca estivera, apesar de prometer regularmente a si mesmo que iria — e o
outro era uma fotografia de uma das aldeias pesqueiras de East Neuk tirada
da amurada do porto.
Dennis gostava dos dois igualmente. Olhando para um ou para o outro,
podia se transportar para os ermos das Highlands ou para o paraíso costeiro,
proporcionando uma brevíssima pausa dos sons e cheiros da Prisão de Sua
Majestade em Edimburgo.
Os cheiros eram piores pela manhã: celas sem ar sendo abertas, a ralé se
coçando e arrotando enquanto se arrastava para o café-damanhã. Raramente
tinha contato — contato físico — com estes homens, mas sentia que os
conhecia. Os conhecia através de suas cartas, cheias de frases canhestras e
erros de ortografia, mas eloquentes apesar de tudo, e às vezes até pungentes.
Dê às crianças um grande abraço por mim... Tente pensar só nos bons
momentos... Cada dia sem te ver é um pouco de mim que se acaba...
Quando eu sair, vamos recomeçar a vida...
Sair: uma porção das cartas falava desta ocasião mágica, quando erros
do passado seriam apagados e novos começos se tornariam possíveis. Até
veteranos ratos de prisão, que passavam mais tempo de sua vida dentro do
que fora, prometiam que nunca sairiam da linha de novo, que fariam tudo
certo. Vou sentir falta do nosso aniversário de novo, Jean, mas você nunca
está longe dos meus pensamentos... Pequeno consolo para as esposas como
Jean, cujas próprias cartas chegavam a dez ou doze lados de cada folha de
papel, recheadas das agonias diárias da vida sem um arrimo de família.
Johnny está ficando incontrolável, Tam. O médico diz que é isso que está
contribuindo para a minha condição. Ele precisa de um pai, mas tudo o que
eu ganho são mais comprimidos.
Jean e Tam: suas vidas separadas tornaram-se uma espécie de novela
para Dennis. Toda semana eles trocavam cartas, embora Jean visitasse o
marido quase regularmente.
Às vezes Dennis observava as visitantes quando chegavam, tentando
identificar as autoras das cartas. Então as estudava à medida que se dirigiam
para esta ou aquela mesa, ajudando-o a casar o presidiário com a sua
correspondente. Tam e Jean sempre apertavam as mãos, nunca se
abraçavam ou beijavam, parecendo quase constrangidos com o
comportamento menos reprimido dos casais ao seu redor.
Dennis raramente censurava suas cartas, mesmo nas raras ocasiões em
que algo controverso surgia. Sua própria mulher o havia deixado há uma
década. Ainda mantinha algumas fotos emolduradas dela sobre a lareira.
Numa delas, ela segurava sua mão, sorrindo para a câmara. Podia estar
vendo TV sentado com uma lata de cerveja na mão e subitamente seus
olhos começavam a viajar até aquela foto. Como Glencoe e o porto, ela o
levava a um lugar diferente. Então se levantava e caminhava até a mesa de
jantar, onde havia deixado as cartas.
Não levava toda correspondência para casa, só aquelas cartas sobre
relacionamentos que o interessavam. Comprou uma máquina de fax que
fazia as vezes de copiadora — mais barata, o vendedor da loja lhe
informou, do que comprar uma fotocopiadora. Pegava as cartas da sua
sacola de couro e as passava na máquina. Na manhã seguinte, os originais
voltavam ao escritório consigo. Sabia que estava fazendo algo que não
devia, sabia que o diretor ficaria zangado com ele, ou pelo menos chocado.
Mas Dennis não podia ver maldade nenhuma no que fazia. Ninguém mais
iria ler aquelas cartas. Eram só para ele.
Um prisioneiro recente estava se revelando um espécime intrigante.
Escrevia duas vezes por dia — obviamente tinha dinheiro bastante para os
selos. Sua namorada chamava-se Jemma e ficou grávida mas perdeu o bebê.
Tommy preocupava-se que a culpa fosse sua, que o choque da condenação
tivesse provocado um aborto nela. Dennis gostaria de conhecer Tommy,
sabia que poderia dizer algumas coisas tranquilizadoras ao garoto.
Mas não o fez. Não queria se envolver. Outro prisioneiro, primeiro
nome de Morris, interessara Dennis poucos meses antes. Morris escrevia
uma ou duas cartas por semana — ardorosas cartas de amor. Sempre,
parecia a Dennis, para uma mulher diferente. Morris fora apontado para ele
na fila do café-damanhã. O homem não parecia nada especial: um espécime
magricela com um sorriso torto.
— Recebe visitantes? — Dennis perguntou ao guarda da prisão.
— Está brincando, não é?
E Dennis apenas dera de ombros, intrigado. As mulheres às quais
Morris escrevia moravam na cidade. Não havia motivo para que não o
visitassem. Seu endereço e numero de prisioneiro estavam escritos no topo
de cada carta.

Então o diretor pediu a Dennis que "desse um pulinho" no seu


escritório, informando-o que Morris estava proibido de mandar cartas.
Aconteceu que o sujeito escolhia nomes no catálogo telefônico, escrevendo
para completas estranhas, mandando-lhes relatos detalhados de suas
fantasias.
Os guardiães acabaram rindo daquilo depois: "De repente, se mandasse
muitas cartas, poderia ter sorte", um deles explicou. "Talvez pegasse uma
delas, também. Algumas mulheres lá fora caem pelo presidiário durão..."
Ah, sim, o presidiário durão. Havia muitos destes na Prisão de Sua
Majestade em Edimburgo. Mas Dennis sabia quem realmente comandava o
espetáculo: Paul Blaine.
Blaine estava alguns pontos acima dos assaltantes e drogados cuja
órbita ao seu redor conseguia ignorar. Quando caminhava através dos
corredores da prisão, era como se o cercasse um campo de força invisível,
de modo que ninguém se aproximava num raio de alguns metros dele, a não
ser que ele o quisesse. Tinha um "tenente" chamado Chippy Chalmers, cuja
presença furtiva agia como um lembrete do campo de força. Não que
ninguém achasse que Blaine precisasse de um lembrete para o campo de
força. Tinha um metro e noventa, ombros largos e mantinha as mãos com o
punho semicerrado. Tudo que fazia, fazia lentamente, com deliberação. Não
estava ali para fazer inimigos ou para desencaminhar os guardas. Queria
apenas servir o seu tempo de prisão e seguir em frente para onde seu
império ainda o aguardava.
Ainda assim, a partir do momento em que pisou na prisão, tornou-se o
seu líder natural. As gangues e facções o cercavam nas pontas dos pés,
mostrando respeito.
Sua pena era de seis anos, tendo sido finalmente agarrado por evasão de
impostos, trapaça e fraude — provavelmente sairia em pouco mais de três
anos, já com um par de meses cumpridos. Perdera um pouco de peso desde
que chegara, mas parecia até melhor com isso, apesar do tom acinzentado
do rosto — o mesmo ar branco de giz que caracterizava todos os presos, o
"bronzeado da prisão", como chamavam. Quando a mulher de Blaine vinha
visitá-lo, mais guardas do que o normal se amontoavam no saguão, não
porque algo fosse acontecer, mas porque Blaine era bem casado.
— Terrivelmente bem casado — Um guarda sussurrara a Dennis com
um piscar de olhos.
Seu nome era Selina. Aos 29 anos, era dez anos mais moça do que
Blaine. Quando os guardas a discutiam diante do chá com sanduíches,
Dennis tinha de manter a boca fechada. O problema é que ele sabia mais
sobre ela do que eles.
Sabia quase tudo. Ela morava num endereço em Bearsden, nos
sofisticados arredores de Glasgow, visitava o marido cada quinzena, em vez
de semana, embora estivesse só a sessenta quilômetros de distância. Mas
escrevia. Escrevia quatro ou cinco cartas para cada uma dele. E as coisas
que dizia...
Sinto falta do seu pau duro! Sabe, Paul, não há outra saída para mim,
internamente, tenho a alma ligada a você. Se estivesse aqui eu ficaria
montada em você até o amanhecer...
Passagens inteiras desse tipo eram entrelaçadas de mexericos e rotina:
Ajudando titia a querer um espaço com a rede da Irene ao canto ombreado.
Estes retalhos atraíam Dennis tanto quanto as passagens mais pessoais,
permitindo-lhe uma intimidade com a vida de Selina. Numa de suas
primeiras cartas, chegara a incluir uma Polaroid de si mesma, posando de
minissaia e top, a cabeça inclinada, as mãos nos quadris. Mais fotos tinham
se seguido. Dennis tentara copiálas, mas elas não se encaixavam na sua
máquina de fax, por isso foi até uma banca de jornais e usou a máquina de
lá. As cópias ficaram granuladas, longe de perfeitas.
Mesmo assim, entraram para a sua coleção.
Tentei me satisfazer na cama na noite passada, mas não foi o mesmo.
Como podia ser? Tinha uma foto sua no travesseiro ao meu lado, mas era
muito distante da coisa real. Espero que as fotos que estou lhe mandando o
estejam alegrando. Não há muito que contar. A cada hora eu infernizo o seu
Fred. Um nirvana de obrigações safadas.
O bruto resolveu infernizar gratuitamente a Denise amiga!
Em outras ocasiões, ela falava de como era difícil manter as contas em
dia. Não havia encontrado um emprego ainda, mas estava procurando.
Dennis fez um pouco de pesquisa, encontrando relatos nos jornais que
sugeriam que a polícia havia "fracassado em rastrear os milhões
desaparecidos de Blaine." Milhões? Então por que Selina estava se
queixando?
Na última vez que ela visitou Blaine, Dennis pediu ao guarda que o
avisasse. Estava um pouco nervoso — não sabia por quê — quando ela
entrou no saguão. E lá estava ela, sentada de costas para ele, de pernas
cruzadas, a saia subindo pelas coxas, mostrando a barriga da perna
musculosa. Camiseta branca justa com um jérsei de caxemira rosa abotoado
por cima. Cabelos louros, um montão deles, caindo em cascata sobre um
ombro.
— Não é uma coisa? — o guarda sorriu. Ainda melhor do que nas fotos,
Dennis teve vontade de dizer. Então notou os olhos de Blaine sobre si e
evitou o olhar justamente quando Selina virava-se na cadeira para verificar
o que distraíra a atenção do seu marido.
Dennis voltou às pressas para o seu escritório. Mas, poucos dias depois,
enquanto passava por um dos corredores, encontrou Blaine e Chalmers que
caminhavam em sua direção.
— Maravilhosa, não é? — disse Blaine.
— Do que está falando?
— Sabe do que estou falando — Blaine parou diretamente diante dele,
olhando-o de alto a baixo. — Suponho que eu devia dizer obrigado.
— Pelo quê? um encolher de ombros.
— Sei como os malucos são. Alguns guardam as fotos para si mesmos...
Uma pausa.
— Me disseram que é do tipo quieto, Sr. Henshall. Isso é bom. Respeito
isso. As cartas... ninguém mais as vê, a não ser o senhor?
Dennis conseguiu sacudir a cabeça, olhando fixamente Blaine.
— Isso é bom — o gângster repetiu. E foi embora, Chalmers meio passo
atrás, lançando um olhar maligno na direção de Dennis.
Mais pesquisa: Blaine entrando e saindo de encrenca desde a escola.
Líder de gangue aos 16 anos, aterrorizando os suburbios de concreto de
Glasgow. Tempo na cadeia por apunhalar um rival, depois escapando por
pouco do mesmo destino por seu papel no assassinato de outro filho de
gângster. Tornando-se esperto agora, começando a reunir aquele campo de
força. Todo um regimento de "soldados" que pagam a pena em seu lugar.
Sua reputação se solidifica, sem precisar mais machucar ou ameaçar: outros
estavam a postos para fazer aquilo por ele, deixando que envergasse um
terno respeitável, trabalhando todo dia num escritório de verdade,
encabeçando uma frota de táxis, uma firma de segurança e uma duzia de
outras empresas.
Selina entrou em cena como recepcionista, depois secretária, elevada a
assessora particular antes de se casar com ele diante de uma congregação
que parecia saída de O Poderoso Chefão. Mas não era nenhuma loura burra,
vinha de boa família, tinha estudado na universidade. Quanto mais Dennis
pensava nela, mais difícil achava acreditar em sua frase "internamente,
tenho a alma ligada a você". Isso, também, devia ser uma fachada. Ela
queria manter Blaine dócil, alimentá-lo com fantasias.
Por quê? um escrevinhador de tablóide havia sugerido uma resposta:
Com sua combinação vitoriosa de cérebro e beleza — e a orientação
passada de um mestre manipulador — poderia esta boneca ser capaz de
comandar todo o tiroteio sem se deixar apanhar pelo fogo cruzado?
Sentado à sua mesa de jantar, Dennis meditou sobre isso. Então
examinou as fotografias dela e pensou um pouco mais. Sua comida esfriou
no prato, a TV ficou desligada, e ele releu suas cartas em sequência... viu-a
no olho da sua mente, pernas bronzeadas, cabelos jogados sobre uma
orelha. Olhos claros com um ar inocente, um rosto que chamava para si
todos os olhares disponíveis.
Cérebro e beleza. Junte-a ao marido e você tinha a Bela e a Fera. Dennis
obrigou-se a comer um pouco da fritura congelada e começou a contagem
regressiva para o fim de semana.
Na manhã de sábado, estacionou seu carro junto ao meio-fio do outro
lado da rua diante da casa dela. Esperava algo melhor. Os jornais a
chamavam de "mansão", mas na verdade era uma casa isolada comum de
dois andares, talvez datando dos anos 1960. O jardim da frente fora
pavimentado para criar duas vagas de estacionamento. Um Mercedes de
linhas esportivas estava à mostra. Ao lado dele, um carro maior fora coberto
por uma capa de lona. Dennis adivinhou que fosse o carro de Blaine,
empacotado até a sua volta. Havia cortinas de filó cobrindo cada janela,
nenhum sinal de vida por trás delas. Dennis verificou o relógio: ainda não
eram dez horas. Imaginou que ela dormisse até tarde no fim de semana; a
maioria das pessoas que conhecia pareciam fazê-lo. Quanto a ele, acordava
sempre antes do amanhecer e nunca conseguia voltar a dormir.
Esta manhã fora a um café perto de casa, lendo o jornal na mesa
enquanto tomava chá em pequenos goles, ajudando a descer a torrada e a
geleia.
Agora que estava aqui, sentia sede de novo e percebeu que devia ter
trazido uma garrafa térmica, talvez alguns sanduíches e algo para ler. Seu
carro não era o único na rua, mas sabia que as pessoas começariam a ficar
curiosas se permanecesse ali a manhã inteira. Mas, talvez, já estivessem até
acostumadas: repórteres e outros desta laia.
Por falta do que fazer, ligou o rádio, tentou oito ou nove estações —
ondas médias e VHF — antes de ficar com uma que tinha muita musica
clássica e pouca falação entre as musicas. Levou uma hora até que algo
acontecesse. Um carro parou diante da casa, tocando a buzina três vezes.
Era um velho Volvo, com a pintura desbotada.
O homem que saiu dele tinha altura média e corpo médio, cabelos lisos
penteados da testa para trás. Vestia uma camisa pólo preta, jeans pretos,
jaqueta de couro preta curta. E óculos escuros, apesar do céu cinza-ardósia.
Bronzeado, também, provavelmente por cortesia de um dos salões de
bronzeamento da cidade. Abriu o portão e dirigiu-se até a casa, socando na
porta com o punho. Algo se projetava da sua boca. Dennis achou que podia
ser um bastão de salgadinho.
Selina já tinha colocado um casaco: uma jaqueta de brim com tachas
prateadas. Suas calças brancas estavam coladas ao corpo. Deu um beijinho
no rosto do visitante, desvencilhou-se quando ele tentou colocar os braços
ao redor da sua cintura. Estava deslumbrante e Dennis se deu conta de que
parou de respirar por um momento.
Tentou não agarrar o volante com muita força e baixou a janela para
tentar captar o que diziam enquanto desciam o caminho até o carro que os
esperava.
O homem inclinou-se sobre Selina e sussurrou algo. Ela lhe deu um
soquinho no ombro.
— Fred! — gritou. O homem chamado Fred deu um riso abafado e
sorriu para si mesmo. Mas agora Selina olhava para o seu carro e sacudia a
cabeça.
— Vamos pegar o Mercedes.
— Qual é o problema com o meu carro?
— Parece uma bosta, Fred, o problema é esse. Se quer levar uma garota
às compras, precisa de uma máquina com mais classe.
Ela voltou à casa para pegar suas chaves, enquanto Fred abria os
portões. Os dois entraram no carro de Selina. Dennis não se deu ao trabalho
de se esconder. Talvez uma parte sua quisesse que ela o visse, que soubesse
que tinha um admirador. Mas era como se fosse invisível, ela falava com
Fred.
Fred? A cada hora eu infernizo o seu Fred. Um nirvana de obrigações
safadas. O bruto resolveu infernizar gratuitamente a Denise amiga! Mas
Fred não estava sendo infernizado; estava aqui, se dando bem. Por que ela
mentira? Talvez para que o marido não suspeitasse.
— Garota levada — Dennis resmungou para si mesmo enquanto seguia
o carrinho prateado.
Selina dirigia como um demônio, mas o trânsito para a cidade estava
congestionado: todos aqueles compristas de sábado. Dennis não teve
problema para manter a Mercedes à vista e a seguiu até uma daquelas lojas
de muitos andares atrás de Sauchiehall Street. Selina esperou no nível três
enquanto uma mulher deixava a última vaga.
Dennis arriscou e subiu ao nível seguinte, onde havia muito espaço
vazio. Trancou o carro e desceu a rampa enquanto Selina e Fred se dirigiam
para o shopping center.
Eram como namorado e namorada, Selina experimentando várias
combinações de roupas enquanto Fred acenava um sim ou um não,
tornando-se inquieto e aborrecido depois de uma hora. Foram do shopping
center até uma fileira de lojas de designers do outro lado de George Square.
A esta altura, Selina carregava três sacolas, Fred outras quatro. Ela tentara
agradá-lo com uma jaqueta de camurça marrom, mas ele nada comprou
para si. Até agora, todas as compras eram dela e, Dennis notou, pagas com
seu próprio dinheiro. Várias centenas de libras, segundo seus cálculos:
desfolhadas de rolos de notas nos bolsos da sua jaqueta.
O que desmentia suas queixas a Blaine de que estava sem dinheiro.
Escolheram um restaurante italiano para almoçar. Dennis decidiu que
tinha tempo para uma folga. Correu até um pub para usar o banheiro, depois
a uma lanchonete para um sanduíche e uma garrafa de água, mais a
primeira edição do jornal vespertino.
— Que diabo estou fazendo? — perguntou a si mesmo ao desembrulhar
o sanduíche. Mas sorriu, porque estava se divertindo. Na verdade,
aproveitando este sábado muito mais do que qualquer outro na memória
recente. Quando saíram do restaurante, parecia que Fred tinha tomado
alguns copos de vinho além da conta. Colocou a mão livre sobre os ombros
de Selina até que derrubou um pouco das compras. Depois disso,
concentrou-se em carregar as sacolas. Voltaram ao shopping de múltiplos
andares.
Dennis seguiu o Mercedes percebendo logo que ela se dirigia a
Bearsden e ao fim do passeio. O Mercedes estava no pátio quando ele
passou de carro. Olhando para a sua esquerda, espantou-se ao ver que
Selina olhava para ele enquanto fechava a porta do motorista. Seus olhos se
estreitaram, como que tentando identificá-lo.
Virou-se então e ajudou Fred, ainda grogue, a entrar em casa.

A secretária do diretor, Sra. Beeton, foi de uma bondade de ouro quando


Dennis explicou por que queria a pasta do arquivo.
— Cartas recentes vêm mencionando alguém chamado Fred. Quero
verificar se é alguém que poderia nos interessar.
Era razão suficientemente boa para que a Sra. Beeton procurasse e
entregasse a pasta de Paul Blaine. Dennis agradeceu-lhe e retirou-se para o
escritório, trancando a porta atrás de si. A pasta era volumosa; coisa demais
para que pensasse em fotocopiar. Em vez disso, sentou-se para ler.
Encontrou Fred em pouco tempo: Frederick Hart, nominalmente
encarregado de uma firma de táxis que na verdade pertencia a Blaine. Hart
se metera em encrenca por intimidar os concorrentes, por disputar pontos e
trajetos. Processado, mas não condenado. Não havia nada sobre uma esposa
chamada Denise, mas Dennis encontrou o que procurava num dos recortes
de jornal. Fred era casado e tinha quatro filhos adolescentes. Morava numa
antiga casa de um condomínio popular cercada por um muro de três metros
de altura. Havia até uma foto granulada do homem, parecendo
consideravelmente mais jovem, dando um sorriso de escárnio ao deixar um
tribunal de justiça.
— Olá, Fred — Dennis sussurrou.
Quando a carta seguinte de Selina chegou, Dennis sentiu o coração
bater mais forte, como se fosse endereçada a ele e não ao marido.
Cheirou o envelope, estudou o endereço manuscrito, demorou-se a abri-
la. Desdobrou o papel — apenas uma folha, escrita dos dois lados.
Começou a ler.
É um tanto solitário aqui sem você. Denise aparece de vez em quando
para irmos às compras.
Mentirosa.
Passo dias seguidos sem pôr o pé fora de casa, por isso sei o que é estar
fodida!
E Dennis sabia quem a estava fodendo.
Começou a fazer incursões noturnas a Bearsden em seu carro. Às vezes
estacionava a algumas ruas de distância e fingia que era um morador local
saindo para uma caminhada, passando por sua casa uma ou duas vezes,
parando talvez para consultar o relógio, amarrar um cadarço ou responder a
um telefonema imaginário no seu telefone celular. Se o tempo não estava
favorável, ficava sentado no carro. Ficou conhecendo a casa, podia até
reconhecer um ou dois dos vizinhos. Eles, por sua vez, o ficaram
conhecendo; ou pelo menos conheciam seu rosto. Não mais um estranho e,
portanto, não mais suspeito. Talvez pensassem que tinha se mudado para a
área. Recebia acenos de cabeça e sorrisos e uma ou outra troca de palavras.
Então, uma noite, quando passava de carro pela rua dela, viu a tabuleta À
VENDA.
Seu primeiro pensamento foi: eu poderia comprar! Comprar e ficar mais
perto dela! Mas viu então que a tabuleta estava firmemente fincada no
próprio jardim de Selina.
Será que Blaine sabia disso? Dennis achava que não; nada fora
mencionado na correspondência. Claro, poderia ter sido discutido numa de
suas visitas, mas teve a sensação de que este era outro segredo que ela
guardava do marido. Mas por que vender a casa? Significava que ela
realmente tinha problemas de dinheiro? Se fosse o caso, o que fazia com os
bolsos cheios de notas? Dennis parou junto ao meio-fio e anotou o numero
da placa, tentou ligar pelo celular, mas foi informado por uma mensagem
que o escritório do advogado abria às nove da manhã.
Ligou de novo às nove da manhã seguinte, explicando que estava
interessado na casa.
— O proprietário deseja uma venda rápida, o que acha? — perguntou.
— O que quer dizer, senhor?
— Só queria saber se o preço poderia ser negociado, digamos, se
alguém aparecesse com uma oferta sólida.
— O preço é fixo, senhor.
— Isso geralmente quer dizer que têm pressa em vender.
— Ora, vai vender seguramente. Sugiro que o senhor marque uma visita
esta semana, se está interessado.
— Uma visita? — Dennis mordeu o lábio inferior. — Talvez seja uma
boa ideia, sim.
— Tenho um cancelamento para esta noite, se lhe convém.
— Esta noite?
— Às oito horas.
Dennis hesitou. — Oito horas — repetiu.
— Excelente. E é o Sr...
Engoliu em seco. — Denny. Meu nome é Frank Denny.
— Tem um numero de contato, Sr. Denny?
Dennis estava suando. Deu o numero do seu celular.
— Joia — disse a mulher.
— O Sr. Appleby vai lhe mostrar o imóvel.
— Appleby? — Dennis franziu a testa.
— Trabalha para nós — a mulher explicou.
— O proprietário não vai estar lá, então? — Dennis perguntou,
relaxando um pouco.
— Alguns proprietários preferem assim.
— Tudo bem... está certo. Oito horas, então.
— Até logo, Sr. Denny.
— Obrigado por sua ajuda...
Passou o resto do dia aturdido. Num esforço final para clarear a cabeça,
saiu para uma caminhada pela prisão — o pátio primeiro, depois os
corredores. Alguns dos homens o conheciam — nem sempre havia sido
censor. Houve tempos em que fora guarda das celas, igual aos outros;
trabalhando em turnos e nos fins de semana, tendo de conviver com os
cheiros da faxina e das cozinhas. Alguns de seus colegas diziam que ele
fora tolo de aceitar o posto vago de censor — significava nenhuma chance
de receber horas extras.
— O posto me convém — explicou na época. O diretor concordara.
Mas agora Dennis começava a repensar. Sua cabeça permanecia confusa
enquanto subia as escadas de metal até o nível superior... sabia aonde ia,
não conseguia se deter. Chalmers apoiava seu peso considerável contra uma
parede de tijolos caiada, guardando a porta aberta ao seu lado. Lá dentro,
Blaine estava estendido numa cama, a cabeça pousada sobre as mãos
entrelaçadas.
— Como vai passando hoje, Sr. Henshall? — falou alto, e Dennis
percebeu que tinha parado na porta. Cruzou os braços, como se pudesse
haver alguma razão para sua visita.
— Vou bem. E o senhor?
— Não venho me sentindo muito bem, na verdade — Blaine retirou
uma mão lentamente e afagou o peito com ela. — O velho tiquetaque aqui
não é mais o mesmo. Pensando bem, quem tem o coração em ordem? —
Blaine sorriu, e Dennis tentou não sorrir. — Deve ser bom para o senhor,
terminar o seu turno, sair daqui. Ir ao pub tomar uma cerveja... ou será
direto para casa, para uma patroa quente?
Blaine fez uma pausa.
— Desculpe, eu esqueci. Sua mulher o deixou, não foi? Foi por causa
de outro homem?
Dennis não respondeu. Em vez disso, fez uma pergunta:
— E quanto a sua própria mulher?
— Selina? É uma mulher de ouro. Você sabe disso... lê tudo o que ela
escreve.
— Ela não o visita com tanta frequência quanto poderia.
— Para quê? Eu a preferia longe daqui. Este lugar fica grudado em
você; já notou, quando chega em casa à noite, como o cheiro ainda está em
suas narinas? Gostaria de ter uma mulher que ama visitando um lugar
destes?
Repousou de novo a cabeça, olhando para o teto da sua cela.
— Não há nada que ela goste mais do que ficar sentada em casa com
suas palavras cruzadas. Revistas cheias delas. Palavras cruzadas... é o que
ela gosta.
— Realmente? — Dennis tentou não sorrir diante desta imagem de
Selina. — Como é que se chamam estas coisas... acrobacias? — Ela gosta
de acrobacias? — Dennis apostava que sim.
Blaine sacudiu a cabeça. — Uma palavra parecida. É uma mulher de
ouro, escute o que eu digo.
— Vou fazer isso.
— E no seu caso, Sr. Henshall? Faz muito tempo que sua mulher foi
embora. Tem alguma mulher na sua vida?
— Não é da sua conta.
Blaine abafou um riso.
— Nunca conheci um homem que não ficasse caído por ela — falou
alto quando Dennis se virava para ir embora.
Dennis pensando: aposto que não conheceu. Talvez não fosse apenas
Fred. Talvez houvesse outros, abastecendo suas excursões de compras. Ou
ela gastava a grana do marido sem o conhecimento dele. E agora ia dar um
grande golpe e se mandar com tudo. Dennis se deu conta de algo: tinha
poder sobre ela agora, sabia coisas que ela não desejaria que Blaine
soubesse. Poder sobre Fred, também, se fosse o caso. O pensamento o
aqueceu durante o resto da caminhada.

— Sr. Denny?
— Sim — Dennis falou. — E o senhor deve ser o Sr. Appleby? —
Entre, por favor.
O Sr. Appleby era um homem baixo e obeso no final da casa dos
sessenta anos, elegantemente vestido e com um ar profissional. Fez Dennis
acrescentar seu nome numa lista na mesa no estreito vestíbulo, depois
perguntou se ele precisava de informações impressas.
Dennis respondeu que sim e recebeu uma brochura: quatro páginas em
cores da casa, com detalhes de acomodação e terreno.
— Gostaria de uma visita guiada ou prefere olhar sozinho?
— Pode me deixar à vontade — Dennis respondeu.
— Quaisquer perguntas que queira fazer, estarei aqui — e o Sr. Appleby
sentou-se numa poltrona enquanto Dennis fingia estudar o folheto. Entrou
na sala de estar, verificou o que não era visível do vestíbulo. Então
examinou. Os móveis eram novos mas berrantes: sofá laranja vivo, uma TV
grande, uma estante de coquetel ainda maior. Revistas e jornais estavam
enfiados num porta-revistas.
Dennis notou que algumas eram revistas de palavras cruzadas, portanto
talvez Blaine não estivesse de todo enganado sobre Selina. Não havia fotos
à vista, nenhuma lembrança de férias no exterior. Uma mistura de
ornamentos, parecendo comprados nas grandes lojas de design: vasos
esguios, pesos de papel, castiçais. Voltando ao vestíbulo, sorriu para o Sr.
Appleby antes de se dirigir à cozinha.
Uma parede fora aberta e portas de vidros conduziam a uma sala de
jantar com portas francesas dando para o jardim dos fundos. "unidades de
cozinha projetadas por Nijinski", dizia a brochura, acrescentando que todos
os utensílios, cortinas e revestimentos do piso estavam incluídos na venda.
Aonde quer que Selina fosse, não ia levar nada daquilo consigo.
Os dois quartos finais do térreo eram um guarda-roupas/toalete
entulhado e o que era descrito como "Quarto de Dormir 4", mas atualmente
servia de depósito: caixas de papelão, cabideiros com roupas de mulher.
Dennis correu a mão por um dos vestidos, esfregando a barra entre o
indicador e o polegar. Então apertou o nariz contra o tecido, sentindo um
leve traço do seu perfume.
No andar de cima, havia três quartos de dormir depois da escadaria, o
"principal" destacando "en suite by Ballard". Era de longe o maior de todos
e o único usado como quarto de dormir. Dennis abriu as gavetas, tocando
nas roupas dela. Abriu o guarda-roupas, inebriou-se com a visão de seus
vários vestidos, saias e blusas. Havia mais roupas de Blaine, também,
naturalmente; alguns ternos de aparência cara, camisas listradas com as
abotoaduras já colocadas.
Ela os jogaria fora antes de partir?, Dennis se perguntava.
Os outros quartos pareciam ser os escritórios "dele" e "dela". No dele:
estantes de livros — principalmente romances de crime e guerra, mais
biografias esportivas — uma mesa coberta de papelada e um centro de
musica com álbuns de Glenn Campbell, Tony Bennett e outros.
O escritório de Selina era algo diferente: mais revistas de palavras
cruzadas, mas tudo guardado em ordem. Havia uma máquina de tricotar
sem uso num canto, uma cadeira de balanço no outro. Dennis tirou um
álbum de fotografias de uma estante e o folheou, parando nas férias na
praia, Selina num biquíni cor-de-rosa, um sorriso tímido para a câmara.
Dennis olhou para o corredor, ouviu o Sr. Appleby abafar um espirro no
andar de baixo e tirou uma das fotos, enfiando-a no bolso. Ao descer as
escadas, lia a brochura de novo.
— Uma agradável residência familiar — comentou o Sr. Appleby.
— Absolutamente.
— E a preço fixo. O senhor vai ter de ser rápido. Tenho certeza de que
estará vendida até amanhã às quatro horas.
— Acha que sim?
— Tenho certeza.
— Bem, vou pensar — disse Dennis, percebendo que sua mão
repousava no bolso da jaqueta.
— Pense bem, Sr. Denny — disse o seu guia, abrindo a porta para ele.

Quando Dennis acordou na manhã seguinte, estava cercado por ela.


Havia passado por uma copiadora que ficava aberta até tarde e usara sua
máquina colorida. Decidira não se apressar: fizera vinte cópias lentas.
Percebeu que o homem da loja queria perguntar-lhe sobre a foto e a
quantidade, mas preferiu não se intrometer.
Fotos dela na sua cama, no sofá, espalhadas na sua mesa de jantar. Até
uma no chão do corredor, que lá ficou quando a deixou cair. Levou a foto
original ao trabalho, trancando-a na sua escrivaninha. Na hora das visitas
naquela tarde, bateram à sua porta. Ele a destrancou. Um dos guardas estava
lá, de braços cruzados.
— Vem para o show?
— Imagino que a Sra. Blaine esteja no prédio. — Dennis comentou,
conseguindo parecer calmo enquanto seu coração batia com força.
O guarda estendeu as mãos à sua frente.
— É hora de espetáculo — disse com um sorriso.
Mas, para surpresa de Dennis, Selina não estava sozinha. Trouxera Fred
consigo.
Os dois sentaram-se diante de Blaine, Selina falando a maior parte do
tempo. Dennis ficou atônito e impressionado em igual medida. Você vai
deixar o seu marido e, na última vez que o visita, traz o homem que vem
aquecendo suas noites. Mas era um jogo perigoso o que ela fazia. Blaine
ficaria furioso quando descobrisse e tinha muitos amigos do lado de fora.
Dennis duvidava que ele quisesse machucar Selina: Blaine obviamente a
amava loucamente. Mas Fred... Fred era outra história.
Assassiná-lo seria bom demais para ele. E, no entanto, lá estava, um
braço jogado por trás da cadeira, relaxado como sempre. Apenas visitando
seu antigo empregador, seu companheiro, acenando com a cabeça sempre
que Blaine se dignava a falar com ele, conseguindo manter distância
suficiente de Selina para que Blaine nada lesse da sua linguagem corporal.
Talvez estivesse explicando suas vicissitudes com Denise.
Dennis percebeu que odiava Fred, mesmo sem realmente conhecê-lo.
Odiava quem era e o que era, odiava o fato de que obviamente ganhava
dinheiro, embora dirigisse um carro decrépito. Odiava a maneira como
colocara o braço ao redor de Selina aquela vez em Glasgow. Odiava o fato
de que tinha mais dinheiro e provavelmente mais mulheres do que Dennis
jamais teria na vida.
Que diabo fazia Selina perdendo tempo com ele? Não fazia sentido. A
não ser que... a não ser que ela precisasse de alguém para levar a culpa
quando fugisse, alguém em quem Blaine pudesse descarregar sua raiva.
Dennis permitiu-se um sorriso. Podia ela ser tão calculista, tão esperta? Não
duvidava disso, nem por um segundo. Sim, ela estava brincando com Fred,
assim como brincava com o próprio marido enganado. Era perfeito.
Excetuando apenas um detalhe: o próprio Dennis, que achava que sabia
de tudo agora, percebeu que havia deixado os olhos perderem o foco.
Quando piscou e os abriu, viu que Selina tinha virado a cabeça e olhava
para ele. Os olhos dela se semicerraram e deu o mais breve dos sorrisos.
— Para qual de nós dois foi isso? — o guarda ao lado de Dennis
perguntou.
O próprio Dennis não tinha nenhuma duvida. Ela o reconhecera, talvez
o identificara como o homem que vira passando de carro por sua casa.
Inclinou-se para falar algo ao marido e Fred virou-se rapidamente,
fuzilando os guardas com o olhar.
— Ooohh, estou assustado — murmurou o guarda ao lado de Dennis
antes de esboçar uns risinhos de chacota. Mas não era para ele que Fred
olhava: era para Dennis.
Blaine limitou-se a olhar para o tampo da mesa, acenando lentamente
com a cabeça, depois disse algumas palavras à mulher, que acenou com a
cabeça em resposta. Quando chegou a hora de partir, ela deu a Blaine um
beijo mais efusivo do que de costume. É o chamado beijo de despedida —
pensou Dennis. Ela chegou até a acenar com a mão para o marido enquanto
se afastava sobre seus ruidosos saltos altos. Mandou-lhe um outro beijo,
enquanto Fred se permitia uma olhada ao redor no ambiente, estudando as
outras mulheres à vista e rolando os ombros, como se contente por estar
saindo com a mais classuda de todo o bando.
Dennis voltou ao escritório e deu um telefonema.
— Receio que seja tarde demais — disseram-lhe. — O imóvel foi
vendido esta manhã.
Colocou o fone no gancho. Ela seguia em frente... Talvez nunca mais a
visse. E não havia nada que ele pudesse fazer, havia? Talvez não. Meia hora
depois, deixou seu escritório, trancando-o como de costume. Sua
caminhada através da prisão o levou à porta aberta da cela de Blaine.
Chalmers estava a postos como guardião, como sempre.
— Visita, chefe — rosnou.
Blaine estava sentado na cama, mas se levantou, ficando de frente para
Dennis.
— Que foi isso que ouvi a seu respeito, Sr. Henshall? Parece que ficou
caído por Selina. Ela o viu passar de carro pela casa.
Blaine deu um passo à frente, com um tom brincalhão, mas com o rosto
duro como pedra. — Por que faria uma coisas destas? Não acho que seus
patrões gostariam muito...
— Ela deve ter-se enganado.
— Acha? Ela anotou a marca do carro e a cor: um Vauxhall Cavalier
verde. Faz sentido?
— Ela se enganou.
— É o que diz. Sei que lhe falei que muitos homens caem por ela, mas
nem todos vão aos extremos que foi, Sr. Henshall. Tem seguido ela?
Vigiado sua casa? É a minha casa, também, se é que sabe. Quantas vezes
fez isso? Ficou rodando pela área... espiando por entre as cortinas... O
sangue havia subido às faces de Blaine, um tremor tomou conta de sua voz.
Dennis percebeu que estava cercado pelos dois homens. Blaine e Chalmers.
Não havia outros guardas por perto.
— É alguma espécie de pervertido, Sr. Henshall? Trancado naquele seu
escritório, lendo todas aquelas cartas de amor... fica de pau duro, não fica?
Não tem mulher à sua espera em casa, por isso começa a cheirar as
mulheres dos outros. O que é que o diretor ia pensar disso, hein?
O rosto de Dennis se franziu.
— Seu grande imbecil! Não consegue ver o que está debaixo do seu
nariz! Ela saiu gastando toda aquela sua grana, transando com seu camarada
Fred. Eu os vi. Agora vendeu a casa e está se mandando. Acabou de ter sua
última visita conjugal, Blaine, só que é burro demais para não ver isso!
— Está mentindo. Gotas de suor apareceram na testa de Blaine. Seu
rosto estava quase arroxeado e sua respiração parecia travada.
— Ela o vem traindo desde o minuto que entrou aqui — Dennis
continuou. — Dizendo que não tem grana quando gasta rolos de dinheiro
em cada loja de roupas da cidade.
Vai às compras com Fred, caso você não saiba. Ele carrega suas sacolas,
as carrega até dentro de casa. E fica lá durante horas.
— Mentiroso!
— Vamos descobrir logo, não é? Pode ligar para casa, ver se a linha já
foi cancelada. Ou esperar sua próxima visita. Confie em mim, vai demorar
um bocado...
As mãos de Blaine se estenderam, e Dennis vacilou. Mas o homem
pendurou-se nele, não o atacou. Mesmo assim, Dennis gritou, enquanto
Blaine caía de joelhos, as mãos ainda agarrando o uniforme de Dennis.
Chalmers gritou por socorro, passos aproximaram-se correndo. Blaine
sufocava, segurando o peito agora ao cair sobre as costas, as pernas se
contorcendo. Então Dennis se lembrou: o velho tiquetaque aqui não é mais
o mesmo...
Acho que é um ataque das coronárias — disse, enquanto o primeiro
guarda chegava correndo.
O diretor havia pedido a versão de Dennis, e teve algum tempo para
pensar sobre ela. Ia passando... parei para conversar... de repente, Blaine
caiu ao chão.
— Parece coincidir com a versão de Chalmers — o diretor dissera, para
alívio de Dennis. Claro, Blaine poderia ter outras ideias, supondo que
sobrevivesse.
— Ele vai se sair dessa, senhor?
— O hospital nos dirá em breve.
Levado às pressas para o Western General, deixou Chalmers na porta da
cela, com um ar atônito.
Suas únicas palavras: "Pode ser que eu não o veja mais..."
Dennis retirou-se para o escritório, ignorando batidas à porta: outros
guardas, querendo ouvir a história. Separou a foto de Selina no seu biquíni
cor-de-rosa.
Talvez ela se desse bem agora, conseguisse tudo o que queria. E Dennis
teria ajudado.
E ela poderia nunca saber disso. Estava chegando a hora de ir para casa
quando outro telefonema o convocou à sala do diretor. Dennis sabia que
seriam más notícias, mas quando seu chefe falou foi o choque de sua vida.
— Blaine fugiu.
— O que disse, senhor?
— Escapou do hospital. Parece que foi uma armação. Um homem e
uma mulher estavam à sua espera, ela vestida de enfermeira, ele de
paramédico. Um homem da equipe de escolta sofreu uma concussão, o
outro perdeu dois dentes.
O diretor ergueu o olhar para Dennis.
— Ele o enganou, enganou a todos nós. O filho da mãe não teve
nenhum ataque do coração. Sua mulher e outro homem vieram visitá-lo
hoje. Provavelmente fazendo os preparativos finais.
— Mas eu...
— Você entrou em cena no momento errado, Henshall. Como havia um
guarda presente na ocasião, nós levamos a coisa mais a sério.
O diretor concentrou-se na papelada à sua frente.
— Foi o momento errado para você... mas uma tremenda dor de cabeça
para o restante de nós.
Dennis arrastou-se de volta ao seu escritório. Não podia ser... não era
possível. Com os diabos...? Ficou sentado aturdido até muito tempo depois
da hora de voltar para casa. Dirigiu até sua casa como se por controle
remoto. Desabou na poltrona. A história estava no noticiário da noite: fuga
dramática em maca de hospital.
Então aquele fora o plano desde o início... vender a casa e partir para a
liberdade, ou o casal ou com Fred a tiracolo. Fred: cumplice, não amante.
Tramando com Selina para libertar o marido dela. Apanhou as cópias da
correspondência entre ela e Blaine, lendo detalhadamente cada carta,
procurando ver se havia algo que não tivesse percebido.
Não, claro que não havia nada. Não podiam ter feito planos toda vez
que se encontravam. Havia sempre o risco de serem entreouvidos ou de
uma leitura labial. Mas o fato é que aquilo acontecera. Nem mais, nem
menos... Dennis não conseguia ficar sentado ali nenhum momento mais,
cercado pelas cartas dela, por suas fotos, seus sentidos inundados de
lembranças dela: a excursão de compras, sua casa, suas roupas...
Caminhou até o bar local e pediu um uísque e uma lager. Virou o uísque
num só gole, derramando as sobras no copo de cerveja.
— Um dia duro, Dennis? — Um dos frequentadores perguntou.
Dennis o conhecia; sabia seu primeiro nome, de qualquer modo.
Tommy. Bebia aqui há tantos anos quanto Dennis. Tudo o que Dennis sabia
dele era o seu primeiro nome e o fato de que trabalhava como bombeiro.
Era impressionante como você podia não saber quase nada sobre uma
pessoa.
Mas havia uma terceira coisa: Tommy gostava de palavras cruzadas.
Adivinhações e palavras cruzadas. Era o capitão da equipe Pub Quiz do
bar e havia troféus nas prateleiras atrás do balcão como prova de suas
proezas. Estava ocupado agora: o tablóide aberto na página das Cruzadas da
Pausa para o Café. Tinha completado as duas palavras cruzadas e cuidava
de outros enigmas.
Selina e suas palavras cruzadas. Palavras cruzadas... e que outra coisa
Blaine tinha falado: acrobacias?
— Tommy — Dennis falou —, existe um jogo de palavra cruzada
chamada acrobacia?
— Não que eu saiba — Tommy não se deu ao trabalho de erguer a vista
do jornal.
— Uma palavra parecida, então?
— Acrósticos, talvez.
— E o que é um acróstico?
— É quando você tem uma série de palavras e tira a primeira letra de
cada uma. Os crípticos as usam muito.
— Tira a primeira letra...?
Tommy não parecia disposto a explicar mais, mas Dennis já se dirigia
para a porta.

Sabe, Paul, não há outra saída para mim, internamente, tenho a alma
ligada a você.
E, embutida, a partir da quarta palavra, a palavra "hospital". Dennis
olhou para o seu trabalho, o trabalho de várias horas. Muitas das cartas não
continham mensagens ocultas. Aquelas que as continham as escondiam em
passagens incitantes, presumivelmente para impedir que as pessoas as
notassem porque — como acontecera com Dennis — elas ficariam
ocupadas lendo e relendo as passagens picantes. Ou em frases do dia-a-dia.
Ajudando titia a querer um espaço com a rede da Irene ao canto
ombreado.
Enquanto Dennis se preocupava em saber quem era essa tia e qual o seu
papel na história, Selina passava outra mensagem: "ataque cardíaco".
Ela o fizera de trouxa.
Nunca suspeitou de nada.
A cada hora eu infernizo o seu Fred. Um nirvana de obrigações safadas.
O bruto resolveu infernizar gratuitamente a Denise amiga!
"Achei os fundos. Obrigada."
Achou o quê? A grana, é claro: outro rolo do dinheiro vivo de Blaine.
Ele revelava a pista para ela pouco a pouco, garantindo que ela não se
mandasse, ou não detonasse o dinheiro todo de vez. Suas cartas para ela
continham mensagens indicando onde o dinheiro estava escondido.
Pequenos montículos espalhados por toda a casa. As cartas de Blaine eram
mais desajeitadas que as de Selina. Talvez Dennis pudesse ter encontrado a
grana, se não estivesse mais interessado nela.
Caído por ela. Aquelas fotos... todos os detalhes sensuais... estava tudo
ali para impedir que enxergasse o código.
E agora ela se fora. Realmente partira. Terminara o jogo, deixara de
jogar com ele. Teria de voltar para Jean e Tam e todos os outros
escrevinhadores, de volta ao mundo real.
Ou isso, ou tentar seguir a trajetória dela. O jeito como Selina sorrira
para ele... quase em cumplicidade, como se sentisse prazer no papel dele
nesta charada.
Será que ela mandaria outra carta para ele, desta vez? E, se o fizesse,
partiria ele atrás dela, solucionando os enigmas ao longo do caminho? Tudo
o que podia fazer agora era esperar.

***
Terceiro
Jay Mclnerney

Difícil descrever precisamente o gosto do oitavo ou nono cigarro do dia,


uma mistura de ozônio, tabaco louro e ansiedade de início de noite na
língua. Mas ele sempre o reconhecia. Era gosto de amor perdido.
Alex voltava a fumar sempre que perdia uma mulher. Quando se
apaixonava de novo, parava. Quando o amor acabava, voltava a fumar. Em
parte era uma reação física ao estresse; mas também era uma reação
metafórica: a substituição de um vício por outro. Boa parte desse reflexo era
mitológico: criar uma imagem romântica de si mesmo como uma figura
solitária parada em uma ponte em uma cidade estrangeira, cigarro na mão,
casaco aberto aos elementos.
Enquanto estava ali na Pont des Arts, misterioso, molhado e inacessível,
imaginou os transeuntes especulando sobre a sua tristeza particular. Seu
senso de perda parecia mais real quando imaginava a si mesmo através dos
olhos de estranhos. Os pedestres com suas baguettes vespertinas, seus guias
Michelin e seus guarda-chuvas, curvados contra a precipitação de março,
uma mistura de garoa e névoa.
Quando terminou com Lydia, ele decidiu ir para Paris, não apenas
porque era um bom lugar para fumar, mas porque parecia o cenário
apropriado. Seu pesar era mais pungente e pitoresco naquela cidade. Já era
ruim o bastante Lydia tê-lo deixado; o que tornava as coisas piores é o fato
de ter sido culpa dele.
Tanto sofria a dor da vítima quanto a culpa do vilão. Contudo, seu
apetite não fora abalado; seu estômago reclamava como se fosse um terrier
exigindo o passeio matinal, sem se dar conta de que a casa estava de luto.
Por mais nobre que fosse sofrer em Paris, apenas um idiota passaria fome
ali.
De pé no meio do rio, tentou decidir para onde ir. Tendo jantado em um
bistrô na noite anterior, que parecia lugubre e autêntico o bastante para seus
propósitos mas que se revelou repleto de americanos voluveis e alemães
vestidos como se para fazer ginástica ou ir aos trópicos, escolheu o Hotel
Coste, onde, na pior das hipóteses, os americanos estariam elegantemente
enfadados e vestidos em tons de cinza e preto. O bar estava cheio e, é claro,
não havia mesas quando ele chegou.
A garçonete, uma bela asiática com sotaque de Londres Ocidental,
olhou-o de cima a baixo. Não tinha a arrogância parisiense tradicional, o
desprezo do maitre d'hôtel de um restaurante três estrelas; era mais uma
guardiã do templo daquela tribo internacional que incluía astros de rock,
modelos, designers, atores e diretores — assim como aqueles que os
fotografavam, escreviam ou transavam com eles. Como diretor de arte de
uma agência de publicidade de uma butique, Alex vivia no limiar deste
mundo. Em Nova York conhecia muitos dos porteiros e maitres d'hôtel, mas
ali o melhor que poderia esperar era conseguir fazer o tipo.
A garçonete parecia estar se perguntando sobre a legitimidade de suas
alegações de ser associado, expressão ligeiramente esperançosa, como se
estivesse a ponto de conceder-lhe o benefício da duvida. Subitamente, seus
olhos apertados relaxaram em um sorriso de reconhecimento.
— Perdão, não o tinha reconhecido — disse ela. — Como vai? — Alex
só estivera ali duas vezes, em uma visita havia alguns anos; parecia
improvável que ele fosse lembrado. Por outro lado, era generoso nas
gorjetas e, concluiu, não era feio.
Conduziu-o a uma mesa pequena mas extremamente visível posta para
quatro pessoas. Ele dissera à garçonete que esperava alguém na esperança
de aumentar a sua chance de conseguir se sentar.
— Vou mandar um garçom atendê-lo — disse ela. — Se houver algo
mais que eu possa fazer por você, é só pedir.
Seu sorriso foi tão benevolente que ele tentou pensar em algum pequeno
pedido para satisfazê-la.
Ainda sentindo-se expansivo, pediu uma garrafa de champanhe quando
o garçom chegou. Olhou ao redor do salão. Embora reconhecesse diversos
dos frequentadores — Um robusto romancista americano da escola de
Montana, o cantor magricelo de uma banda pop inglesa — não via ninguém
que ele realmente conhecesse à moda antiga. Sentindo-se consciente de sua
solidão, estudou o menu e perguntou-se por que nunca trouxera Lydia a
Paris. Agora se arrependia, por ela e por si mesmo; os prazeres de uma
viagem eram menos reais para ele quando não podiam ser verificados por
uma testemunha.
Ele a tinha por certo — esta era parte do problema. Por que aquilo
sempre acontecia?
Quando ergueu a cabeça um jovem casal estava em um canto do salão,
observando a multidão. A mulher era estonteante — alta, bela, de raça
indeterminada. Pareciam desorientados, como se tivessem sido convidados
para uma festa maravilhosa que se mudara para outra parte. A mulher topou
com o seu olhar — e sorriu. Alex sorriu de volta. Ela puxou a manga do
companheiro e apontou para a mesa de Alex.
Subitamente, aproximaram-se.
— Incomoda-se se nos juntarmos a você por um instante? — perguntou
a mulher. — Não estamos encontrando nossos amigos. — Ela não esperou
pela resposta, sentando-se ao lado de Alex e expondo, no processo, um
palmo de coxas morenas sem meias.
— Frederic — disse o homem, estendendo a mão. Parecia mais
comedido que a companheira. — E esta é Tasha.
— Por favor, sentem-se — disse Alex. Algum instinto o fez evitar dizer
o próprio nome.
— O que você está fazendo em Paris? — perguntou Tasha.
— Só, sabe, dando um tempo. O garçom chegou com o champanhe.
Alex pediu mais duas taças.
— Creio que temos alguns amigos em comum — disse Tasha. — Ethan
e Frederique.
Alex meneou a cabeça, evasivo.
— Adoro Nova York — disse Frederic.
— Não está mais como era antes — rebateu Tasha.
— Sei o que quer dizer. — Alex resolveu ver até onde aquilo iria.
— Ainda assim — disse Frederic -, é melhor que Paris.
— Bem — disse Alex. — Sim e não.
— Barcelona — disse Frederic -, é a única cidade moderna da Europa.
— E Berlim — disse Tasha. — Não mais.
— Conhece bem Paris? — perguntou Tasha.
— Em verdade, não.
— Devemos mostrá-la para você.
— É uma merda — disse Frederic.
— Há alguns lugares — disse ela — que não são muito enfadonhos.
— De onde são vocês? — perguntou Alex para a mulher, tentando
desvendar sua aparência exótica.
— Moro em Paris — disse Tasha.
— Quando não está em Nova York.
Beberam a garrafa de champanhe e pediram outra. Alex ficou feliz com
a companhia. Além disso, estava gostando de parecer com fosse lá quem
pensavam que fosse. A ideia de que o teriam confundido com outra pessoa
era tremendamente confortável. E estava fascinado por Tasha, que
definitivamente estava flertando com ele. Diversas vezes ela segurara o seu
joelho para enfatizar alguma coisa que dizia e roçara-lhe o seio esquerdo.
Um gesto inconsciente ou deliberadamente provocador? Alex tentou
determinar se sua ligação com Frederic era de natureza romântica. Os sinais
apontavam para ambas as direções. O francês a observava atentamente
embora não parecesse se ressentir de ela estar flertando. Em certo momento
ela disse:
— Frederic e eu costumamos sair.
Quanto mais Alex olhava para ela, mais enfeitiçado ficava. Era uma
mistura perfeita de raças, familiar o bastante para responder a um ideal
aculturado, e exótica o bastante para extasiar.
— Vocês americanos são tão puritanos — disse ela. — Todo esse
barulho só porque seu presidente recebeu um boquete.
— Nada teve a ver com sexo — respondeu Alex, consciente de ter
corado. — Foi um golpe da direita. — Queria parecer calmo e entediado.
Contudo, de algum modo soou defensivo.
— Tudo tem a ver com sexo — disse ela, encarando-o.
Assim provocado, o Veuve Clicquot borbulhando como um isótopo
brilhante em suas veias, pousou a mão na parte interna das coxas da mulher,
só parando na borda de sua minissaia apertada. Mantendo o olhar, ela
molhou o lábios com a língua.
— Isso é uma merda — disse Frederic.
Embora Alex estivesse certo de que o sujeito não podia ver a sua mão, o
objeto da exclamação de Frederic era preocupantemente indeterminado.
— Você acha que tudo é uma merda.
— Porque é.
— Você é um especialista em merda.
— Não há mais arte. Apenas merda.
— Agora isso está decidido — disse Tasha.
Um debate quanto ao jantar: Frederic queria ir ao Buddha bar, Tasha
queria ficar. Acabaram concordando em pedir caviar e outra garrafa de
champanhe. Quando a conta chegou, Alex lembrou-se no último instante de
não jogar o seu cartão de crédito sobre a mesa. Decidiu, como um primeiro
passo para elucidar o mistério de sua nova identidade, que ele era o tipo de
sujeito que pagava à vista. Enquanto Alex pagava a conta, Frederic olhava a
distância com ar de quem tem prática na arte de ignorar contas. Alex teve
uma breve e irritada intuição de que estava sendo usado. Talvez aquilo fosse
rotina para eles, fingindo reconhecer um estranho com uma boa mesa.
Antes que ele pudesse desenvolver tal noção, Tasha tomou-o pelo braço
e conduzi-o noite adentro. A pressão de seu braço e o aroma de sua pele
eram revigorantes.
Ele decidiu ver onde aquilo o levaria. Nada mais tinha a fazer.
O carro de Frederic, que estava estacionado a alguns quarteirões dali,
não parecia em boas condições. A grade frontal estava amassada; um dos
faróis apontava para cima em um ângulo de 45 graus.
— Não se preocupe — disse Tasha. — Frederic é um excelente
motorista. Ele só bate quando quer.
— E hoje à noite o que ele quer? — perguntou Alex.
— Estou com vontade de dançar — disse Frederic. E começou a cantar
"Let's Dance" de Bowie, batendo com as mãos no volante enquanto Alex
entrava no banco de trás.
Le Bain Douche estava meio vazio. A única pessoa que reconheciam
era Bernard Henri Levy. Ou era muito cedo, ou alguns anos muito tarde. A
conversa passara para o francês e Alex não conseguia acompanhar tudo.
Tasha estava em cima dele, cutucando-lhe o braço, roçando-lhe
intermitentemente o seio esquerdo perfeito, e ele estava um tanto nervoso
com a reação de Frederic. Em certo momento, houve uma discussão mais
rude que ele não entendeu. Frederic se levantou e saiu.
— Veja — disse Alex. — Não quero causar problemas.
— Sem problema — disse ela.
— Ele é seu namorado?
— A gente saía. Agora somos apenas amigos. Ela o empurrou para a
frente e beijou-o lentamente, explorando o interior de sua boca com a
língua. Subitamente ela se afastou e olhou para uma mulher com casaco de
couro branco que dançava junto à mesa ao lado.
— Acho seios grandes lindos — disse ela antes de beijá-lo com ardor
renovado.
— Acho os seus seios lindos — disse ele.
— Em verdade são — disse ela. — Mas não são muito grandes.
Quando Frederic voltou parecia mais calmo. Deixou diversas notas na
mesa.
— Vamos embora — disse ele.
Havia anos que Alex não frequentava clubes. Depois que ele e Lydia
começaram a morar juntos, os clubes perderam o encanto. Agora, sentia a
volta da antiga sensação, a antecipação da caça — a sensação de que a noite
guardava segredos que seriam revelados antes de ela terminar. Tasha falava
de alguém em Nova York que Alex supostamente conhecia.
— A última vez que eu o vi ele apenas batia a cabeça na parede, e eu
disse, Michael, você tem de parar com essas drogas. Já faz 15 anos.
A primeira parada era um salão de dança em Montmartre. Uma banda
estava no palco, tocando uma versão quase convincente de "Smells Like
Teen Spirit". Enquanto esperavam no bar, Frederic fingia tocar guitarra e
gritava o refrão: "Here we are now, entertain us." ("Aqui estamos nós,
divirta-nos.") Após tomarem seus cosmopolitans, baixam à pista de dança.
O barulho era alto o suficiente para evitar a conversa.
A banda começou a tocar "Goddamn the Queers". Tasha dividia a sua
atenção entre os dois, esfregando o quadril em Alex durante uma
interpretação particularmente ruim de "Champagne SuperNova". Fechando
os olhos e abraçando-a, ele perdeu a noção de suas coordenadas espaciais.
Aquilo na sua mão era um seio, o rosto ou a nádega dela? Ela introduziu a
língua no seu ouvido e ele imaginou uma cobra erguendo-se de uma cesta
de vime.
Ao abrir os olhos viu Frederic e outro homem conversando e
observando-o no canto do salão.
Alex saiu para ir ao banheiro e buscar uma cerveja. Ao voltar, Tasha e
Frederic dançavam abraçados uma balada francesa. Ele decidiu ir embora e
encerrar ali as suas perdas. Qualquer que fosse o jogo, ele subitamente se
sentiu muito cansado para continuar jogando. Naquele instante, Tasha olhou
e acenou para ele do salão de dança. Ela atravessou a multidão de
dançarinos em sua direção. Frederic a seguiu.
— Vamos embora — gritou ela.
Na calçada, Frederic tornou-se obsequioso.
— Cara, você deve pensar que Paris é uma merda total.
— Estou me divertindo — disse Alex. — Não se preocupe.
— Eu me preocupo, cara. E uma questão de honra.
— Estou bem.
— Ao menos podíamos procurar alguma droga — disse Tasha. — As
drogas em Paris são uma merda.
— Não preciso de drogas — disse Alex.
— Don't want to get stoned — cantou Frederic. — But I don't want to
not get stoned.
Começaram a discutir sobre o próximo destino. Tasha defendia irem a
um lugar aparentemente chamado Faster Pussycat, Kill Kill. Frederic
insistia em que não estava aberto. Ele queria o L'Enfer. O debate continuou
no carro. Acabaram cruzando o rio e depois pararam sob a torre de
Montparnasse.
Os dois porteiros saudaram os companheiros calorosamente. Desceram
a escadaria até um lugar que parecia brilhar com uma luz púrpura, a fonte
da qual Alex não podia discernir. Bateria e baixo pulsantes envolviam os
dançarinos. Agarrando na ponta de seu cinto, Tasha levou-o até uma área
elevada sobre a pista de dança que parecia ser uma área VIP.
A conversa tornou-se quase impossível. O que foi um tipo de alívio.
Alex conheceu diversas pessoas, ou melhor, meneou a cabeça para várias
delas que, ao seu turno, menearam a cabeça para ele. Uma japonesa gritou
em seu ouvido naquilo que provavelmente seriam diversos idiomas
misturados e, depois, voltou com um catálogo de pinturas horríveis. Ele
meneou a cabeça enquanto ela virava as páginas do catálogo.
Aparentemente era um presente. Agradavelmente bem-vindo, um homem
entregou-lhe uma garrafa sem rótulo cheia de um líquido claro. Alex
derramou um pouco no copo. Tinha gosto de uísque artesanal.
Tasha arrastou-o para a pista de dança. Abraçou-o e sugou-lhe a língua
com a boca. Justo quando sua língua parecia que seria arrancada de sua
boca, ela a mordeu, com força. Em instantes, Alex sentiu gosto de sangue.
Talvez fosse aquilo que ela queria, pois continuou a beijá-lo enquanto
forçava o quadril contra o dele. Sugava a sua língua com força. Ele
imaginou estar sendo inteiramente sugado pela boca da mulher. Gostou da
ideia. E sem perder a concentração em Tasha, subitamente pensou em Lydia
e na mulher antes de Lydia, e na mulher depois de Lydia, aquela com quem
ele a traiu. Como era possível, pensou, que o desejo por uma mulher sempre
despertasse o desejo por todas as outras mulheres de sua vida?
— Vamos embora daqui — gritou, louco de luxuria. Ela meneou a
cabeça e se afastou, dançando sozinha a alguns metros dali. Alex observou,
tentando seguir o seu ritmo até desistir e capturá-la em seus braços. Forçou
a língua entre seus dentes, surpreso com a dor do ferimento recente. Por
sorte ela não o mordeu desta vez; em verdade, ela o afastou. Subitamente
ela abria caminho de volta à área VIP onde Frederic parecia estar discutindo
com o atendente do bar. Quando viu Tasha, pegou uma garrafa no bar e a
atirou ao chão, perto dos pés dela, onde se espatifou.
Frederic gritou algo ininteligível antes de subir as escadas às pressas.
Tasha fez menção de segui-lo.
— Não vá — gritou Alex, segurando-lhe o braço.
— Desculpe — gritou ela, tirando a mão de Alex de seu braço. Ela o
beijou levemente nos lábios.
— Diga adeus — disse Alex.
— Adeus.
— Diga meu nome.
Ela olhou para ele, confusa e, então, como se tivesse subitamente
entendido a piada, riu sem graça, apontando para ele como se dissesse: você
quase me pegou. Ele a viu desaparecer escada acima, as pernas compridas
parecendo ainda mais longas à medida que se afastavam.
Alex tomou outro copo da bebida clara mas o cenário pareceu-lhe então
decadente e choco. Era um pouco depois das três. Ao sair, uma japonesa
empurrou-lhe diversos convites para clubes noturnos.
Na calçada, tentou recuperar o prumo. Começou a caminhar em direção
a St. Germain. Seu humor melhorou com a ideia de que eram apenas dez
horas em Nova York. Ligaria para Lydia. Subitamente acreditava saber o
que dizer a ela. Enquanto caminhava, notou o brilho de um farol movendo-
se lentamente na parte superior da parede ao seu lado; voltou-se para o
Renault amassado de Frederic que avançava na rua atrás dele.
— Entra — disse Tasha.
Ele deu de ombros. O que quer que acontecesse, era melhor que andar.
— Frederic quer ver como são esses lugares de fim de noite.
— Talvez pudessem me deixar no meu hotel.
— Não seja estraga-prazeres.
O olhar que ela lhe deu despertou-lhe a louca luxuria da pista de dança;
estava cansado de ser feito de babaca e ainda assim seu desejo superava-lhe
o orgulho. Após tudo aquilo, sentia que merecia esta recompensa, e deu-se
conta de que estava disposto a fazer qualquer coisa para consegui-la. Entrou
no carro e sentou-se no banco de trás.
Frederic ligou o motor e acelerou. Tasha olhou para Alex, mandou-lhe
um beijo, e então voltou-se para Frederic. Sua língua emergiu de sua boca e
lentamente desapareceu dentro do ouvido de Frederic. Quando Frederic
parou no sinal, ela se virou e beijou-o diretamente na boca.
Alex deu-se conta de que estava envolvido — de que era parte da
transação entre os dois. E subitamente pensou em Lydia, em como lhe
dissera que sua traição nada tinha a ver com ela, que é o que a gente sempre
diz. Como explicar-lhe que, enquanto suava sobre uma outra mulher, era
ela, Lydia, quem preenchia o seu coração?
Tasha subitamente pulou para o banco de trás e começou a beijá-lo.
Enquanto enfiava a língua inquieta em sua boca, pousou a mão sobre o
seu pubis.
— Oh, sim, de onde veio isso? — Ela tomou o lobo de sua orelha entre
os dentes enquanto abria a sua braguilha.
Alex gemeu quando ela roçou-lhe a cueca com os dedos. Olhou para
Frederic, que olhou de volta para ele e parecia estar dirigindo mais rápido
enquanto ajustava o espelho retrovisor. Tasha desceu com a língua ao longo
do tórax de Alex, brincando com os pêlos de sua barriga. Uma vaga
intuição de perigo foi superada pela intensidade da sensação do momento.
Ela tomou o seu pênis com a mão e, depois, com a boca, e ele sentiu-se
incapaz de intervir. Não se importava com o que acontecesse, desde que ela
não parasse. A princípio, quase não sentia o toque de seus lábios, o prazer
residindo mais na antecipação do que estava por vir. Por fim, ela roçou
levemente os dentes ao longo de seu pênis. Alex gemeu e afundou ainda
mais no banco enquanto o carro ganhava velocidade.
A pressão dos lábios dela tornou-se mais forte.
— Quem sou eu? — sussurrou.
E, um minuto depois:
— Diga-me quem pensa que sou.
A resposta, embora ininteligível, extraiu um gemido de prazer dos
lábios dele. Olhando para o retrovisor, viu que Frederic estava olhando para
o banco traseiro, mesmo enquanto o carro ganhava velocidade. Quando
Frederic mudou abruptamente para a quarta marcha, a cabeça de Alex
tombou para a frente e ele inadvertidamente mordeu a própria língua, os
dentes cortando o ferimento recente.
Em um impulso brusco ele escapou da boca de Tasha no exato momento
em que Frederic pisava nos freios e tudo começou a rodar.

Não tinha ideia de quanto tempo passou antes de conseguir sair do


carro.
O acidente pareceu quase uma brincadeira, o carro rodando como uma
folha cadente até a ilusão da falta de peso ser desfeita com a colisão contra
o acostamento.
Tentou lembrar de tudo isso enquanto estava sentado, enroscado como
um contorcionista no banco de trás, fazendo um inventário de suas
extremidades. Um silêncio pacífico de domingo prevaleceu. Ninguém
parecia se mover. Sua bochecha estava ferida e sangrando no lado de
dentro, no lugar onde a batera contra o apoio de cabeça do banco do carona.
No exato momento em que começou a suspeitar que estava surdo, ouviu
Tasha gemendo ao seu lado. A serenidade de sobrevivente foi substituída
pela raiva quando viu a cabeça de Frederic movendo-se sobre o painel e
lembrou-se do que poderia ter acontecido.
Mancando ao redor do carro, abriu a porta do motorista e arrastou
Frederic com rudeza para a calçada, onde ficou piscando com um talho na
testa.
— O que foi isso? — perguntou Alex.
O francês piscou e forçou a vista, inserindo um dedo na boca para
verificar os dentes.
Furioso, ele chutou Frederic nas costelas.
— Quem diabos pensa que sou? Frederic sorriu e olhou para ele.
— Você é só um cara — disse ele. — Você não é ninguém.
A caminho do hotel, descobriu-se pensando em Lydia. O rosto estava
ferido e dolorido; quando Frederic finalmente atingiu o acostamento ele
batera o rosto no vidro.
E a fumaça de seu cigarro o tornava ainda mais ciente dos cortes em sua
língua. Mas estava grato por ter escapado com ferimentos tão superficiais.
O carro rodara 180 graus e estourara um pneu no meio-fio antes de parar na
calçada. Alex os deixou ali, sem dizer nada enquanto Tasha chamava por
ele.
Quando foi descoberto, quando seu caso com Tracey tornou-se
impossível de ser negado, disse para Lydia que aquilo nada tinha a ver com
ela — que é o que a gente sempre diz — mas aquilo não era verdade. Tinha
tudo a ver com ela.
Embora tivesse mentido e tentado esconder a sua transgressão, no fim,
dava-se conta agora, precisava que ela soubesse. Tinha tudo a ver com
traição, a mais íntima das transações entre duas pessoas. Ela era parte da
equação. Como poderia explicar que, enquanto suava sobre outra mulher,
era ela, Lydia, quem preenchia o seu coração? Era como jogar o carro de
alguém contra uma árvore. Como o momento anterior ao impacto é prenhe
de amor por aquilo que você está prestes a perder.

***
O último beijo
S. J. Rozan

Lavando o sangue dela das mãos (pegajoso e grudento, depois quente e


escorregadio, rastros vermelhos se espiralando, nuvens rosadas disparando
para longe), ele pensou no primeiro beijo. Só nessa hora, e que estranho, foi
assim: ele ardia tanto por ela, e aquele beijo o acendeu. Diferente de todos
os outros depois dele, porque desconhecido; eletrizante não só pelo calor e
gosto de sal temperado dela, mas pela novidade, pela excitação quase
irreprimível do início.
A suavidade e a pungência daquele beijo voltavam em momentos
estranhos nos últimos meses, quando ele não estava com ela mas também
quando estava, às vezes até enquanto a beijava, aquele beijo que ocultava
todos os outros; ele podia apelar à memória e sempre apelava, mas a
emoção era muito maior quando era pego de surpresa, como agora. Às
vezes o impacto era tão grande que ele cambaleava, tinha de estender a mão
e se segurar em alguma coisa para não cair.
"Hoje não", disse ela naquela primeira noite, as pontas dos dedos como
borboletas inflamando a pele dele, os lábios roçando os dele, depois
adejando para longe; depois enternecendo-se para ele com tal pressa e
urgência que ele pensou que ela mudara de ideia e seria naquela noite. Mas
ela se soltou e sorriu e não disse "Não", disse apenas "Hoje não".
Ela pensou que o estava rejeitando, que tinha o controle. Não. Ele
esperou não porque ela quisesse, mas porque a espera esticava o fio,
aumentava o desejo.
E deve ter sido a espera que fez acontecer: aquele beijo — por alguns
dias, só o que ele tinha — brotou pela memória e pelo corpo dele,
saturando-o. E então, em momentos que ele não podia prever, concentrava-
se, crescia e se chocava nele como uma onda.
Momentos como este. Agora, com a lembrança, pela primeira vez veio
uma dor. Não inteiramente desagradável, aumentava a doçura, suavizava as
arestas. A dor era de pesar: lembranças, tudo o que ele tinha em princípio,
eram só o que lhe restara, agora que ela se fora.
Como tinha de ser. Como ela queria que fosse. Isso foi o que ele viu,
embora nenhum dos outros tenha visto. Ela declarou com clareza, e não só
para ele, certamente a cada um deles. Mas ele pensou que era um exagero
desenfreado e sem duvida os outros pensaram a mesma coisa. Só mais
tarde, quando ela puxou o único fio que caía da teia sobre ele e ficou atrás
sorrindo, foi que ele percebeu quem deveria ser a verdadeira vítima.
Não ele, mas ela própria. Ele queria ter visto antes, mas não podia
afirmar. Era mais inteligente do que os outros e certamente mais inteligente
do que ela, mas era só um homem. Quando ela o procurou, ele a quis.
Quando ela se curvou sobre ele para aquele primeiro beijo, só o que ele
sentiu foram promessa e orgulho.
Ela o procurou como cliente. Do jeito, ele entendeu mais tarde, como
procurara a todos eles, mas na época ele não sabia disso.
— Jeffrey Bettinger foi meu advogado até agora. — Ela falava com
energia, acomodando-se na cadeira do escritório dele. Estava vestida com
um tailleur de lã macia, cor de mogno, da cor de seus cabelos, e uma blusa
de um tom mais escuro do que a pele de marfim. Seu rosto brilhava de frio.
Enquanto ela cruzava as pernas, uma gema de gelo se derretendo deslizou
de sua bota para o tapete dele. Ele deu aos próprios traços uma máscara de
interesse educado, a verdadeira atenção fixa na lã e na seda, os montes e
baixios e a escuridão por trás deles.
Ele ficou sabendo dela por Bettinger, naturalmente, surpreendendo-se
como qualquer pessoa ao vê-la, um quadro a óleo opulento, dividindo um
drinque com a foto desbotada que era Bettinger. Ele não sabia que era uma
cliente e tampouco sabia sobre Cramer, Robbins ou Sutton. Ele não sabia o
que ela queria nem o que ela fizera. Mesmo quando descobriu a verdade,
ele não podia dizer com sinceridade que faria qualquer coisa de forma
diferente.
Naquele primeiro encontro, ela trouxe consigo uma pasta de pelica com
um pequeno cadeado prateado. Documentos valiosos, ela lhe disse. Como
novo advogado dela, ele não precisava executar nenhum dos documentos, a
não ser na eventualidade de morte dela, e neste caso ela o instruía a quebrar
o cadeado e seguir os desejos expressos dentro da pasta. Neste momento ele
precisava apenas trancar a pasta no cofre de seu escritório. Ele tem um
cofre, é claro?
Claro que sim. Ele pegou a pasta, deixando que os dedos roçassem nos
dela, respirando devagar seu delicioso perfume de verão.
Desde o princípio ele foi um advogado totalmente profissional. O que
aconteceu entre os dois — primeiro na imaginação dele e depois, logo em
seguida, nas noites e dias — nunca o distraiu de seus deveres, como faria a
um homem mais fraco. Provavelmente, disse ele a si mesmo, era por isso
que ela deixara Bettinger: o homem era um fracote. É possível que nunca a
tivesse aconselhado, só deixou que ela o conduzisse com uma argola
trespassada no nariz dele. Ele, por sua vez, não era assim: fazia objeções,
argumentava, sugeria alternativas a cada vez que ela o instruía a vender
uma propriedade a um preço desesperadamente baixo, a esboçar uma
cláusula adicional ao testamento deixando uma herança a uma causa
suspeita. Ela era uma mulher rica, disse-lhe ele, mas a riqueza chegaria ao
fim se não fosse esposada com a prudência.
A frase arrancou dela um riso amargo e inesperado: o termo "esposada",
explicou ela. Seu esposo fora advogado, um homem frio e desprezível que a
proibira de ter filhos ou amigos, a espancava e a confinava; fez de sua vida
um inferno interminável. Por várias vezes ele ameaçou matá-la se ela o
provocasse e ela desprezava a si mesma pela covardia que a impedia de
obrigá-lo a agir, ou de realizar o ato ela mesma. Ela tramava contra ele em
fantasias sombrias e secretas; pensou, admitiu ela sem pestanejar, que
realmente podia ter ficado insana por algum tempo, levada à loucura pelo
isolamento, pela dor e pelo medo.
— Você tentou? — perguntou ele, sentindo o desejo crescer enquanto
ela falava, tendo por trás dos olhos visões dela trêmula e machucada,
encolhendo-se atrás de uma sombra que assomava.
— Matá-lo? Ele morreu. — Ela falou desdenhosamente. — Antes que
eu criasse coragem para matar um de nós.
A morte subita de seu marido, disse ela, tinha sido uma surpresa, e a
riqueza com que ficou foi sua única fonte de prazer. (Ao ouvir isso o rosto
dele ardeu, sua mente disparando para a noite anterior, o calor dos beijos, o
crescendo do balanço dos dois, juntos, juntos.) Ela se interrompeu por um
momento de cautela. Com um sorriso, e sem alterar nem fazer exceção ao
que declarava, disse que gastaria seu dinheiro como e onde preferisse.
Ele não respondeu. Atravessou a sala, fechou a porta e a tomou ali, no
carpete de seu escritório.
Quando os dois corpos se entrelaçaram, ela fez o que ele pediu, embora
fosse estranho, doloroso ou humilhante. No que dizia respeito aos negócios,
por outro lado, ele foi inteiramente malsucedido ao tentar persuadir, adular,
insistir. Mas ele tentava sempre, porque não havia argola atravessando seu
nariz.
Agora, enquanto ele trabalhava, a lembrança daquele primeiro beijo o
inundou. Ele se viu tomado de outras lembranças, que não procurara mas
eram bem-vindas. Enrolando o corpo dela em lençóis para a viagem até a
encosta de morro onde a deixaria, um lugar que ela havia mostrado a ele e
lhe dissera que adorava, ele ouviu a voz dela, o sussurro baixo que deslizou
como gelo pela espinha. O cheiro acobreado de sangue metamorfoseado nas
fragrâncias de selva do perfume dela enquanto ele limpava a sala. Ninguém
procuraria por ela aqui, nem viria aqui por qualquer outro motivo, a esta
casa gloriosamente isolada e abandonada do outro lado do rio. Mas ele era
de natureza cuidadosa. Ele lavou as manchas de sangue, virou o colchão.
Eles não precisavam escapar para este lugar secreto, a não ser pelos
calafrios que dava nos dois. Eram solteiros, eram adultos, — podiam ter seu
caso em pleno meio-dia no meio da rua. Mas ela encontrou a casa e, quando
falou com ele a uma mesa num hotel de estrada, os dedos dos pés nas meias
arrastando-se pela barriga da perna dele, eles concordaram que era melhor
que vissem juntos, só como advogado e cliente.
O calor nas palmas das mãos dele ao secá-las na toalha depois de
terminado o trabalho o fez pensar na pele dela, um veludo claro sempre
mais quente do que a dele, como se ela vivesse em uma nuvem febril, um
trópico particular tórrido a partir do qual procurava por ele.
Na época ele pensou, ansiava por ele, ela estava ansiando por ele. Mas
ele estava enganado.
Na semana passada ela veio ao escritório dele sem anunciar e, sentando-
se naquela mesma cadeira (desta vez, reluzente de suor: o dia estava quente
e umido), declarou que não estava satisfeita. Não está satisfeita? Então o
que eram os gemidos, o coração acelerado, os suspiros suaves?
— Estou demitindo você — disse ela. — Seus serviços não são mais
necessários.
— Qual é o problema com você? — sibilou ele furiosamente,
atravessando a sala para fechar a porta.
Ela se levantou de imediato e a reabriu.
— Vou levar meus documentos, por favor. — Ela continuou de pé e
apontou com a cabeça para o cofre.
— Você está...?
— Tenho hora marcada com o Sr. Dreyer. Da Dreyer and Holt. — Caía
gelo das palavras dela; ele pensou nas botas que ela usava naquela primeira
manhã. Ela olhou o relógio.
— Se preferir não devolver meus documentos, não terei alternativa a
não ser acrescentar isto à queixa que farei à polícia e à Comissão de Ética.
Ele tentou se firmar.
— Queixa?
— Sim, e reter meus documentos é agravante. Imagino que haja uma
distinção, mesmo entre advogados, entre tirar vantagem sexual e
profissional de uma cliente e o roubo cabal.
Atordoado, ele continuou mudo.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Fazer amor com uma viuva para distraí-la de conselhos ruins que
beiram a ilegalidade? É base para queixa, não é o que você diria? Algumas
transações que administrou para mim deram milhares de dólares de
prejuízo. Está demitido. Vou entrar com uma queixa profissional e criminal
daqui a uma semana.
Nas noites juntos, ela arrulhava obscenidades. As palavras torpes que
vinham com seu hálito quente na orelha dele o estimulavam, mas nunca o
chocaram. Mas as frases abstratas que ela agora dizia friamente pareceram
indecência a ele.
— Aqueles negócios. Foram ideia sua, todos eles. Eu sempre fiz
objeção. Tenho memorandos, cartas no arquivo...
— Pós-datados, sem duvida.
— Não! Você sabe...
— O que eu sei é que, independentemente do motivo para sua sentença,
nenhuma viuva rica o procurará novamente depois que eu acabar com você.
O interfone tocou; a secretária disse que o cliente das dez horas tinha
chegado. Desnorteado, desorientado, ele abriu o cofre e entregou a ela a
pasta de pelica.
Ela se virou e saiu. Ele dormiu mal naquela noite e na seguinte.
Ansiando por ela, confuso com relação a ela, e esse novo medo perturbando
as tentativas que fazia de esquecer. Dois dias depois, ele ainda estava em
choque.
E, por sorte, acabou acontecendo. Ele fez uma coisa rara, saiu do
escritório no início da tarde — no que poderia se concentrar? — e foi para a
taverna revestida em painéis de carvalho onde os advogados se
encontravam para negociar, para debater e para esquecer.
— Você não parece muito bem — disse Sammy, o barman, como se ele
precisasse que lhe dissessem isso. Ele sacudiu a cabeça, não deu
explicações. Sammy conhecia seu trabalho; serviu a bebida e tentou ser
reconfortante.
— Pelo menos você não é Bettinger. — Sammy ergueu o queixo para
uma forma amarfanhada no canto. — Está sendo investigado, sabia disso?
Pela Comissão de Ética e pela polícia.
Uma longa olhada no imóvel Bettinger; o ardor lento do scotch abrindo
caminho a fogo até o esclarecimento. Ele pegou o segundo drinque no
balcão e atravessou a sala. Pagou uma bebida e outra para Bettinger, e o
soturno Bettinger, em frases pela metade, indistintas e deturpadas, olhou
para o gim, murmurando "piranha viuvanegra", lançando luz na escuridão
dele.
Ela o acusara. Bettinger veio antes dele, mas antes vieram Cramer,
Robbins e Sutton. Cada um deles o herói dela, salvando-a da incompetência
do advogado anterior (as queixas e acusações formais que ela dera foi algo
que ela não mencionou a nenhum deles). Cada um deles instruído a fazer
negócios ruins, vender a preço baixo e comprar caro. As objeções de cada
um deles silenciadas com a generosidade do corpo dela, na casa deserta.
Cada um deles arruinado. Bettinger, num companheirismo piegas,
ofereceu-lhe sua solidariedade, alegou desgosto, fingiu se enfurecer e jurou
vingança. Mas ele podia ver — qualquer um podia ver — que se ela
entrasse naquela taverna e se dirigisse aonde os dois estavam sentados,
Bettinger a acompanharia para fora dali de quatro.
Ele deixou Bettinger em seu poço de autopiedade e caminhou pelo dia
que caía para pensar. O cinza do céu escureceu e ele considerou o seguinte:
cada queixa fora encaminhada, como dissera ela que faria contra cada um
deles, uma semana depois de ter largado a bomba e trocado de advogado.
Estrelas alfinetavam buracos no céu e ele pensou nisto: o ódio por si mesma
na voz dela quando ela disse não ter conseguido se resgatar da brutalidade
do marido, tirando a própria vida. As ruas da cidade silenciaram em volta
dele enquanto ele a ouvia dizer que gastar a herança era o único prazer que
tinha.
E ele viu o que os outros não viram: para quem a armadilha realmente
fora montada, quem devia ser a vítima.
Então fez o que ela queria. Ligou para ela e perguntou se já havia
entrado com as acusações e queixas contra ele. Ela disse que não. Ele lhe
pediu um encontro na casa que era deles, do outro lado do rio.
— Para conversar — disse ele.
E ele ouviu um tremor de expectativa na voz dela quando concordou.
E agora, esta noite, ele lhe daria o que ela esperava, satisfaria o desejo
dela. Desejos. O facho dos faróis do carro dela o atingiu na porta. Enquanto
ela entrava na varanda onde ele esperava, ele sentiu o calor dela. Ficaram
parados de pé e o tempo parou com eles, até que, sem dizer nada, ela
apertou o corpo, os lábios, nos dele. Ele a levou para a cama. Despiu-a
lentamente, a blusa, a saia, a meia de seda, e a prendeu na cama com as
algemas prateadas que ela trouxera para eles nos primeiros dias. Com as
mãos, com os lábios e a língua ele se demorou, fazendo amor devagar com
ela, levando-a ao clímax e atingindo-o junto com ela. Depois disso não
abriu as algemas, nem ela lhe pediu que abrisse. Ele a segurou
delicadamente, afagando seus cabelos enquanto ela ficava deitada imóvel,
os olhos fechados, os lábios separados.
Depois ele se levantou e a vendou. Ela sorriu com suavidade. Ele a
beijou pela última vez. Os sabores, os aromas, os arrepios do primeiro beijo
avançaram e rolaram sobre ele como uma onda. Depois se aquietaram,
revelando a finalidade acetinada deste último.
O último beijo. Ela tentou, agora ele entendia, induzir cada um deles,
Bettinger e os outros, a isto, esperando que alguém a libertasse. Os
desastres que caíram sobre eles eram o castigo por serem fracos.
Ele era forte. A lâmina brilhava ao ser deslocada para o coração dela.
Ela arqueou para ele com prazer. Não gritou, mas soltou o mesmo gemido
baixo que ele ouvira não muito antes, no auge de sua alegria.
Ele queimou as roupas dela na lareira, envolveu a bolsa junto com o
corpo, deixou-a no banco traseiro do carro dela. Ele dirigiu até a encosta
que dava para a cidade, cavou para ela uma cova entre as árvores e, sob um
céu pontilhado de estrelas, disse adeus.
Abandonando o carro dela na mata, ele escalou de volta à casa para ir
em seu próprio carro para casa e dormiu profundamente.
No escritório, no dia seguinte, sua manhã foi produtiva e a tarde se
passou da mesma forma. Ele decidiu ir à taverna e pagar uma bebida a
Bettinger. Bettinger, afinal, lhe prestara um grande favor. É claro que ele
também fizera um favor a Bettinger, Robbins e Sutton, embora eles não
soubessem a quem agradecer. Com a queixa retirada, os processos contra
eles nunca iriam adiante. Ele os libertara também.
Ele estava prestes a sair quando a polícia chegou. Não perderam tempo
e o prenderam por homicídio.
— Recebemos um telefonema do advogado dela. Ele buscou pela
própria voz.
— Paul Dreyer?
O detetive explicou. Ela deixou um recado com Dreyer na noite anterior
afirmando que ligaria pela manhã antes das dez. Se não telefonasse, ele
teria de abrir a pasta de pelica no cofre dele. Ela não telefonou e, assim,
obedecendo às instruções, Dreyer quebrou o cadeado. Dentro da pasta havia
orientações para chegar à casa e à encosta do morro, e um bilhete pedindo
que as autoridades examinassem as transações que o advogado anterior
realizara para ela. Ela não tinha certeza, dizia o bilhete, mas acreditava que
estava sendo enganada. Ia confrontar o advogado, que também era seu
amante. E, dizia o bilhete, ela estava com medo.
O advogado não foi nomeado. Mas ela havia dito ao advogado
contratado agora quem era seu advogado anterior.
Os tiras tiveram uma manhã ocupada. Encontraram a casa, o corpo, o
carro dela. Encontraram sangue dela no colchão virado. Encontraram as
digitais dele.
Eles o levaram. Enquanto ele saía para a calçada, os sabores, aromas, os
arrepios do primeiro beijo esperavam de tocaia. Eles o atingiram com tal
impacto que ele cambaleou, e porque estava algemado e não podia estender
a mão para se apoiar em nada, ele caiu.

***
A onda sorrateira
Anne Perry

Tonia dirigia e Kate estava no banco do carona ao lado dela, falando do


itinerário, o que deixou Susannah livre para olhar o sublime litoral que se
estendia num azul brilhante até o horizonte a oeste. Não que o itinerário
precisasse de alguma discussão. Elas simplesmente seguiam a orla marítima
ao sul de Astoria, pelos mais ou menos 30 quilômetros até a casa de praia
onde iam passar alguns dias juntas. Era a primavera de 1922 e elas se viram
pouco nos últimos anos desde a guerra.
É claro que a América só se envolveu na guerra mais para o final, mas
isso ainda provocou mudanças enormes na vida das três. Mesmo tão a
oeste, como na costa do Oregon, elas sentiam as reverberações do conflito
na Europa. A sociedade nunca mais seria a mesma com a volta da paz.
Seria "paz" a palavra certa? Susannah olhou para o trecho reluzente do
Pacífico estendendo-se diante dela enquanto o carro perdia velocidade,
subindo o aclive.
Havia pinheiros à esquerda, florestas que se alastravam para o interior
com uma abundância de madeira que enriqueceu famílias como a dela, e ao
norte ficava o vasto rio Columbia com seu salmão aparentemente
inesgotável, abastecendo fábricas de enlatados que exportavam para o
mundo. Mas "paz"? Esta era uma qualidade interior e, ao observar as duas
irmãs na frente — a educada e orgulhosa Tonia, toda sua dor reprimida sob
um controle cuidadoso; Kate, seu pesar explodindo de vez em quando em
um gênio escaldante —, paz não parecia a palavra certa a usar.
— Não podemos esperar que este clima perfeito dure muito — disse
Kate, virando-se em seu banco para olhar o mar. A costa era estonteante,
penhascos e promontórios rochosos recortados, as ondas se chocando neles
e a arrebentação branca brilhando ao sol.
— Claro que não — concordou Tonia, a voz cheia de emoção. — Nada
dura muito.
Kate continuou de rosto virado.
— Então é melhor aproveitarmos o máximo enquanto pudermos. Uma
chuvinha não vai doer... O que me preocupa são os dias cinzentos
intermináveis. Nem me importo se houver uma tempestade... Elas podem
ser magníficas.
— Não se importaria mesmo — respondeu Tonia, tirando a mão do
volante por um momento para empurrar o cabelo para trás. Ela o cortara
bem curto, em obediência à nova moda. Era escuro e bonito, destacando a
intensidade de suas feições.
— O que quer dizer com isso? — disse Kate, desconfiada.
— Que você gosta de tempestades, é claro — respondeu Tonia com um
leve sorriso. — Trovões, relâmpagos e a proximidade do perigo. Não gosta?
A eletricidade no ar?
— Gosto do vento e do mar — disse Kate, como se medisse as palavras,
sentindo que precisava ter cuidado.
Tonia sorriu com um ar de segredo de quem sabia mais do que estava
revelando.
— Será que vamos ver alguma baleia? — disse Susannah. — Elas vão
para o norte nessa época do ano.
— Se estiver disposta a ficar de pé e observar por bastante tempo, é
provável que veja — respondeu-lhe Tonia. — Você sempre foi boa em
observações. — Ela parecia prestes a acrescentar alguma coisa, mas depois
mudou de ideia.
Isso deixou Susannah sentindo-se pouco à vontade, sem saber por quê.
Ela sempre considerou Tonia com admiração e uma certa reverência. Ela
era bonita, inteligente e tinha 33 anos, ao passo que Kate tinha 29 e
Susannah, 25. Foi Tonia quem se casou com o brilhante e charmoso Ralph
Bessemer. Que casamento, aquele! Toda a Astoria importante estava
presente, feliz, exibindo-se, tocada de uma inveja que a maioria ocultava.
Era dinheiro se casando com mais dinheiro. O que mais se poderia esperar?
E Antonia Galway era a noiva perfeita para ele, com a aparência, a pose, a
herança, ela seria tudo o que ele desejava, não só a resposta a seu amor, mas
uma ajuda na consecução de suas ambições.
Mas isso foi há anos. Agora Ralph estava morto e nem Kate nem
Susannah tinham se casado, pelo menos ainda não.
Elas estavam quase chegando. A casa de praia pertencia à família há
anos. Antes da guerra, seus pais vinham com frequência. Era cheia de
lembranças, a maioria delas feliz. Depois da morte dos pais, as irmãs
passaram a vir com menos frequência, mas apenas porque outros aspectos
da vida consumiam tempo demais.
Tonia saiu da estrada numa curva e entrou em uma trilha, e cinco
minutos depois elas pararam diante da pequena casa de madeira, a menos de
90 metros da beira dos seixos, onde começava o longo declive até a areia
compacta. Havia algumas árvores perto dali, pinheiros solitários e batidos
pelo vento, corajosos o bastante para resistir ao inverno. Mais acima da
ladeira, havia rododendros numa profusão de escarlate e ametista à sombra
do dossel da floresta. Agora eram silvestres, mas alguém os plantara no
passado.
— Não vá se sentar aí, Susannah! — disse Tonia animadamente. —
Temos de desfazer as malas!
Susannah saiu repentinamente de seu devaneio e obedeceu. Elas só
trouxeram uma mala de roupa cada uma, saias pesadas e casacos contra o
vento, calçados resistentes, peças quentes de lã e roupas para a noite. Além
disso, é claro, havia vinte caixas de mantimentos, roupa de cama, toalhas de
banho, material de limpeza. Elas deixariam o lugar como encontraram! E
livros para ler, um quebra-cabeça e um pouco de trabalho manual, o
bordado de Kate, o crochê de Tonia e a costura de Susannah. É possível que
nunca tocassem nisso; dependia do clima. Era uma ideia desagradável, mas
podia chover por uma semana com muita facilidade.
Elas levaram as caixas para dentro, guardaram os mantimentos, fizeram
as camas e acenderam a lareira na sala de estar e o fogão bojudo de ferro na
cozinha, para cozinhar e aquecer a água. Nunca houve problemas com
combustível, havia lenha suficiente para durar uma vida inteira. Carregá-la
para dentro e cortá-la em tamanhos que pudessem ser utilizados era na
verdade trabalho de homem mas, como muitas pessoas descobriram com a
guerra, as mulheres, quando necessário, podiam fazer muitas coisas.
— Queria dar uma volta na praia antes de comermos — disse Kate,
parada junto à janela da sala de estar, olhando o mar pelo vidro irregular.
Podia ver a curva do promontório ao sul e a longa volta da baía ao norte, e a
água tranquila de uma laguna, onde um pequeno rio desembocava em uma
bacia natural antes de abrir caminho para o mar. Que agora estava imóvel, e
duas garças azuis descreviam um padrão elegante e amplo no céu claro
antes de pousar em algum lugar fora de vista.
— Boa ideia — concordou Susannah, ansiando por sentir a areia
compacta sob os pés e por dar uma caminhada antes de se acomodar para a
noite. Astoria ficava à beira da água, mas era do rio, e embora o Columbia
fosse imenso, para ela sempre faltava o poder livre e a vitalidade do mar.
Nesta costa, em particular, as ondas quebravam incessantemente, mesmo
num dia sem vento. Havia alguma coisa na formação da terra que levava a
água a se encapelar e quebrar numa espuma branca, avolumar-se e quebrar
novamente, e de novo, de modo que até onde os olhos podiam ver o mar de
água branca se arremessava no céu azul e se chocava na espuma fervilhante,
disparando até a praia. Se o oceano fosse vivo, era ali que ele vivia.
Tonia pegou o casaco numa concordância muda e as três saíram,
andando ombro a ombro pelo gramado e em seguida descendo com cuidado
o declive para as pedras, passando por madeira recém-atirada à praia, e
depois por fim chegando à areia. A maré estava baixa e havia muito espaço
para caminhar. O vento era suave e o quebrar das ondas estável, uma
torrente e um estrondo reconfortantes. Kate ergueu a cabeça para o vento, o
cabelo castanho-escuro soprado do rosto, mostrando as linhas da face e a
sobrancelha bem delineada, e no entanto estranhamente vulnerável, como se
ela tivesse conhecido muita dor e ainda a trouxesse consigo.
Agora Tonia andava um pouco à frente, olhando para o mar. Susannah
se perguntou se Tonia via em Kate as mesmas coisas que ela. Sentiria ela a
culpa, ou só a raiva? Será que tinha a mais remota ideia do quanto havia de
tristeza? Agora Ralph estava morto há um ano, mas claramente a dor era
mais antiga do que isso. Estava presente dois anos antes, quando ele foi
preso. Como o mundo podia se despedaçar em uma curta semana! Pelo
menos despedaçou para Kate e para Tonia.
Para Susannah, ele se rompeu lentamente, como se rastejasse para
baixo, piorando dia após dia, até se tornar insuportável. Mas elas não
sabiam disso. Agora caminhavam à frente dela, o cabelo voando, as saias
moldadas de encontro aos corpos por obra do vento, na verdade não mais
do que uma brisa, sem nada que o atenuasse entre este lugar e o Japão!
Ela se curvou e pegou um corrupio, um exemplar perfeito. Tão poucas
coisas eram perfeitas como a aparência dele. Ela pensou que antigamente
Ralph era perfeito.
Mas havia Tonia, e Kate. Teria ele rido disso — todas as três irmãs? Ela
costumava pensar que ele era dono do melhor, mais forte e mais singular
senso de humor, que o riso dele curava todos os pequenos arranhões e
esfoladuras da vida, tirava-lhes a importância e os rebaixava a coisas dignas
de piada — e depois ao esquecimento. Mas antes ela pensava em muitas
coisas tolas.
Ela baixou o corrupio novamente, com delicadeza, para que não se
quebrasse. Havia também outras conchas, de cuja maioria não sabia o
nome. Ela conhecia as conchas de navalha e sabia ser cuidadosa ao pegá-
las; as bordas podiam produzir cortes profundos. Na verdade podia-se cortar
a garganta de alguém com uma das grandes, do tipo encontrado nas lagunas
rochosas no promontório, quando a maré está baixa.
Elas estavam a cerca de 6 metros de onde as ondas finalmente paravam,
hesitavam e depois puxavam para trás e voltavam à água profunda. A areia
estava molhada, mas ela não tinha muita certeza se a maré subia ou descia.
Kate já estava quase no mar, Tonia ao lado dela. A luz se demorava, o ar
estava um pouco mais frio, as montanhas de espuma branca eram
luminosas.
E então, de repente, uma onda não parou, continuou a se aproximar,
avolumando-se na areia, veloz e funda, e Kate estava nela até as
panturrilhas, suas botas e a saia ensopadas, e Tonia só escapara porque viu a
onda a tempo e correu, a saia voando.
A onda puxou novamente, quase tirando o equilíbrio de Kate,
arrastando a areia sob ela, que arfou de choque e de frio. Depois começou a
subir aos tropeços, a saia molhada batendo nos tornozelos.
Tonia olhou para ela de olhos arregalados, uma expressão impossível de
interpretar.
— Esqueceu das ondas traiçoeiras, hein? — observou ela. — Estou
encharcada! — disse Kate, furiosa. — Minhas botas, a saia, tudo! Pelo
amor de Deus, você podia ter me avisado! Ou pelo menos sair do meu
caminho!
Tonia franziu as sobrancelhas.
— Avisá-la? Minha querida, você conhece a costa do Oregon tão bem
quanto eu! Se não viu a onda traiçoeira chegando, então não estava
prestando atenção, sua cabeça estava em outro lugar. E eu não estou no seu
caminho. A praia é larga o bastante para nós duas.
— Você viu a tempo de fugir! — acusou Kate, a raiva ainda clara no
rosto. — Eu teria avisado você!
Algo semelhante a um sorriso assomou a boca de Tonia. — Teria? —
perguntou ela. — Teria mesmo, Kate?
— Mas que pergunta é essa? — gritou Kate para ela. — É claro que
sim!
— Estou surpresa. — Tonia se virou.
Susannah esperou que Kate retaliasse, depois a viu parada, imóvel, a
saia molhada prendendo-se nas pernas, o frio gélido no vento. Ela ficou
olhando Tonia se afastar e em sua expressão havia um constrangimento e
algo que parecia o início do medo.
Susannah prendeu a respiração e sentiu o coração aos saltos. Com uma
clareza como se a tivesse ouvido falar, ela sabia o que estava na mente de
Kate, o pavor e a vergonha. E no entanto ela precisava prosseguir, como se
não pudesse parar. Ralph fora o marido de Tonia, encantador, espirituoso,
ambicioso, fadado a uma cadeira no Senado e talvez à mansão do
governador num dia não muito distante.
Agora ela estava apavorada que Tonia soubesse, ou pelo menos
suspeitasse. Saberia ela? O que se ocultava por trás de suas palavras?
Ou era só consternação em Tonia, solidão e orgulho ferido, porque
Ralph caíra tanto? E em Kate a culpa escapando por onde ninguém
suspeitava, porque Kate tinha na boca o gosto da própria traição?
Tonia se agachou e pegou uma concha. Deve ter sido uma concha boa,
porque ela a pôs no bolso, depois olhou para Kate. Ela mal pareceu dar pela
presença de Susannah, como se ela fosse uma gaivota ou outra coisa natural
que pertencesse àquele lugar, mas que não tinha importância.
Passado o primeiro momento em que se sentiu excluída, Susannah não
ficou ofendida. Foi um alívio. Se Tonia suspeitava de alguma coisa, era em
Kate que ela pensava.
A traição de Kate a ela foi um erro aos olhos de qualquer um. Pode-se
compreender — ah, com muita facilidade! A lembrança de Ralph dominou-
a e a envolveu, como a amplidão de ar salgado que a tomava nos braços,
enchendo seus sentidos e queimando sua boca, os pulmões, até a mente. Só
que era limpo e doce, e não tinha limites, era ilimitado para qualquer ser
vivo. Pois espera-se que não se roube o outro. Sim, ela podia entender Kate,
qualquer mulher entenderia, embora a condenasse.
Condenariam Susannah? Veriam como o ato de uma mulher desprezada,
usada e posta de lado, um ato banal de ciume e vingança?
Não foi assim. Mas ainda cortaria fundo, até o osso, se considerado
desta forma. Pouco ajudaria se estranhos soubessem que foi tão
desesperadamente difícil, uma decisão terrível, combatida e contestada, a
escolha entre a traição a terceiros ou a si mesma e a tudo o que ela sabia ser
correto. Ela precisava dessa compreensão por parte dos que se importavam
com ela.
Mas no fundo ela sabia que Tonia nunca entenderia. Ela amara Ralph
com uma dedicação devoradora. Talvez parte disso tenha sido ambição,
vendo suas possibilidades e sua ânsia por realizá-las, e talvez boa parte
tenha sido o orgulho da posse. O homem mais charmoso, inteligente e
educado de Astoria havia sido dela. De todas as jovens bem-nascidas e
elegantes que o queriam, foi a ela que ele escolheu. Mas também houve
uma boa dose de mera paixão humana, o riso, o calor, a dor de amar e ser
amada, o coração aos saltos à aproximação dele, a felicidade quando ele
sorria, o som de sua voz mesmo quando ele não estava ali, a lembrança
perfeita do sorriso dele. Não, Tonia não entenderia nem perdoaria nada que
Susannah tivesse feito. Graças a Deus ela não sabia.
Aliás, Kate tampouco a perdoaria. Isto era tão certo quanto o anoitecer.
Sua raiva seria absoluta, apesar da própria traição. Ela não veria como
paixão, e portanto um erro, mas muito perdoável. Ela veria como uma
vingança fria — o que não era! No fim, aconteceu por opção dela!
Mas graças a Deus Kate também não sabia. Esta era a primeira vez em
que as três ficavam sozinhas juntas desde a morte de Ralph, e elas iam
passar cinco dias aqui, cada uma delas guardando seus segredos. Elas iriam
sorrir e conversar como se não houvesse nada a esconder, nenhuma mentira,
nenhuma raiva ou dor oculta. Seria o teste definitivo!
Elas voltavam para a casa, o vento agora em suas costas, mais frio à
medida que o sol baixava no horizonte, formando uma trilha brilhante na
água e vertendo um fogo claro nas cristas curvas das ondas. O rugido do
quebrar das ondas nunca cessava e no entanto era um som estranhamente
tranquilizador, como a respiração da terra. Desta vez elas não andaram perto
o bastante para que uma onda traiçoeira as pegasse.
Susannah não conseguia expulsar este pensamento de sua mente
enquanto observava Kate lutar contra o tecido molhado e apertado. Devia
estar terrivelmente frio em suas pernas, mas ela não voltou a tocar no
assunto.
A manhã seguinte foi quente e linda. Nesta época do ano não se podia
ter certeza de que ia durar, e assim, quando Tonia sugeriu que elas
seguissem de carro até o sul pela estrada costeira e caminhassem junto ao
promontório sob os pinheiros, Kate e Susannah aceitaram a ideia.
Depois do café-da-manhã, elas saíram, Tonia dirigindo, como sempre.
Era uma viagem de meia hora. Elas tiveram uma conversa banal sobre
amigos em comum, a condição da estrada, até assuntos políticos como a
situação na Europa na tentativa de reconstrução depois da devastação de
mais de quatro anos de uma guerra que tirou a vida de mais de 10 milhões
de homens, e mutilou e aleijou Deus sabe quantos outros. Era um assunto
sombrio, mas era seguro.
Não havia nada de pessoal nele, nada que mexesse em suas próprias
feridas ainda inflamadas.
Elas estacionaram o carro e subiram sob o sol o caminho íngreme acima
do mar. Ouviram o som claro e agudo de um melro vermelho, e um
momento depois viram-no empoleirado em um ramo, as penas escarlate e
brilhantes facilmente visíveis. A azaleia silvestre florescia e o aroma das
agulhas de pinheiro dava ao ar uma pungência que parecia lavar cada
pensamento ou lembrança amargos, como a vista do mar os tirava da mente.
Elas observaram na distância, procurando ver baleias saltando, o jorro
branco de água contra o azul que denunciaria sua posição. Abaixo delas, as
fileiras brancas de ondas quebravam incessantemente na areia,
deslumbrando os olhos, o vento da praia carregando os borrifos como
fumaça de suas cristas.
— É perfeito — disse Kate com um sorriso. — Não consigo pensar em
nada mais bonito.
— É mesmo — concordou Tonia. — Em especial daqui de cima. Mas
os olhos podem enganar, não podem, Kate? Você deve saber disso.
Kate ficou sobressaltada.
— O que quer dizer? Só porque fui pega pela onda ontem à tarde?
Qualquer um que estivesse andando mais perto da água teria sido pego. Por
acaso fui eu.
— É assim que você vê a vida? — O sorriso de Tonia era frio. — Nada
é causa e efeito, nenhuma responsabilidade? As coisas só acontecem por
acaso com você?
Um pingo de cólera se acendeu nos olhos de Kate.
— Não está exagerando? Eu molho meus pés numa onda traiçoeira e
toda a minha filosofia de vida é irresponsável? Posso dizer com a mesma
facilidade que você fugiu da onda sem me avisar, então toda a sua vida se
resume a fugir das coisas e deixar que os outros sofram!
— Por "outros" quer dizer você? — perguntou Tonia, um humor ameno
na voz. — Tem certeza de que se refere a mim? Susannah também não se
molhou. Ela andou afastada da água o tempo todo.
— Ah, que bom para Susannah! — disse Kate com sarcasmo. —
Quanta sensatez! Quanta coragem! Estavam falando da onda ou de outra
coisa?
Susannah sentiu frio sob o sol. Será que Tonia sabia e este era seu jeito
de contar a Kate? Ela pretendia fazer aquelas observações ferinas a semana
toda, até que irrompesse o gênio esquentado e impetuoso de Kate e
houvesse uma briga de verdade entre elas e, neste caso, Tonia venceria de
qualquer modo.
De qualquer modo! Tonia fora esposa de Ralph! Kate tinha sido a
amante. Não podia haver justificativa para isso, nenhum direito social ou
moral. As duas diriam coisas amargas, e liberar a raiva poderia ser um
alívio momentâneo, mas não haveria perdão, não voltariam ao ponto em
que estavam antes. Tonia chamaria Kate de ladra, até de prostituta, e uma
traidora de tudo o que significava família.
Kate assinalaria que Ralph tinha se casado com Tonia, mas se cansara
dela e no fim preferira Kate. Era Kate que ele amava. Agora nada podia
mudar nem curar isso.
Tonia não teria como contestar. Era a verdade.
Susannah ficou desnorteada de tristeza pelas duas. As duas o amaram, à
própria maneira, e acreditaram que ele as amara.
É claro que estavam erradas! A diferença era que Tonia sabia, embora
tivesse aprendido à força! Kate ainda não. Ela não sabia que Ralph
Bessemer não amava ninguém.
Ele foi um homem arrogante e ambicioso que usava as pessoas para
satisfazer os próprios apetites, físicos, sim, mas principalmente por poder,
admiração, dinheiro e por ser infinitamente admirado.
Susannah sabia disso! Ela sabia da verdade, sem nenhuma duvida.
Talvez Tonia ainda acreditasse, em algum lugar de seu coração, que o
julgamento fora injusto, que não houve roubo, nenhuma corrupção longa e
cuidadosa para que Ralph pudesse conquistar o cargo político por que ele
ansiava tanto. Talvez este fosse seu único desejo real. As mulheres eram um
caminho agradável para sua realização, como uma boa refeição que dá
sustento numa viagem.
Chegara ele a amar Tonia? Ou ela simplesmente representava um
casamento vantajoso? Teria ele amado Kate, ou ela era só uma distração,
divertida de se ter, de modo que ele pudesse merecer a possessiva e
autoritária Tonia e risse nas costas dela?
Susannah sabia perfeitamente bem por que ele a procurara! Pelo menos,
agora ela sabia! No começo imaginou que ele a amava. Parada ali, no ar
reluzente acima do rugir das ondas, respirando o odor do pinheiro e da
azaleia, ela podia se lembrar de como aquelas poucas semanas foram doces
e inebriantes, quando o sorriso dele acendia seus devaneios, a voz dele
despertava sua imaginação, o toque da mão dele acelerava seu coração, o
sangue disparando nas veias.
Mas ele fora demasiado seguro de si! Ele lhe pedira ajuda cedo demais.
Depois de conquistar duas irmãs, tomou a terceira como certa. Ela existia
para ser usada, nada mais. Estava numa situação perfeita, era da confiança
dos diretores de banco, para passar a ele as informações que ele queria. Mas
ela é que usara isto para apanhá-lo.
É claro que ninguém mais sabia disso. Tonia não tinha ideia de que fora
Susannah quem contou à polícia onde procurar e de fato reunira as peças
para eles. Ela pensou que fora o detetive inteligente, Innes. Ela o culpava, e
ele ficou feliz por ter o crédito pela queda de uma personalidade tão
proeminente como Ralph Bessemer, e como corrupto! O Senado fora salvo
de um forte prejuízo e o policial fora promovido.
Naturalmente Kate acreditava na mesma coisa. Kate era apaixonada,
divertida, de temperamento exaltado, generosa às vezes, com frequência
imprevidente. Mas acima de tudo era uma pessoa simples. Não procuraria
por trás do óbvio.
Elas voltavam devagar para a sombra dos pinheiros. Havia amoreiras
silvestres ao lado da trilha.
— Vai ter fruto para colher no outono — observou Tonia. — Você vai
gostar, Kate! Só tenha cuidado para não se espetar nos espinhos. Pode ficar
muito arranhada, com cortes profundos. E eles podem infeccionar se você
não tiver sorte.
— Vou ter cuidado — respondeu Kate meio tensa.
Ah... então você aprendeu, não é? — Tonia se virou por um momento
para olhar para trás, seu rosto frio e delicado com as sobrancelhas
arqueadas.
— Eu sempre tive cuidado ao colher amoras — retorquiu Kate.
— Teve mesmo — concordou Tonia. — Ou qualquer outra fruta. Você
conseguiu entrar e sair sem um arranhão, e ainda levou o prêmio.
— Ela se virou para olhar aonde estava indo novamente.
Kate hesitou em seus passos. Agora tinha certeza, assim como
Susannah, de que Tonia sabia. Estava participando de um jogo, de um dizer
e não dizer, a pele ferida por picadas até que Kate perdesse a calma e
provocasse uma briga aberta!
E depois? Gritos, acusações, infelicidade, culpa? Seria isso que Tonia
queria, que Kate sentisse essa vergonha amarga e corrosiva da traidora
exposta? Isto não faria bem nenhum. Nada que Ralph tenha dito ou feito
mudaria as coisas, e sobretudo ele não voltaria para amar ou trair nenhuma
delas!
Mas ela não podia dizer isso a Tonia sem denunciar o que sabia! Elas
chegaram ao carro e entraram. A viagem de volta na luz do sol salpicada de
sombras devia ter sido maravilhosa, mas a beleza exterior do dia já estava
nublada para as três irmãs. Em todo o caminho de volta, e durante o almoço
na casa, Tonia fez observações dubias, e Kate foi se enraivecendo cada vez
mais. Por duas vezes ela rebateu, mas o sarcasmo de sua resposta foi
mitigado pela consciência da própria culpa. Susannah podia ver no rosto
dela o brilho da cólera, a resposta perfeita nos olhos, depois o controle
firme por ter se lembrado de todos os motivos pelos quais Tonia estava
crivada de mágoa, porque pelo menos em um aspecto estava coberta de
razão em retaliar.
Mas a vergonha não travaria sua língua para sempre. Susannah entendeu
isso sem um segundo de hesitação. Certamente Tonia também entenderia?
Depois do almoço havia tarefas a fazer, lavar os pratos, preparar a
refeição da noite, recolher lenha e cortá-la. No meio da tarde, Kate
anunciou que sairia para dar um passeio pelos lagos, de preferência sozinha,
e procuraria por garças azuis.
Susannah se virou para Tonia:
— Gostaria de ir à praia novamente. Você vem comigo? — Talvez ela
pudesse convencê-la a desistir da briga.
— Claro — concordou Tonia. — É uma ideia excelente.
Susannah ficou satisfeita, e surpresa. Talvez não fosse tão difícil, afinal.
Estava um pouco mais frio do que na véspera, mas ainda agradável, e a
maré ainda mais baixa, deixando muito espaço para andar pela areia abaixo
das rochas.
Tonia sorria. Seus ombros estavam tensos e ela andava com
determinação em vez de tranquilidade, mas ainda assim era uma grande
melhora em relação à manhã. Quem sabe ela chegou aonde queria?
Susannah ficou indecisa entre dizer alguma coisa ou não. Esta podia ser
sua única oportunidade. Seria insuportável passar por mais três dias dessas
insinuações. Poderia ela falar sem se trair?
— Tonia?
— Sim? — Elas haviam parado de andar e olhavam a água revolta.
— Precisava mesmo dar tanta importância ao fato de Kate ter sido pega
pela onda? Isso era necessário?
Tonia mordeu o lábio pensativamente, depois olhou de lado para
Susannah.
— Quer dizer que eu devia esquecer todo o passado e pensar somente
no momento presente, e no futuro? — respondeu ela.
Seus olhos se estreitaram um pouco, absortos na resposta, a expressão
completamente enigmática.
— Eu não quis dizer nada tão radical — respondeu Susannah, e depois
entendeu imediatamente que era uma mentira, e não era das boas. Tonia não
acreditou. Foi exatamente o que ela quis dizer. Ela teve dificuldades em se
recuperar.
— Não só a onda, as... as amoreiras. Parece que...
Ela não sabia como terminar. Tonia estava sorrindo, não de forma
calorosa, mas divertindo-se, numa expectativa íntima, como se previsse
exatamente aonde iriam chegar, ao ponto que ela tencionava.
— Sim?
— Como se você estivesse tentando deliberadamente provocá-la —
concluiu Susannah de forma pouco convincente.
— Ah, sim? Por que diabos você imagina que eu ia querer fazer isso?
— perguntou Tonia.
Ela parecia absolutamente inocente, mas naquele momento Susannah
entendeu, com uma certeza gélida, que Tonia estava perfeitamente ciente do
caso entre Ralph e Kate e que ela pretendia reclamar sua vingança,
lentamente, gota por gota, se necessário. Estava nos olhos dela, como uma
lâmina dura e brilhante, e em seu sorriso.
A respiração de Susannah ficou mais curta. Ousaria falar abertamente?
Havia uma coisa em Tonia que a fazia hesitar, um poder, e a lembrança
dos dias em que ela fora a irmã mais velha, a ser admirada e obedecida,
cujo elogio tinha grande importância.
— Porque você está de luto por Ralph e quer magoá-la — disse ela em
voz alta. Era uma transigência, uma meia-verdade.
— Meu luto por Ralph me leva a querer odiar Kate? — perguntou
Tonia. — Ou está sugerindo que a morte dele me deixou mentalmente
perturbada?
— Não! É claro que não! — protestou Susannah.
— Pode ter perturbado — respondeu Tonia, os olhos estreitos contra o
sol penetrante da tarde refletido na água clara. — Afinal, ver seu marido
mandado à prisão por cinco anos, submetido à vida desprezível em um
lugar desses, obrigado a se misturar com as piores pessoas do estado e
depois finalmente ser levado a um canto por elas e assassinado como um
animal... Não acha que pode ser o bastante para levar uma mulher a perder
o juízo?
Ela sabia! Era uma certeza mórbida girando como uma faca na boca do
estômago de Susannah. Tonia sabia que foi ela quem contou sobre Ralph à
polícia. Saberia ela também que Ralph tentara fazer amor com ela, não
porque gostasse dela, nem porque se sentisse atraído, mas para usá-la em
sua corrupção? Não, provavelmente não.
Ela abriu a boca para se defender e percebeu que não havia defesa.
Tonia não se importava com o motivo; o fato era só o que importava. Ela
não queria razões; queria a dor como pagamento por sua própria dor.
Susannah engoliu em seco, a boca áspera, as pernas subitamente fracas.
Estava com medo e furiosa consigo mesma por isso. Se fosse qualquer outra
pessoa, e não Tonia, ela teria sido capaz de enfrentar. Ela não estava errada!
O que mais poderia ter feito? Dormir com Ralph, trair o banco de modo que
ele pudesse usar o dinheiro para ganhar uma vaga no Senado? Era isso que
Tonia teria preferido?
Provavelmente sim. Ralph não a amava! Ele era suficientemente
arrogante para pensar que bastava um sorriso dele, uma paixãozinha
travestida de amor, e ela faria tudo o que ele quisesse. Depois ele a tiraria
do caminho e ela ficaria mortificada demais, demasiado envergonhada para
contar a alguém.
— Sim — disse ela em voz alta, olhando para Tonia. — Acho que pode
ser o bastante para levar qualquer uma à loucura... Mas você não é
"qualquer uma". A realidade está lhe escapando. Foi uma tragédia Ralph ter
sido assassinado. Não foi culpa dele, e também não foi culpa de Kate.
Pegaram o homem que fez isso e ele foi executado.
— Ah, sim — concordou Tonia. — Ele está morto. — Seu rosto revelou
uma satisfação intensa e momentânea, quase uma alegria. — Por acaso
sugeri que a culpa foi de Kate? Eu não quis dizer isso. Não, Kate nunca
teria machucado Ralph, eu sei. E ela não iria querer que ele fosse para a
prisão. — Sua voz estava carregada de sugestões, a face rígida, o vento
chicoteando os cabelos escuros.
Elas estavam a 18 metros de onde as ondas se quebravam e, enquanto
ficaram paradas ali, outra onda sorrateira atingiu rapidamente a areia e
parou a pouca distância dos sapatos de Tonia. Ela a ignorou, como se
soubesse que era inacessível a estas coisas. Havia algo de assustador em sua
calma, o senso de completo controle em seus olhos, em sua face, até o
modo como seu corpo suportava o vento.
Susannah tinha absoluta certeza de que Tonia pretendia ter sua
vingança, seu próprio conceito de justiça, pela traição de Kate a ela e pela
de Susannah. Ela podia fazer isso aqui, longe de Astoria, onde ninguém
mais a veria, e ela o faria lenta, cuidadosa e completamente. O que ela não
sabia era como.
Tonia sorria para ela, um sorriso cruel e meio agitado que não escondia
nada. Toda a sua dor e furia estavam nele, o conhecimento de Kate e Ralph,
o modo como eles riram e se amaram às suas costas, e que Ralph tenha
cometido o erro fatal de ter tentado o mesmo truque, mas sem o afeto,
também com Susannah — não pelo sexo, mas pelo lucro. Mas ela não podia
ser cortejada nem lisonjeada com o fim de se corromper. Ela o entregara, o
que acabou por custar a vida de Ralph, e por fim o roubara de Tonia e de
Kate.
Como Tonia agiria? Envenenando a comida, ou a água? Um travesseiro
cobrindo sua face quando ela dormisse, e culpando Kate por isso? Algum
tipo de acidente, um escorregão no banho, talvez, e o afogamento na água
quente e ensaboada?
Uma queda em algum lugar, até do penhasco. Não era necessário andar
mais de 3 ou 4 metros até as rochas; esta distância já seria o suficiente.
Ou o mar? Algo a ver com aquelas ondas magníficas e esmagadoras,
com sua beleza terrível e estimulante, e o poder de 1.500 quilômetros de
oceano atrás delas, puxando, arrastando com o recuo das ondas; aquelas
ondas traiçoeiras vorazes e imprevisíveis que avançavam mais do que as
demais e puxavam os imprudentes, até mesmo da terra seca.
— Parece que você foi pega com a mão no pote de biscoitos, Susannah!
— disse Tonia com o mais leve sarcasmo na voz. — Está com medo de ser
mandada para a cama sem jantar?
Susannah abriu as mãos.
— Mas eu nem peguei biscoito nenhum!
— Ah, você pegou, minha querida! Só não conseguiu ficar com eles! —
respondeu Tonia. — Agora ninguém vai comer biscoito. Mas vamos voltar
e jantar. Prometo que pode ter um pouco de tudo! — Ela começou a voltar
pela areia, galgando com facilidade, os braços soltos ao lado do corpo e os
passos graciosos.
Susannah cambaleou atrás dela, os pés afundando na areia, o medo
deixando-a desajeitada, a raiva pela injustiça da situação percorrendo seu
corpo e irremediavelmente lhe roubando o fôlego, a força, até a capacidade
de ver com clareza e escolher que caminho seguir por entre as pedras.
O jantar foi um pesadelo para Susannah. Tonia estava encantadora.
Sorria para as duas irmãs, contando histórias divertidas dos eventos na
sociedade de Astoria a que compareceu e elas não. A comida, que ela
insistira em preparar sozinha, estava deliciosa, peixe fresco num molho
delicado e vegetais fatiados e cozidos no vapor no ponto exato. Ela também
as serviu e passou os pratos.
— Não está com fome? — perguntou ela com solicitude enquanto
Susannah futucava uma e outra coisa com o garfo sem comer nada. —
Pensei que a caminhada na praia lhe abriria o apetite. O meu, abriu. — E
ela continuou a comer com prazer.
Kate não sabia de nada. Susannah percebeu isto ao vê-la começar a
comer também com fome. Ela podia ter consciência de que Tonia sabia de
seu caso com Ralph, e até do ponto a que chegou, mas não tinha medo.
Seria cega? Será que ela realmente não entendia absolutamente Tonia,
apesar de todos os anos em que se conheciam, depois de serem criadas
juntas?
— Não está se sentindo bem? — perguntou Tonia com preocupação,
olhando para Susannah que ainda sondava a comida em vez de comer. —
Devo preparar outra coisa para você? Aquele instante se congelou.
Incrivelmente, Kate não estava olhando para ela, mas Tonia estava, a
zombaria nos olhos. Ela sabia que Susannah tinha medo e estava gostando
disso.
— Não... obrigada. — Susannah tomou a decisão por reflexo, e não por
reflexão. — Está ótimo. Eu só estava pensando. — Ela pôs uma porção
deliberadamente na boca.
— Algo interessante? — indagou Tonia.
Susannah pensou numa mentira rápida. Ela queria poder ter pensado em
alguma coisa útil, algo defensivo, ou pelo menos que servisse de alerta.
— Só no que a gente podia fazer amanhã, se o clima estiver bom, é
claro.
— Ah, o futuro! — Tonia rolou as palavras na língua. — Eu estava
completamente errada. Veja você que imaginei que estivesse pensando no
passado. É maravilhoso estar aqui, livres como o vento, com o amanhã, e o
depois de amanhã, e o dia depois de amanhã para fazermos o que
quisermos... Não é, Susannah?
— As opções não são muitas, de qualquer forma — respondeu
Susannah.
Tonia ficou surpresa.
— Sente-se limitada? Há algo que gostaria de fazer e não pode?
Alguma coisa que você queira? Algo que não pode ter? — Ela se virou um
pouco. — E você, Kate? Há alguma coisa que queria e não pode ter?
Kate olhou para ela, confusa.
— Não mais do que qualquer outra coisa. Por quê? — Ela olhou de lado
para Susannah.
— O que você quer fazer? Ir embora, mas ela não podia dizer isso, e
não podia fazer isso sem Tonia. O carro era de Tonia e as chaves estavam
com ela. E de qualquer modo, se fugisse daria a impressão de confessa uma
consciência culpada. Ela nada tinha por que se culpar. Ralph era um ladrão,
planejava comprar seu caminho para o gabinete do Estado com a corrupção.
O fato de ele ser seu cunhado não o isentava de nada.
— Eu não ligo — respondeu ela animadamente.
— Podíamos contornar o promontório — sugeriu Tonia. — Quando a
maré está baixa, as lagunas rochosas ficam cheias de todo tipo de coisas...
anêmonas-do-mar, ouriços-do-mar, navalhas, estrelas-domar. — Ela sorriu.
— É lindo.
E perigoso, pensou Susannah com um aperto no estômago. Um
escorregão e você pode quebrar a perna, cortar o braço numa concha de
navalha e até, na maré certa, cair de uma borda alta e profunda e se afogar.
Na margem mais distante, pode até ser derrubada por uma onda.
— Prefiro andar pela praia — respondeu ela. — Ou subir o bosque, para
variar.
Tonia sorriu.
— Tanto faz — disse ela com uma satisfação tranquila. — Quer café?
Ou chá, talvez? Seria o melhor à noite. Ou que tal chocolate quente? Posso
fazer um chocolate quente para nós três? — Ela meio que se ergueu, como
se já tivessem aceitado.
Kate disse "sim" e Susannah, "não", no mesmo momento. Tonia preferiu
ouvir o "sim". Susannah disse "não" novamente e Tonia a ignorou.
— Vai ser bom para você — disse ela por sobre o ombro. — Ajuda a
dormir.
— Qual é o seu problema? — perguntou Kate. — Parece até que ela vai
envenená-la!
A noite transcorreu com tanta lentidão que assumiu as proporções de
um pesadelo. Elas se sentaram em volta do fogo de frente uma para a outra,
tomando o chocolate depois que os pratos foram lavados. O ar tinha
esfriado consideravelmente e o vento aumentara.
— Acho que pode ser uma tempestade — assinalou Kate, um sorriso
nos lábios.
— Ah, sim — concordou Tonia. — Tenho certeza de que será. Houve
vários momentos de silêncio, exceto por um gemido do lado de fora e um
chocalhar no beiral, onde uma telha estava frouxa.
— Ralph gostava de tempestades — continuou Tonia.
— Não gostava, não! — disse Kate de imediato, depois quase mordeu a
língua. — Gostava mesmo? — Acrescentou ela, tarde demais.
Tonia arregalou os olhos.
— Querida, você pergunta a mim?
Kate corou.
— Talvez eu tenha entendido mal — disse ela, pouco convincente.
— Quem? Eu ou Ralph? — indagou Tonia.
— Eu não me lembro. Isso não importa! — rebateu Kate.
Mas Tonia não ia deixar passar.
— Tem alguma tempestade em particular em mente?
— Eu já lhe disse! — Kate estava irritada de novo, e culpada.
Susannah podia ver a vergonha nos olhos dela e tinha absoluta certeza
de que Tonia também via.
— Não me lembro! Foi um malentendido.
— Sobre gostos e desgostos? — continuou Tonia. — Ou amor e ódio?
Como pode confundir um com o outro... acha que pode? — Ela olhou como
se estivesse intensamente interessada, sem emoção, até que viu seu punho
fechado ao lado do corpo e a linha rígida nas costas.
— Talvez a diferença entre medo e excitação — respondeu Kate,
encarando-a, por fim enfrentando o desafio.
— Ah, sim! — concordou Tonia com satisfação. — Excitação, o medo
do perigo, o rugir do trovão e a oportunidade de ser atingida pelo raio. Você
confundiu medo com amor?
O rosto de Kate estava vermelho. Susannah sentou-se ereta, os
musculos tesos como se a qualquer momento viesse a explosão. Estava
apavorada, mas agora sabia que era inevitável. Aconteceria a qualquer hora,
esta noite, amanhã, no dia seguinte, mas antes que fossem para casa; isto
era certo.
— Ou o amor pelo medo? — Kate respondeu ao desafio de frente.
Tonia sacudiu a cabeça.
— Ah, não — disse ela com um sorrisinho apertado. — Reconhece-se o
amor, acredite em mim, querida. Se um dia o encontrar, vai entender. — E
ela se levantou, sorriu para cada uma das irmãs e desejou-lhes boa-noite.
Foi para o quarto e acrescentou:
— Durmam profundamente — e saiu.
Kate virou-se para Susannah. Parecia prestes a perguntar alguma coisa,
depois percebeu que não suportaria levantar o assunto com ela. Não tinha
ideia do quanto ela sabia, nem a quem ela seria leal. Ela soltou mais um
suspiro e as duas passaram outra meia hora insuportável, e em seguida
também foram dormir.

Susannah levou um longo tempo para dormir, apesar dos sons


reconfortantes do vento e da chuva do lado de fora. Acordou com um
sobressalto violento, gritando de medo.
Tonia estava sentada na beira da cama com um dos travesseiros nas
mãos. Por um instante estático a pura tensão tomou Susannah e ela lutou
para se sentar direito, atirando a roupa de cama emaranhada em suas pernas
para poder lutar livremente.
Tonia estava surpresa.
— Deve ter sido um pesadelo e tanto! — disse ela com uma sombra de
diversão no rosto.
— Pe... pesadelo? — gaguejou Susannah.
— Sim. Você gritava dormindo. Foi por isso que eu vim.
Susannah percebeu que continuava escuro, a luz do quarto estava acesa
mas, para além das cortinas, era um breu. Ela não conseguiu tirar os olhos
de Tonia para ver o relógio na mesa-de-cabeceira. Não estivera sonhando,
disso Susannah tinha absoluta certeza. Ela sempre se lembrava de seus
sonhos.
— Para que é o travesseiro? — perguntou ela, sua voz seca e meio
tremida. Será que tinha acabado de evitar ser asfixiada enquanto dormia?
— Você o atirou no chão — respondeu Tonia.
Não atirara. Era um travesseiro extra. Já havia dois em sua cama. Seu
coração batia loucamente, martelando no peito, a pulsação acelerada.
Deveria desafiar Tonia agora, abrir o jogo e enfrentar a situação?
Ousaria ela? Tornaria tudo irrevogável. E depois? O que ficaria do
relacionamento das duas depois disso?
— Não atirei — disse ela sem fôlego. — Ainda estou com os dois!
Tonia sorriu, como se fosse exatamente o que queria que ela dissesse.
— Você tem três, querida. Um para apoia-la, se quiser ler. — Ela soltou
uma risada alta, seca e áspera. — Acha que eu o trouxe aqui para sufocá-la?
Por que diabos eu faria isso? Você fez alguma coisa medonha de que não
tenho conhecimento? Foi por isso que não comeu bem e acordou gritando
no meio da noite? — Ela se levantou, ainda segurando o travesseiro extra
nos braços.
— Não, é claro que não! — respondeu Susannah. Depois olhou
diretamente para Tonia.
— Você já sabe de tudo o que há para saber!
— Sim — concordou Tonia delicadamente. — Sim... eu sei! — E, ainda
portando o travesseiro, saiu e fechou a porta silenciosamente, no mesmo
silêncio completo em que havia entrado.

O café-da-manhã foi deplorável. Susannah estava com uma dor de


cabeça persistente, Kate parecia tensa e também incapaz de comer. Só Tonia
mostrava-se incansavelmente animada e parecia cheia de energia. Ela
cozinhou e serviu, perguntando às outras duas solicitamente se tinham
dormido, se estavam bem, se podia fazer mais alguma coisa por elas.
— Você parece de ressaca — disse animadamente para Susannah. —
Uma boa caminhada no promontório fará com que se sinta bem melhor. E
você também, Kate. Agora devemos ir. O tempo clareou e a maré está
perfeita. E eu ia gostar. Peguem os casacos e vamos. Ela não esperou pelas
duas, mas pegou o próprio casaco no suporte da porta e, enfiando um braço
na manga, saiu para o dia ensolarado e ventoso.
Kate estava indecisa.
— Vamos! — chamou Tonia. — A manhã está maravilhosa! Clara e
doce, e posso ouvir um melro cantando. O vento está vindo do mar e tem o
cheiro do paraíso.
Susannah de repente se decidiu. Ia enfrentar, até provocar se necessário,
mas não ia passar o restante da semana, e muito menos o que lhe restava da
vida, com medo de Tonia, permitindo que manipulasse sua culpa e os
delírios idiotas sempre que tinha vontade. Não era culpa sua que Ralph
tivesse tido um caso com Kate ou que ele tivesse tentado usá-la. Não era
culpa sua ele ser corrupto, ou que a justiça o tenha considerado culpado e o
mandado para a cadeia. Ele era o culpado!
E não era culpa sua que um dos prisioneiros o tivesse matado. Aquela
última noite pode ter sido imerecida e tão trágica e injusta como acreditava
Tonia, mas Susannah não ia assumir a culpa por ela.
Mas ela não estava disposta a encarar isso sozinha.
— Vamos, Kate! — acrescentou Susannah com decisão. — Um vento
limpo soprando em tudo vai nos fazer muito bem!
Kate obedeceu, relutante, e as três andaram até o declive na beira do
gramado, sobre as rochas pesadas e, por fim, para o fino anel de areia
compacta na beira do mar. Ficaram observando as grandes ondas e subiam
correndo pelas pedras quando elas se aproximavam, sempre evitando se
molhar.
Elas foram para o promontório rochoso onde as lagunas estavam cheias
de tesouros. Chegaram ao início do afloramento e começaram a escalar com
cuidado, observando cada passo, Tonia primeiro, depois Kate e por fim
Susannah. Seguiram até um lugar razoável para ficar, Susannah mais abaixo
e mais perto de onde corria a água funda, a espuma branca atirando-se sobre
as rochas pontiagudas e recuando, arrastando areia, pedras e conchas. Mais
adiante, além da beira do promontório, cinco filas de ondas, uma atrás da
outra, rugiam, a crista curva, a espuma e os borrifos voando, transbordando
e cobrindo de branco toda a face do mar.
Neste momento não era necessário dizer nada, mas Tonia falou:
— Magnífico, não é? Elementar, como as grandes paixões da vida.
Kate desviou os olhos.
— Acho que sim. — Kate olhava o mar na curva da praia e os
quilômetros de costa com as rochas, agulhas e afloramentos recortados até
onde a vista alcançava.
— Ah, sim — continuou Tonia. — Posso entender a paixão, até o desejo
sexual, tão forte que subjuga toda a moralidade, e querer uma coisa tão
intensamente que simplesmente domina, mesmo que pertença a outra
pessoa. Não é, Kate?
Kate girou nos calcanhares, o vento soprando seus cabelos no rosto. Ela
os empurrou com impaciência. Estava perto de Tonia, mas a um metro
abaixo dela.
— Pelo amor de Deus, cale a boca! — gritou ela. — Você sabia que eu e
Ralph estávamos apaixonados! Lamento muito! Ele era seu marido e me
amava. Eu também o amava! Nós duas não pudemos tê-lo. Você está
confusa.
— Nós duas? — Tonia riu e o controle lhe escapou, sua voz se
elevando, alta e furiosa. — Ele está morto, Kate! Ele morreu em um
banheiro na penitenciária estadual! Foi esfaqueado na barriga e sangrou até
morrer no chão! Sem ninguém ao lado dele! Nem você, nem eu, nem
mesmo a querida Susannah!
Kate oscilou como se tivesse perdido o equilíbrio.
— Como assim, Susannah? Ele não estava apaixonada por ela! Ele nem
gostava dela!
— É claro que não gostava dela! — gritou Tonia em resposta, os olhos
estreitos, os lábios apertados sobre os dentes. — Mas ele sabia que ela era
inteligente! Ele tentou usá-la no banco. Mas nossa queridinha Susannah não
quis ser usada. Queria tê-lo e, se não pudesse, ela o destruiria. Ela não
suporta a rejeição, nossa irmãzinha!
Quando ele pediu ajuda a ela, e ela quis que em troca ele se tornasse seu
amante, e ele a rejeitou, ela se vingou dele. E que vingança perfeita! Ela o
entregou à polícia... Reuniu todas as provas, criou as que estavam faltando e
o acusou! Não havia como Ralph escapar.
Pobre Ralph! Ele não sabia o que o ciúme e a rejeição faziam com ela.
Ela podia muito bem ter enfiado a faca ela mesma!
Kate girou o corpo, quase se desequilibrando, o rosto pálido, os olhos
brilhando com a emoção da raiva. Ela começou a ir na direção de Susannah,
cobrindo os poucos metros entre as duas aos saltos, tropeçando,
inacreditavelmente sem escorregar.
— Não fiz isso! — gritou Susannah, recuando em direção à beira das
rochas e da torrente do mar. — Não inventei nada! Tudo que dei à polícia
foi exatamente o que ele estava fazendo!
— Você o entregou! — disse Kate com uma furia de incredulidade. —
Foi você que traiu Ralph! — Mas não era uma pergunta. Ela ouvira a
compreensão na voz de Tonia e a culpa na de Susannah. Kate se atirou em
Susannah e arremessou as duas de costas nas pedras. A onda seguinte
passou por elas rugindo, tirando o ar de seus corpos, o frio de gelo, e as
deixou lutando no platô rochoso de cuja beira a queda era ininterrupta.
— Eu não o traí! — Susannah arfou, tentando se livrar de Kate e
cambaleando para trás novamente. — Ele ia roubar dinheiro para financiar
a campanha para o Senado! Eu o impedi. Droga, me larga! Ralph estava
fazendo as duas de idiotas! Ele era muito corrupto!
Kate a atingiu com força no rosto, desequilibrando-a, derrubando
Susannah no platô rochoso novamente.
— Você o matou! — gritou num uivo de angustia. — Ele me amava! Eu
podia ter evitado que ele fizesse isso! Se você tivesse me procurado, eu o
teria salvado! — Ela chorava enquanto as lembranças, os sonhos
despedaçados e a solidão insuportável a dominavam. — Eu o amava! Eu
podia...
— Eu sei que você o amava! — Susannah pôs a mão no rosto em brasa
e se arrastou de lado, para o ponto em que o platô era mais largo. — Mas
ele não amava ninguém, nem você, nem Tonia, nem ninguém! Kate! O
homem que você amou nunca existiu!
— Existiu sim! Ele podia... — Ele podia... mas não fez! Ele preferiu
assim!
— Não preferiu! — gritou Tonia, descendo até as duas. — Não é
verdade, Kate. Ela tirou essa chance dele! Ela o matou! Vai!
Kate hesitou. Podia empurrar Susannah da beira, numa queda fatal para
a água.
— Vai! — gritou Tonia. — Ela matou Ralph! Ela o traiu, mandou para
aquele lugar imundo para ser assassinado! No chão do banheiro! Ralph...
Lindo, feliz, o mágico Ralph! Susannah o destruiu! — Ela agora estava ao
lado de Kate, a poucos metros de distância.
Susannah podia ouvir as ondas quebrando atrás dela, depois chocando-
se nas pedras, arrastando e puxando o que quer que fosse. Quantas haviam
batido ali enquanto ela estava agachada? Três, quatro, cinco?
Kate virou-se de Tonia para Susannah, e recuou.
— Faça! — gritou Tonia novamente. — Se você amava Ralph, faça! Ela
o tirou de você! Ele não a queria, então ela destruiu tudo.
— Ele não queria nenhuma de nós! — gritou Susannah
desesperadamente. — Ele só queria o Senado... o poder e o dinheiro!
Kate se voltou para Susannah e deu outro passo na direção dela, a pele
chicoteada pelo vento, os olhos arregalados.
Susannah viu Tonia bem atrás dela, um ódio despudorado no rosto.
— Não tem coragem de fazer você mesma? — gritou ela. — Não
admira que Ralph quisesse Kate! Pelo menos ela tem as próprias paixões, e
não as de outra pessoa! Covarde! — Agora ela estava se agachando,
equilibrada.
Os lábios de Tonia se repuxaram em um esgar de raiva e ela se curvou
para a frente, derrubando Kate de lado, que escorregou e caiu, agarrando-se
à relva para se salvar.
Susannah moveu-se lateralmente, torcendo a perna e caindo enquanto
Tonia parava. Agora elas estavam lado a lado, a uma pequena distância uma
da outra. Susannah começou a se arrastar para trás, para o precipício
novamente, uma dor lancinante na perna.
— Isso mesmo! — gritou Tonia com um escárnio cáustico. — Arraste-
se! Acha que não posso pegá-la? — Ela começou a avançar, lentamente,
demorando-se ao máximo.
Susannah ouviu a onda antes de vê-la, mais alta, mais pesada do que as
outras, a onda traiçoeira trazendo todo o poder voraz do oceano.
— A onda! — gritou ela. Não queria alertar Tonia, mas as palavras
saíram sem seu controle. — Cuidado!
Tonia ria. Não acreditava nela.
— Cuidado! — gritou Susannah.
A onda se quebrou, alta e branca, arremessando-se nas rochas com um
rugido arrasador. Chegou somente aos joelhos de Tonia, mas com tal força
que arrancou seus pés do chão e a puxou em seu turbilhão.
Kate ficou ensopada, mas agarrava-se à relva e ali continuou, arfando.
Susannah ficou cega por um momento, suas roupas ensopadas dos
borrifos da onda, mas tirou os cabelos molhados dos olhos para ver Tonia
lutar, braços e pernas se debatendo por um momento, depois sendo
engolida, nada mais que uma massa escura no meio da onda à medida que
ela voltava ao mar e novamente se dobrava sobre si mesma na água
profunda.
Kate chorava, tentando se levantar, o rosto cinzento. — Não pode fazer
nada — disse Susannah em voz baixa. — É melhor subirmos, vai aparecer
outra, sempre aparece.
— Você... Você contou à polícia sobre Ralph? — gaguejou Kate.
— Contei. — Ela se virou e olhou Kate nos olhos. — Ele era um ladrão
e seria um senador corrupto.
Acha que eu devia tê-lo ajudado a fazer isso?
— Mas ele... e você? — disse Kate em descrença.
— Uma infidelidade — disse-lhe Susannah. — Não lhe ocorreu que, se
ele foi infiel a Tonia com você, seria infiel a você comigo... Ou com
qualquer uma que servisse aos propósitos dele?
Kate parecia massacrada. Susannah lhe estendeu a mão.
— Vamos. Precisamos ir para um lugar mais alto, acima de todas as
ondas, não só da maioria delas.
Kate subiu até Susannah.
— Mas... e Tonia?
— Um acidente — respondeu Susannah. — As ondas traiçoeiras pegam
gente todo ano. Acho que não basta saber delas na maior parte do tempo, o
que destrói é a fraqueza que você julga não ter.
Kate pôs as mãos no rosto.
— Ela queria que eu matasse você!
— Eu sei. — Susannah pôs o braço em volta dela. — Vamos.

***
Louly e Bonitinho
Elmore Leonard

Aqui vão algumas datas na vida de Louly Ring, desde 1912, o ano em
que ela nasceu em Tulsa, Oklahoma, até 1931, quando fugiu de casa para
conhecer Joe Young, depois que ele foi libertado da Penitenciária Estadual
do Missouri.
Em 1918, seu pai, empregado de um curral temporário, entrou para o
Corpo de Fuzileiros dos EuA e foi morto no Bois de Belleau durante a
Guerra Mundial. Sua mãe, chorando enquanto segurava a carta, disse a
Louly que era uma floresta na França.
Em 1920 a mãe se casou com um batista empedernido chamado Otis
Bender e elas foram morar na fazenda de algodão dele perto de Sallisaw, ao
sul de Tulsa, nas proximidades das Cookson Hills. Quando Louly tinha 12
anos sua mãe estava com dois filhos de Otis e ele punha Louly para colher
algodão nos campos. Ele era a única pessoa no mundo que a chamava pelo
nome de batismo, Louise. Ela odiava colher algodão, mas a mãe não dizia
nada a Otis. Otis acreditava que, quando você tem idade suficiente para
trabalhar, trabalhava. Isso significava que Louly parou de estudar na sexta
série.
Em 1924, naquele verão, foram ao casamento de sua prima Ruby em
Bixby. Ruby tinha 17 anos, o rapaz com quem se casou, Charley Floyd, 20.
Ruby era morena mas bonita, mostrando o sangue Cherokee pelo lado da
mãe. Por causa da diferença de idades, Louly e Ruby não tinham nada a
dizer uma à outra. Charley a chamava de garotinha, punha a mão na sua
cabeça e desgrenhava seu cabelo curto meio avermelhado, herdado da mãe.
Disse que seus olhos castanhos eram os maiores que ele já vira numa
menininha.
Em 1925 ela começou a ler sobre Charles Arthur Floyd no jornal: como
ele e dois outros sujeitos tinham ido a St. Louis e roubado 11.500 dólares
no escritório de pagamento da Kroger Food. Foram apanhados em Sallisaw
dirigindo um Studebaker novo em folha que compraram em Ft. Smith,
Arkansas. O tesoureiro da Kroger Food identificou Charley dizendo:
— É ele, o bonitinho com bochechas de maçã. Os jornais adoraram isso
e a partir de então se referiram a Charley como Floyd Bonitinho.
Louly se lembrava dele, da época do casamento, como um rapaz bonito
com cabelos ondulados, mas meio amedrontador pelo modo como olhava a
gente — sem ter certeza do que ele estava pensando. Apostava que ele
odiava ser chamado de Bonitinho. Olhando a foto cortada do jornal, Louly
sentiu um início de paixonite por ele.
Em 1929, enquanto ele ainda estava na penitenciária, Ruby se divorciou
argumentando negligência e se casou com um homem do Kansas. Louly
achou isso terrível — Ruby trair Charley desse modo.
— Ruby não acha que ele vá tomar jeito — disse sua mãe. — Ela
precisa de um marido tanto quanto eu precisei, para aliviar os fardos da
vida, ter um pai para seu menininho Dempsey. — Nascido em dezembro de
1924 e que recebeu esse nome por causa do campeão mundial de boxe
peso-pesado.
Agora que Charley estava divorciado, Louly queria escrever para ele e
demonstrar simpatia, mas não sabia qual de seus nomes usar. Tinha ouvido
os amigos o chamarem de Choc, porque ele gostava de cerveja Choctaw,
sua bebida predileta quando era adolescente e percorria Oklahoma e Kansas
com turmas de trabalhadores na colheita.
Sua mãe disse que foi então que Charley começou a andar com más
companhias, "aqueles vagabundos que ele conheceu na época da colheita",
e mais tarde trabalhando em campos de petróleo.
Louly começou a carta com "Querido Charley" e disse que achava uma
pena Ruby se divorciar enquanto ele ainda estava na prisão, sem ter
coragem de esperar até a saída. O que mais queria saber: "Você se lembra
de mim, do casamento?" Enfiou uma foto sua usando roupa de banho,
parada de lado e sorrindo para a máquina fotográfica por cima do ombro.
Desse modo seus seios de 14 anos, ainda chegando, eram vistos de perfil.
Charley respondeu que claro que lembrava dela, "a menininha de
grandes olhos castanhos". Dizendo: "Saio em março e vou para Kansas City
ver o que dá para fazer.
Dei seu endereço a um colega daqui, chamado Joe Young, que nós
chamamos de Booger, porque é engraçado. Ele é de Okmulgee mas tem de
cumprir mais um ano nessa lata de lixo, e gostaria de se corresponder com
uma amiga bonita como você."
Besteira. Mas então Joe Young lhe escreveu uma carta com uma foto
dele tirada no pátio, sem camisa, um rapagão bem bonito com orelhas
grandes e cabelo meio louro.
Disse que mantinha a foto dela, em roupa de banho, na parede ao lado
de sua prateleira, para olhá-la antes de dormir e sonhar com ela a noite toda.
Jamais assinava as cartas como Booger, sempre "Com amor, seu Joe
Young".
Assim que estavam trocando cartas ela contou como odiava colher
algodão, arrastar aquele saco de brim pelas fileiras de plantas o dia inteiro,
no calor e no pó, as mãos em carne viva de puxar os tufos dos galhos, já que
depois de um tempo as luvas não ajudavam nada.
Joe disse em sua carta: "O que você é, uma escrava negra? Se não gosta
de colher algodão, saia daí e fuja. Foi isso que eu fiz." Logo depois ele disse
numa carta: "Vou ser solto no próximo verão. Por que não planeja encontrar
comigo para nós ficarmos juntos?"
Louly disse que estava doida para visitar Kansas City e St. Louis,
imaginando se veria Charley de novo. Perguntou a Joe por que estava preso,
e ele escreveu de volta dizendo: "Querida, sou ladrão de banco, que nem o
Choc."
Ela estivera lendo mais histórias sobre Floyd Bonitinho. Ele havia
retornado a Akins, sua cidade natal, para o enterro do pai — Akins fica a
apenas onze quilômetros de Sallisaw — o pai foi morto por um vizinho
durante uma briga por causa de uma pilha de madeira.
Quando o vizinho desapareceu houve pessoas dizendo que Bonitinho o
havia matado. Onze quilômetros, e ela só ficou sabendo depois.
A foto dele saiu de novo. FLOYD BONITINHO PRESO EM AKRON
por assalto a banco. Condenado a quinze anos na Penitenciária Estadual de
Ohio. Agora ela nunca mais iria vê-lo, mas pelo menos poderia começar a
escrever de novo.
Algumas semanas depois outra foto. FLOYD BONITINHO ESCAPA A
CAMINHO DA PRISÃO. Quebrou uma janela do banheiro e pulou do
trem. Quando conseguiram parar, ele já havia sumido.
Simplesmente rastreá-lo era empolgante, Louly se arrepiava e se
emocionava ao saber que todo mundo estava lendo sobre esse famoso fora-
da-lei com quem ela era aparentada — por casamento, mas não por sangue
—, esse facínora que gostava de seus olhos castanhos e tinha desgrenhado
seu cabelo quando ela era pequena.
Agora outra foto. FLOYD BONITINHO EM TIROTEIO COM A
POLÍCIA. Diante de uma barbearia em Bowling Green, Ohio, e conseguiu
fugir. Estava lá com uma mulher chamada Juanita — Louly não gostou
disso.
Joe Young escreveu dizendo: "Aposto que Choc está acabado em Ohio e
nunca mais vai voltar para lá." Mas o motivo principal para ter escrito foi
dizer: "Vou ser solto no fim de agosto. Logo avisarei onde você pode me
encontrar."
Durante os invernos Louly estivera trabalhando em meio expediente na
mercearia Harkrider's, em Sallisaw, ganhando seis dólares por semana.
Tinha de dar cinco a Otis, e o sujeito nunca agradecia, deixando um dólar
para colocar na poupança da fuga.
Desde o inverno até o outono seguinte, trabalhando na loja quase seis
meses por ano, não havia economizado muito, mas mesmo assim iria. Podia
ter a aparência tímida e o cabelo ruivo da mãe, mas possuía a coragem e a
decisão do pai, morto em combate atacando um ninho de metralhadora
alemão naquela floresta da França.
No fim de outubro, quem foi que entrou naquela mercearia, senão Joe
Young? Louly o reconheceu, mesmo usando terno, e ele a reconheceu, rindo
enquanto ia até o balcão, a camisa aberta no colarinho.
— Bom, eu saí — disse ele. — Você já saiu há dois meses, não foi?
— Estive roubando bancos. Eu e Choc.
Louly pensou que tinha de ir ao banheiro, com a ânsia invadindo sua
virilha e depois sumindo. Deu-se alguns instantes para se recompor e agir
como se a menção a Choc não significasse nada especial, Joe Young
encarando-a com seu riso, dando-lhe a sensação de que era um completo
idiota. Algum outro prisioneiro devia ter escrito as cartas para ele. Disse de
modo casual:
— Ah, o Charley está aqui com você?
— Está por aí — respondeu Joe Young, olhando para a porta. — Está
pronta? A gente precisa ir.
— Gosto desse seu terno — disse ela, dando-se tempo para pensar. As
pontas do colarinho da camisa dele se abriam até os ombros, o cabelo
comprido em cima mas baixinho dos lados, as orelhas se projetando, Joe
Young rindo como se essa fosse sua expressão usual de pateta.
— Ainda não estou pronta. Não estou com o dinheiro da fuga.
— Quanto você tem?
— Trinta e oito dólares.
— Meu Deus, trabalhando dois anos aqui?
— Eu disse, Otis pega a maior parte do pagamento.
— Se você quiser eu quebro a cabeça dele.
— Eu não me importaria. Mas o negócio é que eu não vou embora sem
meu dinheiro.
Joe Young olhou para a porta enquanto punha a mão no bolso, dizendo:
— Garotinha, eu pago sua viagem. Você não vai precisar dos trinta e
oito dólares.
Garotinha — ela era uns cinco centímetros mais alta do que ele, mesmo
com as gastas botas de caubói. Agora Louly estava balançando a cabeça.
— Otis comprou um Roadster Modelo A com meu dinheiro, pagando
vinte por mês.
— Quer roubar o carro dele?
— É meu, não é, se ele está usando meu dinheiro?
Louly tinha decidido e Joe Young estava ansioso para sair dali. O dia do
pagamento estava perto, por isso iriam se encontrar em primeiro de
novembro — não, no dia dois — no hotel Georgian em Henryetta, no café,
por volta do meio-dia.
Na véspera de ir embora Louly disse à mãe que estava doente. Em vez
de trabalhar, preparou suas coisas e usou o ferro de enrolar no cabelo. No
dia seguinte, enquanto a mãe pendurava a roupa lavada, os dois meninos na
escola e Otis no campo, Louly empurrou o Ford Roadster para fora do
telheiro e o dirigiu até Sallisaw para pegar um maço de Lucky Strike para a
viagem. Adorava fumar e fazia isso com os garotos, mas nunca precisara
comprar cigarros. Quando os garotos queriam levá-la para o mato ela
perguntava:
— Você tem algum Lucky? um maço inteiro? O filho do vendedor, um
de seus namorados, deu-lhe um maço de graça e perguntou onde ela havia
estado no dia anterior. Bancou o maroto, dizendo:
— Você vive falando do Floyd Bonitinho. Fiquei imaginando se ele
passou na sua casa.
Eles gostavam de provocá-la falando do Bonitinho. Louly, sem prestar
muita atenção, disse:
— Eu digo, quando ele passar. — Mas então viu que o garoto estava
para dizer alguma coisa.
— O motivo para eu perguntar é que ele esteve aqui na cidade ontem, o
Floyd Bonitinho.
— É? — perguntou ela, agora com cuidado. O garoto se demorou, e foi
difícil não agarrá-lo pela frente da camisa.
— É, ele trouxe a família de Akins, a mãe, duas irmãs, umas outras
pessoas, para que pudessem ver enquanto ele roubava o banco. O avô ficou
olhando do campo do outro lado da rua. Bob Riggs, o escriturário do banco,
disse que Bonitinho estava com uma metralhadora, mas que não atirou em
ninguém. Ele saiu do banco com dois mil quinhentos e trinta e um dólares,
ele e outros dois caras. Deu um pouco de dinheiro aos parentes e, pelo que
disseram, a qualquer um que ele achasse que não via há um tempo, todo
mundo rindo para ele. Bonitinho mandou Bob Riggs ir em pé no estribo do
carro até o fim da cidade e depois soltou ele.
Esta era a segunda vez em que Charley estivera perto: primeiro quando
seu pai foi morto há apenas onze quilômetros de distância, e agora aqui
mesmo em Sallisaw, todo tipo de gente o viu, droga, menos ela. Ontem
mesmo...
Charley sabia que ela morava em Sallisaw. Louly ficou imaginando se
ele a procurou na multidão que olhava.
Também tinha de pensar: se ela estivesse aqui, será que ele a
reconheceria? E apostou que sim.
Disse ao namorado da loja:
— Se Charley ouvir você chamando ele de Bonitinho vai vir aqui
comprar um maço de Lucky, que é o que ele sempre fuma, e depois mata
você.
O Georgian era o maior hotel que Louly já vira. Enquanto chegava no
Modelo A estava pensando que aqueles ladrões de bancos sabiam viver
bem.
Parou na frente e um homem de cor, com uniforme de casaca verde com
botões dourados e quepe, veio abrir a porta — e viu Joe Young na calçada
sinalizando para o sujeito se afastar, dizendo enquanto entrava no carro:
— Meu Deus, você roubou ele, não foi? Meu Deus, quantos anos você
tem, para andar por aí roubando carros?
— Quantos anos a gente precisa ter? Ele lhe disse para ir em frente.
— Vocês não estão hospedados no hotel?
— Estou numa pensão de turistas.
— Charley está lá?
— Está por aí, em algum lugar.
— Bem, ele esteve em Sallisaw ontem — agora Louly parecia furiosa
—, se é isso que você chama de por aí. — Pela expressão de Joe
Young, ela estava dizendo uma coisa que ele não sabia. — Achei que
você fazia parte da quadrilha dele.
— Ele está com um cara mais velho chamado Birdwell. Eu me junto ao
Choc quando sinto vontade.
Louly teve quase certeza de que Joe Young estava mentindo.
— Eu vou ver Charley ou não?
— Ele vai voltar, não preocupe sua cabeça com isso. Nós temos esse
carro, não vou ter de roubar um. — Agora Joe Young estava de bom humor.
— Para que a gente precisa do Choc? — Rindo de perto, no carro. —
Temos um ao outro.
Isso disse a ela o que esperar. Assim que chegaram à pensão de turistas
e estavam no nº7, que parecia uma casinha de madeira de um cômodo, só
que precisava de pintura, Joe Young tirou o casaco e ela viu a Colt
automática com cabo de madrepérola enfiada na calça. Ele a colocou na
penteadeira perto de um quarto de garrafa de uísque e dois copos, e serviu
uma dose para cada um, a dele maior do que a dela. Louly ficou de pé,
olhando, até que ele disse para tirar o casaco, e quando ela fez isso Joe
Young disse para tirar o vestido. Agora ela estava de sutiã e calcinha
branca. Joe Young olhou-a de cima a baixo antes de entregar a bebida
menor e baterem os copos.
— Ao nosso futuro.
— Fazendo o quê? — perguntou Louly, vendo a diversão nos olhos
dele.
Joe Young pôs o copo na penteadeira, tirou dois revólveres .38 da
gaveta e lhe ofereceu um. Ela pegou-o, grande e pesado na mão, e disse:
— É...? — Você sabe como roubar um carro, e eu admiro isso. Mas
aposto que nunca assaltou um lugar usando uma arma.
— É isso que vamos fazer?
— A gente começa com um posto de gasolina e eu treino você até
chegar a um banco. Aposto que também nunca esteve na cama com um
homem crescido.
Louly sentiu vontade de dizer que era maior do que ele, mais alta, pelo
menos, mas não disse. Esta era uma nova experiência, diferente do que
acontecia com os garotos de sua idade, no mato, e queria ver como era.
Bem, ele grunhiu e foi rude, respirava com força pelo nariz e cheirava a
tônico capilar Lucky Tiger, mas não era muito diferente dos garotos. Louly
chegou a gostar antes que ele terminasse e bateu nas costas dele com os
dedos ásperos de colher algodão, até ele começar a respirar tranquilo de
novo. Assim que ele rolou de cima, ela tirou sua bolsa de água quente que
havia trazido e foi para o banheiro, a voz de Joe Young seguindo-a com um
"Eeeeepa..." Depois dizendo:
— Sabe o que você é agora, garotinha? É o que chamam de mulher de
gângster.
Joe Young dormiu um tempo, acordou ainda idiotizado e quis alguma
coisa para comer. Por isso foram ao Purity; Joe disse que era o melhor lugar
em Henryetta.
À mesa, Louly disse:
— Charley Floyd veio aqui uma vez. As pessoas descobriram que ele
estava na cidade e todo mundo ficou em casa.
— Como sabe disso?
— Sei tudo que já foi escrito sobre ele, e algumas coisas que só foram
contadas.
— Onde ele fica em Kansas City?
— Na pensão da Mãe Ash na Holmes Street.
— Com quem ele ia para Ohio?
— Com a gangue de Jim Bradley.
Joe Young pegou o café, no qual havia derramado uma dose de uísque.
Disse:
— Você vai começar a ler sobre mim, neném. Isso a fez lembrar que não
sabia qual era a idade de Joe Young, e aproveitou para perguntar.
— Faço trinta no mês que vem, nasci num dia de Natal, que nem o
menino Jesus.
Louly sorriu. Não pôde evitar ver Joe Young deitado numa manjedoura
com o menino Jesus, os três reis magos olhando para ele de um modo
engraçado. Perguntou quantas vezes a foto dele havia saído no jornal.
— Quando fui mandado para Jeff City saiu um monte de fotos minhas.
Quero dizer, quantas vezes diferentes, por outros assaltos?
Louly ficou olhando-o se recostar enquanto a garçonete vinha com o
jantar e Joe Young lhe deu um tapinha na bunda quando ela virou de costas
para a mesa. A garçonete disse:
— Atrevido — e fingiu surpresa de um modo maroto.
Louly estava pronta para dizer que Charley Floyd teve a foto publicada
51 vezes no jornal de Sallisaw no ano anterior, uma para cada um dos 51
bancos assaltados em Oklahoma, todos afirmando que o assaltante era
Charley. Mas, se contasse, Joe Young diria que Charley não poderia ter
roubado tantos, já que estava em Ohio em parte de 1931. O que era verdade.
Uma estimativa dizia que ele poderia ter roubado trinta e oito bancos, mas
até mesmo isso poderia fazer Joe Young ficar ciumento e irritado, por isso
ela deixou para lá e os dois comeram seus filés de frango fritos.
Joe Young lhe disse para pagar a conta, um dólar e sessenta por tudo,
inclusive torta de ruibarbo na sobremesa, com seu dinheiro da fuga.
Voltaram à pensão de turistas e ele comeu-a de novo de barriga cheia,
respirando pelo nariz, e ela viu que ser mulher de gângster não era um mar
de rosas.
De manhã partiram para leste pela auto-estrada 40 em direção às
montanhas Cookson, Joe Young dirigindo o Modelo A com o cotovelo fora
da janela, Louly apertando o casaco contra o corpo, a gola levantada por
causa do vento, Joe Young falando um bocado, dizendo que sabia onde
Choc gostava de se esconder.
Iriam até Muskogee, atravessariam o Arkansas e desceriam pelo rio até
Braggs.
— Sei que o cara gosta daquela região ao redor de Braggs. Pelo
caminho podia assaltar um posto de gasolina, mostrar a Louly como isso era
feito.
Ao sair de Henryetta ela disse:
— Ali tem um.
— Tem carros demais — respondeu ele.
Cinquenta quilômetros depois, saindo de Checoah, virando para o norte
em direção a Muskogee, Louly olhou para trás e disse:
— O que há de errado com aquele posto Texaco?
— Tem alguma coisa que eu não gosto nele. Você precisa ter o
sentimento para esse trabalho.
— Escolha você — disse Louly.
Ela estava com o .38, que ele lhe dera, numa bolsa de crochê cor-de-
rosa e preta que sua mãe tinha feito.
Chegaram a Summit e se esgueiraram pela cidade, os dois procurando,
Louly esperando que ele escolhesse um lugar para assaltar. Estava ficando
empolgada. Chegaram ao outro lado da cidade e Joe Young disse:
— Ali está o nosso lugar. Podemos encher o tanque e tomar uma xícara
de café.
— Vamos assaltar?
— Vamos dar uma olhada. — Isso aí é um pardieiro.
Duas bombas de gasolina na frente de um lugar caindo aos pedaços,
com a tinta descascando, uma placa que dizia COMIDA e informava que a
sopa custava dez centavos e um hamburguer, cinco.
Entraram enquanto um velho encurvado enchia o tanque deles. Joe
Young levou sua garrafa de uísque, quase no final, e a colocou no balcão. A
mulher atrás do balcão era pele e ossos, gasta, afastando fiapos de cabelo do
rosto. Pôs xícaras na frente deles e Joe Young derramou na sua o que
restava do uísque.
Louly não queria roubar aquela mulher. A mulher disse:
— Acho que a garrafa secou.
Joe Young estava se concentrando em pingar as últimas gotas.
— Pode me ajudar?
Agora a mulher estava servindo o café.
— Quer birita falsificada? Ou posso lhe dar Kentucky por três dólares.
— Me dá duas — disse Joe Young sacando seu Colt, colocando-o no
balcão. — E o que houver no caixa.
Louly não queria roubar aquela mulher. Estava pensando que não era
preciso roubar uma pessoa só porque ela tinha dinheiro, não é?
— Dane-se, moço — respondeu a mulher.
Joe Young pegou a arma e rodeou o balcão para abrir a caixa
registradora na outra extremidade. Enquanto tirava as notas, disse à mulher:
— Onde você guarda o dinheiro do uísque?
— Ali — respondeu ela, com desespero na voz.
— Quatorze dólares — disse ele pegando o dinheiro, e se virou para
Louly. — Aponte sua arma para ela, para ela não se mexer. Se o velhote
entrar, aponte para ele também. — Joe Young passou por uma porta
entrando no que parecia um escritório.
A mulher falou com Louly, que agora lhe apontava a arma tirada da
bolsa de crochê.
— Por que você está com esse vagabundo? Você parece uma garota de
boa família, tem uma bolsa bonita... Tem alguma coisa errada com você?
Meu Deus, não consegue coisa melhor do que ele?
— Sabe quem é meu amigo? — disse Louly. — Charley Floyd, se é que
você sabe de quem estou falando. Ele se casou com minha prima Ruby. —
A mulher balançou a cabeça e Louly disse: — Floyd Bonitinho — e sentiu
vontade de morder a língua.
Agora a mulher pareceu sorrir, mostrando linhas pretas entre os dentes
que possuía.
— Ele veio aqui uma vez. Eu preparei o café-da-manhã e ele me pagou
dois dólares. Já ouviu falar nisso? Eu cobro vinte e cinco centavos por dois
ovos, quatro tiras de bacon, torrada e todo o café que você quiser, e ele me
deu dois dólares.
— Quando foi isso?
A mulher olhou para além de Louly, tentando ver quando tinha sido, e
disse:
— Vinte e nove, depois que o pai dele foi morto naquela época.
Pegaram os quatorze da caixa e vinte e sete dólares em dinheiro de
uísque, dos fundos, Joe Young falando de novo em ir para Muskogee,
dizendo a Louly que seu instinto o mandava ir para lá. Como é que esse
lugar ainda funcionava, com dois grandes postos a apenas alguns
quarteirões de distância? Por isso tinha levado a garrafa, para ver o que ela
rendia.
— Ouviu o que ela disse? "Dane-se", mas me chamou de "moço".
— Charley tomou café-da-manhã ali uma vez. E pagou dois dólares.
— Estava se mostrando — disse Joe Young. Ele decidiu que ficariam
em Muskogee para descansar, em vez de ir a Braggs.
— É, a gente deve ter feito uns bons oitenta quilômetros hoje. Joe
Young disse para ela não bancar a engraçadinha.
— Vou colocar você numa pensão de turistas e procurar uns caras que
eu conheço. Descobrir onde Choc está.
Ela não acreditou, mas de que adiantaria discutir?
Agora era fim de tarde, o sol baixando.
O homem que bateu à porta — ela podia vê-lo pela parte de vidro — era
alto e magro, com temo escuro, um sujeito novo bem vestido, segurando o
chapéu junto à perna.
Ela achou que devia ser da polícia, mas não tinha motivo, parada ali,
olhando-o, para não abrir a porta.
Ele disse:
— Moça — e mostrou a identificação e uma estrela num círculo numa
carteira que manteve aberta.
— Sou o subchefe de polícia Carl Webster. Com quem estou falando?
— Sou Louly Ring.
Ele sorriu com dentes bem formados.
— Você é prima da mulher de Floyd Bonitinho, Ruby, não é?
Foi como se jogassem água gelada na sua cara, de tão surpresa que
ficou.
— Como sabe disso?
— Estamos fazendo um livro sobre Bonitinho, anotando conexões, todo
mundo que ele conhece. Você se lembra da última vez em que o viu?
— No casamento, há oito anos.
— E nunca mais? Que tal no outro dia em Sallisaw?
— Não vi. Mas escuta, ele e Ruby se divorciaram.
O subchefe de polícia, Carl Webster, balançou a cabeça.
— Ele foi a Coffeyville e a pegou de volta. Mas você não está sentindo
falta de um automóvel, um Ford Modelo A?
Ela não ouvira nenhuma palavra sobre Charley e Ruby estarem juntos
de novo. Nenhum dos jornais tinha falado dela, só da mulher chamada
Juanita.
— O carro não sumiu, um amigo meu está com ele.
— O carro está no seu nome? — perguntou ele, e recitou o numero da
placa de Oklahoma.
— Eu paguei com o meu salário. Por acaso está no nome do meu
padrasto, Otis Bender.
— Acho que há algum equívoco. Otis diz que o carro foi roubado de sua
propriedade no condado de Sequoyah. Quem é o seu amigo que o pegou
emprestado?
Ela hesitou antes de dizer o nome.
— Quando Joe volta?
— Mais tarde. A não ser que fique com os amigos e se embebede.
— Eu gostaria de falar com ele — disse Carl Webster, e entregou a
Louly um cartão de visitas que tirou do bolso, com uma estrela impressa e
letras que dava para sentir.
— Peça a Joe para me ligar mais tarde, ou amanhã, se ele não vier para
casa. Vocês só estão andando por aí?
— Olhando a paisagem. Toda vez que ela o encarava ele começava a
sorrir. Carl Webster. Louly podia sentir o nome dele embaixo do polegar.
Disse:
— Você está escrevendo um livro sobre Charley Floyd?
— Não um livro de verdade. Estamos coletando os nomes de todo
mundo que ele já conheceu e que poderia querer entregá-lo.
— Você vai me perguntar se eu quereria? Ali estava o sorriso. — Já sei.
Ela gostou do modo como ele apertou sua mão e agradeceu, e o modo como
pôs o chapéu, bem casual, sabendo como dar a inclinação exata.
Joe Young voltou mais ou menos às nove da manhã, fazendo caretas
medonhas ao remexer a boca, querendo tirar algum gosto dali. Entrou no
quarto e tomou um bom gole da garrafa de uísque, depois outro, respirou
fundo, soltou um arroto e pareceu melhor. Disse:
— Não acredito no que a gente armou com aquelas vagabundas ontem à
noite.
— Espera — disse Louly. E contou sobre o subchefe de polícia, e Joe
Young ficou trêmulo e não conseguiu se manter quieto, dizendo:
— Não vou voltar. Cumpri dez anos e jurei a Jesus que nunca mais vou
voltar. — Agora estava olhando pela janela.
Louly quis saber o que Joe e seus amigos tinham feito com as
vagabundas, mas sabia que precisavam sair dali. Tentou dizer que tinham de
sair agora mesmo.
Ele ainda estava bêbado, ou recomeçando, dizendo agora:
— Se vierem atrás de mim, vai ter tiroteio. Vou levar uns sacanas
comigo. — Talvez nem mesmo sabendo que estava imitando Jimmy
Cagney.
— Você só roubou setenta e um dólares.
— Fiz outras coisas no estado de Oklahoma. Se me pegarem vivo, vou
ganhar de quinze anos a perpétua. Juro que não vou voltar.
O que estava acontecendo? Eles estavam circulando à procura de
Charley Floyd — e o que esse imbecil queria era um tiroteio com a lei, e ela
estava ali, nesse quarto, com ele.
— Eles não estão atrás de mim — disse Louly. Sabendo que não podia
falar com ele, no estado em que ele estava. Precisava sair dali, abrir a porta
e fugir. Pegou a bolsa de crochê na penteadeira, começou a ir para a porta e
foi interrompida pelo megafone.
A voz amplificada era alta, dizendo: — JOE YOUNG, SAIA COM AS
MÃOS PARA O ALTO.
O que Joe Young fez foi segurar a pistola Colt na frente do corpo e
começar a disparar pelo vidro da porta. Pessoas do lado de fora atiraram de
volta, estouraram a janela, arrebentaram a porta com os tiros, Louly se
jogou no chão com sua bolsa, até ouvir uma voz gritar pelo megafone:
— CESSAR FOGO!
Louly olhou para cima e viu Joe Young parado junto da cama, agora
com uma arma em cada mão, a Colt e um .38. Disse:
— Joe, você tem de se entregar. Eles vão matar nós dois se você
continuar atirando. Ele nem olhou para ela. Gritou:
— Venham me pegar! — e começou a atirar de novo, com as duas
armas ao mesmo tempo.
A mão de Louly foi até a bolsa de crochê e saiu com o .38 que ele tinha
lhe dado para ajudar a assaltar. Do chão, apoiada nos cotovelos, apontou o
revólver para Joe Young, engatilhou e bam, acertou-o no peito.
Louly se afastou da porta e o subchefe de polícia, Carl Webster, entrou
segurando um revólver. Carl Webster estava olhando para Joe Young
enroscado no chão. Enfiou o revólver no coldre, pegou o .38 com Louly,
cheirou a ponta do cano e a encarou sem dizer nada, antes de se ajoelhar
para ver se Joe Young tinha pulsação. Levantou-se dizendo:
— A Associação de Bancos de Oklahoma quer gente como Joe morta, e
é como ele está. Vão lhe dar uma recompensa de quinhentos dólares por
matar seu amigo.
— Ele não era meu amigo.
— Ontem era. Decida-se.
— Ele roubou o carro e me obrigou a vir junto.
— Contra sua vontade — disse Carl Webster. — Mantenha isso e você
não irá para a cadeia.
— É verdade, Carl — disse Louly mostrando seus grandes olhos
castanhos. — É sim.

A manchete do jornal de Muskogee, acima de uma pequena foto de


Louise Ring, dizia VENDEDORA DE LOJA MATA SEQUESTRADOR.
Segundo Louise, ela precisava impedir Joe Young, para não ser morta
no fogo cruzado. Também disse que seu nome era Louly, e não Louise. O
policial que chegou primeiro ao local declarou que foi um ato de coragem, a
garota atirar no sequestrador. "Consideramos Joe Young um bandido louco,
sem nada a perder." O policial disse que Joe Young era suspeito de
participar da quadrilha de Floyd Bonitinho. Também mencionou que Louly
Ring era parente da mulher de Floyd e conhecia o facínora.
A manchete do jornal de Tulsa, acima de uma foto maior de Louly, dizia
GAROTA MATA MEMBRO DA GANGUE DE FLOYD BONITINHO. A
matéria contava que Louly Ring era amiga de Bonitinho e fora sequestrada
pelo ex-membro da quadrilha, que, segundo Louly, "tinha ciume de
Bonitinho e me sequestrou para se vingar dele".
Quando a história havia saído em todo lugar, desde Ft. Smith, Arkansas,
até Toledo, Ohio, a manchete predileta era NAMORADA DE BONITINHO
MATA A TIROS BANDIDO LOUCO.
O subchefe de polícia, Carl Webster, veio a Sallisaw a negócios e parou
na Harkride's para comprar um saco de fumo de mascar. Ficou surpreso ao
ver Louly.
— Ainda trabalha aqui?
— Estou fazendo compras para minha mãe. Não, Carl, eu peguei o
dinheiro da recompensa e vou sair logo daqui. Otis não falou uma palavra
comigo desde que cheguei em casa. Está com medo que eu atire nele.
— Aonde você vai?
— Um escritor da True Detective quer que eu vá a Tulsa. Vão me
colocar no hotel Mayo e pagar cem dólares por minha história. Repórteres
de Kansas City e St. Louis, Missouri, já apareceram lá em casa.
— Você está ganhando um monte de destaque por conhecer Bonitinho,
não é?
— Eles começam perguntando como eu atirei no idiota do Joe Young,
mas o que querem saber é se sou namorada de Charley Floyd. Eu digo:
"Onde você arranjou essa ideia?"
— Mas não nega.
— Eu digo: "Acredite no que quiser, já que não posso mudar seu
pensamento." O que eu fico pensando é: você acha que Charley já leu sobre
isso e viu minha foto?
— Claro que leu. Imagino que até gostaria de ver você de novo,
pessoalmente.
— Uau — disse Louly como se não tivesse pensado nisso antes daquele
momento.
— Está brincando. Verdade?

***
Má de nascença
Jeffery Deaver

Sleep, my child and peace attend thee, all through the night...*

* "Durma, minha criança, e que a paz esteja contigo durante toda a noite." (N. do T.)

A canção de ninar repetia-se sem parar em sua mente, tão persistente


quanto a ruidosa chuva do Oregon no teto e na janela.
A canção que cantava para Beth Anne quando a menina tinha três ou
quatro anos havia se fixado em sua mente e não parava de ecoar. Vinte e
cinco anos antes, as duas, mãe e filha, sentadas na cozinha da casa da
família nos arredores de Detroit. Liz Polemus, curvada sobre a mesa de
fórmica, a frugal jovem mãe e esposa trabalhando duro para esticar os
dólares.
Cantando para a filha que, sentada diante dela, olhava fascinada para as
mãos destras da mãe.

I love you shall be near you, all through the night. Soft the drowsy
hours are creeping. Hill and vale in slumber sleeping.**
** "Eu que a amo estarei ao teu lado, toda a noite. Suaves, as horas sonolentas passam
lentamente. Colinas e vales profundamente adormecidos." (N. do T.)

Liz sentiu uma cãibra no braço direito — aquele que ela nunca curara
adequadamente — e deu-se conta de que ainda segurava o telefone, furiosa
com a notícia que acabara de receber. Que a filha estava a caminho de casa.
A filha com quem não falava havia mais de três anos.

I my loving vigil keeping, ali through the night.*


* "Manterei minha vigília apaixonada por toda a noite." (N. do T.)

Liz finalmente repôs o telefone no gancho e sentiu o sangue correr em


seu braço, coçando, formigando. Sentou-se no sofá bordado que pertencia à
família havia anos e massageou o antebraço pulsante. Sentiu vertigem,
confusão, como se não estivesse certa de que o telefonema fora real ou uma
cena de um sonho remoto. Só que a mulher não estava perdida na paz de
seu sono.
Não, Beth Anne estava a caminho. Mais meia hora e ela bateria à porta
de Liz.
Lá fora, a chuva continuava a cair sem parar por entre os pinheiros do
jardim. Ela morava naquela casa havia quase um ano, um pequeno lugar a
quilômetros do suburbio mais próximo. Muitos o achariam bastante
pequeno, muito remoto. Mas para Liz era um oásis.
A magra viuva com seus cinquenta e poucos anos de idade tinha uma
vida atarefada e pouco tempo para cuidar da casa. Às vezes limpava o lugar
às pressas e voltava para o trabalho. E embora não fosse uma reclusa,
preferia o trecho de floresta que a separava dos vizinhos. O tamanho
diminuto do lugar também desencorajava sugestões de qualquer um de seus
amigos do tipo: ei, tive uma ideia, que tal se eu me mudasse para cá? A
mulher simplesmente olharia em torno da casa de um quarto e explicaria
que duas pessoas enlouqueceriam em aposentos tão apertados — após a
morte do marido, resolvera nunca se casar outra vez ou viver com outro
homem.
Seus pensamentos agora derivavam para Jim. Sua filha abandonara a
casa e não mantivera contato com a família antes de ele morrer. Sempre a
magoara o fato de a filha nem mesmo ter dado um telefonema após a sua
morte, sem mencionar o fato de não ter ido ao funeral. A raiva da
insensibilidade da filha a fez tremer, mas Liz a afastou, lembrando-se de
que, fosse qual fosse o propósito da jovem naquela noite, não haveria tempo
bastante para exumar nem uma fração das memórias dolorosas que
restavam entre mãe e filha, como destroços de um desastre de avião.

Um olhar para o relógio. Quase dez minutos haviam se passado desde a


ligação, Liz deu-se conta, sobressaltada.
Ansiosa, foi até a sala de costura. O lugar, que era o maior cômodo da
casa, era decorado com bordados dela e da mãe e com uma duzia de
prateleiras de carretéis — alguns datando das décadas de 1950 e 1960. Cada
tonalidade da paleta de Deus estava representada naquelas linhas. Caixas
repletas de Vogue e moldes Butterick.
O objeto mais importante do quarto era uma velha Singer elétrica. Não
tinha os sofisticados blocos de pontos das máquinas modernas, nem luzes,
alavancas ou botões complexos. A máquina era uma besta de carga de
quarenta anos de idade esmaltada de preto, idêntica à que sua mãe usara.
Liz costurava desde os 12 anos de idade, e em tempos difíceis tal
habilidade a sustentara. Adorava cada parte do processo: comprar o tecido,
ouvir o tum-tum-turn quando o vendedor desdobrava as bobinas planas de
tecido no tamanho desejado (Liz imaginava com quase perfeição como a
peça ficaria nas mulheres que a vestiriam quando uma certa quantidade de
tecido era desdobrada). Fixar o papel opaco e áspero sobre o tecido. Cortar
com a pesada tesoura dentada, que deixava uma borda de dentes de dragão
no tecido. Ligar a máquina, encher a bobina, passar a linha na agulha...
Havia algo tão completamente relaxante a respeito do ato de costurar:
recolher tais substâncias — algodão da terra, lã de animais — e misturá-los
em algo completamente novo. O pior aspecto do ferimento que sofrera anos
antes fora o dano causado ao seu braço direito, que a mantivera longe da
Singer durante três meses intoleráveis.
Costurar era terapêutico para Liz, sim, mais do que isso, era a sua
profissão e a ajudara a se tornar uma mulher bem-sucedida; ali havia araras
repletas de vestidos de grife, esperando o seu toque habilidoso. Seus olhos
voltaram-se para o relógio. Quinze minutos. Outro surto asfixiante de
pânico.
Via tão claramente aquele dia havia 25 anos — Beth Anne vestindo seu
pijama de flanela, sentada na alquebrada mesa da cozinha e observando os
dedos rápidos da mãe com fascinação enquanto Liz cantava para ela.

Sleep, my child, and peace attend thee...*

* "Durma, minha criança, e que a paz esteja contigo..." (N. do T.)


Tal memória deu vida a dezenas de outras e a agitação cresceu no
coração de Liz como o nível da água do rio que corria atrás de sua casa
engrossado pela chuva. Bem, disse para si mesma, desta vez com firmeza,
não fique apenas sentada aí... faça algo. Mantenha-se ocupada. Encontrou
um casaco azul-marinho no armário, foi até a mesa de costura, então
remexeu uma cesta até descobrir um resto de lã que combinasse. Usou-o
para fazer um bolso para o casaco. Liz entregou-se ao trabalho, amaciando
o tecido, marcando-o com giz de alfaiate, separando as tesouras, cortando
cuidadosamente.
Concentrou-se na tarefa mas a distração não foi suficiente para afastar a
lembrança da visita iminente — e de memórias de havia muito tempo.
O incidente do roubo da loja, por exemplo. Quando a menina tinha 12
anos. Liz lembrou-se do telefone tocando, e de tê-lo respondido. O chefe de
segurança de uma loja de departamentos ali perto informava — para o
choque de Liz e de Jim — que Beth Anne fora pega com quase mil dólares
em joias escondidas em um saco de papel.
Os pais pediram que o gerente não desse queixa. Disseram que deveria
ter ocorrido algum engano.
— Bem — disse o chefe da segurança com ceticismo —, nós a
encontramos com cinco relógios. E um colar. Dentro deste saco de compras.
Quero dizer, isso não me parece um engano.
Finalmente, após muito assegurarem que aquilo fora um engano e
promessas de que ela jamais voltaria àquela loja, o gerente concordou em
manter a polícia fora do caso. Ao saírem da loja, uma vez que a família
estava a sós, Liz voltou-se furiosa para Beth Anne.
— Por que diabos fez isso?
— E por que não? — cantarolou a menina em resposta, um sorriso
debochado no rosto.
— Foi estupidez.
— Como se eu me importasse.
— Beth Anne... por que está agindo assim?
— Assim como? — perguntou a garota simulando estar confusa.
A mãe tentou entabular um diálogo com ela — do modo como os talk-
shows e psicólogos dizem que você deve fazer com os filhos — mas Beth
Anne pareceu entediada e distraída. Liz fez-lhe uma advertência vaga e
obviamente inutil, e desistiu.
Pensando agora: você põe um certo esforço ao costurar um casaco ou
vestido e obtém a roupa esperada. Não há mistério. Mas você põe mil vezes
mais esforço na educação de sua filha e o resultado é o oposto daquilo que
esperava e desejava. Parecia injusto.
Os olhos hábeis de Liz examinaram o casaco de lã, certificando-se de
que o bolso estava esticado e fixado na posição correta. Fez uma pausa e
olhou para cima, através da janela, em direção às lanças negras dos
pinheiros, mas o que via eram mais memórias difíceis de Beth Anne. Que
boca tinha aquela garota! Beth Anne era capaz de olhar a mãe ou o pai nos
olhos e dizer:
— Não vou com você nem que a vaca tussa. Ou:
— Você tem alguma porra de pista?
Talvez devessem ter sido mais severos na sua educação. Na família de
Liz as pessoas apanhavam por xingar ou responder aos adultos ou por não
fazer o que os pais mandavam. Ela e Jim nunca bateram em Beth Anne;
talvez devessem ter lhe dado uma ou outra surra.
Certa vez, um empregado ligou para seu negócio familiar — Um
depósito que Jim herdara — avisando que estava doente e ele pediu que
Beth Anne o ajudasse. Ela respondeu:
— Prefiro a morte a voltar àquele buraco de merda com você. O pai se
calou, mansamente, mas Liz gritou para a filha:
— Não fale assim com o seu pai.
— Ah é? — disse a garota em tom sarcástico. — E como devo falar
com ele? Como uma filhinha obediente que faz tudo o que ele deseja?
Talvez seja o que ele quer, mas não é o que terá. — Ela pegou a bolsa e
dirigiu-se à porta.
— Onde vai?
— Ver alguns amigos.
— Não vai não. Volte aqui neste minuto! A resposta foi uma porta
batendo. Jim saiu atrás dela mas em um instante ela se foi, atravessando a
neve cinza de dois meses de Michigan.
E aqueles "amigos"? Trish, Eric e Sean... jovens com famílias que
tinham valores totalmente diferentes dos de Liz e Jim. Tentaram proibi-la de
vê-los. Mas isso, é claro, não produziu qualquer efeito.
— Não me diga com quem posso andar — disse Beth Anne, furiosa.
A menina tinha 18 anos então, e era alta como a mãe. Quando ela
avançou em sua direção com uma expressão de raiva, Liz recuou,
constrangida. A menina prosseguiu:
— E o que você sabe sobre eles afinal?
— Não gostam de mim e nem de seu pai. É tudo o que preciso saber.
Qual o problema com os filhos de Todd e Joan? Ou com os de Brad? Seu
pai e eu os conhecemos há anos.
— O que há de errado com eles? — resmungou a garota com sarcasmo.
— Que tal isso: são perdedores. — Desta vez, pegou a bolsa e os cigarros
que começara a fumar, e fez outra saída dramática.
Com o pé direito, Liz pressionou o pedal da Singer, o motor deu o seu
rangido habitual, e então começou a fazer clatta, clatta, clatta, à medida que
a agulha subia e descia, sumindo no interior do tecido, deixando uma fileira
caprichosa de pontos ao redor do bolso.
Clatta, clatta, clatta... No ginásio, a menina nunca chegava em casa
antes das sete ou oito e no secundário ela chegava ainda mais tarde. Às
vezes passava a noite fora. Nos fins de semana, simplesmente desaparecia e
nada queria com a família.
Clatta, clatta, clatta. O ruído ritmado da Singer aliviou Liz de algum
modo, mas não conseguiu evitar que entrasse em pânico novamente ao
olhar o relógio. A filha poderia chegar a qualquer momento.
Sua menina, seu bebê. Sleep, my child... E a pergunta que perseguira
Liz durante anos voltava agora: o que dera errado? Durante muitas horas
relembrou os primeiros anos de vida da filha, tentando ver o que fizera para
que Beth Anne a rejeitasse tão completamente. Fora uma mãe atenta,
interessada, consistente e justa, que cozinhava todos os dias para a família,
lavava e passava as roupas da menina, comprava-lhe tudo o que precisava.
Tudo em que conseguia pensar era que fora muito determinada, muito
inflexível no modo como educara a filha, muito severa às vezes.
Mas isso não parecia ser um crime. Afora isso, Beth Anne também era
assim com o pai — o mais manso dos dois. Fácil de levar, indulgente a
ponto de estragar a menina, Jim era o pai perfeito. Ajudava Beth Anne e
amigas com os deveres de casa, a levava à escola quando Liz estava
trabalhando, lia histórias ao pé da cama e a punha para dormir à noite.
Bolava "jogos especiais" para ele e Beth Anne jogarem. Era o tipo de laço
familiar que a maioria das crianças adoraria ter.
Mas a menina tinha acessos de raiva com ele também e mudava de
caminho só para evitar perder tempo com ele.
Não, Liz não conseguia se lembrar de incidentes ruins no passado,
nenhum trauma, nenhuma tragédia que pudesse ter tornado Beth Anne uma
renegada.
Ela chegou à mesma conclusão que chegara havia anos: que, por mais
injusto e cruel que pudesse parecer, sua filha simplesmente nascera
fundamentalmente diferente da mãe; algo acontecera na sua fiação para
tornar a garota assim rebelde.
E ao olhar para o tecido, alisando-o com seus dedos longos e macios,
Liz considerou algo mais: rebelde, sim, mas seria também uma ameaça?
Liz agora admitia que parte do desconforto que sentia naquela noite não
era apenas por causa da confrontação iminente com a filha indisciplinada; a
jovem causava-lhe medo.
Ela ergueu os olhos do casaco e observou a chuva que batia contra a
janela. Com o braço direito dando fisgadas de dor, lembrou-se daquele dia
terrível havia tantos anos — o dia em que a afastou permanentemente de
Detroit e que ainda lhe provocava pesadelos apavorantes. Liz entrara em
uma joalheria e ficara chocada e ofegante ao ver uma pistola apontada para
ela. Ainda podia ver o brilho amarelo quando o homem puxou o gatilho,
ouvir a explosão assustadora e sentir o impacto quando a bala atingiu-lhe o
braço, arremessando-a ao chão de azulejos, chorando de dor e confusão.
A filha, é claro, nada tinha a ver com aquela tragédia, embora Liz
soubesse que Beth Anne seria capaz de puxar o gatilho exatamente como
fizera o homem durante o roubo. Ela tivera prova de que a filha era uma
mulher perigosa. Alguns anos antes, após Beth Anne sair de casa, Liz fora
visitar a tumba de Jim. O dia estava enevoado como algodão e ela quase
chegava à sepultura quando deu-se conta de que havia alguém ali. Para a
sua surpresa, viu que era Beth Anne. Liz recuou na neblina, o coração
batendo forte. Pensou longamente mas finalmente decidiu não ter coragem
de confrontar a garota e decidiu deixar um bilhete no pára-brisa do carro
dela.
Mas ao se aproximar do Chevy, remexendo a bolsa em busca de caneta
e um pedaço de papel, olhou para dentro da cabina e seu coração
sobressaltou-se: um casaco, uma desordem de papéis e, meio ocultos sob
tais papéis, uma pistola e alguns sacos plásticos que continham um pó
branco. Drogas, concluiu Liz.
Oh, sim, pensava agora: sua filha, a pequena Beth Anne Polemus, era
bem capaz de matar.
O pé de Liz afastou-se do pedal e a Singer silenciou. Ela ergueu a
prensa e cortou os fios soltos. Vestiu o casaco, pôs algumas coisas no bolso,
examinou-se no espelho e decidiu que estava satisfeita com o trabalho.
Então, olhou para seu pálido reflexo. Vá embora! Disse uma voz em sua
cabeça. Ela é uma ameaça! Saia antes de Beth Anne chegar.
Mas, após um instante de conflito, Liz suspirou. Uma das principais
razões para ela ter se mudado para ali era o fato de ter sabido que a filha se
mudara para o Noroeste. Liz pensara em encontrar a garota mas sentia-se
estranhamente relutante em fazê-lo. Não, ela ficaria ali e se encontraria com
Beth Anne. Mas não seria idiota, não após o assalto. Liz pendurou o casaco
em um cabide e foi até o armário. Tirou uma caixa da última prateleira e
olhou dentro. Ali havia uma pequena pistola. Era uma "arma de mulher"
como Jim dissera quando a presenteara para Liz havia anos. Ela pegou e
olhou para a arma.

Sleep, my child... All through the night.

Ela então tremeu, desgostosa. Não, não seria capaz de usar uma arma
contra a filha. Claro que não. A ideia de pôr a menina para dormir para
sempre era inconcebível.
No entanto... e se tivesse de escolher entre a sua vida e a vida da filha?
E se o ódio dentro da filha a fizesse se exceder?
Seria capaz de matar Beth Anne para salvar a própria vida? Nenhuma
mãe deveria ser obrigada a fazer uma escolha dessas. Hesitou longamente,
então fez menção de guardar a arma. Mas um brilho a deteve. Faróis
iluminaram o jardim da frente da casa e a parede da sala de costura ao lado
de Liz com uma luz amarela de olhos de gato.
A mulher olhou novamente para a arma e, em vez de guardála no
armário, deixou-a em uma cômoda perto da porta e a cobriu com um pano
de mesa.
Foi até a sala de estar e olhou através da janela para o carro lá fora,
imóvel, luzes ainda acesas, os limpadores de pára-brisa movendo-se
rapidamente, a filha hesitando em sair; Liz suspeitou que não era o mau
tempo que mantinha a garota lá dentro.
Um longo, longo instante depois, os faróis se apagaram. Bem, pense
positivo, disse Liz para si mesma. Talvez a filha tivesse mudado. Talvez o
motivo da visita fosse se aproximar para se desculpar das traições
cometidas ao longo de todos aqueles anos. Podiam finalmente começar a
trabalhar para ter um relacionamento normal.
No entanto, olhou de volta para a sala de costura, onde a arma
repousava sobre a cômoda, e disse para si mesma: Pegue-a. Guarde-a no
bolso.
A seguir: Não, guarde-a de volta no armário. Liz não fez uma coisa nem
outra. Deixou a arma sobre a cômoda, foi até a porta da frente da casa e a
abriu, sentindo a névoa fria no rosto.
Ela se afastou enquanto a silhueta da jovem se aproximava da porta.
Beth Anne entrou e parou. Fez uma pausa e então fechou a porta atrás de si.
Liz continuou no centro da sala, contorcendo as mãos com nervosismo.
Baixando o capuz do casaco, Beth Anne limpou a chuva do rosto. O
rosto da jovem estava abatido e rosado. Não usava maquiagem. Tinha 28
anos, Liz o sabia, mas parecia mais velha. Agora usava o cabelo curto,
revelando pequenos brincos nas orelhas. Por algum motivo, Liz imaginou
se alguém lhe dera os brincos ou se ela os comprara por conta própria.
— Bem, olá querida.
— Mãe. Uma hesitação, seguida de um breve sorriso desmotivado de
Liz.
— Você costumava me chamar de mamãe.
— É mesmo?
— Sim. Não se lembra?
A filha balançou a cabeça. Mas Liz achou que ela se lembrava e estava
relutante em reconhecer a lembrança. Olhou cuidadosamente para a filha.
Beth Anne voltou-se para a pequena sala de estar e seus olhos pousaram
sobre uma fotografia dela e do pai juntos: estavam nas docas, perto de sua
casa em Michigan.
Liz perguntou:
— Quando me ligou, disse que alguém havia lhe contado que eu estava
aqui. Quem foi?
— Não interessa. Alguém. Você está morando aqui desde... — Sua voz
desapareceu gradualmente.
— Já há alguns anos. Quer beber algo?
— Não.
Liz lembrou-se de ter encontrado algumas cervejas que a garota
escondera quando tinha 16 anos e imaginou se ela continuara a beber e
agora tinha um problema com álcool.
— Chá, então? Café?
— Não. — Soube que me mudei para o Noroeste? — perguntou Beth
Anne.
— Você sempre falou na região, em sair de... bem... sair de Michigan e
vir para cá. Então, depois que você se mudou chegou correspondência para
você. De alguém em Seattle.
Beth Anne meneou a cabeça. Teria feito uma ligeira careta também?
Como se estivesse aborrecida consigo mesma por ter sido displicente e
deixado uma pista de onde estava?
— Mudou-se para Portland para ficar perto de mim?
Liz sorriu.
— Acho que sim. Comecei a procurá-la mas acabei desistindo. — Liz
sentiu as lágrimas aflorarem aos seus olhos enquanto a filha continuava a
examinar a sala. A casa era pequena, sim, mas a mobília, aparelhos
eletrônicos e outros equipamentos eram dos melhores — recompensas pelo
árduo trabalho de Liz em anos recentes. Dois sentimentos competiam
dentro da mulher: esperava que a garota fosse tentada a se reconciliar com a
mãe ao ver quanto dinheiro Liz tinha, mas, ao mesmo tempo, tinha
vergonha da própria opulência. As roupas da filha e suas bijuterias baratas
sugeriam que ela passava por dificuldades.
O silêncio era como o fogo. Queimava a pele e o coração de Liz. Beth
Anne abriu a mão esquerda e a mãe percebeu um minusculo anel de
noivado e uma aliança simples.
As lágrimas agora rolavam de seus olhos.
— Você...?
A jovem seguiu o olhar da mãe até o anel. E meneou a cabeça
afirmativamente.
Liz imaginou que tipo de homem seria o genro. Seria alguém fácil de
lidar como Jim, alguém que pudesse contrabalançar a personalidade difícil
da filha? Ou seria durão? Como a própria Beth Anne?
— Tem filhos? — perguntou Liz.
— Não é da sua conta.
— Trabalha?
— Está perguntando se mudei, mãe?
Liz não queria ouvir a resposta a esta pergunta e continuou rapidamente,
vendendo o seu peixe.
— Eu estava pensando — disse, o desespero crescendo em sua voz —,
em talvez mudar para Seattle. Poderíamos nos ver... Poderíamos até mesmo
trabalhar juntas. Poderíamos ser sócias. Meio a meio. Nos divertiríamos
tanto. Sempre achei que nos daríamos muito bem juntas... Sempre sonhei...
— Você e eu trabalhando juntas, mãe? — Ela olhou para a sala de
costura, apontou para a máquina, as araras de vestidos.
— Essa não é a minha. Nunca foi. Nunca poderia ser. Depois de todos
esses anos, você realmente não compreende, não é mesmo?
As palavras e a frieza com que estas palavras foram ditas respondiam a
pergunta de Liz categoricamente: não, a filha não mudara nem um pouco.
Sua voz recrudesceu.
— Então, por que está aqui? Qual o motivo de sua vinda?
— Creio que sabe, não é?
— Não, Beth Anne, eu não sei. Algum tipo de vingança psicótica? —
Pode-se descrever assim, creio eu. — Voltou a olhar ao redor do quarto. —
Vamos. Liz começou a respirar mais rápido. — Por quê? Tudo o que
fizemos foi por você.
— Diria que fez isso para mim. — Uma arma surgiu na mão da filha e o
buraco negro do cano da arma voltou-se para Liz. — Saia — murmurou.
— Meu Deus! Não! — ela ofegou e a lembrança do tiroteio na joalheria
voltou com toda a força. Seu braço formigou e as lágrimas escorreram por
seu rosto. Lembrou-se da arma na cômoda.
Sleep, my child...
— Não vou a parte alguma! — disse Liz, enxugando os olhos.
— Sim, vai. Saia.
— O que vai fazer? — perguntou desesperada.
— O que deveria ter feito há muito tempo.
Liz apoiou-se em uma cadeira para não cair. A filha percebeu a mão
esquerda da mãe, que se aproximava lentamente do telefone.
— Não! — gritou a jovem. — Afaste-se daí.
Liz olhou desconsolada para o aparelho e fez o que lhe fora ordenado.
— Venha comigo.
— Agora? Na chuva.
A jovem meneou a cabeça.
— Deixe-me pegar um casaco.
— Há um perto da porta.
— Não é quente o bastante.
A jovem hesitou, como se estivesse a ponto de dizer que o calor do
casaco da mãe era irrelevante, considerando o que estava para acontecer.
Mas então concordou.
— Mas não tente usar o telefone. Estou de olho.
Liz entrou no quarto de costura, pegou o casaco azul no qual acabara de
trabalhar. Vestiu-o lentamente, os olhos voltados para o volume da pistola
sob o tecido. Olhou de volta para a sala. A filha olhava para uma fotografia
emoldurada onde se via ela com cerca de 11 ou 12 anos, ao lado da mãe e
do pai.
Rapidamente alcançou a arma. Poderia voltar-se apontando-a para a
filha e gritar que jogasse fora a própria arma.

Mother, I can feel you near me, all through the night... Father, I know
you can hear me, all through the night...*

* "Mãe, posso senti-la junto a mim, a noite inteira... Pai, sei que pode me ouvir, a noite inteira..."
(N. do T.)

Mas e se Beth Anne não largasse a arma? E se ela a erguesse,


pretendendo atirar? O que Liz faria? Mataria a filha para salvar a própria
vida?

Sleep, my child...

Beth Anne ainda estava de costas, examinando a fotografia. Liz poderia


fazê-lo: voltar-se, um tiro rápido. Sentiu a pistola pesando em seu braço
pulsante.
Mas então suspirou. A resposta era não. Um não ensurdecedor. Ela
jamais feriria a filha. Não importando o que acontecesse a seguir, lá fora na
chuva, não seria capaz de ferir a filha.
Liz repôs a pistola no lugar e juntou-se a Beth Anne.
— Vamos — disse a filha, que meteu a própria pistola na cintura do
jeans e conduziu a mãe para fora, segurando-a com rudeza pelo braço.
Aquele era, se Liz deu conta, o primeiro contato físico entre as duas em
pelo menos quatro anos.
Pararam no portão e Liz voltou-se para encarar a filha.
— Se fizer isso, vai se arrepender pelo resto de sua vida.
— Não — disse a jovem. — Não vou me arrepender de nada.
Liz sentiu uma rajada de chuva juntar-se às lágrimas de seu rosto. Olhou
para a filha. O rosto da jovem também estava vermelho e molhado, mas
aquilo se devia, a mãe sabia, exclusivamente à chuva; seus olhos estavam
completamente secos de lágrimas. Em um sussurro, perguntou:
— O que fiz para que me odiasse?
A pergunta ficou sem resposta, pois o primeiro dos carros de polícia
parou do lado de fora do quintal, a luz vermelha, branca e azul iluminando
as grossas gotas de chuva que caíam ao redor como fogos de artifício em
uma celebração de Quatro de Julho. Um homem com seus trinta anos
vestindo um casaco preto e uma insígnia ao redor do pescoço saiu do
primeiro carro e caminhou em direção à casa, seguido de dois policiais
uniformizados. Ele acenou para Beth Anne e disse:
— Sou Dan Heath, Polícia do Estado do Oregon.
A jovem apertou-lhe a mão.
— Detetive Beth Anne Polemus, DP de Seattle.
— Bem-vinda a Portland — disse ele.
Ela deu de ombros com ironia, pegou as algemas que ele trazia e
algemou a mãe com firmeza.
Entorpecida pela chuva fria e pela combinação emocional do encontro,
Beth Anne ouviu Heath recitar para a mulher:
— Elizabeth Polemus, está presa por assassinato, tentativa de
assassinato, roubo, assalto a mão armada e comércio de mercadoria
roubada. — A seguir, leu os direitos dela e explicou que fora condenada no
Oregon por infrações locais mas que estava sujeita a uma extradição de
volta a Michigan pela quantidade de mandados de prisão que tinha ali,
incluindo pena capital por assassinato.
Beth Anne gesticulou para o jovem policial local que a encontrara no
aeroporto. Não tivera tempo de preencher toda a papelada que permitira que
trouxesse a sua arma de serviço para outro estado, de modo que o policial
emprestara a sua própria arma para ela. Ela a devolveu e voltou-se
novamente para observar o policial que revistava a sua mãe.
— Querida — disse a mãe, a voz miserável, implorando.
Beth Anne ignorou-a e Heath meneou a cabeça para o jovem policial
uniformizado, que levou a mulher para um carro de polícia. Mas Beth Anne
parou-o com um grito:
— Espere. Reviste-a melhor. O policial fardado piscou, olhando para a
prisioneira magra, pequena e insignificante, que lhe parecia tão inofensiva
quanto uma criança.
Mas ao dar com o sinal afirmativo de Heath, chamou uma policial que a
apalpou com perícia. A policial franziu o cenho ao apalpar as costas à altura
dos rins de Liz. A mãe fulminou a filha com os olhos enquanto a policial
levantava o casaco azul-marinho revelando um pequeno bolso costurado no
forro. Dentro havia um pequeno canivete e uma chave de algemas
universal.
— Jesus — murmurou o policial. Ele meneou a cabeça para a colega,
que a revistou outra vez. Mas não encontrou nenhuma outra surpresa. Beth
Anne disse:
— Esse é um antigo truque do qual me lembro. Ela costurava bolsos
secretos nas roupas. Para roubar lojas e esconder armas. — A jovem riu
friamente. — Costura e roubo. São os talentos dela. — O sorriso
esmoreceu. — Assassinato também, é claro.
— Como pode fazer isso com a sua mãe? — disse Liz com raiva. —
Sua Judas.
Beth Anne observou, ao longe, quando a mulher foi levada a um carro
de polícia.
Heath e Beth Anne entraram na sala da casa. Enquanto a policial
novamente revistava as centenas de milhares de dólares de propriedade
roubada que lotavam o bangalô, Heath disse:
— Obrigado, detetive. Sei que foi difícil para você. Mas estávamos
ansiosos para prendê-la sem ninguém mais se ferir.
Capturar Liz Polemus poderia realmente ter se tornado um banho de
sangue. Já acontecera antes. Muitos anos antes, quando sua mãe e seu
amante, Brad Selbit, tentaram roubar uma joalheria em Ann Arbor, e Liz foi
surpreendida pelo guarda de segurança. Ele disparou contra ela. Mas aquilo
não a impediu de pegar a pistola com a outra mão e matá-lo, assim como a
um cliente e, depois, balear um dos policiais que responderam ao alarme.
Ela conseguiu escapar. Trocara Michigan por Portland, onde ela e Brad
voltaram a operar, fazendo o que sabiam melhor: roubar joalherias e
butiques que vendiam roupas de grife, que ela alterava com sua perícia de
costureira e então revendia para receptadores em outros estados.
Um informante dissera para a polícia do estado do Oregon que Liz
Polemus estava por trás da série de roubos no Noroeste e vivia sob um
nome falso em um bangalô.
Os detetives do Oregon que cuidavam do caso descobriram que a filha
de Liz era detetive da polícia de Seattle e trouxeram Beth Anne de
helicóptero para o aeroporto de Portland. Ela viera de carro até ali para
fazer a mãe se entregar pacificamente.
— Ela estava na lista de mais procurados de dois estados. E ouvi dizer
que também estava ganhando reputação na Califórnia. Imagine isso: sua
própria mãe. — Heath parou subitamente de falar, achando que poderia
estar sendo indelicado. Mas Beth Anne não se importou.
— Assim foi a minha infância: assalto a mão armada, roubo, lavagem
de dinheiro... Meu pai tinha um depósito onde escondia a mercadoria.
Aquele era seu front: herdara-o de seu pai, que, por falar nisso, também
era do ramo.
— Seu avô?
Ela assentiu.
— Aquele depósito... Ainda me lembro tão bem. O cheiro daquilo. A
sensação de frio. E só estive lá uma vez. Quando tinha 8 anos, acho. Estava
lotado de mercadoria roubada. Meu pai me deixou sozinha no escritório
durante alguns minutos, olhei pela fresta da porta e vi ele e um de seus
comparsas espancando duramente um sujeito. Quase o mataram.
— Não parece que quisessem esconder de você.
— Esconder? Diabos, fizeram de tudo para eu entrar no negócio. Meu
pai tinha esses "jogos especiais", que era como ele os chamava. Oh, eu tinha
de ir à casa de meus amigos e ver se tinham objetos de valor e onde
ficavam. Ou verificar as tevês e aparelhos de videocassete da escola e
contar para ele onde eram guardadas e que tipo de fechaduras havia nas
portas.
Heath balançou a cabeça, atônito. Então perguntou:
— Mas você nunca teve problemas com a lei?
Ela riu.
— Na verdade, sim — Fui pega uma vez por roubo de loja.
Heath meneou a cabeça e disse:
— Eu roubei um pacote de cigarros quando tinha 14. Ainda sinto o
cinturão de meu pai em minha bunda por causa daquilo.
— Não, não — disse Beth Anne. — Fui pega devolvendo coisas que
minha mãe roubou.
— Você o quê?
— Ela me levou à loja como disfarce. Você sabe, mãe e filha não
pareceria tão suspeito quanto uma mulher só. Eu a vi embolsar alguns
relógios e um colar. Quando chegamos em casa, pus a mercadoria em uma
sacola e voltei à loja. O guarda talvez tenha me achado com cara de
culpada, e me pegou antes que eu pudesse devolver qualquer coisa. Assumi
a culpa. Quero dizer, não ia sujar o lado de meus pais, certo?... Minha mãe
ficou tão aborrecida... Eles honestamente não conseguiam entender por que
eu não desejava seguir seus passos.
— Você precisa passar um tempo com o Dr. Phil ou alguém do gênero.
— Já estive lá. Ainda estou. Ela balançou a cabeça à medida que as
memórias voltavam à sua mente.
— De, digamos, 12 ou 13 anos em diante, tentei ficar longe de casa o
mais que pude. Praticava toda atividade extra que podia. Era voluntária em
um hospital nos fins de semana. Meus amigos realmente me ajudaram.
Eram os melhores... Provavelmente os escolhi porque estavam a léguas de
distância da turma de criminosos de meus pais. Eu era amiga dos alunos do
National Merit, do pessoal do time de debates, do clube de latim. Qualquer
um que fosse decente e normal. Eu não era uma grande aluna, mas passei
tanto tempo na biblioteca ou estudando em casa de amigos que consegui me
formar e fui para a faculdade.
— Para onde foi?
— Ann Arbor. Criminalística. Fiz os exames CS e consegui uma vaga
na polícia de Detroit. Trabalhei ali algum tempo. Narcóticos na maioria das
vezes. Então me mudei e entrei para a polícia de Seattle.
— E já tem um distintivo dourado. Tornou-se detetive rapidamente. —
Heath olhou para a casa. — Ela morava aqui sozinha? Onde está seu pai?
— Morto — disse Beth Anne casualmente. — Ela o matou.
— O quê?
— Espere para ler a ordem de extradição de Michigan. Ninguém sabia
daquilo na época, é claro. O relatório original do legista diz que foi um
acidente. Mas há alguns meses um sujeito na prisão de Michigan confessou
que a ajudou. Minha mãe descobriu que meu pai estava desviando dinheiro
de suas operações e dividindo-o com algumas namoradas. Ela contratou
aquele sujeito para matá-lo e fazer parecer afogamento acidental.
— Lamento, detetive.
Beth Anne deu de ombros.
— Sempre me perguntei se seria capaz de perdoá-los. Lembro-me de
uma vez, eu ainda trabalhava na narcóticos de Detroit. Acabara de fazer
uma grande apreensão em Six Mile. Confiscara um bocado de heroína.
Estava a caminho para registrar o material no departamento de provas da
delegacia quando vi que estava passando pelo cemitério onde meu pai fora
enterrado. Nunca estivera ali. Parei e fui até a tumba e tentei perdoá-lo. Mas
não podia. Deime conta de que jamais seria capaz. Nem ele nem minha
mãe. Foi quando decidi que tinha de ir embora de Michigan.
— Sua mãe voltou a se casar?
— Ficou com Selbit alguns anos, mas nunca se casou com ele. Já o
pegaram?
— Não. Ele está por aí em algum lugar, mas vamos pegá-lo.
Beth Anne apontou para o telefone. — Minha mãe quis pegar o telefone
quando cheguei. Talvez estivesse tentando mandar-lhe uma mensagem.
Deve verificar os registros telefônicos. Isso talvez os leve até ele.
— Boa ideia, detetive. Vou conseguir um mandado ainda hoje à noite.
Beth Anne olhou através da chuva, na direção em que o carro de polícia
que levava a sua mãe desaparecera havia alguns minutos.
— O mais incrível é que ela achava estar fazendo o certo para mim,
tentando me fazer entrar para o negócio. Ser bandida era a sua natureza; ela
achava que era a minha natureza também. Ela e papai eram ruins de
nascença. Não entendiam por que eu nascera boa e não mudava.
— Você tem família? — perguntou Heath.
— Meu marido é sargento calouro. — Então Beth Anne sorriu. — E
estamos esperando. Nosso primeiro.
— Ei, isso é muito legal.
— Trabalho até junho. Então pego uma licença de alguns anos para ser
mãe. — Sentiu necessidade de acrescentar: "Porque os filhos vêm antes de
qualquer coisa." Contudo, devido às circunstâncias, ela achou que deveria
dispensar detalhes.
— O pessoal da cena do crime vai isolar o lugar — disse Heath. — Mas
se quiser dar uma olhada, está tudo bem. Talvez haja algumas fotografias
que deseje guardar. Ninguém vai se importar se você pegar coisas pessoais.
Beth Anne levou a mão à testa. — Tenho mais lembranças aqui do que
desejaria ter...
— Entendi.
Ela fechou o casaco, puxou o gorro. Outro sorriso vazio. Heath ergueu
uma sobrancelha.
— Sabe qual a minha lembrança mais antiga? — perguntou.
— Qual?
— Na cozinha da primeira casa de meus pais na periferia de Detroit. Eu
estava sentada na mesa. Devia ter uns 3 anos de idade. Minha mãe cantando
para mim.
— Cantando? Assim como uma mãe de verdade?
Beth Anne refletiu.
— Não sei que canção era. Só me lembro dela cantando para me
distrair. De modo que eu não mexesse no que ela estava fazendo na mesa.
— E o que ela fazia, costurava? — Heath apontou para o quarto com a
máquina de costura e as araras de vestidos roubados.
— Não. — Respondeu a mulher. — Estava recarregando munição.
— Fala sério?
Ela assentiu.
— Só me dei conta do que ela estava fazendo anos depois. Meus pais
não tinham muito dinheiro, então compravam cartuchos vazios em shows
de armamentos e os recarregavam. Tudo o que me lembro era de que as
balas eram brilhantes e eu queria brincar com elas. Ela disse que se eu não
mexesse ali ela cantaria para mim.
Essa história foi o fim da conversa. Os dois policiais ouviram a chuva
caindo no telhado.
Ruim de nascença... — Tudo bem — disse Beth Anne afinal. — Vou
para casa. Heath levou-a até o lado de fora e se despediram. Beth Anne
ligou o carro alugado e dirigiu pela estrada enlameada, que a levava para
casa, em direção à rodovia estadual.
Subitamente, de algum lugar de sua memória remota, uma melodia
veio-lhe à mente. Ela murmurou alguns compassos em voz alta mas não
conseguiu encontrar a afinação.
Aquilo a deixou ligeiramente inquieta. Então Beth Anne ligou o rádio e
descobriu a Jammin' 95.5, "preenchendo a sua noite com grandes sucessos,
Portland..." Ela aumentou o volume, acompanhando a musica com
palmadinhas no volante e continuou a dirigir para o norte rumo ao
aeroporto.

***
TÍTULOS DA COLEÇÃO NEGRA:

Noir americano - Uma antologia do crime de Chandler a Tarantino, ed.


Peter Haining
Los Angeles - cidade proibida, de James Ellroy
Negro e amargo blues, de James Lee Burke
Sob o sol da Califórnia, de Robert Crais
Bandidos, de Elmore Leonard
Procura-se uma vítima, de Ross Macdonald
Perversão na cidade do jazz, de James Lee Burke
Marcas de nascença, de Sarah Dunant
Noturnos de Hollywood, de James Ellroy
Viuvas, de Ed McBain
Modelo para morrer, de Flávio Moreira da Costa
Violetas de março, de Philip Kerr
O homem sob a terra, de Ross Macdonald
Essa maldita farinha, de Rubens Figueiredo
A forma da água, de Andrea Camilleri
O colecionador de ossos, de Jeffery Deaver
A região submersa, de Tabajara Ruas
O cão de terracota, de Andrea Camilleri
Dália negra, de James Ellroy
Rios vermelhos, de Jean-Christophe Grangé
Beijo, de Ed McBain
O executante, de Rubem Mauro Machado
Sob minha pele, de Sarah Dunant
Jazz branco, de James Ellroy
A maneira negra, de Rafael Cardoso
O ladrão de merendas, de Andrea Camilleri
Cidade corrompida, de Ross Macdonald
Assassino branco, de Philip Kerr
A sombra materna, de Melodie Johnson Howe
A voz do violino, de Andrea Camilleri
As pérolas peregrinas, de Manuel de Lope
A cadeira vazia, de Jeffery Deaver
Os vinhedos de Salomão, de Jonathan Latimer
Uma morte em vermelho, de Walter Mosley
O grande deserto, de James Ellroy
Réquiem alemão, de Philip Kerr
Cadilac K.K.K., de James Lee Burke
Metrópole do medo, de Ed McBain
Um mês com Montalbano, de Andrea Camilleri
A lágrima do diabo, de Jeffery Deaver
Sempre em desvantagem, de Walter Mosley
O coração da floresta, de James Lee Burke
Dois assassinatos em minha vida dupla, de Josef Skvorecky
O voo das cegonhas, de Jean-Christophe Grangé
6 mil em espécie, de James Ellroy
O voo dos anjos, de Michael Connelly
Uma pequena morte em Lisboa, de Robert Wilson
Caos total, de Jean-Claude Izzo
Excursão a Tíndari, de Andrea Camilleri
Mistério à americana, organização e prefácio de Donald E. Westlake
Nossa Senhora da Solidão, de Marcela Serrano
Ferrovia do crepusculo, de James Lee Burke
Sangue na lua, de James Ellroy
A última dança, de Ed McBain
Mistério à americana 2, organização de Lawrence Block
Mais escuro que a noite, de Michael Connelly
Uma volta com o cachorro, de Walter Mosley
O cheiro da noite, de Andrea Camilleri
Tela escura, de Davide Ferrario
Por causa da noite, de James Ellroy
Grana, grana, grana, de Ed McBain
Na companhia de estranhos, de Robert Wilson
Réquiem em Los Angeles, de Robert Crais
O macaco de pedra, de Jeffery Deaver
Alvo virtual, de Denise Danks
O morro do suicídio, de James Ellroy
Sempre caro, de Marcello Fois
Refém, de Robert Crais
O outro mundo, de Marcello Fois
Cidade dos ossos, de Michael Connelly
Mundos sujos, de José Latour
Dissolução, de C.J. Sansom
Chamada perdida, de Michael Connelly
Guinada na vida, de Andrea Camilleri
Sangue do céu, de Marcello Fois
Perto de casa, de Peter Robinson
Luz perdida, de Michael Connelly
Duplo homicídio, de Faye e Jonathan Kellerman
Espinheiro, de Ross Thomas
Correntezas da maldade, de Michael Connelly
Brincando com fogo, de Peter Robinson
Fogo negro, de C. J. Sansom
A lei do cão, de Don Winslow
Camaradas em Miami, de José Latour
Este livro foi composto na tipologia Goudy
em corpo 11/14 e impresso em papel off-white 80g/m2
no Sistema Cameron da Divisão Gráfica da
Distribuidora Record

Gênero: conto (suspense)


Numeração: Cabeçalho, 332 pp
Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini
Abril de 2013

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