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Organizador
Mulheres Perigosas
Tradução
Ryta Vinagre... et al
Editora Record
2007
Contracapa
Orelhas
Luiz Antônio Aguiar traduziu "Karma", "O que ela ofereceu" e "Seu amo e
senhor";
Alves Calado preparou "Improvisação", "Ponto de encontro", "A mil
quilômetros de lugar nenhum" e "Louly e Bonitinho";
Roberto Muggiati, "Dê-me seu coração", "A bizarria do Sr. Gray" e "Caído
por ela";
os textos "Cielo Azul", "Terceiro" e "Má de nascença" foram traduzidos por
Alexandre Raposo e "Prezado Fórum da Penthouse (um primeiro
rascunho)", "A testemunha", "O último beijo" e "A onda sorrateira", por
Ryta Vinagre.
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
M922 Mulheres perigosas / [organização] Otto Penzler; tradução
Ryta Vinagre... [et al.]. — Rio de Janeiro: Record, 2007. (Coleção Negra)
Tradução de: Dangerous women ISBN 978-85-01-07535-2
06-4570
1. Criminosas — Ficção. 2. Antologias (Conto). I. Penzler, Otto. II. Vinagre, Ryta. III. Série.
CDD — 808.83 CDu — 82-03(082)
Ed McBain - Improvisação
Michael Connelly - Cielo Azul
Joyce Carol Oates - Dê-me seu coração
Walter Mosley - Karma
Laura Lippman - Prezado Fórum da Penthou-se (um primeiro rascunho)
Nelson DeMille - Ponto de encontro
Thomas H. Cook - O que ela ofereceu
Andrew Klavan - Seu amo e senhor
John Connolly - A bizarria do Sr. Gray
Lorenzo Carcaterra - A mil quilômetros de lugar nenhum
J. A. Jance - A testemunha
Ian Rankin - Caído por ela
Jay McInerney - Terceiro
S. J. Rozan - O último beijo
Anne Perry - A onda sorrateira
Elmore Leonard - Louly e Bonitinho
Jeffery Deaver - Má de nascença
Introdução
OTTO PENZLER
***
Improvisação
Ed McBain
— Por que a gente não mata alguém? — sugeriu ela. Era loura, é óbvio,
alta e esguia, usando um vestido de noite, preto e grudado no corpo, com
um corte alto na perna e baixo no decote.
— Isso é coisa velha — disse Will. — Já fiz. Os olhos dela se
arregalaram, um azul brilhante em contraste espantoso com o preto do
vestido.
— Na Guerra do Golfo — explicou ele.
— Não é a mesma coisa. — Ela pegou a azeitona do martíni e pôs na
boca. — Estou falando de assassinato.
— Assassinato, é. Em quem você está pensando?
— Que tal aquela mulher sentada ali no balcão?
— Ah, uma vítima aleatória. Mas em que sentido isso é diferente de
uma guerra?
— Uma vítima aleatória específica — disse ela. — Vamos matar ou
não?
— Por quê?
— Por que não?
Will conhecia a mulher havia uns vinte minutos, no máximo. De fato
nem sabia o nome dela. A sugestão de que matassem alguém tinha vindo
em resposta a uma cantada padrão que ele já havia usado com bons
resultados muitas vezes: "O que a gente pode fazer pra agitar essa noite?"
E a loura respondeu: "Por que a gente não mata alguém?"
Não tinha sussurrado as palavras, nem mesmo baixado a voz. Apenas
sorriu por cima da borda da taça de martíni e disse na voz normal: "Por que
a gente não mata alguém?"
A vítima aleatória específica que ela havia escolhido era uma mulher de
aparência comum, usando casaco marrom comum sobre uma blusa de seda
marrom e saia marrom mais escura. Havia nela um ar de arquivista com
trabalho demais ou secretária de nível inferior, o cabelo castanho cor de
rato, olhos que não piscavam por trás dos óculos grandes, a boca de lábios
finos e com a arcada superior um tanto proeminente. Uma mulher
totalmente comum. Não era de espantar que estivesse sentada sozinha
acalentando uma taça de vinho branco.
— Digamos que a gente mate mesmo a mulher — disse Will. — O que
a gente faz pra agitar depois?
A loura sorriu. E cruzou as pernas.
— Meu nome é Jessica. E estendeu a mão. Ele a apertou.
— Sou Will.
Ele presumiu que a palma da mão de Jessica estivesse fria por causa da
bebida gelada que estivera segurando.
Nessa noite gelada de dezembro, três dias antes do Natal, Will não tinha
absolutamente nenhuma intenção de matar a pequena arquivista que estava
na ponta do balcão, nem ninguém, por sinal. Tinha matado sua cota de
pessoas há muito tempo, muito obrigado. Todas vítimas aleatórias
específicas, pois usavam uniforme do exército iraquiano, o que fazia delas o
inimigo. Isso era o mais específico possível em tempos de guerra, supunha
ele. Era o que justificava assassiná-las, independentemente da pequena
distinção que Jessica fazia entre assassinato e guerra.
De qualquer modo Will sabia que isso era apenas um jogo, uma
variação do ritual de acasalamento que acontecia em todos os bares de
solteiros de Manhattan em qualquer noite do ano. Você dava uma cantada
inteligente, recebia uma resposta indicando interesse e partia daí. De fato
imaginou quantas vezes, em quantos bares antes desta noite, Jessica teria
usado seu bordão do "Por que a gente não mata alguém?". Podia-se admitir
que era uma abordagem aventureira, talvez até mesmo perigosa — imagine
que ela mostrasse aquelas pernas estupendas para alguém que fosse Jack, o
Estripador?
E se pegasse um cara que realmente acreditasse que seria divertido
matar aquela garota sentada sozinha na outra ponta do balcão? Ei, grande
ideia, Jess, vamos nessa! O que, de fato, era o que ele havia indicado
tacitamente, mas claro que ela sabia que os dois estavam apenas fazendo
um jogo, não é? Ela certamente devia perceber que os dois não planejavam
um assassinato de verdade.
— Quem vai fazer a abordagem? — perguntou ela.
— Acho que deveria ser eu.
— Por favor, não use sua cantada "O que a gente pode fazer pra agitar
essa noite?"
— Puxa, achei que você tinha gostado.
— É, na primeira vez em que ouvi. Há cinco ou seis anos.
— Achei que eu estava sendo totalmente original.
— Tente ser mais original com a pequena Alice, certo?
— Você acha que o nome dela é esse?
— Qual você acha que é?
— Patricia.
— Certo, eu serei Patricia. Diga como vai ser.
— Com licença, senhorita — disse Will.
— Grande início!
— Por acaso minha amiga e eu notamos você sentada sozinha aqui e
imaginamos se gostaria de se juntar a nós.
Jessica olhou em volta como se procurasse a amiga de que ele falava a
Patricia.
— Como assim? — perguntou ela, com expressão de surpresa.
— Aquela loura linda sentada ali — disse Will. — O nome dela é
Jessica.
Jessica sorriu.
— Loura linda, é? — perguntou.
— Loura estupenda.
— Sujeito de fala doce — disse ela, e pôs a mão sobre a dele, no
balcão.
— Então digamos que a mocinha decida se juntar a nós. E aí?
— Nós a enchemos de elogios e álcool.
— E aí?
— Levamos a algum beco escuro e batemos nela até matar.
— Eu tenho um vidrinho de veneno na bolsa. Não seria melhor?
Will estreitou os olhos como um gângster.
— Perfeito — disse ele. — Vamos levá-la até um beco escuro e matá-la
com veneno.
— Um apartamento em algum lugar não seria melhor?
E de repente ocorreu a Will que talvez eles não estivessem falando de
assassinato, fosse de brincadeira ou não.
Seria possível que Jessica estivesse pensando em transar a três?
— Vá falar com a moça — disse ela. — Depois disso vamos improvisar.
Will não era muito bom em pegar mulheres em bares.
De fato, afora sua cantada "O que a gente pode fazer pra agitar essa
noite?", ele não tinha muitas outras abordagens no repertório. Sentiu-se um
pouco mais ousado com o movimento de cabeça encorajador feito por
Jessica, na outra ponta do balcão, mas mesmo assim estava um tanto tímido
ao ocupar o banco vazio ao lado de Alice, Patricia ou qualquer que fosse o
nome.
Segundo sua experiência, as mulheres comuns reagiam menos ao elogio
do que as que eram realmente lindas de morrer. Achava que era porque
esperavam mentiras e tinham cautela para não ser enganadas e se
desapontar mais uma vez. Alice, Patricia ou Sei-lá-o-quê não foi exceção a
essa observação geral sobre as garotas comuns. Will ocupou o banco ao
lado do dela, virou-se e disse:
— Com licença, senhorita — exatamente como havia ensaiado com
Jessica, mas antes que pudesse dizer qualquer palavra ela se encolheu como
se tivesse levado um tapa.
Olhos arregalados, aparentemente surpresa, disse:
— O quê? O que é?
— Desculpe se assustei você...
— Não, tudo bem. O que é?
A voz dela era aguda e gemida, com um sotaque que ele não conseguiu
identificar. Os olhos por trás das lentes grossas e redondas eram de um
castanho muito escuro, ainda arregalados de medo ou desconfiança, ou as
duas coisas. Olhando-o sem piscar, ela esperou.
— Não quero incomodar você — disse ele — mas...
— Tudo bem, verdade. O que é?
— Minha amiga e eu não pudemos deixar de ver...
— Sua amiga?
— A moça sentada ali adiante. A loura na outra ponta do balcão, está
vendo? — disse Will apontando para Jessica, que obedientemente levantou
a mão, cumprimentando.
— Ah. Sim — disse ela. — Sei.
— Nós não pudemos deixar de ver você sentada aqui, bebendo sozinha.
Imaginamos se gostaria de se juntar a nós.
— Ah.
— Você acha que gostaria? De se juntar a nós?
Houve um momento de hesitação. Os olhos castanhos piscaram,
suavizaram-se. Um sorriso minusculo se formou na boca de lábios finos.
— Acho que gostaria, sim — respondeu ela. — Gostaria.
Sentaram-se a uma mesa pequena, a alguma distância do balcão, num
canto mal iluminado. Susan — e não Patricia ou Alice, como se viu —
pediu outro Chardonnay. Jessica se ateve aos martínis. Will pediu outro
bourbon com gelo.
— Ninguém deveria estar sentada sozinha três dias antes do Natal —
disse Jessica.
— Ah, concordo, concordo — respondeu Susan. Susan tinha um jeito
irritante de dizer tudo duas vezes. Fazia parecer que havia um eco no lugar.
— Mas esse bar fica no caminho da minha casa — disse ela. — E eu
pensei em parar para tomar uma taça de vinho.
— Pra afastar o frio — concordou Jessica, assentindo.
— É, exatamente. Pra afastar o frio.
Ela também repetia as palavras dos outros, notou Will.
— Você mora aqui perto? — perguntou Jessica.
— É. Logo ali na esquina.
— De onde você é?
— Minha nossa, ainda dá para notar?
— Notar o quê? — perguntou Will.
— O sotaque. Minha nossa, ainda dá para notar? Depois de todas as
aulas? Que coisa!
— De onde é o sotaque? — perguntou Jessica.
— Alabama. Montgomery. Alabama — respondeu ela, fazendo parecer
"Mon'gommy, Alabama".
— Não percebo sotaque nenhum — disse. — Você detecta algum
sotaque, Will?
— Bom, na verdade é um dialeto regional — explicou Susan.
— Parece que você nasceu aqui mesmo, em Nova York — disse Will,
mentindo na maior cara de pau.
— É muita gentileza de vocês, realmente. Realmente, é muita gentileza.
— Há quanto tempo você está aqui? — perguntou Jessica.
— Seis meses. Cheguei no fim de junho. Sou atriz.
Atriz, pensou Will.
— Eu sou enfermeira — disse Jessica.
Uma atriz e uma enfermeira, pensou Will.
— Não brinca! — exclamou Susan. — Você trabalha em algum
hospital?
— No Beth Israel.
— Achei que isso era uma sinagoga — disse Will.
— É hospital também — explicou Jessica, assentindo, e se virou de
novo para Susan.
— Será que a gente já viu você em alguma coisa?
— Bem, a não ser que vocês tenham ido a Montgomery. — Susan
sorriu. — À margem da vida. Conhece À margem da vida? Tennessee
Williams? A peça de Tennessee Williams? Eu fiz Laura Wingate na
produção do Paper Players, lá. Aqui ainda não fiz nada. Na verdade estou
trabalhando de garçonete.
Garçonete, pensou Will. A enfermeira e eu estamos para matar a
garçonete mais comum da cidade de Nova York. Ou pior, vamos levá-la
para a cama.
Mais tarde ele achou que podia ter sido Jessica quem sugeriu que
comprassem uma garrafa de Moët Chandon e levassem ao apartamento de
Susan para uma saideira, já que o apartamento era tão perto e coisa e tal,
bem ali na esquina, como a própria Susan havia mencionado antes. Ou
talvez o próprio Will tivesse feito a sugestão, já tendo consumido quatro
doses grandes de Jack Daniels e estando um pouco mais ousado do que
normalmente. Ou talvez Susan é que tenha convidado os dois ao
apartamento, que ficava no coração do bairro teatral, na esquina perto do
Flanagan's, onde ela própria havia consumido três ou quatro copos de
Chardonnay e começado a fazer para eles toda a cena em que o Cavalheiro
Caller quebra o pequeno unicórnio de vidro e Laura finge que não é uma
grande tragédia, fazendo os dois papéis para eles.
O que, Will teve certeza, levou o barman a anunciar o fechamento dez
minutos antes da hora.
Ela era uma atriz terrível. Mas, ah, tão inspirada! No minuto em que
chegaram à rua ela ergueu os braços ao céu, com os dedos abertos, e gritou
em seu pavoroso sotaque sulista:
— Olhem só! A Broadway! O Grande Caminho Branco! — Então fez
uma espécie de pequena pirueta, girando e dançando na rua, os braços ainda
acima da cabeça.
— Meu Deus, vamos matá-la depressa! — sussurrou Jessica a Will. Os
dois explodiram numa gargalhada. Susan deve ter pensado que estavam
compartilhando sua exuberância.
Will achou que ela não sabia o que a esperava. Ou talvez soubesse.
Nessa hora da noite as prostitutas já haviam começado a andar pela Oitava
Avenida, mas nenhuma sequer levantou a sobrancelha para Will,
provavelmente achando que ele era um cliente já duplamente ocupado, com
uma em cada braço. Numa loja de bebidas ele comprou uma garrafa não de
Moët Chandon, mas de Veuve Clicquot, e continuaram andando juntos pela
avenida, de braços dados.
O apartamento de Susan era uma quitinete no terceiro andar de um
prédio sem elevador, na esquina da Quarenta e Nove com a Nona. Subiram
a escada atrás dela e Susan parou diante do apartamento 3A, procurou as
chaves na bolsa, encontrou-as finalmente e destrancou a porta. O lugar era
mobiliado com o que Will chamava de Brechó — Jovem Atriz Aspirante.
Uma cozinha minuscula à esquerda da entrada. Uma cama de casal
junto à parede mais distante, uma porta dando no que Will achava que seria
o banheiro. Um sofá, duas poltronas e uma penteadeira com espelho. Havia
uma porta na parede da entrada, que dava num armário. Susan pegou os
casacos deles e pendurou.
— Vocês se importam se eu ficar mais à vontade? — perguntou e entrou
no banheiro.
Jessica ergueu as sobrancelhas. Will entrou na cozinha, abriu a geladeira
e esvaziou duas fôrmas de gelo numa tigela que encontrou num armário do
alto. Também pegou três copos de geleia que achou que deveriam servir.
Jessica sentou-se no sofá olhando-o enquanto ele começava a abrir o
champanha. Um estalo alto se ouviu no instante em que outra loura saiu do
banheiro.
Ele demorou um instante para perceber que era Susan.
— Maquiagem e figurino são ótimos para montar um personagem —
disse ela.
Agora era uma jovem magra com cabelo louro curto e liso, belos seios
aparecendo no decote amplo de uma blusa vermelha, saia preta curta e
justa, boas pernas com sapatos pretos muito altos. Na mão direita estava
pendurada a peruca castanho-rato que estivera usando no bar, e, quando
abriu a mão esquerda e estendeu para ele, Will viu a prótese dentária que
lhe dera o maxilar superior proeminente. Pela porta aberta do banheiro ele
pôde ver o conjunto marrom pendurado na haste do boxe.
Os óculos estavam na pia do banheiro.
— Um pouquinho de enchimento na cintura me deixou mais gordinha
— disse ela. — Nós temos todos esses adereços na aula.
Não havia mais sotaque sulista, notou ele. Nem olhos castanhos,
também.
— Mas os seus olhos... — disse ele.
— Lentes de contato — respondeu Susan.
Os olhos verdadeiros eram tão azuis quanto... bem, os de Jessica. Na
verdade as duas poderiam passar por irmãs. Ele disse isso em voz alta.
— Vocês duas poderiam passar por irmãs.
— Talvez porque somos — disse Jessica. — Mas enganamos você, não
foi?
— Cacete — disse ele.
— Vamos experimentar aquele champanhe — disse Susan, e entrou na
cozinha onde agora a garrafa estava na tigela de gelo. Ela pegou-a, serviu a
bebida em três copos de geleia e os levou de volta aninhados entre os dedos.
Jessica soltou um dos copos. Susan entregou um a Will.
— A nós três — brindou Jessica.
— E à improvisação — acrescentou Susan. Todos beberam. Will achou
que aquela seria uma tremenda noite.
— Nós fazemos o mesmo curso de teatro — disse Jessica.
Ela ainda estava sentada no sofá, pernas cruzadas. Pernas esplêndidas.
Will estava numa das poltronas. Susan na poltrona diante dele, as pernas
também cruzadas, também esplêndidas.
— Nós duas queremos ser atrizes — explicou Jessica.
— Achei que você era enfermeira.
— Ah, claro. Do mesmo modo que Sue é garçonete. Mas nossa ambição
é interpretar.
— Um dia vamos ser estrelas. — As Irmãs Carter — disse Jessica.
— Susan e Jessica! — completou a irmã.
— Vou beber a isso — disse Will. Todos beberam de novo.
— Na verdade não somos mesmo de Montgomery, você sabe — contou
Jessica.
— Bem, agora percebo. Mas sem duvida foi um bom sotaque, Susan.
— Dialeto regional — corrigiu ela.
— Somos de Seattle.
— Onde chove o tempo todo — disse Will.
— Ah, não é verdade — explicou Susan. — Chove menos em Seattle do
que em Nova York, isso é fato.
— Um fato provado estatisticamente — disse Jessica, assentindo para
concordar e terminando de esvaziar o copo. — Tem mais borbulhante aí?
— Ah, um monte — respondeu Susan, e se levantou da poltrona
expondo uma boa quantidade de coxas enquanto ficava de pé. Will lhe
entregou seu copo vazio também.
Sem duvida esperava que as damas não bebessem muito. Havia
negócios sérios a fazer esta noite, improvisações sérias.
— Então, há quanto tempo vocês moram em Nova York? — perguntou.
— Era verdade o que você disse no bar? São apenas seis meses?
— Isso mesmo — disse Jessica. — Desde o fim de junho. — Desde
então estamos fazendo aulas de teatro.
— Você fez mesmo À margem da vida? Com o Paper Players? O Paper
Players existe?
— Ah, sim — respondeu Susan, voltando com os copos cheios. — Mas
em Seattle.
— Nunca estivemos em Montgomery. — Isso fazia parte do meu
personagem — disse Susan. — O personagem que fiz no bar. Suziezinha
Triste.
As duas riram. Will riu com elas.
— Eu fiz Amanda Wingate — explicou Susan. — Quando fizemos a
peça em Seattle. A mãe de Laura. Amanda Wingate.
— Na verdade eu sou a mais velha — disse Jessica. — Na vida real.
— Ela tem trinta — completou Susan. — Eu tenho vinte e oito.
— Aqui, sozinhas na cidade grande — disse Will.
— É, sozinhas aqui — concordou Jessica.
— É ali que vocês dormem? — perguntou Will. — Naquela cama do
outro lado do cômodo? Vocês duas sozinhas naquela cama grande e má?
— Epa — disse Jessica. — Ele quer saber onde a gente dorme, Sue.
— É melhor ter cuidado — respondeu Susan.
Will achou que deveria recuar um pouquinho, ir um pouco mais
devagar.
— E onde é essa escola de teatro que vocês frequentam?
— Na Oitava Avenida. — Perto do Biltmore — disse Susan. —
Conhece o teatro Biltmore?
— Não, não conheço. Desculpe.
— Bem, é perto de lá — disse Jessica. — Madame D'Arbousse, conhece
o trabalho dela?
— Não, sinto muito, não conheço.
— Bem, ela é famosa — disse Susan.
— Desculpe, não sou familiarizado com...
— A Escola D'Arbousse? Nunca ouviu falar da Escola de Teatro
D'Arbousse?
— Desculpe, não.
— É apenas mundialmente famosa — disse Susan. Agora ela parecia
estar fazendo beicinho, quase petulante. Will achou que estava perdendo
terreno. Depressa.
— Então... é... por que a ideia de colocar figurino esta noite? —
perguntou. — Ir ao bar como uma... bem... espero que me perdoe... Uma
aquivistazinha malvestida, foi o que pensei que você era.
— Foi tão bom assim, hein? — perguntou Susan, sorrindo. Seu sorriso,
sem a prótese dentária, era na verdade muito lindo. A boca também não
parecia mais ter lábios tão finos. É espantoso o que um pouquinho de batom
podia fazer para engrossar os lábios de uma garota. Imaginou aqueles lábios
nos seus, na cama do outro lado do cômodo. Imaginou os lábios da irmã
sobre os dele, também. Imaginou todos os lábios emaranhados,
entrelaçados...
— Isso fazia parte do exercício — explicou Susan.
— Exercício?
— Encontrar o lugar — disse Jessica.
— O lugar do personagem — disse Susan.
— Para um momento privado — explicou Jessica. — Encontrar o lugar
para o momento privado de um personagem.
— Nós achamos que poderia ser o bar. — Mas agora acho que poderia
ser aqui.
— Bem, será aqui — disse Jessica. — Assim que o criarmos.
Elas deixaram Will meio perdido. Mais importante, sentia que estava
perdendo-as. Aquela cama, a uns cinco metros do outro lado do cômodo,
parecia recuar até uma distância inalcançável. Precisava recolocar a coisa
nos trilhos.
Mas ainda não sabia bem como. Pelo menos enquanto elas ficavam
arengando sobre... o que elas estavam falando, afinal?
— Desculpe — disse ele —, mas o quê, exatamente, vocês estão
tentando criar?
— O momento privado de um personagem — respondeu Jessica.
— É este o lugar que vamos usar? — perguntou Susan.
— Acho que sim, é. Você não acha? Nosso próprio apartamento. Um
lugar de verdade. Para mim parece muito real. Não parece real para você,
Sue?
— Ah, sim. É, parece. Parece muito real. Mas ainda não parece privado.
Você se sente num momento privado?
— Não, ainda não.
— Com licença, moças...
— Moças! uuu, huu — disse Susan, e revirou os olhos.
— Mas... podemos ficar numa situação muito mais privada aqui, se é
isso que as moças estão procurando.
— Estamos falando de um momento privado — explicou Jessica. — O
modo como nos comportamos quando ninguém está olhando.
— Ninguém está olhando agora — disse Will, encorajando. — Podemos
fazer o que quisermos e ninguém vai...
— Acho que você não entende — disse Susan. — Os sentimentos e
emoções privados de um personagem é o que estamos tentando criar aqui,
esta noite.
— Então vamos começar a criar todos esses sentimentos e emoções —
sugeriu Will.
— Esses sentimentos têm de ser reais — disse Jessica.
— Têm de ser absolutamente reais — insistiu Susan. — Para podermos
aplicá-los à cena que estamos fazendo.
— Ah-ha! — disse Will.
— Acho que ele entendeu — reagiu Jessica.
— Minha nossa! Ele entendeu.
— Vocês estão ensaiando uma cena juntas.
— Bravo!
— Que cena?
— Uma cena do Macbeth — respondeu Susan.
— Onde ela o manda forçar sua coragem até o ponto de impasse. —
disse Jessica.
— Lady Macbeth. — Diz ao Macbeth. Quando ele está começando a
hesitar quanto ao assassinato de Duncan.
— Force a coragem até o ponto de impasse — disse Jessica de novo,
desta vez com convicção. — E não falharemos.
Ela olhou para a irmã.
— Isso foi muito bom — disse Susan. Will achou que talvez estivessem
de volta aos trilhos.
— Forçar a coragem, hein? — disse ele, e sorriu como quem sabia das
coisas. Em seguida tomou outro gole da bebida.
— Ela está dizendo para ele não ser tão molenga — disse Susan.
— O negócio é que os dois estão tramando matar o rei, você sabe —
explicou Jessica.
— Estão avaliando o que vão fazer. — Estão planejando um assassinato,
veja bem.
— Qual é a sensação? — perguntou Susan.
— O que se passa dentro da sua cabeça? — completou Jessica.
— Aquele momento privado dentro da sua cabeça. — Quando você está
avaliando a morte de alguém. O cômodo ficou em silêncio por um instante.
As irmãs se entreolharam.
— Alguém quer mais champanhe? — perguntou Susan.
— Eu adoraria — respondeu Jessica.
— Eu pego — disse Will, e começou a se levantar.
— Não, não, eu vou — disse Susan, em seguida pegou o copo dele e
levou os três, vazios, para a cozinha. Jessica cruzou as pernas. Atrás, dele,
na cozinha, Will pôde ouvir Susan enchendo os copos. Olhou o pé de
Jessica balançando, o sapato meio calçado, meio descalçado, seguro apenas
pelos dedos.
— Então aquele negócio todo no bar fazia parte do exercício, certo? —
perguntou Will. — Sua sugestão de matarmos alguém? E depois a escolha
de sua irmã como vítima?
— Bom, mais ou menos.
O sapato caiu. Ela se curvou para pegá-lo, abrindo as pernas, com o
vestido preto subindo alto pelas coxas. Cruzou uma perna sobre a outra,
recolocou o sapato, sorriu para Will. Susan estava de volta com os copos
cheios.
— Ainda tem um pouquinho lá — disse ela, e entregou os copos.
Jessica ergueu o seu, num brinde.
— A partir deste momento — disse ela — reconheço vosso amor. —
Saude — disse Susan, e bebeu.
— O que quer dizer isso? — perguntou Will, mas bebeu também.
— Faz parte da cena — respondeu Jessica. — Na verdade é o começo
da cena. Quando ele está começando a hesitar. No fim da cena ela o
convenceu de que o rei deve morrer.
— Um rosto falso deve esconder o que revela o coração falso — disse
Susan, e assentiu. — É a última fala de Macbeth. No fim da cena.
— Foi por isso que você se vestiu de arquivista? um rosto falso deve
esconder.. como foi que você falou?
— O que revela o coração falso — repetiu Susan. — Mas não, não era
por isso que eu estava usando figurino.
— Então por quê?
— Era o meu modo de tentar criar um personagem.
— Talvez ele não tenha entendido, afinal de contas — disse Jessica.
— Um personagem capaz de matar — explicou Susan.
— Você precisava se tornar uma pessoa malvestida?
— Bem, eu precisava me tornar outra pessoa. Alguém diferente de mim.
Mas só isso não bastava.
Eu precisava encontrar também o lugar certo.
— O lugar é aqui — disse Jessica.
— E agora — completou Will. — Então, moças, se ninguém se
importa...
— Uuu, huu, moças de novo — disse Susan, e revirou os olhos outra
vez.
— ... podemos sair por um momento desse negócio de atuar...?
— Que tal o seu momento privado? — perguntou Susan.
— Eu não tenho momentos privados.
— Você nunca peida sozinho no escuro? — perguntou Jessica. —
Nunca toca punheta no escuro? — perguntou Susan.
A boca de Will se escancarou.
— Esses são momentos privados — disse Jessica.
Por algum motivo ele não conseguiu fechar a boca.
— Acho que está começando a fazer efeito — observou Susan.
— Tire o copo da mão dele, antes que ele largue — disse Jessica. Will
ficou olhando-as com os olhos e a boca escancarados.
— Aposto que ele acha que é curare — disse Jessica.
— Onde é que a gente iria conseguir curare? — Nas selvas do Brasil?
— Venezuela?
As duas mulheres riram. Will não sabia se era curare ou não. Só sabia
que não conseguia falar nem se mexer.
— Bem, ele sabe que nós não iríamos até a Amazônia para conseguir
veneno — disse Jessica.
— Isso mesmo, ele sabe que você é enfermeira.
— Do Beth Israel, pode apostar. — Com acesso a um monte de drogas.
— Até drogas sintéticas de curare. — Tem muito disso por lá.
— Faça uma lista para ele, Jess.
— Não quero chateá-lo, Sue. — Curare precisa ser injetado, Will, você
sabia? — Os nativos mergulham os dardos nele. — Atiram os dardos com
zarabatanas. — As vítimas ficam paralisadas. — Impotentes. — A morte é
resultado da asfixia. — Isso significa que você não consegue respirar. —
Porque os musculos respiratórios ficam paralisados. — Já está tendo
problema para respirar, Will?
Ele não achava que tivesse problema para respirar.
Mas o que elas estavam falando? Estavam falando que o tinham
envenenado?
— Os sintéticos são em forma de comprimidos — disse Susan. Fáceis
de pulverizar. — Fáceis de dissolver. Há um monte de usos legítimos para
as drogas sintéticas de curare.
— Desde que você tenha cuidado com a dose. — Nós não fomos
particularmente cuidadosas com a dose, Will. — Seu champanhe estava um
pouquinho amargo?
Ele queria balançar a cabeça dizendo que não. O gosto do champanhe
tinha sido bom. Ou será que estava bêbado demais para saber o gosto? Mas
não podia balançar a cabeça e não podia falar.
— Vamos observá-lo — disse Susan. — Estudar suas reações.
— Por quê?
— Bem, pode ser util. — Não para a cena que estamos fazendo. —
Matar alguém.
— Matar alguém, é. Dããã, Susan. Me matar, pensou Will. Na verdade
elas estão me matando. Mas, não... Garotas, pensou, vocês estão
cometendo um erro. Este não é o modo de fazer.
Vamos voltar ao plano original. O plano original era estourar uma
garrafa de champanhe e pular juntos na cama. O plano original era
compartilhar essa bela noite três dias antes... na verdade agora são dois dias,
já passava bem da meia-noite... dois dias antes do Natal, compartilhar
juntos esta noite doce e descomplicada, uma transazinha a três é o que
deveria ser. Então como é que a coisa ficou séria de repente? Não havia
motivo para vocês levarem a sério esse negócio de aulas de teatro e
momentos privados, verdade, esta noite deveria ser de diversão e jogos.
Então por que tiveram de jogar veneno no meu champanhe? Puxa, meu
Deus, garotas, por que tiveram de fazer isso quando estávamos nos dando
tão bem?
— Está sentindo alguma coisa? — perguntou Susan.
— Não — disse Jessica. — E você?
— Achei que eu iria me sentir...
— Eu também.
— Não sei... sinistra, ou algo assim.
— Eu também.
— Quero dizer, matar alguém! Achei que seria uma coisa especial. Em
vez disso...
— Sei o que você quer dizer. É só como olhar alguém... não sei, cortar o
cabelo ou algo assim.
— Talvez a gente devesse ter tentado outra coisa.
— Quer dizer, não veneno?
— Algo mais dramático.
— Algo mais apavorante, sei o que você quer dizer.
— Conseguir algum tipo de reação dele. — Sentado ali que nem um
drogado, morrendo.
As garotas se inclinaram sobre Will e espiaram seu rosto. O rosto delas
parecia distorcido, tão perto do dele e coisa e tal. Os olhos azuis pareciam
saltar das cabeças.
— Faça alguma coisa — disse-lhe Jessica. — Faça alguma coisa,
babaca.
Continuaram olhando-o.
— Acho que não é tarde demais para esfaquear o cara — disse Jessica.
— Você acha?
Por favor, não me esfaqueiem, pensou Will. Eu tenho medo de facas.
Por favor, não me esfaqueiem.
— Vamos ver o que há na cozinha — disse Jessica.
De repente ele estava sozinho. Atrás dele... Não podia virar a cabeça
para vê-las. ...atrás dele podia ouvi-las remexendo no que ele achava que
eram as gavetas da cozinha, podia ouvir o barulho dos utensílios...
Por favor, não me esfaqueiem.
— Que tal esta? — perguntou Jessica.
— Parece enorme para o serviço.
— Cortar direitinho a porra da garganta dele. — Jessica gargalhou.
— Então vamos ver se ele fica ali sentado feito um drogado.
— Vamos provocar algum tipo de reação nele.
— Ajudar a gente a sentir alguma coisa.
— Agora você entendeu, Sue. Esse é o ponto.
O peito de Will apertava. Ele estava começando a ter dificuldade de
respirar.
Na cozinha as garotas riram de novo. Por que estavam rindo? Teriam
dito alguma Coisa que ele não pôde ouvir? Iriam fazer outra coisa com a
faca, outra coisa que não cortar sua garganta? Gostaria de poder respirar
fundo. Sabia que iria se sentir muito melhor se pudesse respirar fundo.
Mas... não... não parecia... capaz de...
— Ei! — disse Jessica. — Você aí! Não deixe a gente na mão!
Susan olhou-a. — Acho que ele já era.
— Merda! — exclamou Jessica.
— O que você está fazendo?
— Tomando a pulsação dele. Susan esperou. — Nada — disse Jessica, e
largou o pulso. As irmãs ficaram olhando Will, sentado frouxo na poltrona,
a boca ainda aberta, os olhos arregalados.
— Sem duvida ele parece morto — disse Jessica. — É melhor tirá-lo
daqui. — Vai ser um bom exercício. Nos livrarmos do corpo.
— Nem fale. Aposto que ele pesa pelo menos uns oitenta e cinco quilos.
— Não falei que era um exercício bom, Sue. Eu disse um bom
exercício. Um bom exercício de interpretação.
— Ah, certo. A sensação de se livrar de um cadáver. Certo.
— Então vamos fazer — disse Jessica. Começaram a levantá-lo da
cadeira. Na verdade ele era muito pesado.
Meio o carregaram, meio o arrastaram até a porta da frente.
— Diga uma coisa — pediu Susan. — Você... você sabe... já está
sentindo alguma coisa?
— Nada — disse Jessica.
***
Cielo Azul
Michael Connelly
***
Dê-me seu coração
Joyce Carol Oates
Caro Dr. K—: Faz muito tempo, não? Vinte e três anos, nove meses e
onze dias. Desde que nos vimos pela última vez. Desde que me viu,
"desnuda" sobre seus joelhos nus. Caro Dr. K—! A saudação formal não é
usada como lisonja, muito menos como chacota, por favor entenda. Não
estou escrevendo depois de tantos anos para lhe implorar um favor
despropositado (espero), ou para fazer exigências, simplesmente para
perguntar se, em seu julgamento, eu deveria me submeter à formalidade, e
ao trabalho, de me candidatar a ser a feliz recipiente do seu órgão mais
precioso, o seu coração. Se posso esperar colher o que me é devido, depois
de tantos anos. Fiquei sabendo que você, o renomado Dr. K—, é um
daqueles que generosamente assinaram um "testamento em vida" doando
seus órgãos para aqueles necessitados. Não caberia ao Dr. K— um funeral e
enterro antiquado num cemitério, nem mesmo uma cremação.
Bom para você, Dr. K—! Mas só quero seu coração, não seus rins, seu
fígado ou seus olhos. Abro mão destes, para que outros mais necessitados
se beneficiem deles. Claro, quero fazer a minha inscrição como outros
fazem, em situações médicas semelhantes às minhas. Não esperaria
favoritismo. A inscrição, na verdade, seria feita por meu cardiologista.
Mulher branca de meia-idade juvenil, atraente, inteligente, otimista apesar
de um coração deficiente – excetuando isso, em perfeita saude. Nenhuma
menção seria feita de nossa antiga relação, da minha parte, pelo menos.
Embora você, caro Dr. K—, como potencial doador do coração, pudesse
indicar sua preferência, certo? Tudo isso transpiraria quando você morresse,
Dr. K, quero dizer. Claro! Nem um momento antes.
(Acho que não tem noção de que está destinado a morrer em breve?
Neste ano? Num acidente "trágico" – "grotesco" – como virá a ser
chamado? Num final "irônico" – "inenarravelmente feio" para uma "carreira
brilhante"? Lamento que não possa ser mais específica sobre tempo, local,
condições; até mesmo se vai morrer sozinho ou com um membro da família
ou dois. Mas tal é a natureza do acidente, Dr. K—. É uma surpresa.) Dr. K
—, não franza tanto a testa! É um homem bonito ainda, e ainda vaidoso,
apesar dos cabelos grisalhos e esparsos que, como outros homens que
perdem os cabelos, vem penteando de banda sobre o domo reluzente da sua
cabeça; imaginando que, como não pode ver essa artimanha no espelho, ela
não pode ser vista pelos outros.
Mas eu posso ver.
Desajeitado, vira a última página desta carta para ver minha assinatura –
"Angel" – e é forçado a se lembrar, subitamente... Com uma pontada de
culpa.
Ela! Ainda está... viva? Isso mesmo, Dr. K—! Mais viva do que nunca.
Naturalmente, você imaginaria que eu teria desaparecido. Eu tinha deixado
de existir. Como você tinha deixado há muito tempo de pensar em mim.
Está assustado. Seu coração, aquele órgão culpado, começou a bater.
Numa janela do segundo andar de sua casa em Richmond Street
(dispendiosa restauração vitoriana, ripas em cinza-pálido com margens em
azul-escuro, "graciosas" – "dignas" – entre outras do seu tipo na antiga e
exclusiva vizinhança a leste do Seminário Teológico), você olha
ansiosamente para... o quê? Não para mim, obviamente. Não estou ali. De
qualquer modo, não estou à vista. No entanto, como o céu que empalidece
parece pulsar com uma intensidade sinistra! Como um grande olho
observando. Dr. K—, não lhe quero nenhum mal! Sinceramente. Esta carta
não é de modo algum uma exigência por seu coração (póstumo), nem
mesmo uma "ameaça verbal". Se decidir, tolamente, mostrála à polícia, eles
lhe garantirão que é inofensiva, que não é ilegal, é apenas um pedido de
informação: deveria eu, o "amor de sua vida" que não vê há vinte e três
anos, candidatar-me a ser o recipiente do seu coração? Quais são as chances
de Angel? Só desejo colher o que é meu. O que me foi prometido muito
tempo atrás. Eu fui fiel ao nosso amor, Dr. K—! Você ri, cruamente.
Incredulamente. Como pode responder a "Angel" quando "Angel" não
incluiu nenhum sobrenome e nenhum endereço? Vai ter de me procurar.
Para se salvar, me procure.
Você amarrota esta carta na mão e a joga no chão. Afasta-se, foge aos
tropeços, quer esquecer, obviamente não consegue, as páginas amarrotadas
da minha carta escrita a mão no chão do – será o seu escritório? – no
segundo andar da velha e digna casa vitoriana no 119 da Richmond Street?
– onde alguém poderia descobri-las e apanhá-las para ler aquilo que você
não desejaria que outra pessoa lesse, especialmente não alguém "íntimo"
seu. (Como se nossas famílias, especialmente nossos consanguíneos, sejam
nossos "íntimos" na verdadeira intimidade do amor erótico.) Então,
naturalmente, você volta, com os dedos muito trêmulos apanha as páginas
espalhadas, as alisa e continua a ler.
Caro Dr. K—! Por favor entenda: não estou amarga, não alimento
obsessões. Não é da minha natureza. Tenho minha própria vida e cheguei
até a ter uma carreira (moderadamente bem-sucedida). Sou uma mulher
normal do meu tempo e local. Sou como a delicada aranha preta-e-prateada
com a cabeça em forma de diamante, a chamada aranha "feliz"; a única
subespécie da Araneida que teria a liberdade de tecer teias parcialmente
improvisadas, tanto ovaladas como afuniladas, e correr o mundo à vontade,
sentindo-se igualmente bem nos gramados umidos como nos interiores
secos, escuros e protegidos dos lugares feitos pelo homem; rejubilando-se
num (relativo) livre-arbítrio dentro das inevitáveis restrições do
comportamento da Araneida; com um ferrão aguçado e venenoso, às vezes
letal para seres humanos, especialmente crianças.
Como a cabeça-de-diamante, eu tenho muitos olhos. Como a cabeça-de-
diamante, eu posso ser considerada "alegre" – "jovial" – "exultante" – aos
olhos dos outros. Pois este é o meu papel, a minha interpretação.
É verdade, durante anos fiquei estoicamente reconciliada com minha
perda, na verdade, com minhas perdas. (Não que eu o culpe por estas
perdas, Dr. K—. Embora um observador neutro pudesse concluir que meu
sistema imunológico foi lesado em consequência do meu colapso físico e
mental que se seguiu ao modo abrupto como me expulsou de sua vida.)
Então, em março último, vendo sua fotografia no jornal – EMINENTE
TEÓLOGO K— PRESIDE SEMINÁRIO – e, poucas semanas depois,
quando foi nomeado para a Comissão Presidencial de Religião e Bioética,
eu reconsiderei minha posição. O tempo de anonimato e silêncio acabou,
pensei. Por que não tentar, por que não tentar colher o que ele lhe deve.
Lembra-se do nome de Angel agora? Aquele nome que, durante vinte e
três anos, nove meses e onze dias você não desejou pronunciar.
Procure meu nome em qualquer catálogo telefônico, não vai encontrá-
lo. Provavelmente meu numero não está na lista, provavelmente não tenho
telefone. Provavelmente meu nome mudou. (Legalmente.) Provavelmente
moro numa cidade distante numa região distante do continente; ou
provavelmente, como a aranha cabeça-de-diamante (tamanho adulto,
aproximadamente aquele da unha do seu polegar direito, Dr. K—) eu moro
quietamente debaixo do seu telhado, tecendo minhas delicadas teias entre os
caibros do seu porão, ou num nicho entre sua bela escrivaninha antiga de
mogno e a parede ou, um pensamento delicioso, na caverna sem ar debaixo
da cama antiga de dossel de latão que você e a segunda Sra. K— dividem
no melancólico final da meia-idade. Tão perto estou e, no entanto, invisível!
Caro Dr. K—! Certa vez você ficou maravilhado com minha pele de um
"Vermeer imaculado" e dos cabelos "tecidos em ouro" caindo em cascatas
por minhas costas que você acariciava e fechava em seus punhos. Já fui sua
"Angel" – sua "amada". Banhei-me no seu amor, pois eu não o questionava.
Eu era virginal de espírito, assim como de corpo, e não teria
questionado o mundo de um homem eminente mais velho que eu. E no
paroxismo do ato do amor, quando se entregava profundamente a mim, ou
pelo menos parecia assim, como você poderia ter... enganado? Dr. K— do
Seminário Teológico, erudito e autoridade bíblica, protegido de Reinhold
Niebuhr e autor das exegeses "brilhantes" – "revolucionárias" – dos
Manuscritos do Mar Morto, entre outros assuntos esotéricos.
Mas eu não fazia ideia, você protesta. Não dei a ela nenhum motivo
para acreditar, para esperar...
(Que eu acreditasse em suas declarações de amor? Que eu "confiasse na
sua palavra"?) Minha querida, você tem meu coração. Sempre, eternamente.
Sua promessa! Nos dias de hoje, Dr. K—, minha pele não é mais
"imaculada". Tornou-se a pele franca, maculada de uma mulher de meia-
idade que não faz esforço para disfarçar a idade. Meus cabelos, que já
foram de um louro-morango brilhante, agora estão descorados, secos e
quebradiços como palha de vassoura; eu os corto sempre curtos, como os
cabelos de um homem, com a tesoura, mal olhando no espelho enquanto
vou podando, podando, podando! Meu rosto, embora ainda atraente,
suponho, é, na verdade, um borrão para a maioria dos observadores,
especialmente para os americanos de meia-idade; você me viu, e viu através
de mim, caro Dr. K—, em mais de uma ocasião recente, não reconhecendo
mais sua "Angel" do que teria reconhecido um prato cheio de comida que
havia devorado vinte e três anos atrás com um apetite avassalador ou uma
velha fantasia sexual da adolescência, há muito tempo exaurida e
descartada.
Para o seu controle: eu era a mulher de capa impermeável cáqui e
chapéu combinando que esperou pacientemente na livraria da universidade
enquanto uma fila de seus admiradores avançava lenta mente, para que o
Dr. K— assinasse exemplares de A vida ética: desafios do século XXI. (um
esguio tratado teológico, não um mega' bestseller, claro, mas um respeitável
bestseller, mais popular nas comunidades universitárias e nos bairros
residenciais de classe alta.) Eu sabia que seu livro "brilhante" desapontaria,
apesar disso o comprei e li avidamente para descobrir (ainda uma vez) o
fato intrigante: você, Dr. K—, o homem, não é o indivíduo que aparece em
seus livros; os livros são espertas fachadas, estruturas artificiais que criou
para habitar temporariamente, como um indivíduo aleijado e deformado
poderia habitar uma estrutura de beleza incomparável, olhando por suas
janelas, orgulhando-se de possuí-la como seu dono, mas só
provisoriamente. Sim? Não é esta a pista para o renomado "Dr. K"? Para o
seu controle: vários domingos atrás, você e eu nos cruzamos bem de perto
no Museu Estadual de História Natural; você agarrava a mão de sua neta de
cinco anos ("Lisle", eu suponho? — nome adorável) e não prestou mais
atenção a mim do que teria prestado a qualquer estranho passando pelos
íngremes degraus de mármore, descendo do Salão dos Dinossauros no
sinistro quarto andar enquanto você subia; debruçou-se para falar sorridente
a Lisle e foi naquele momento que notei a tola e tocante trama na sua
maneira de pentear os cabelos (encobrindo as áreas calvas), vi o rosto suave
e surpreso de Lisle (pois a criança, ao contrário do seu avô míope, me viu e
"reconheceu" num lampejo); senti uma exaltação de triunfo: pois com que
facilidade eu o teria matado então, empurrado escada abaixo naqueles duros
degraus de mármore, minhas mãos firmes nos seus ombros agora
arredondados, a força da minha raiva superando qualquer resistência que
você, um homem balofo, de barriga frouxa, pesando noventa quilos, no fim
da meia-idade, poderia ter reunido; imediatamente você perderia o
equilíbrio, caindo para trás, com uma expressão de terror incrédulo, e ainda
agarrando a mão de sua netinha teria arrastado a criança inocente para trás
com você, rolando pelos degraus de mármore com um grito: concussão,
fratura do crânio, hemorragia cerebral, morte! Por que não tentar, por que
não tentar colher o que ele me deve? Óbvio, Dr. K—, não fiz isso! Não
naquela tarde de domingo. Caro Dr. K—! Surpreende-se ao saber que o seu
amor perdido dos cabelos "tecidos em ouro" e dos "seios-suaves-como-
seda" conseguiu se recuperar da sua crueldade e aos vinte e nove anos de
idade começou a se dar bem na sua carreira, em outra parte do país? Nunca
seria eu tão renomada como você, Dr. K—, desnecessário dizer, mas à custa
de empenho e esforço, à custa de sacrifício e esperteza, eu progredi num
campo tradicionalmente dominado por homens e conquistei o que se
poderia chamar um "sucesso" menor, local. Ou seja, nada tenho do que me
envergonhar e, talvez, do que me orgulhar, se fosse capaz de ter orgulho.
Não serei mais específica, Dr. K—, mas vou dar uma pista: meu campo
é aparentado com o seu, embora não erudito ou "intelectual". Meu salário é
muito menor do que o seu, claro. Não tenho identidade publica, nenhuma
reputação e nenhum desejo de tê-la. Estou num campo de serviço, há muito
tempo aprendi a servir. Onde as fantasias dos outros, principalmente
aquelas dos homens, estão em jogo, tornei-me bastante chegada a servir.
Sim, Dr. K—, é possível que eu até o tenha servido. Indiretamente,
quero dizer. Por exemplo: eu poderia trabalhar num laboratório médico, ou
supervisioná-lo, para o qual o seu médico envia amostras de sangue,
amostras de tecido para biópsia, etcetera, e um dia ele manda a nosso
laboratório um espécime extraído do corpo do renomado Dr. K—. Cuja vida
poderá depender da precisão e boa fé das investigações do nosso
laboratório.
Apenas um exemplo, Dr. K—, entre muitos! Não, caro Dr. K—, esta
carta não é nenhuma ameaça. Como, declarando minha posição tão
abertamente e, portanto, tão inocentemente, poderia eu ser uma ameaça?
Ficou chocado ao saber que uma mulher pode ser uma "profissional" – pode
ter uma carreira razoavelmente compensadora – e, no entanto, ainda sonhar
com justiça depois de vinte e três anos? Ficou chocado ao saber que uma
mulher poderia ser casada, ou ter casado, e ainda assim continuar
assombrada por seu cruel e traiçoeiro primeiro amor, que a privou não só da
sua virgindade, mas da sua fé na humanidade? Gostaria de imaginar sua
abandonada "Angel" como uma solteirona solitária e amargurada, sim?
Escondendo-se no escuro, tecendo teias feias e pegajosas com suas vísceras
venenosas, e no entanto o que ocorre é o contrário: assim como existem
aranhas "felizes", observadas por entomólogos como exibindo uma
capacidade para (relativa) liberdade, tecendo teias com uma certa variedade
e originalidade, assim também existem mulheres "felizes" que sonham com
justiça e vão garantir que um dia degustarão a sua doçura. Brevemente.
(Dr. K—! Que sorte tem de contar com uma neta como Lisle! Tão
delicada, tão bonita, tão... angelical. Não tive uma filha, confesso. Não terei
uma neta. Se as coisas fossem diferentes entre nós, "Jody", poderíamos
compartilhar Lisle.) "Jody" – que emoção foi para mim, aos dezenove anos
de idade, chamá-lo por aquele nome! Enquanto outros se dirigiam a você
formalmente como Dr. K—. Que aquilo fosse segredo, ilícito, tabu – como
chamar o próprio pai por um nome de amante – era parte da emoção,
naturalmente.
"Jody", espero que sua ansiosa primeira mulher E— nunca tenha
descoberto certas provas incriminadoras nos bolsos de suas calças, na
carteira, na pasta, onde eu as escondia. Bilhetes de amor, de expressão
infantil. Amor amor amor meu Jody. MeuJODYGRANDÃO.
Você não é JODY GRANDÃO com muita frequência hoje em dia, é, Dr.
K—? "Jody" feneceu com os anos, fiquei sabendo. Com os cabelos
espessos e robustos, pretos como os de um cigano, aqueles olhos claros e
vivos, a postura orgulhosa e o seu pênis eriçado para se rejuvenescer, se
reinventar com impressionante frequência. (No começo do nosso caso, pelo
menos.) Qualquer garota estudante de dezenove anos chamá-lo de "Jody"
hoje seria obsceno, risível.
Hoje em dia o que você mais adora é ser chamado de "Vovô!" – na voz
de Lisle.
No entanto, nos meus sonhos, às vezes ouço meu próprio sussurro
desavergonhado, Jody, por favor não deixe de me amar, por favor me
perdoe, só quero morrer, mereço morrer se você não me amar como nos
filetes de sangue que saíam no banho quente dos meus antebraços
desajeitadamente lacerados; mas foi o Dr. K—, não "Jody", quem falou
bruscamente ao telefone informando-me Esta não é a hora. Adeus. (Deve
ter feito investigações, Dr. K—. Deve ter sabido que fui encontrada ali na
sangrenta água do banho, inconsciente, próxima da morte, por uma amiga
preocupada que havia tentado telefonar para mim. Deve ter sabido, mas
prudentemente guardou sua distância, Dr. K—! Todos estes anos.) Dr. K—,
não só conseguiu me apagar da sua memória, mas imagino que tenha
olvidado sua ansiosa primeira mulher E—, "Evie". A filha do ricaço. Uma
mulher dois anos mais velha do que você, sem nenhuma autoconfiança, um
tanto simplória, sem estilo. Amando-me, preocupava-se em tornar "Evie"
desconfiada, não porque gostasse dela, mas porque teria deixado seu pai
rico desconfiado também. E era muito apegado ao pai rico, não? Poucos
membros da faculdade do Seminário podem se dar ao luxo de morar perto
do Seminário. Na elegante e antiga Zona Leste da nossa cidade
universitária. (Era do que se vangloriava gratificado. Como se assistisse a
uma ironia do destino e não a uma consequência de suas próprias manobras.
Enquanto, sorrindo, beijava minha boca e passava um dedo indicador ao
longo dos meus seios, através do meu ventre trêmulo.) Pobre "Evie"! Sua
morte "acidental" por atropelamento, um veículo misterioso derrapando
num pavimento encharcado de chuva, sem testemunhas... Eu o teria ajudado
no seu luto, Dr. K—, e sido uma madrasta amorosa para seus filhos, mas
àquela altura já me havia banido de sua vida.
Ou pelo menos assim acreditava. (Para o seu controle: não estou
insinuando que tive algo a ver com a morte da primeira Sra. K—. Não se dê
ao trabalho de ler e reler estas linhas para determinar se existe algo "entre"
elas – não existe.) E então, Dr. K—, viuvo com dois filhos, você foi embora
para a Alemanha. Um ano sabático que se estendeu para dois anos. Eu
fiquei aqui de luto em seu lugar. (Luto não da desafortunada "Evie" mas de
você.) A morte de sua mulher foi considerada uma "tragédia" em certos
círculos, mas eu preferia pensar nela como puramente um acidente: uma
conjunção de tempo, local, oportunidade. O que é o acidente senão uma
precisão do tempo? Dr. K—, eu não o acusaria de hipocrisia gritante
(acusaria?), menos ainda de fraude, mas posso compreender por que, sob
intenso terror da família da sua primeira mulher (à qual se sentia
intelectualmente superior), apesar de tudo se casou de novo, dentro de
dezoito meses, uma mulher muito mais jovem do que você, quase tão jovem
quanto eu, o que deve ter chocado e enfurecido seus sogros. Não é? (Ou
deixou de se importar com o que eles pensariam? Já havia arrancado
bastante dinheiro do sogro, àquela altura?) Sua segunda mulher, V—, seria
poupada de uma morte acidental e sobreviverá a você por muitos anos.
Nunca senti nenhum rancor pela voluptuosa – agora um tanto gorducha –
"Viola", que entrou na sua vida depois que eu saí dela. Talvez, de algum
modo, eu sinta uma certa simpatia pela jovem, adivinhando que, com o
tempo, você a trairia também. (E não traiu? um sem-numero de vezes?) Não
esqueci nada, Dr. K—. Enquanto você, para sua desvantagem fatal,
esqueceu quase tudo. Dr. K—, "Jody", devo confessar: guardava segredos
de você até naquela época. Mesmo quando lhe parecia transparente,
translucida. Na medula dos meus ossos, um desejo de pôr um fim ao nosso
amor ilícito. Um final digno de uma grandiosa ópera, não mero melodrama.
Quando me fazia sentar nua – "desnuda" era o seu termo preferido – e me
comia com os olhos. "Beleza! Não é uma belezinha!" – mesmo então eu
exultava em meus pensamentos secretos. Você me parecia às vezes
embriagado de amor – paixão? – por mim, beijando, passando a língua,
focinhando, sugando... sugando alimento de mim como um vampiro. (O
estresse da paternidade e de manter uma pose de genro bem-comportado,
bem como de "renomado teólogo" o estava exaurindo, agastando em sua
vaidade masculina. Claro, na minha ingenuidade eu não tinha a menor
ideia.) No entanto, pousando minha mão na pele quente da sua nuca eu "vi"
uma lâmina de barbear presa entre meus dedos, e os primeiros esguichos
assustados do seu sangue, com tamanha vividez que posso vê-lo agora.
Comecei a desmaiar, meus olhos rolaram nas órbitas, você me apanhou em
seus braços... e pela primeira vez (imagino que foi a primeira vez) percebeu
seu anjo de cabelos tecidos em ouro como uma preocupação, um risco, um
fardo não diferente do fardo de uma esposa neurótica e ansiosa. Querida, o
que é que você tem? Está brincando, querida? Garota bonita, não é
divertido me assustar quando a adoro tanto.
Agarrando meus dedos gelados entre seus dedos quentes e duros e
apertando minha mão contra o seu grande coração que bate com força.
Por que não? Por que não? Tentar colher? — aquele coração. Que me
pertence. Como estou inspirada, compondo esta carta, Dr. K—! Venho
escrevendo febrilmente, mal parando para respirar. É como se um anjo
guiasse minha mão. (um daqueles anjos da vingança altos com asas rijas,
com ferozes rostos medievais que a gente vê nas xilogravuras alemãs!) Reli
alguns de seus trabalhos publicados, Dr. K—, incluindo o tratado forrado de
notas de pé-de-página sobre os Manuscritos do Mar Morto que estabeleceu
sua reputação como um jovem erudito ambicioso no início da casa dos
trinta. No entanto, tudo parece tão estranho e ultrapassado, coisa do século
XX, quando "Deus" e "Satã" eram de certo modo mais reais para nós, como
objetos domésticos... Tenho lido sobre nossas origens religiosas primitivas,
como "Deus-Satã" eram certa vez conjugados mas estão agora, na nossa
tradição cristã, sempre separados. Fatalmente separados. Pois nós cristãos
não podemos acreditar em nenhum mal em nossa divindade, não O
poderíamos amar assim.
Dr. K—, enquanto escrevo esta carta meu coração de funcionamento
precário, com seu misterioso "murmurio" ora acelera, ora bate mais lento,
ora dá um salto, no conhecimento excitado de que você está lendo estas
palavras com um sentimento crescente da justiça que encerram. Uma chuva
forte começou a cair, tamborilando no telhado e nas janelas do lugar onde
moro, a chuva idêntica (será?) que tamborila no telhado e nas janelas da sua
casa a apenas algumas (ou serão muitas?) milhas de distância; a não ser que
eu more numa parte do país a milhares de milhas de distância, e a chuva
não seja idêntica. E, no entanto, posso chegar até você a qualquer momento.
Sou livre para ir e vir; para aparecer e desaparecer. Pode ser até que eu
tenha contemplado a fachada encantadora da CrecheEscola Abelhinha
Esperta da sua preciosa neta, assim como fui comprar sapatos na companhia
de V—, embora a mulher de rosto cheio de papadas com maquilagem
carregada e pés tamanho quarenta não se desse conta da minha presença,
claro.
E justamente no último domingo: revisitei o Museu de História Natural,
sabendo que havia uma possibilidade de que você voltasse. Pois pareceu
possível que me houvesse reconhecido nos degraus e me mandou um sinal
com os olhos, sem que Lisle notasse; estava pedindo que eu voltasse para
me encontrar com você, a sós. O profundo laço erótico entre nós nunca será
rompido, você sabe: penetrou em meu corpo virginal, tirou minha
inocência, minha juventude, minha própria alma. Meu anjo! Perdoe-me,
volte para mim, vou recompensá-la pelo sofrimento que teve por minha
causa.
Esperei, mas você não voltou. Esperei e meu senso de missão não
esmoreceu, mas ficou mais seguro.
Eu me vi a única visitante no sinistro quarto andar, no Salão dos
Dinossauros. Meus passos ecoavam levemente no gasto piso de mármore.
Um vigia do museu de cabelos brancos com uma barriguinha igual à sua me
olhou através das pálpebras rebaixadas; estava sentado numa cadeira de
lona, mãos nos joelhos. Como um boneco de cera.
Como um daqueles manequins trompe l'oeil. Você sabe: aquelas figuras
estranhas com aparência de gente viva que vemos em coleções de arte
contemporânea, só que a figura encurvada não estava coberta por ataduras
brancas. Silenciosamente passei por ele como um fantasma o teria feito.
Minha mão (enluvada) dentro da bolsa e meus dedos agarrando uma lâmina
de barbear que já sabia a esta altura empunhar com habilidade e coragem.
Furtivamente circulei pelo Salão dos Dinossauros à sua procura, mas em
vão; furtivamente me aproximei por trás do guarda sonolento, sentindo a
batida errática do meu coração acelerar com a emoção da caçada... mas
naturalmente deixei o momento passar, não era para nenhum vigia de
museu, mas para o renomado Dr. K— que eu reservava a lâmina de barbear.
(Embora eu não tivesse a menor duvida de que poderia ter usado a arma
contra o velhote, simplesmente por frustração de não o ter encontrado e pela
raiva feminina diante de séculos de maus-tratos e exploração; poderia ter
cortado a sua artéria carótida e rapidamente me afastado sem que uma única
gota de sangue respingasse sobre minhas roupas; enquanto a vida do
velhote sangrava sobre o piso de mármore gasto, eu teria descido ao quase
deserto terceiro andar do museu, e depois ao segundo, para me misturar sem
ser notada aos visitantes dominicais amontoados diante de uma nova mostra
de computação gráfica. Tão fácil!) Eu me vi perdida entre borrachosas
réplicas de dinossauros, alguns enormes como o Tyrannosaurus rex, alguns
do tamanho de bois e outros menores, de dimensões humanas; admirei os
répteis voadores, com seus longos bicos e asas dotadas de garras; numa
superfície refletida sobre a qual uma destas criaturas préhistóricas voava,
admirei meu rosto pálido de pele quente e os flutuantes cabelos
acinzentados. Minha querida, você sussurrou, eu sempre a adorarei. Aquele
sorriso angelical! Dr. K—, vê? Ainda estou sorrindo. Dr. K—! Por que está
parado aí, tão duro, numa janela do andar de cima de sua casa? Por que se
encolhe, tomado por um medo doentio? Nada lhe acontecerá que não seja
justo. Que não mereça.
Estas páginas em suas mãos trêmulas, você gostaria de rasgá-las em
pedacinhos – mas não ousa. Seu coração bate forte, com terror de ser
arrancado do seu peito! Desesperado, pensa – mas vai se decidir contra isso
– em mostrar minha carta à polícia. (Envergonhado do que a carta revela do
renomado Dr. K-!) Pensa também – mas vai se decidir contra isso – em
mostrar minha carta à sua esposa, pois já teve exaustivas sessões de debate
emocional, confissão e expiação com ela, inumeras vezes. Já viu o nojo nos
olhos dela. Não mais! E não tem estômago para se contemplar no espelho,
pois já não aguenta mais ver o seu próprio rosto, com aqueles olhos
tomados pela culpa. Enquanto eu, a venenosa aranha, com a cabeça de
diamante, contentemente teço a minha teia diáfana entre os caibros. Dê-me
seu coração do seu porão, ou no nicho entre a sua escrivaninha e a parede,
ou na caverna sem ar debaixo de sua cama conjugal ou, perspectiva mais
deliciosa! — dentro do colchão da cama da criança em que, quando visita
os avós na casa de Richmond Street, a bela e pequenina Lisle dorme.
Invisível de dia como de noite, tecendo a minha teia, a partir das minhas
vísceras, incansável e fiel — "feliz".
***
Karma
Walter Mosley
***
Prezado Fórum da Penthou-se
(Um primeiro rascunho)
Laura Lippman
Vocês não vão acreditar, mas foi o que realmente aconteceu comigo no
outono passado, e só porque cheguei cinco minutos atrasado, o que na
época pareceu uma tragédia.
"São só cinco minutos", foi o que fiquei dizendo à mulher por trás do
balcão, que nem se incomodou em tirar os olhos da tela do computador e
olhar para mim. O que é muito ruim, porque eu não preciso ser charmoso,
mas preciso de alguma coisa com que lidar.
Aliás, o que essas operadoras de passagens tanto fazem com um
teclado? O que há no computador que as deixa tão carrancudas? Eu tinha o
printout de minha passagem eletrônica e fiquei empurrando pelo balcão, e
ela continuava empurrando de volta para mim com a ponta de uma caneta,
como eu fazia com as cuecas sujas de meu colega de quarto Bruce quando
estávamos na faculdade. Eu as recolhia com o bastão de hóquei e as enfiava
num canto, só para abrir caminho para nosso quarto. Bruce era uma droga
de porcalhão.
— Lamento — disse ela, dando estocadas no teclado sem parar. —
Nesta noite não há nada que eu possa fazer por você.
— Mas eu tenho uma reserva. Andrew Sickert. Não tem nada aí?
— Sim — disse ela, sibilando o "s" de uma forma meio molhada, como
um assovio, como uma estudante do primeiro grau com aparelhos novos
nos dentes.
Meu Deus, como os homens mais velhos conseguem? Eu simplesmente
não entendo, em especial se for mesmo mais difícil conseguir que suba à
medida que se envelhece, e nem isso eu consigo entender. Mas já que fica
mais difícil, não seria necessário um visual melhor?
— Comprei essa passagem há três semanas. — Na verdade foram duas,
mas eu procurava alguma vantagem, desesperado para entrar naquele avião.
— Seu printout diz que não há garantia nenhuma se o senhor não estiver
no portão trinta minutos antes da partida. — A voz dela era de ah-que-
chatice, a voz de uma pessoa que simplesmente está adorando ver você
sofrer. — Tivemos um voo lotado esta tarde e havia uma dezena de pessoas
na lista de espera. Como o senhor não chegou para o check in às 9:25,
demos seu lugar a outro.
— Mas agora são só 9:40 e eu estou sem bagagem. Eu conseguiria, se a
fila da segurança não estivesse tão grande. Mesmo que seja o último portão,
eu consigo. Eu simplesmente preciso pegar esse voo. Eu tenho... Tenho... —
Eu quase podia sentir minha imaginação se esticando, pulando pela minha
cabeça, procurando por alguma coisa que esta mulher achasse válida. —
Tenho um casamento.
— O senhor vai se casar?
— Não! — Ela franziu o cenho para minha voz, estridente por reflexo.
— Quero dizer, não, é claro que não. Se fosse o meu casamento, eu já
estaria lá há uma semana. É do... do meu irmão. Sou o padrinho dele.
A hesitação foi infeliz.
— O casamento vai ser em Providence?
— Em Boston, mas é mais fácil pegar o avião para Providence do que
para o Logan.
— E será amanhã, na sexta-feira?
Merda, ninguém se casa numa sexta à noite. Até eu sabia disso.
— Não, mas vai haver um jantar de ensaio, sabe como são essas coisas.
Mais cliques.
— Posso colocá-lo no voo das sete da manhã se o senhor prometer
aparecer no check in com noventa minutos de antecedência. O senhor
chegará a Providence às 8h30. Tenho que pensar que é bastante tempo. Para
o ensaio e essas coisas. A propósito, este voo custa mais 35 dólares.
— Tudo bem — eu disse, pegando um cartão Visa que estava
perigosamente perto de estourar, mas eu relutava em abrir mão de meu
dinheiro, do qual precisaria muito na sexta à noite. — Acho que dá bastante
tempo.
E agora eu nada tinha a não ser tempo para gastar no aeroporto mais
monótono, o Baltimore-Washington International, no suburbio mais
monótono, Linthicum, de toda a Costa Leste. Não poderia ir para casa. O
trem Light Rail não estava mais operando e eu não podia gastar trinta
dólares numa corrida de táxi de volta ao norte de Baltimore. Além disso, eu
tinha que estar na fila às 5:30 da manhã para garantir meu lugar, e isso
significava acordar às quatro. Se eu ficasse ali, pelo menos não ia perder
meu avião.
Fiquei perambulando pela área de passagens, mas estava morta, todos
os balcões prestes a fechar. Acalentei uma cerveja, mas a última chamada
foi às 11 da noite e eu não podia ir até as lojas e restaurantes do outro lado
dos detectores de metal porque não tinha passe de embarque. Fiquei perto
das escadas por algum tempo, vendo as pessoas saindo dos terminais, os
rostos exaustos mas felizes porque a viagem havia acabado. Era quase
como se fossem dois aeroportos — "Embarque", esta cidade-fantasma em
que eu estava preso, e "Desembarque", com pessoas jorrando dos portões e
subindo as escadas rolantes, lutando por sua bagagem e depois se atirando
nas pistas gradeadas do nível inferior, indo para casa, saindo dali. Eu devia
estar fazendo a mesma coisa, a uns 650 quilômetros de distância.
Meu avião estaria tocando o chão agora, os rapazes à minha procura
prontos para partir. Tentei ligar para eles, mas meu celular ficara sem
bateria. Era essa a noite que eu estava tendo.
Eu me estiquei em um dos bancos acolchoados que ficam de frente para
meu balcão de passagens e ensaiei uma soneca, mas um velho empurrava
um aspirador de pó bem perto da minha cabeça, o que parecia meio
agressivo. Ainda assim, fechei os olhos e tentei não pensar no que estava
perdendo em Boston. Os rapazes deviam estar no bar agora, virando
algumas cervejas. Pelo menos eu participaria das principais festividades na
noite seguinte. Não foi uma mentira completa, a do casamento.
Eu estava indo para a despedida de solteiro de um amigo, embora não
tivesse sido convidado para o casamento propriamente dito, mas isso
porque havia muita hostilidade entre mim e a noiva. Ela disse a Bruce que
eu sou um imbecil, mas a verdade é que tivemos uma coisinha quando eles
estavam meio rompidos no último ano da faculdade e ela morria de medo
de que eu contasse a ele. E além disso, eu acho, porque ela gostou, curtiu o
velho Andy, que contribuiu muito mais para o espírito de aventura do que
Bruce poderia fazer. Não estou criticando meu amigo pelas costas, mas eu
morei com o cara por quatro anos. Sei como ele lidava com as coisas,
psicologicamente falando.
Por trás de meus olhos fechados, pensei naquela semana, dois anos
atrás, em que ela veio ao meu quarto sabendo que Bruce estava no trabalho,
trancou a porta depois de entrar e, sem nenhum preâmbulo, só se ajoelhou
e...
— Está com problemas? Eu me sentei sobressaltado, sentindo como se
tivesse sido pego em algum flagrante, mas felizmente eu não estava muito
desarrumado. Havia uma mulher de pé ao meu lado, mais velha, entre trinta
e quarenta anos, com um daqueles terninhos práticos e o cabelo esticado
para trás, levando uma pequena mala de rodinhas. De onde eu estava, não
pude deixar de perceber que tinha pernas lindas, pelo menos dos tornozelos
aos joelhos. Mas o efeito geral era formal, extraordinariamente de senhora.
— É. Meu avião estava lotado, e só vou poder pegar outro de manhã,
mas estou muito longe de casa.
— Ninguém devia dormir num banco. Basta uma noite para que suas
costas fiquem desalinhadas pelo resto da vida. Está precisando de dinheiro?
Provavelmente pode pegar um quarto nos hotéis do aeroporto pela ninharia
de 50 dólares. O Sleep-Inn é barato.
Ela pegou uma carteira na bolsa e, embora esse tipo de detalhe não seja
o meu forte, me pareceu uma carteira cara e o compartimento das notas
estava grosso de dinheiro.
Na maior parte do tempo, eu não me angustio com dinheiro — só tenho
23 anos, estou começando no mundo, vou ganhar o meu quinhão muito em
breve — mas foi difícil ficar olhando todas aquelas notas e pensando no
abismo entre nós. Por que eu não devia pegar os 50 dólares? Estava claro
que não ia fazer falta a ela.
Mas por algum motivo eu não consegui.
— Não. Nunca vou poder te pagar. Quer dizer, eu vou poder, quando
conseguir um emprego. Mas eu me conheço. Vou perder seu endereço ou
coisa assim e nunca vou te devolver o dinheiro.
Ela sorriu, o que transformou sua fisionomia. Definitivamente entre
trinta e quarenta, porém mais perto do final dos trinta, agora que eu a
olhava bem. Os olhos dela eram cinza, a boca era grande e recurvada, mais
cheia no lábio superior, então os dentes dela se projetavam um pouco para
fora. Gosto muito de uma certa dentucinha.
E o terninho era meio uma camuflagem, pelo que percebi, no bom
sentido. A maioria das mulheres se veste para esconder os defeitos, mas
algumas usam as roupas para cobrir as virtudes. Ela tentava esconder as
melhores qualidades, mas eu podia ver os volumes por baixo das roupas —
tanto em cima quanto atrás, onde seu traseiro se erguia quase desafiando o
casaco feito sob medida e a saia reta. É impossível esconder uma boa
bunda.
— Não seja tão cavalheiro — disse ela. — Não estou oferecendo um
empréstimo. Estou fazendo uma boa ação. Gosto de fazer boas ações.
— É que simplesmente não parece certo. — Não sei por que eu estava
tão seguro disso, mas acho que era porque ela era meiga. Eu não podia
deixar de pensar que nos veríamos novamente, e eu não ia querer ser
lembrado como o cara que tirou 50 dólares dela.
— Bom... — aquele sorriso de novo, desta vez maior. — Estamos num
impasse.
— Acho que sim. Mas, se quiser chegar em casa hoje, é melhor descer
para o ponto de táxi. Tem umas vinte pessoas na fila. — Olhamos pelas
vidraças, para o andar inferior, que estava um caos. Ali em cima estava
silencioso e reservado, o homem do aspirador de pó finalmente tinha saído,
os balcões todos fechados.
— Eu tenho sorte. Estou de carro.
— Acho que quem tem sorte é o cara que está esperando por você em
casa.
— Ah. — Ela ficou alvoroçada, o que a deixou ainda mais sensual. —
Não tem nenhum... Quero dizer... Bom, eu sou solteira.
— É difícil acreditar nisso. — A besteira automática a dizer, mas eu fui
sincero. Como é possível que alguém como aquela operadora de passagens
caquética tivesse uma aliança no dedo e esta mulher andasse solta por aí?
— É um problema do tipo o ovo ou a galinha.
— Hein?
— Sou solteira porque sou viciada em trabalho ou sou viciada em
trabalho porque sou solteira?
— Ah, essa é fácil. A primeira. Sem dúvida. Seu rosto pareceu se
iluminar e eu juro que vi os olhos dela ficarem baços, como se estivesse
prestes a chorar.
— Essa foi a coisa mais bonita que já me disseram na vida.
— Então você precisa sair com pessoas melhores.
— Olha... — Ela pôs a mão na minha, e estava fria e macia, o tipo de
mão que era emplastrada de creme regularmente, a mão de uma mulher que
cuidava de cada parte do corpo. Eu sabia que ela estava lisa de tão depilada
por baixo do terninho conservador, que pintava as unhas dos pés e que seu
cheiro só podia ser bom.
— Tenho um apartamento de dois quartos no sul da cidade, só a
algumas quadras dos grandes hotéis. Você pode passar a noite no meu
quarto de hóspedes e pegar o primeiro trem de Hyatt às cinco. São só 15
dólares, e você terá onde descansar e não terá cãibras.
O engraçado é que eu me sentia protetor com relação a ela. Era quase
como se eu fosse duas pessoas — Um cara que queria mantê-la longe de um
sujeito como eu, o cara que queria entrar no apartamento dela, arrancar
aquele terninho e ver o que ela resguardava do resto do mundo.
— Não posso fazer isso. É um favor ainda maior do que me dar 50
dólares para um quarto de hotel.
— Não sei. Me parece que há outras maneiras de você me retribuir, se
pensar bem no assunto.
Ela não sorriu, nem arqueou uma sobrancelha, nem fez nada com o
rosto que confirmasse o que tinha acabado de me oferecer. Ela
simplesmente se virou e começou a puxar a mala para as portas deslizantes
de vidro. Mas nunca na vida eu tive tanta certeza de que uma mulher me
queria. Eu me levantei, peguei minha mala e a segui, nossas rodas
arranhando em uníssono. Ela me levou a um BMW preto no
estacionamento expresso. Nenhum de nós disse uma só palavra, nós mal
nos olhamos, mas eu levantei a saia dela até a coxa enquanto ela entregava
duas pratas ao atendente do estacionamento.
Ele sequer se incomodou em olhar para baixo, só passou o troco a ela,
entediado com a própria vida. É surpreendente o que as pessoas não veem,
mas afinal... As pessoas não viam a ela, esta mulher maravilhosa. Porque
era baixa e recatada, ela passava pelo mundo sem ser reconhecida. Eu
estava feliz por não ter cometido o erro de não ver o que havia ali.
O apartamento dela ficava apenas a vinte minutos de distância e, se
fossem vinte e cinco, acho que eu a teria feito parar no acostamento ou
correria o risco de um acidente. Agora eu havia puxado a saia dela acima da
cintura, e no entanto ela mantinha o controle do carro e os olhos fixos na
frente, o que me deixou ainda mais louco por ela. Depois que estacionou,
não se incomodou em abrir a mala do carro e naquele momento não fiquei
preocupado com a minha bagagem. Eu não ia precisar de roupa nenhuma
até de manhã. Ela subiu a escada correndo e eu a segui.
O prédio era baixo e se localizava em um bairro mais duvidoso do que
eu esperava, mas em geral aqueles lofts ficavam em partes estranhas da
cidade. Ela me empurrou para uma sala de estar escura e trancou a porta
atrás de mim, passando o ferrolho como se eu pudesse mudar de ideia, mas
esse risco não existia.
Eu não tive tempo nem disposição para olhar O ambiente, embora tenha
percebido que a sala era pouco mobiliada — nada além de um sofá, uma
mesa com um laptop aberto e um aparador enorme com jarros de tampa
dourada e brilhante, pareciam aqueles vidrões de pimenta que a gente vê em
delicatessens, embora não fossem iguais. Não pude deixar de pensar que era
um projeto dela, que talvez fossem vasos distorcidos pela luz da lua.
— Você é artista? — perguntei enquanto ela dava um passo para trás e
começava a tirar a roupa, revelando um corpo que era ainda melhor do que
eu esperava.
— Sou do ramo.
— Quer dizer, como hobby? — Eu inclinei a cabeça para o aparador,
enquanto tentava tirar as calças sem rasgar.
— Eu faço conservas.
— Como é? — Não que eu realmente me importasse com a resposta,
porque agora minhas mãos estavam nela. Ela me deixou beijar e tocar o que
eu pudesse alcançar, depois ficou de joelhos, como se só quisesse me dar
prazer. Bem, ela havia dito que gostava de fazer boas ações, e eu tinha feito
a minha no carro dela.
— Faço conservas — disse ela, seu hálito quente e úmido. — Coloco
frutas, legumes e outras coisas também, assim posso desfrutar de tudo
durante todo o inverno.
— E depois ela parou de falar porque tinha...
***
Ponto de encontro
Nelson DeMille
***
O que ela ofereceu
Thomas H. Cook
— Está parecendo uma mulher fatal — disse meu amigo. Ele não estava
comigo, no bar, na noite anterior, não a viu sair nem me viu ir atrás dela.
Tomei um gole da minha vodca e olhei pela janela. Lá fora, a luz da
tarde sem duvida estava a mesma de sempre, mas não me parecia mais a
mesma.
— Acho que era mesmo — disse a ele.
— E daí? O que aconteceu? — perguntou meu amigo.
Isso: — eu estava no bar. Eram duas da manhã. O pessoal ao meu redor
era como fitas cassete daquelas do Missão Impossível, só faltava a missão,
eram apenas aviso de autodestruição. Dava quase para escutar aquilo
soando nas cabeças deles, aquela coisa inflexível, obstinada, como no
provérbio chinês: Se você continuar na estrada que está seguindo, vai
chegar no lugar para onde estava indo.
— E para onde estavam indo?
— Como você viu, mais ou menos para a mesma coisa de sempre. Iam
terminar este drinque, esta noite, esta semana... assim por diante. Em certo
momento, iam morrer como animais, depois de uma longa e exaustiva
distância percorrida, zonzos de fadiga, quando finalmente desabassem sob o
peso da carga.
Ou pior, o que eu acredito é que esse bar era o mundo, suas poucas
moscas, que não paravam de zumbir, atores substitutos, fazendo a marcação
de cena pelo restante de nós.
Escrevi sobre esse nós em uma novela atrás da outra. Meu tom era
sempre sombrio. Nos meus livros, não havia final feliz. As pessoas estavam
perdidas e desamparadas, mesmo os espertinhos... especialmente os
espertinhos. Tudo era inutil e tudo era passageiro. As emoções mais fortes
logo desapareciam. Algumas poucas coisas tinham importância, mas
somente porque as fazíamos ter importância de tanto insistir que deveriam
ter. Se precisássemos de alguma prova quanto a isso, poderíamos inventá-la.
Acreditava que houvesse três tipos de pessoas, as que enganavam os
outros, as que enganavam a si mesmas e as que compreendiam que as
pessoas nas duas primeiras categorias eram as únicas que iriam encontrar na
vida. Eu me situei, decidido, na terceira categoria, é claro, o único membro
do meu próprio clube, o único sujeito que entendia que ver as coisas sob luz
total era a maior escuridão que alguém poderia conhecer.
Assim, eu andava pelas ruas e me enfiava nos bares o tempo inteiro, e
era, pelo que eu entendia, o único homem na terra que não tinha nada mais
a aprender.
Então, de repente, ela atravessou aquela porta. Toda de preto,
oferecendo uma única concessão. Um cordão de pequenas pérolas brancas.
Tudo o mais, o chapéu, o vestido, as meias, os sapatos, a pequena bolsa...
tudo o mais era preto. E assim, o que ela oferecia a um primeiro olhar era
nada mais do que o batido estereótipo dos filmes de segunda categoria da
mulher fatal, o chapéu de aba larga que ocultava um dos olhos, saltos altos
batendo na calçada que a chuva tornara escorregadia, cédulas estrangeiras
em uma pequena bolsa preta. Ela se oferecia como a espiã, a assassina, o
chamariz de um passado secreto e, é claro, uma pequena sugestão de perigo
erótico. "Ela sabe como pensam os homens", eu disse a mim mesmo, no
momento em que ela caminhava para a extremidade do bar e sentava-se.
"Ela conhece o modo de pensar deles... e o está usando."
— Então, você achou que ela fosse o quê? — meu amigo perguntou.
Dei de ombros: — Não importa.
Assim, fiquei observando sem maior interesse, enquanto os detalhes
melodramáticos se acumulavam. Ela acendeu um cigarro e o fumou
pensativa, seus olhos se abrindo e se fechando languidamente, com aquele
tipo de exaustão em relação ao mundo que a gente vê nas heroínas dos
velhos filmes em preto-e-branco.
"É isso, sim", disse a mim mesmo. Ela é noir no pior sentido, fina como
as tiras de película, e quase igualmente transparente, nas bordas. Olhei meu
relógio. "Hora de ir embora", pensei, hora de ir para o meu apartamento, me
esticar na cama e me atolar na minha escura superioridade, congratulando-
me mais uma vez por não ter deixado que as coisas que fazem os outros de
idiotas me fizessem de idiota.
Mas era apenas duas da madrugada, cedo demais para mim, então fiquei
no bar e me perguntei, mesmo que apenas vagamente, e com nada mais do
que um interesse momentâneo, se ela tinha algo mais a oferecer além desse
showzinho de eu sou perigosa.
— E daí? — perguntou meu amigo.
— Daí, ela remexeu em sua bolsa, tirou um bloquinho preto, abriu-o,
escreveu alguma coisa e passou-o pelas pessoas sentadas no balcão do bar
para mim.
O papel estava dobrado, é claro. Eu o desdobrei e li o que ela havia
escrito: Sei o que você sabe sobre a vida.
Era bem um nonsense desses o que eu estava esperando, então, de
pronto, rabisquei uma resposta no verso do papel e a mandei de volta para
ela, sobre o balcão.
Ela abriu e leu o que eu havia escrito: Não, não sabe. E nunca vai saber.
Então, sem nem mesmo levantar os olhos, ela escreveu bem rápido uma
resposta e a mandou mais ligeiro ainda por cima do balcão, juntando as
coisas dela às pressas e dirigindo-se para a porta, enquanto o bilhete
passava de mão em mão, de modo que, quando chegou a mim, ela já havia
saído.
Abri o bilhete e li sua resposta: Nota 6. Minha raiva explodiu. Seis?
Como ela se atreveu? Girei no banco e saí correndo do bar. Eu a encontrei
lá fora, recostada, bastante à vontade, na grade de ferro batido que cercava
o lugar.
Sacudi no ar o bilhete para ela:
— Que história é essa? — perguntei irritado.
Ela sorriu e me ofereceu um cigarro:
— Já li os seus livros. São realmente assustadores.
Eu não fumo, mas mesmo assim peguei o cigarro.
— Ah, então você é uma crítica literária?
Ela não deu atenção ao que eu acabara de dizer.
— O texto é lindo — ela disse, enquanto acendia meu cigarro com um
isqueiro de plástico vermelho. — Mas a ideia por trás é muito ruim.
— E que ideia é essa?
— Você tem apenas uma — afirmou ela com toda confiança. — Que
tudo termina mal, não importa o que a gente faça. — O rosto dela se torceu.
— Então, a proposta é a seguinte. Quando escrevi Sei o que você sabe
sobre a vida, isso não era precisamente a verdade. Eu sei mais do que você!
Traguei profundamente o cigarro.
— Então — perguntei, muito calmo. — Estamos tendo um flerte? Ela
balançou a cabeça, e de repente seus olhos ficaram mais escuros e
taciturnos.
— Não — disse ela. — É um caso de amor.
Fiz menção de dizer qualquer coisa, mas ela ergueu a mão e me deteve.
— Eu poderia fazer com você, sabe? — ela sussurrou, sua voz agora
bastante grave. — Porque você sabe quase tanto da vida quanto eu, e eu
quero ir com alguém que saiba tanto assim.
Pelo seu olhar, eu não tinha duvidas do que ela queria "fazer" comigo.
— Precisamos de uma arma — disse a ela, com um sorriso desdenhoso.
Ela sacudiu a cabeça.
— Jamais usei uma arma. Tem de ser com pílulas. — Ela deixou o
cigarro cair.
— E precisamos estar na cama juntos — acrescentou com voz
inalterada.
— Nus, e nos braços um do outro.
— Por quê? Seu sorriso foi tão suave quanto luminoso.
— Para mostrar ao mundo que você estava errado. — O sorriso se
alargou, quase brincalhão. — E que algo pode terminar bem.
— Suicídio? — perguntei.
— Você acha que isso é terminar bem? Ela riu e remexeu de leve em
seus cabelos.
— É o único jeito de terminar bem — disse. E eu pensei "Ela é doida",
mas pela primeira vez em anos eu queria escutar mais.
— Um pacto de suicídio — murmurou meu amigo.
— Foi o que ela me ofereceu. Isso mesmo — disse eu. — Mas não ali
na hora. Ela disse que tinha uma coisa que eu precisava fazer primeiro.
— O quê?
— Eu me apaixonar por ela — respondi, tranquilo.
— E ela tinha certeza disso? — perguntou meu amigo. — Quer dizer,
que você iria se apaixonar por ela?
— Ah, tinha sim! — respondi. Mas ela também sabia que o processo
usual era repleto de vaivéns, uma estrada cheia de buracos e ciladas. Assim,
decidiu deixar de lado o que se chama de fazer a corte, todo aquele negócio
chato de relatar um para o outro montes de informações biográficas triviais.
A intimidade física teria de vir antes de tudo, foi o que ela disse. Era o
portal através do qual entraríamos um no outro.
— Então, vamos agora mesmo para minha casa — concluiu ela, depois
de oferecer uma breve explanação sobre tudo isso. — Temos de trepar.
— Trepar? — eu ri. — Você não é nada romântica, é?
— Você pode tirar minha roupa, se quiser — disse ela. — Se não, eu
mesma tiro.
— Pode ser melhor você tirar — disse eu, debochando. — Assim, não
vou deslocar o seu ombro.
Ela riu: — Fico desconfiada quando um homem faz isso bem. Faz
pensar que ele tem familiaridade demais com aqueles fechos, colchetes e
zíperes tão femininos. Daí, me pergunto se ele talvez ... se vista assim
também vez por outra.
— Deus do céu — resmunguei. — Você fica mesmo pensando nessas
coisas?
Seu tom de voz e a expressão em seu rosto se tornaram mortalmente
sérias.
— Não posso satisfazer todas as necessidades — disse ela.
Havia uma pergunta em seus olhos e eu sabia qual era. Ela queria saber
se eu tinha alguma fixação secreta, uma dessas taras sexuais, qualquer
"necessidade" que ela não poderia "satisfazer".
— Sou desses caras que só pede sorvete de baunilha — garanti a ela. —
Nada de sabores estranhos.
Ela pareceu levemente aliviada.
— Meu nome é Verônica — disse ela.
— Eu estava com medo de que você não fosse me dizer como se chama
— falei. — Ia ser uma daquelas coisas do tipo eu nunca vou saber quem
você é e vice-versa. Sabe como é, coisa de uma noite apenas.
— E seria tão banal — disse ela.
— É, seria.
— Além do mais — acrescentou —, eu já sei quem você é.
— Sim, é claro.
— Meu apartamento é no final do quarteirão.
No final das contas, o apartamento dela era um bocado mais longe do
que somente uma caminhada até o final do quarteirão, mas isso não teve
importância. Eram mais de duas da madrugada e as ruas estavam bem
desertas. Mesmo em Nova York, certas ruas, especialmente em Greenwich
Village, nunca são muito movimentadas, e uma vez que as pessoas já
entraram e saíram do trabalho, parecem ruelas do interior. Naquela noite, as
árvores que ladeavam a Jane Street balançavam suavemente no ar frio do
outono, e eu me permiti aceitar o que achei que ela oferecia, e que, apesar
de toda a conversa perigosa, não seria nada mais, provavelmente, do que
um breve episódio erótico, talvez com um desjejum matinal, um pouco de
conversa durante o café e pãezinhos quentes. Então, ela iria para o seu lado
e eu para o meu, porque um de nós queria que fosse desse jeito e o outro
não se importaria tanto a ponto de contestar isso.
— A vodca está no freezer — disse ela, no que abriu a porta do seu
apartamento, entrou e acendeu as luzes.
Eu fui para a cozinha e Veronica entrou num corredor ali do lado. O
refrigerador era na extremidade oposta, a porta do freezer estava coberta de
fotos de Veronica e um homem baixo, careca, mirrado, que parecia já
beirando os cinquenta anos.
— Esse aí é o Douglas — falou Veronica de algum lugar do final do
corredor. — Meu marido.
Senti uma pontada de apreensão.
— Ele está fora — acrescentou ela.
A apreensão se desfez.
— Tomara que sim — disse, e abri a porta do freezer. O marido de
Veronica me encarou novamente quando fecheia, a garrafa de vodca
incrustada de gelo na minha mão direita. Agora, eu reparei que Douglas era
um pouco rechonchudo, rugas fundas em torno de seus olhos, grisalho nas
têmporas.
"Certo", pensei.
"Talvez cinquenta e tantos anos." Mesmo assim, ele tinha um rosto
juvenil. Nas fotos, Veronica era mais alta do que ele, sua cabeça careca mal
alcançava os ombros largos dela. Ela estava em todas as fotos, os braços
dele sempre afetuosamente passados em torno da cintura dela. E, em todas
as fotografias, Douglas estava sorrindo com uma alegria tão espontânea que
eu soube que toda a felicidade dele vinha dela, de estar com ela, de ser seu
marido, e que, quando estava com ela, ele se sentia alto e com cabelos
negros, um belo homem, esperto, sagaz, e talvez mesmo um tanto elegante.
Era o que ela lhe oferecia, achei eu, a ilusão de que ele a merecia.
— Quando o conheci, ele era um bartender — disse, ao surgir na
cozinha. — Agora, vende softwares. — Ela ergueu um braço direito
inacreditavelmente longo e gracioso até o armário ao seu lado, abriu suas
portas de madeira lisa e retirou dois copos decididamente comuns, que ela
colocou direto sobre o balcão de fórmica lisa antes de se virar para mim:
— Desde o início, eu fiquei completamente à vontade com Douglas —
disse.
Ela não teria como me dizer isso de modo mais claro. Douglas era o
homem com quem decidira se casar porque possuía as características que
ela exigia para se sentir em casa quando estivesse em casa, e plenamente
sentir-se sendo ela mesma quando estivesse com ele. Se tivesse havido
algum grande amor em sua vida, ela teria preferido Douglas porque com ele
poderia viver sem mudanças nem alterações, sem maquiar a sua alma. Por
isso, de repente, vi a mim mesmo vagamente invejoso em relação àquele
homenzinho atarracado, à paz que ele lhe transmitia, à maneira que ela, sem
duvidar de nada, poderia recostar-se com o braço dele passado sobre seus
ombros, respirar devagar e adormecer.
— Ele parece... Um bom sujeito — disse eu. Veronica não deu sinal de
ter me escutado.
— Você bebe puro — disse ela, referindo-se à maneira como bebia meu
drinque, o que evidentemente foi algo em que reparou no bar.
Assenti com a cabeça.
— Eu também.
Ela serviu o drinque e me dirigiu para a sala. As cortinas estavam bem
fechadas e pareciam um pouco empoeiradas. Os móveis haviam sido
escolhidos mais para dar conforto do que por conta de estilo. Havia alguns
vasos de planta, a maioria delas escurecida nas beiradas. Dava quase para
escutá-las implorando por água. Nada de cães. Nada de cachorros. Nada de
peixinhos dourados nem hamsters, nem cobras nem ratos. Quando Douglas
estava fora, pelo que parecia, Veronica vivia sozinha.
A não ser pelos livros, mas eles estavam espalhados por toda a parte.
Enchiam prateleira sobre prateleira, até o teto, ou ficavam empilhados,
quase tombando, ao longo das quatro paredes do ambiente. Os autores eram
os mais variados, dos velhos clássicos aos bestsellers mais recentes.
Stendhal e Dostoiévski lá estavam ombro a ombro com Anne Rice e
Michael Crichton. Alguns dos meus títulos áridos estavam alinhados ali
entre Robert Stone e Patrick O'Brien. Não havia história nem ciências
sociais em sua coleção, nem poesia. Apenas romances, assim como
Veronica parecia um personagem de ficção, que ela inventara e estava
determinada a interpretar até o final. O que ela oferecia, eu acreditava
naquele momento, era uma consistente performance de uma nova-iorquina
excêntrica.
Tocou a borda do seu copo no meu, num brinde, seus olhos muito fixos:
— Ao que vamos fazer! — disse.
— Ainda estamos falando a respeito de cometer suicídio juntos? —
debochei, no que baixei meu copo sem beber. — O que é isso, Veronica?
Alguma versão reescrita de Doce Novembro?
— Não sei do que você está falando — disse ela.
— Sabe, sim, aquele filme estupido em que uma garota que logo vai
morrer arruma um garoto e vive com ele por um mês, antes de...
— Eu jamais viveria com você — interrompeu Veronica.
— Não é disso que estou falando.
— E não estou morrendo — acrescentou Veronica. Sorveu um gole
rápido de sua vodca, colocou o copo sobre a pequena mesa junto ao sofá,
então se levantou, como se atendesse ao chamado repentino de uma voz
invisível, oferecendo-me sua mão.
— Hora de ir para a cama — disse.
— Assim, sem mais nem menos? — perguntou meu amigo.
— Assim mesmo.
Ele me olhou desconfiado: — É tudo fantasia sua, certo? — perguntou.
— Uma história que você inventou.
— O que aconteceu depois ninguém ia conseguir inventar.
— E o que foi?
Ela me levou para o quarto. E nos despimos sem uma palavra. Ela
escorregou para baixo do lençol, que era só o que cobria a cama, e deu
tapinhas no colchão.
— Este lado é o seu.
— Até Douglas voltar — disse eu, e me juntei a ela.
— Douglas não vai voltar — disse ela, então se inclinou sobre mim e
me beijou suavemente.
— Por que não?
— Porque está morto — respondeu ela sem hesitar. — Morreu há três
anos.
E então fui informado sobre a lenta decadência de seu marido, o câncer
que começou em seus intestinos e migrou para o fígado e pâncreas. Levou
seis meses, e Veronica cuidou dele dia após dia. Ela passava para vê-lo pela
manhã, a caminho do trabalho, e voltava para ele à noite, permanecendo ao
seu lado até ter certeza de que ele não acordaria mais, então, finalmente,
retornaria para cá, para esta mesma cama, e dormiria uma ou duas horas,
três no máximo, antes de iniciar toda a rotina outra vez.
— Seis meses! — disse eu. — É um bocado de tempo.
— Uma pessoa morrendo dá muito trabalho.
— Eu sei — disse a ela. — Fiquei ao lado do meu pai, quando ele
estava morrendo. Quando ele finalmente se foi, eu estava exausto.
— Ah, não foi isso que eu quis dizer. A parte física... ficar sem dormir.
Isso nunca foi a parte mais difícil; não em se tratando do Douglas.
— O que era, então?
— Fazê-lo acreditar que eu o amava.
— E não amava?
— Não — respondeu ela, e a seguir me beijou outra vez, um beijo um
pouco mais demorado do que o primeiro, e que me deu tempo para lembrar
que apenas alguns minutos atrás ela havia me dito que Douglas, atualmente,
vendia softwares.
— Softwares — disse eu, afastando os meus lábios dos dela. — Você
disse que ele agora vendia softwares.
Ela assentiu de cabeça: — E ele vende.
— Para clientes também mortos? — ergui meu corpo e apoiei a cabeça
em uma das mãos. — Mal posso esperar para escutar a sua explicação.
— Não há nenhuma explicação — ela disse. — Douglas sempre quis
vender softwares. Assim, em vez de dizer que ele está enterrado ou no céu,
digo apenas que ele está vendendo softwares.
— Sei, você dá à morte um apelido bonitinho — disse. — É uma
maneira de não ter de encará-la.
— Digo que ele está vendendo softwares porque não desejo entrar na
conversa que se segue se eu dissesse que ele está morto — disparou
Veronica, agressiva. — Detesto quando tentam me consolar.
— Então, por que acabou me contando tudo?
— Porque você precisa saber que sou como você — disse ela. —
Sozinha. Ninguém vai chorar por mim.
— Então, estamos de volta à conversa sobre suicídio — disse eu. —
Você sempre volta para esse tema... morte?
Ela sorriu: — Sabe o que La Rochefoucauld disse sobre a morte?
— Não está aqui na ponta da língua, não!
— Ele disse que era como o sol. Não se pode olhar para ele por um
tempo longo sem ficar cego — ela deu de ombros. — Só que eu acho que,
se você fica olhando para ela o tempo todo, e compara com a vida, então
pode escolher.
Puxei-a para os meus braços.
— Você é um pouco estranha, Veronica — disse, brincando.
Ela balançou a cabeça, sua voz bastante decidida: — Não sou — disse
ela.
E reforçou: — Sou a pessoa mais lucida que você já conheceu.
— E era mesmo — disse eu ao meu amigo.
— Como assim?
— Bem, ela me ofereceu mais do que qualquer pessoa que eu já tivesse
conhecido.
— O que ela ofereceu?
Naquela noite, ela ofereceu a meiga e ousada luxuria de sua carne, um
beijo tão impregnado de sensações que pensei que seus lábios iam soltar
faíscas.
Fizemos amor por algum tempo, então, de repente, ela parou e pulou da
cama.
— Hora de conversar — disse, então caminhou para a cozinha e voltou
com mais dois copos de vodca.
— Hora de conversar? — perguntei, ainda desconcertado pela maneira
abrupta como ela se despregou de mim.
— Não tenho a noite toda — disse, me oferecendo o copo.
Peguei a bebida da mão dela: — Quer dizer que não vamos brindar
juntos ao amanhecer?
Ela sentou-se na cama, pernas cruzadas e nua, seu corpo liso e macio
sob a luz azulada: — Você é bom com as palavras — disse, ao bater seu
copo no meu. — Eu também. — Ela se inclinou um pouco para mim, seus
olhos brilhando na escuridão. — Acontece o seguinte — acrescentou. — Se
você é bom demais com as palavras, chega uma hora em que não tem mais
o que dizer. Não sobraram palavras para dizer o que é importante.
Só palavras que saem facilmente. Espertas. Displicentes. É quando você
sabe que chegou ao máximo do que pode ir, quando não tem nada sobrando
para oferecer a não ser conversa fácil.
— Isso é um bocado duro, não acha? — Sorvi um gole da minha vodca.
— Além do mais, qual é a alternativa a falar?
— O silêncio — respondeu Veronica.
Ri: — Verônica, você não fica em silêncio.
— Na maior parte do tempo, fico sim — disse ela.
— E o que esse silêncio esconde?
— Raiva — respondeu ela sem a menor hesitação. — Furia.
Seu rosto ficou tenso e eu achei que a raiva que de repente enxerguei
nela ia pôr seus cabelos em chamas.
— Bem, claro que você pode ficar em silêncio por outras razões —
disse ela. E sorveu um rápido e ríspido gole de seu copo. — Douglas
chegou lá. Mas não por ser bom com as palavras.
— Como, então?
— Sofrendo. Olhei para ver se seus lábios estavam tremendo. Não
estavam. Procurei ver umidade em seus olhos, mas estavam secos e fixos.
— Por estar apavorado — ela acrescentou. Voltou o olhar para a janela e
manteve-o ali por instantes, depois retornou-o para mim.
— Na última semana não me disse sequer uma palavra — contou-me
ela. — Foi quando eu soube que a hora havia chegado.
— Hora do quê?
— Hora de Douglas arranjar um novo emprego.
Senti o meu coração parar de bater.
— Vendendo... softwares? — perguntei. Ela acendeu uma vela e
colocou-a na estreita prateleira acima de nós, depois escancarou a gaveta de
cima de uma mesinha junto à cama, tirou uma caixinha plástica de pílulas e
a agitou para que eu pudesse escutar as pílulas chacoalhando ali dentro.
— Eu tinha planejado dar a ele isto aqui — disse ela. — Mas, não
houve tempo.
— O que você quer dizer com não houve tempo?
— Vi escrito no rosto dele — ela respondeu.
— Douglas estava vivendo como alguém que já estava enterrado.
Alguém lá embaixo, na sepultura, esperando que o ar acabasse. Esse tipo de
sofrimento, o terror. Eu sabia que esse minuto a mais seria exageradamente
longo. Ela colocou as pílulas sobre a mesa, então agarrou o travesseiro
sobre o qual sua cabeça repousava, afofou-o suavemente, pressionou-o
sobre o meu rosto, depois ergueu-o de novo, de um modo que,
estranhamente, me fez sentir como se eu estivesse voltando à vida:
— Era tudo que me restava para oferecer a ele — disse ela,
mansamente, e depois sorveu lentamente um longo gole de sua vodca. —
Temos tão pouco a oferecer.
E eu pensei com uma lucidez subita e devastadora: "A escuridão dela é
real. A minha, é apenas pose."
— O que você fez? — meu amigo perguntou.
— Toquei o rosto dela.
— E o que ela fez?
Ela afastou minha mão quase com violência.
— Isto aqui não é sobre mim — disse ela.
— Neste momento, tudo aqui é sobre você — repliquei eu.
Ela sorriu, com uma careta: — Bobagem!
— Eu estou aqui. Apertei bem o braço em torno dela: — Eu estou aqui
— disse.
Ela se apertou ainda mais contra mim: — Sim.
— Então, você ficou com ela? — perguntou meu amigo.
Eu assenti com a cabeça.
— E ela...?
— Cerca de uma hora depois — disse. — Então, me vesti e fiquei
andando pelas ruas até vir parar aqui.
— Quer dizer, neste exato momento, ela está...
— Morta — cortei, e de repente a imaginei sentada no parque do outro
lado da rua do bar, parada e silenciosa.
— Você não poderia impedi-la?
— Com o quê? — perguntei. — Não tinha nada a oferecer a ela. —
Espiei através da vidraça do bar. — Além disso — acrescentei —, para uma
mulher genuinamente fatal, um homem jamais é uma resposta. É o que a
torna fatal. Pelo menos, para nós. Meu amigo me olhou de um modo
estranho:
— Mas, o que você vai fazer agora? — perguntou.
No extremo oposto do parque, um jovem casal estava gritando um com
o outro, o punho da mulher no ar, o homem balançando a cabeça em
violenta confusão. Eu podia imaginar Veronica virando as costas para eles,
afastando-se em silêncio.
— Vou ficar calado — respondi. — Por um bocado de tempo!
Então, me pus de pé e caminhei para dentro da cidade que rodopiava. A
dissonância de sempre me engolfou, o caos, a balburdia, mas não senti
necessidade de acrescentar minha própria e incipiente discordância ao resto.
Era um sentimento estranhamente acolhedor, foi do que me dei conta
quando me voltei, dirigindo-me para casa abraçando o silêncio.
Lá das profundezas de sua tranquilidade envolvente, Veronica me
ofereceu suas palavras finais.
Eu sei.
***
Seu amo e senhor
Andrew Klavan
Era óbvio que ela o havia matado, mas somente eu sabia por quê. Eu
fora amigo de Jim, e ele me contou tudo. Era uma história chocante, se bem
que um tanto diferente.
Bem, eu a achei chocante, independentemente da maneira como
qualquer outro a visse. Mais de uma vez, quando ele fazia confidências a
mim, senti o suor se acumulando por debaixo do meu colarinho e no meu
peito. Uma irritação na pele e o que, em uma idade mais decorosa, teríamos
chamado de "um desconforto na barriga". Hoje em dia, é claro,
teoricamente podemos falar dessas coisas, e sobre tudo, na verdade. Há
tantos livros, filmes e programas de tevê reivindicando ter quebrado o
último tabu que dá para pensar que não nos restou nenhum de sobra.
Bem, isso eu quero ver. Quero só ver.
Para mim, tudo era depressão e atordoamento. Jim não era meu irmão,
nem nada do gênero, mas um bom amigo. E eu sabia que era,
provavelmente, o melhor amigo que ele tinha na rede, talvez na cidade, ou
talvez mesmo no mundo. Mesmo assim, houve momentos, assistindo às
feministas na tevê, vendo o advogado de Susan, que fiquei pensando: Como
vou saber? O cara diz uma coisa, a garota diz outra. Como vou saber se
tudo o que o Jim me contou não era uma mentira doida dele, uma dessas
justificativas que ele arranjou para as coisas ruins que fazia com ela?
Claro que, afastando tudo isso, telefonei para a polícia no dia depois do
assassinato, uma sexta-feira, logo que soube da notícia. Telefonei direto
para um contato meu na Homicídios e lhe disse que tinha sólidas
informações sobre o caso.
Eu mais ou menos esperava escutar as sirenes berrando e as patrulhas
vindo me pegar logo que desliguei o telefone. Em vez disso, marcaram uma
entrevista comigo para segunda de manhã, e me pediram para ir à delegacia
para conversar com o detetive encarregado do caso.
E isso me deixou o fim de semana livre. Eu o passei prostrado no sofá,
tomado por uma náusea depressiva. Olhando vagamente para o teto, o braço
dobrado sobre meus olhos. Tentei me forçar a chorar, tentei me culpar,
tentei não me culpar.
O telefone tocou e tocou, mas não atendi. Eram apenas amigos — pude
escutar os recados deles na secretária eletrônica — querendo se pôr a par do
assunto: a solidariedade, o pesar, as fofocas. Todo mundo buscando um
pedaço do assassinato para si. Eu não tinha disposição para brincadeiras.
Na manhã de domingo, finalmente, alguém bateu à minha porta. Moro
no último andar de um edifício caro, e assim era de se esperar que tocassem
o interfone, lá da rua, mas foi direto uma batida na porta e achei que fosse
um dos meus vizinhos, que acabara de ver a notícia na tevê. Gritei
perguntando quem era, enquanto calçava meus sapatos. Enfiei de qualquer
jeito a camisa, ao me dirigir para a porta. E a abri toda, sem nem ao menos
dar uma espiada no olho mágico.
E era Susan. Uma porção de coisas passou pela minha cabeça no
segundo em que a vi. E ela parada ali de pé, combativa e constrangida ao
mesmo tempo. O queixo empinado, beligerante; olhando de lado, tímida.
Pensei: Como devo agir? Como devo me portar? Zangado? Vingativo?
Frio? Distante? Compassivo? Meu Deus, era algo paralisante. No final, só
recuei e a deixei entrar. Ela caminhou até o centro da sala e me encarou
enquanto eu fechava a porta.
Então, deu de ombros para mim. Um ombro nu erguido, um canto da
sua boca erguido, um sorriso cínico. Estava com um vestido primaveril de
cor pálida, as tiras atadas em torno do seu pescoço, num laço mostrava um
bocado de sua pele morena. Notei uma marca em forma de crescente,
descorada, na coxa por baixo da bainha.
— Não tenho certeza de como se deve proceder convenientemente nesta
situação — disse eu.
— É, quem sabe o livro de etiqueta tem um capítulo intitulado
Recebendo em casa a Garota que Matou Seu Melhor Amigo.
Devolvi seu sorriso cínico:
— Não fale demais, certo, Susan? Vou ter de ir ver os tiras na segunda-
feira.
Ela parou de sorrir, assentiu com a cabeça, virou-se:
— E ... aí? Quer dizer, Jim lhe contou tudo? Sobre nós? — ela ficou
brincando com o bloco sobre minha mesinha de telefone.
Eu a fiquei observando. Minhas reações eram sutis, mas intensas. Foi a
maneira como ela se virou, aquilo que ela disse. E me fez pensar no que o
Jim havia me contado.
Fez com que eu descesse o olhar, devagar e longamente, por suas costas.
Fez minha pele arder, meu estômago ficar gelado. Uma combinação
interessante.
Umedeci os lábios e tentei pensar no meu amigo morto.
— Isso mesmo — disse, mal-humorado. — Ele me contou tudo! Susan
riu, por cima do ombro, voltando-se para mim.
— Bem, isso é bem constrangedor.
— Ei, não flerte comigo, certo? Não pode matar meu amigo e vir aqui
flertar comigo.
Ela virou-se para mim outra vez, as mãos comportadamente cruzadas à
frente dela. Olhei com tanta firmeza para o seu rosto que ela não deve ter
adivinhado que eu estava pensando em seus seios.
— Não estou flertando com você — disse ela. — Só quero lhe contar...
— Contar o quê?
— O que ele fazia, que ele me espancava, me humilhava. Tinha o dobro
do meu tamanho. Ponha-se no meu lugar, pense no que você faria se alguém
estivesse fazendo isso com você.
— Susan! — abri meus braços para ela, mãos espalmadas. — Você
pedia a ele que fizesse tudo isso.
— Ah, claro, mais ou menos... Foi ela que pediu, certo? E você
automaticamente acreditou em tudo. Se o seu amigo disse, então deve ser
verdade.
Bufei contrariado.
Fiquei pensando naquilo. Olhei para ela. Pensei em Jim.
— Isso mesmo — disse, finalmente. — Acredito nele. Ele me disse a
verdade.
Ela não discutiu mais sobre aquilo. Foi bem direta:
— Ok, ora, mesmo que fosse verdade, não melhora o que ele fez. Quer
saber de tudo? Quero dizer, você devia ver como aquilo o excitava. Quero
dizer, ele podia ter parado. Eu teria parado. Podia ter mudado o rumo da
coisa toda, quando quisesse. Se quisesse... Mas ele gostava tanto daquilo...
E então estava ele lá, me machucando daquele jeito, e todo excitado com
aquilo. Como você acha que isso faz alguém se sentir?
Não fico muito orgulhoso em admitir que eu efetivamente cocei com
força a cabeça, tão idiota como um macaco.
Susan correu uma unha comprida sobre o bloco de telefone. Desceu os
olhos sobre ele. E eu também.
— Você vai mesmo ver os tiras?
— Vou. Ah, vou, sim — disse.
Então, como se precisasse me desculpar, acrescentei:
— Não é nada que eles não possam escutar de algum outro cara.
Alguém com quem você andou fazendo a mesma coisa. Ele contaria aos
tiras a mesma história.
Ela balançou a cabeça:
— Não. Existe apenas você. Você é o único que sabe. E isso não
deixava mais nada a ser dito. Ficamos ali parados, de pé, calados. Ela
pensando, eu apenas observando-a, observando suas linhas e cores.
Então, finalmente, ela ergueu os olhos para mim e balançou a cabeça.
Ela não deslizou em minha direção, não se aproximou furtivamente,
tocando então meu peito com seus dedos, não se aconchegou a mim de
modo que eu pudesse sentir o calor de seu hálito ou seu perfume. Deixou
isso para os filmes, para as femmes fatales. Tudo o que fez foi ficar ali,
parada daquele mesmo jeito e me dar aquele olhar de Susan, o queixo
empinado, punhos em guarda, sua alma à mostra, quase pulsando na mão da
outra pessoa.
— Isso dá a você um bocado de poder sobre mim, não é? — ela disse.
— E daí? — repliquei.
Ela deu de ombros:
— Você sabe do que eu gosto.
— Fora daqui — disse eu, sem me dar tempo para começar a suar. —
Meu Deus, puta merda, dê o fora daqui, Susan.
Ela encaminhou-se para a porta. Fiquei vendo-a ir embora. Isso, claro,
pensei eu. Tinha poder sobre ela. Imagine! Eu teria poder sobre ela até que
decidissem não apresentar acusações contra ela, até que as manchetes
desaparecessem. E depois, como eu ficaria? Ia ser então seu Amo e Senhor.
Exatamente como Jim.
Ela passou bem junto de mim. Perto o bastante para escutar meus
pensamentos. Ergueu o olhar, surpresa. Riu na minha cara.
— O que é? Acha que vou matar você também?
— Eu teria de imaginar algo assim, não é? — disse eu.
Sempre sorrindo, ela ergueu suas sobrancelhas debochadamente:
— Qualquer coisa que excite você! — disse ela.
Foi o deboche que fez tudo. Não consegui resistir à tentação de apagar
aquele sorriso de seu rosto assassino. Estiquei o braço e agarrei aqueles
cabelos dela. Seus cabelos negros, tão negros.
Eram ainda mais macios do que eu pensei que fossem.
***
A bizarria do Sr. Gray
John Connolly
Era, dizia minha mulher, a coisa mais horrenda que já vira. Eu tinha de
admitir que ela estava certa na sua avaliação. Não se tratava, de um modo
geral, de uma ocorrência típica em nossa relação. À medida que se
aproximava da meia-idade (com toda a graça e lentidão, eu deveria
acrescentar, de um cortejo funebre entrando vacilante num cemitério),
Eleanor se mostrava cada vez mais intolerante para com opiniões que
divergiam das suas. Inevitavelmente, as minhas pareciam divergir na
maioria das vezes, por isso uma concordância, qualquer que fosse, era causa
para uma considerável, embora muda, comemoração.
Norton Hall foi uma aquisição maravilhosa, uma residência no campo
do final do século XVIII, com jardins paisagísticos e cinquenta acres de
terra de primeira. Era uma joia arquitetônica e teria sido um lar
maravilhoso, por ser simultaneamente pequena o bastante para ser
administrada e, no entanto, espaçosa o bastante para permitir que
evitássemos um ao outro durante porções significativas do dia.
Infelizmente, como minha mulher devidamente observou, a bizarria
arquitetônica* na extremidade do jardim era algo totalmente diverso.
* Nos castelos antigos, era comum reservar um espaço para uma extravagância arquitetônica
nos jardins, que podia ser uma gruta artificial, um gazebo (mirante, geralmente na forma de pagode
chinês) ou um templo de gosto bizarro, como o desta história, daí o nome bizarria (folly, "loucura",
em inglês). (N. do T.)
Era feia e brutal, com pilastras retangulares sem adornos e uma cupula
branca e nua encimada por uma cruz. Não havia degraus que conduzissem
até ela e a única maneira de ganhar acesso ao seu interior parecia ser uma
escalada sobre a base. Até os pássaros a evitavam, preferindo tomar posição
num carvalho próximo, onde arrulhavam nervosos entre si como solteironas
num baile paroquial.
Segundo o agente imobiliário, um dos proprietários anteriores de
Norton Hall, o Sr. Gray, construíra aquela bizarria como um memorial para
sua falecida mulher.
Pareceu-me que não gostava muito da mulher, se foi aquilo que
construiu em sua memória. Eu não gostava muito da minha mulher na
época, mas ela não me desgostava a ponto de me levar a erguer uma
monstruosidade daquelas em sua memória. Pelo menos, eu teria aparado
algumas arestas e plantado um dragão no topo como lembrança da querida
falecida. Um pequeno dano na base foi causado a certa altura pelo Sr. Ellis,
o cavalheiro proprietário da casa antes de nós, mas parecia que ele
reconsiderara seu impulso original e a área em questão fora reparada e
pintada de novo.
Pensando seriamente na coisa, era um terrível atentado à estética.
Meu primeiro instinto foi mandar destruir a desgraçada estrutura, mas
nas semanas que se seguiram comecei a achar a bizarria atraente. Não,
"atraente" não é a palavra certa. Na verdade, comecei a achar que ela
obedecia a um propósito que eu ainda não havia percebido e que não seria
sábio me intrometer até que soubesse mais sobre ela. Como cheguei a me
sentir assim só posso atribuir a um incidente particular que ocorreu cinco
semanas depois que ocupamos Norton Hall.
Eu tinha apanhado uma cadeira e a colocara no chão nu da bizarria, pois
fazia um belo dia de verão e a bizarria oferecia a possibilidade tanto de
sombra como um panorama agradável. Estava me sentando com o jornal
quando a coisa mais estranha aconteceu: o chão se mexeu, como se, por um
momento, tivesse se tornado líquido em vez de sólido e alguma maré oculta
tivesse provocado uma onda através de sua superfície. A luz do sol
empalideceu e a paisagem se velou cobrindo-se de sombras. Senti como se
uma faixa de gaze da cama de um doente fosse colocada sobre meus olhos,
pois podia sentir vagamente um odor de deterioração no ar. Levantei-me
subitamente, experimentando uma certa tontura na cabeça, e vi um homem
de pé entre as árvores, observando-me.
— Olá — falei. — Posso dar-lhe alguma ajuda?
Era alto e vestia roupas de tweed: um sujeito com um ar marcadamente
doentio, achei; com um rosto fino e olhos escuros e atraentes. E juro que o
ouvi falar, embora seus lábios não se mexessem. O que disse foi:
— Deixe a bizarria em paz.
Ora, achei aquilo um tanto atrevido, devo admitir, mesmo em minha
condição debilitada. Não sou um homem acostumado a ser tratado de tal
maneira por estranhos absolutos. Mesmo Eleanor tem a gentileza de
prefaciar suas ordens com um "Você se incomodaria de...?" seguida por um
ocasional "por favor" ou "obrigada" para amortecer o golpe.
— Olhe aqui — falei. — Sou o dono desta terra. Não pode entrar aqui
para me dizer o que posso e o que não posso fazer com ela. Quem é você,
afinal?
Mas não é que ele repetiu as mesmas palavras?
— Deixe a bizarria em paz.
E, dito isso, o sujeito simplesmente virou as costas e desapareceu entre
as árvores. Estava para ir atrás dele e escoltá-lo para fora da propriedade
quando ouvi um movimento na grama atrás de mim. Virei-me, meio na
expectativa de vê-lo surgir ali também, mas era apenas Eleanor. Por um
momento, ela era uma parte da paisagem alterada, um espectro entre
espectros, mas gradualmente voltou ao normal e era de novo minha uma
vez amada mulher.
— Com quem estava falando, querido? — perguntou.
— Tinha um sujeito andando por ali — respondi, indicando as árvores
com o queixo.
Ela olhou na direção das árvores e deu de ombros.
— Não tem ninguém ali agora. Tem certeza de que viu alguém? Talvez
o calor esteja mexendo com você, ou algo pior.
Devia procurar um médico.
E lá estava eu. Edgar Merriman: marido, proprietário, homem de
negócios e lunático potencial aos olhos de sua mulher. Neste ritmo, não
demoraria e uma dupla de enfermeiros estaria sentada no meu peito até que
a carrocinha de loucos chegasse, minha mulher talvez deixando cair uma
lágrima de crocodilo enquanto assinava os papéis do meu internamento.
Impressionou-me, não pela primeira vez, que Eleanor parecia ter
perdido algum peso nas semanas recentes, ou talvez fosse simplesmente o
ângulo da luz refletida da bizarria iluminando o seu rosto. Dava-lhe uma
aparência faminta, uma impressão reforçada por um brilho nos seus olhos
que eu não vira antes. Fazia-me pensar numa ave de rapina e, por algum
motivo, o pensamento me dava calafrios.
Segui-a de volta para casa para um chá, mas eu não conseguia comer,
em parte por causa da maneira como ela me olhava por cima dos bolinhos
como um abutre impaciente à espera de que algum sujeito batesse as botas,
mas porque falava incessantemente da bizarria.
— Quando vai mandar demolir esta coisa, Edgar? — começou. —
Quero que faça isso o mais rápido possível, antes que o mau tempo chegue.
Edgar! Edgar, está me ouvindo?
E não é que ela agarrou meu braço com tanta força que deixei cair
minha xícara no susto, fragmentos de porcelana pálida cobrindo o chão de
pedra como os remanescentes de jovens sonhos. A xícara era parte da nossa
porcelana de casamento, mas sua perda não pareceu perturbar minha mulher
como o teria em outra ocasião. Na verdade, ela mal pareceu se dar conta da
xícara quebrada ou do chá lentamente escorrendo pelas rachaduras do piso.
Continuou me segurando o braço com força e suas mãos eram como garras,
longas e finas com unhas duras e aguçadas. Grossas veias azuis corriam
pelas costas de suas mãos como serpentes entrelaçadas, querendo romper de
sua pele. Um odor acre emanava dos seus poros e quase me levava a franzir
o nariz de nojo.
— Eleanor — perguntei —, você está doente? Suas mãos estão tão finas
e posso ver por seu rosto que perdeu peso.
Relutantemente, ela afrouxou o aperto em meu braço e virou o rosto.
— Não seja bobo, Edgar — respondeu. — Estou ótima.
Mas a pergunta pareceu incomodá-la, porque imediatamente se ocupou
entre os guarda-louças, fazendo o tipo de ruído mais associado com raiva do
que com ocupação. Deixei-a em paz, esfregando o braço onde ela o agarrara
e pensando sobre a natureza de mulher com quem eu estava casado.
Estava escuro quando voltei para casa naquela noite, mas ainda podia
ver as marcas deixadas pelos veículos sobre o gramado e um tremendo
buraco onde a bizarria costumava ficar. Os restos da construção jaziam num
monte de concreto e chumbo no cascalho ao lado da casa, deixado ali pelos
homens responsáveis pela demolição, a penuria das suas fundações agora
claramente revelada, pois a estrutura em si era apenas um fingimento, um
meio de cobrir o poço que jazia abaixo dela. Uma figura estava na beira do
buraco, uma lanterna na mão. Ao virar-se para mim, ela sorriu, um sorriso
espectral carregado, parecia-me, de pena e maldade.
— Eleanor! — gritei. — Não!
Mas era tarde demais. Ela virou-se e começou a descer uma escada, a
luz rapidamente desaparecendo de vista. Deixei cair minha maleta e corri
através do gramado, o peito arquejando e um pânico crescente me
apertando as vísceras, até que cheguei à borda do buraco. Eleanor raspava a
terra com as mãos nuas, lentamente revelando a figura retorcida de um
esqueleto de mulher, os restos ainda cobertos por um vestido cor-de-rosa
esfarrapado e eu soube instintivamente que esta era a Sra. Ellis e que o
policial Morris estava certo em suas suspeitas. Ela não fugira do marido.
Fora, sim, enterrada aqui por ele, depois que ela penetrou no fundo da
bizarria, e ele a matou, e depois a si mesmo, num acesso de horror e
remorso. O crânio da Sra. Ellis estava levemente alongado ao redor do nariz
e da boca, como se alguma medonha transformação tivesse sido
interrompida por sua morte subita.
A esta altura, as unhadas de Eleanor tinham revelado um pequeno
esquife, escuro e ornamentado. Desci a escada atrás dela que pegava um pé-
de-cabra e estourava o grande cadeado que Gray colocara no esquife antes
de enterrá-lo. Eu estava nos últimos degraus da escada quando um som... se
ouviu e, com um grito de triunfo, Eleanor escancarou a tampa. Lá,
justamente como Gray havia descrito, estavam os restos retorcidos
encimados por um crânio estranho e alongado. Já a poeira começava a se
levantar e um fino jato vermelho de vapor emergia da boca de Eleanor. Seu
corpo se convulsionou, como se fosse sacudido por mãos invisíveis. Seus
olhos se esbugalharam nas órbitas e suas faces pareciam ser sugadas para
dentro da boca aberta, os contornos do crânio claramente visíveis debaixo
da pele. O pé-de-cabra caiu de suas mãos e eu o agarrei. Empurrando-a para
o lado, ergui a ferramenta acima de minha cabeça e parei diante do esquife.
Um rosto cinza-enegrecido com grandes olhos verde-escuros e orifícios no
lugar das orelhas olhou para mim e suas aguçadas mandíbulas em forma de
bico estalaram enquanto partia para cima de mim. Garras se aferraram às
bordas da sua prisão enquanto a criatura tentava se erguer e seu corpo era
uma zombaria de tudo o que é bonito numa mulher.
Seu hálito cheirava a coisas mortas.
Fechei os olhos e golpeei. Algo gritou e o crânio quebrou-se com um
som oco e umido como a abertura de um melão. A coisa caiu para trás,
sibilando, e fechei a tampa com força. Aos meus pés Eleanor jazia
inconsciente, os traços finais do vapor vermelho coleando lentamente por
entre seus dentes. Assim como Gray fizera antes, peguei o pé-de-cabra e o
usei para travar a fechadura. De dentro do esquife vinham batidas furiosas e
o pé-de-cabra era sacudido instavelmente na sua posição.
A coisa gritou repetidamente, um som longo e agudo como os guinchos
de porcos num matadouro.
Coloquei Eleanor sobre meus ombros e, com alguma dificuldade, subi a
escada até o chão acima, o ruído surdo das batidas no caixão lentamente se
apagando. Levei-a de carro até Bridesmouth, onde a coloquei sob os
cuidados do hospital local. Ficou inconsciente durante três dias e não
lembrava nada da bizarria ou de Lilith quando acordou.
Enquanto ela estava no hospital, organizei as coisas para que
voltássemos permanentemente para Londres e para que Norton Hall fosse
lacrado. E, então, numa tarde luminosa, assisti ao fechamento do buraco no
gramado com cimento reforçado por aço. Mais cimento foi derramado no
buraco, três caminhões inteiros, até o buraco ficar quase cheio. Então os
operários começaram a tarefa de construir uma segunda bizarria para cobrir
o buraco, maior e mais ornada do que a sua predecessora. Custou-me a
renda de meio ano, mas eu não tinha duvida de que valeu a pena.
Finalmente, enquanto Eleanor continuava a convalescer com sua irmã
em Bournemouth, observei quando as últimas pedras da bizarria eram
colocadas e os operários começaram a recolher o seu equipamento do
gramado.
— Quer dizer que a patroa não gostou da outra bizarria, Sr. Merriman?
— disse o mestre-de-obras, enquanto víamos o sol se pôr sobre a nova
estrutura.
— Creio que não combinava muito com o gosto dela — respondi.
O mestre-de-obras me lançou um olhar intrigado. — São criaturas
engraçadas, as mulheres — continuou finalmente. — Se pudessem fazer
tudo o que queriam, mandariam no mundo.
— Se pudessem fazer tudo o que queriam — ecoei. Mas não o farão,
pensei. Pelo menos não no que depender de mim.
***
A mil quilômetros de lugar nenhum
Lorenzo Carcaterra
***
A testemunha
J. A. Jance
***
Caído por ela
Ian Rankin
Quase toda noite, Dennis Henshall levava trabalho para casa. Não que
alguém notasse. Ele sabia que a maioria dos seus colegas guardiães de
prisão estava se lixando.
Na opinião deles, Dennis era de qualquer modo um esquisitão, que
ficava sentado a maior parte do dia no seu escritório, lendo
correspondência, régua e lâmina de barbear a postos. Tinha de tomar
cuidado com aquelas lâminas: uma das regras do emprego. Ele as mantinha
sob fechadura e chave, a distância de dedos ágeis.
Toda manhã destrancava a gaveta de sua escrivaninha e as contava,
depois tirava uma, sempre a mesma. Quando esta perdia o fio, ele a levava
para casa e jogava na cesta de lixo da cozinha. A gaveta da escrivaninha
ficava trancada o resto do dia e a maior parte do tempo sua porta também
era trancada, exceto quando ele estava na sala. Uma escapada de dois
minutos para fazer pipi, mesmo assim deixava a porta trancada, a lâmina de
volta à gaveta e aquela gaveta trancada, também.
Todo cuidado era pouco. Seu arquivo era protegido por uma barra
vertical que passava por entre os puxadores dos quatro gavetões. A primeira
vez que o diretor da prisão o visitou, não fez nenhum comentário sobre sua
precaução adicional, mas não pôde deixar de olhar o tempo todo para o
arquivo verde e alto durante sua conversa com Dennis.
Os outros guardiães achavam que Dennis escondia muamba: revistas
pornôs e uísque. Escondido no escritório, uma mão no gargalo da garrafa;
outra ocupada dentro das calças. Ele pouco fazia para desmentir o mito,
gostava até que esta sua outra vida fosse inventada para ele. Na verdade, o
arquivo nada mais continha do que correspondência em ordem alfabética:
cartas ligando presidiários a seus amigos e entes queridos do lado de fora.
Eram as cartas que haviam sido consideradas IDR: Impossíveis de Remeter.
Uma carta podia ser considerada IDR se fornecesse informação demais
sobre a rotina da prisão, ou se parecesse ameaçadora. Palavrões e conteudo
sexual, tudo bem, mas a maioria das cartas eram inibidas, a partir do
momento em que se percebia que Dennis, como censor da prisão, leria toda
correspondência antes.
Era a sua tarefa e ele a executava com diligência. Sua régua sublinhava
uma frase controversa e ele partia para o trabalho com a lâmina. Partes
suprimidas eram guardadas no fichário, coladas numa folha de papel com
comentários datilografados incluindo a data, a identidade do presidiário, e a
razão do corte. Cada manhã uma nova leva de correio o aguardava; cada
tarde ele verificava a correspondência que seria postada. Estes envelopes
eram pré-selados e endereçados, mas não enviados até que Dennis
autorizasse o seu conteudo.
Ele abria as cartas que chegavam com uma espátula de madeira que
comprara num brechó de Cockbum Street. Era africana, o punho entalhado
para parecer uma cabeça alongada. Essa espátula, também, ele mantinha
trancada sempre que deixava o escritório. Sua sala nem sempre fora um
escritório. Adivinhou que ela começara a vida como uma espécie de
depósito. Talvez três metros quadrados, duas pequenas janelas com grade
no alto de uma parede. Havia canos de metal no canto oposto ao arquivo e
sons de fora pareciam viajar através deles: vozes distorcidas, ordens
berradas, ruídos batidos e chocalhados. Dennis havia colado dois pôsteres
nas suas paredes.
Um deles mostrava a vastidão sombria de Glencoe — Um lugar onde
nunca estivera, apesar de prometer regularmente a si mesmo que iria — e o
outro era uma fotografia de uma das aldeias pesqueiras de East Neuk tirada
da amurada do porto.
Dennis gostava dos dois igualmente. Olhando para um ou para o outro,
podia se transportar para os ermos das Highlands ou para o paraíso costeiro,
proporcionando uma brevíssima pausa dos sons e cheiros da Prisão de Sua
Majestade em Edimburgo.
Os cheiros eram piores pela manhã: celas sem ar sendo abertas, a ralé se
coçando e arrotando enquanto se arrastava para o café-damanhã. Raramente
tinha contato — contato físico — com estes homens, mas sentia que os
conhecia. Os conhecia através de suas cartas, cheias de frases canhestras e
erros de ortografia, mas eloquentes apesar de tudo, e às vezes até pungentes.
Dê às crianças um grande abraço por mim... Tente pensar só nos bons
momentos... Cada dia sem te ver é um pouco de mim que se acaba...
Quando eu sair, vamos recomeçar a vida...
Sair: uma porção das cartas falava desta ocasião mágica, quando erros
do passado seriam apagados e novos começos se tornariam possíveis. Até
veteranos ratos de prisão, que passavam mais tempo de sua vida dentro do
que fora, prometiam que nunca sairiam da linha de novo, que fariam tudo
certo. Vou sentir falta do nosso aniversário de novo, Jean, mas você nunca
está longe dos meus pensamentos... Pequeno consolo para as esposas como
Jean, cujas próprias cartas chegavam a dez ou doze lados de cada folha de
papel, recheadas das agonias diárias da vida sem um arrimo de família.
Johnny está ficando incontrolável, Tam. O médico diz que é isso que está
contribuindo para a minha condição. Ele precisa de um pai, mas tudo o que
eu ganho são mais comprimidos.
Jean e Tam: suas vidas separadas tornaram-se uma espécie de novela
para Dennis. Toda semana eles trocavam cartas, embora Jean visitasse o
marido quase regularmente.
Às vezes Dennis observava as visitantes quando chegavam, tentando
identificar as autoras das cartas. Então as estudava à medida que se dirigiam
para esta ou aquela mesa, ajudando-o a casar o presidiário com a sua
correspondente. Tam e Jean sempre apertavam as mãos, nunca se
abraçavam ou beijavam, parecendo quase constrangidos com o
comportamento menos reprimido dos casais ao seu redor.
Dennis raramente censurava suas cartas, mesmo nas raras ocasiões em
que algo controverso surgia. Sua própria mulher o havia deixado há uma
década. Ainda mantinha algumas fotos emolduradas dela sobre a lareira.
Numa delas, ela segurava sua mão, sorrindo para a câmara. Podia estar
vendo TV sentado com uma lata de cerveja na mão e subitamente seus
olhos começavam a viajar até aquela foto. Como Glencoe e o porto, ela o
levava a um lugar diferente. Então se levantava e caminhava até a mesa de
jantar, onde havia deixado as cartas.
Não levava toda correspondência para casa, só aquelas cartas sobre
relacionamentos que o interessavam. Comprou uma máquina de fax que
fazia as vezes de copiadora — mais barata, o vendedor da loja lhe
informou, do que comprar uma fotocopiadora. Pegava as cartas da sua
sacola de couro e as passava na máquina. Na manhã seguinte, os originais
voltavam ao escritório consigo. Sabia que estava fazendo algo que não
devia, sabia que o diretor ficaria zangado com ele, ou pelo menos chocado.
Mas Dennis não podia ver maldade nenhuma no que fazia. Ninguém mais
iria ler aquelas cartas. Eram só para ele.
Um prisioneiro recente estava se revelando um espécime intrigante.
Escrevia duas vezes por dia — obviamente tinha dinheiro bastante para os
selos. Sua namorada chamava-se Jemma e ficou grávida mas perdeu o bebê.
Tommy preocupava-se que a culpa fosse sua, que o choque da condenação
tivesse provocado um aborto nela. Dennis gostaria de conhecer Tommy,
sabia que poderia dizer algumas coisas tranquilizadoras ao garoto.
Mas não o fez. Não queria se envolver. Outro prisioneiro, primeiro
nome de Morris, interessara Dennis poucos meses antes. Morris escrevia
uma ou duas cartas por semana — ardorosas cartas de amor. Sempre,
parecia a Dennis, para uma mulher diferente. Morris fora apontado para ele
na fila do café-damanhã. O homem não parecia nada especial: um espécime
magricela com um sorriso torto.
— Recebe visitantes? — Dennis perguntou ao guarda da prisão.
— Está brincando, não é?
E Dennis apenas dera de ombros, intrigado. As mulheres às quais
Morris escrevia moravam na cidade. Não havia motivo para que não o
visitassem. Seu endereço e numero de prisioneiro estavam escritos no topo
de cada carta.
— Sr. Denny?
— Sim — Dennis falou. — E o senhor deve ser o Sr. Appleby? —
Entre, por favor.
O Sr. Appleby era um homem baixo e obeso no final da casa dos
sessenta anos, elegantemente vestido e com um ar profissional. Fez Dennis
acrescentar seu nome numa lista na mesa no estreito vestíbulo, depois
perguntou se ele precisava de informações impressas.
Dennis respondeu que sim e recebeu uma brochura: quatro páginas em
cores da casa, com detalhes de acomodação e terreno.
— Gostaria de uma visita guiada ou prefere olhar sozinho?
— Pode me deixar à vontade — Dennis respondeu.
— Quaisquer perguntas que queira fazer, estarei aqui — e o Sr. Appleby
sentou-se numa poltrona enquanto Dennis fingia estudar o folheto. Entrou
na sala de estar, verificou o que não era visível do vestíbulo. Então
examinou. Os móveis eram novos mas berrantes: sofá laranja vivo, uma TV
grande, uma estante de coquetel ainda maior. Revistas e jornais estavam
enfiados num porta-revistas.
Dennis notou que algumas eram revistas de palavras cruzadas, portanto
talvez Blaine não estivesse de todo enganado sobre Selina. Não havia fotos
à vista, nenhuma lembrança de férias no exterior. Uma mistura de
ornamentos, parecendo comprados nas grandes lojas de design: vasos
esguios, pesos de papel, castiçais. Voltando ao vestíbulo, sorriu para o Sr.
Appleby antes de se dirigir à cozinha.
Uma parede fora aberta e portas de vidros conduziam a uma sala de
jantar com portas francesas dando para o jardim dos fundos. "unidades de
cozinha projetadas por Nijinski", dizia a brochura, acrescentando que todos
os utensílios, cortinas e revestimentos do piso estavam incluídos na venda.
Aonde quer que Selina fosse, não ia levar nada daquilo consigo.
Os dois quartos finais do térreo eram um guarda-roupas/toalete
entulhado e o que era descrito como "Quarto de Dormir 4", mas atualmente
servia de depósito: caixas de papelão, cabideiros com roupas de mulher.
Dennis correu a mão por um dos vestidos, esfregando a barra entre o
indicador e o polegar. Então apertou o nariz contra o tecido, sentindo um
leve traço do seu perfume.
No andar de cima, havia três quartos de dormir depois da escadaria, o
"principal" destacando "en suite by Ballard". Era de longe o maior de todos
e o único usado como quarto de dormir. Dennis abriu as gavetas, tocando
nas roupas dela. Abriu o guarda-roupas, inebriou-se com a visão de seus
vários vestidos, saias e blusas. Havia mais roupas de Blaine, também,
naturalmente; alguns ternos de aparência cara, camisas listradas com as
abotoaduras já colocadas.
Ela os jogaria fora antes de partir?, Dennis se perguntava.
Os outros quartos pareciam ser os escritórios "dele" e "dela". No dele:
estantes de livros — principalmente romances de crime e guerra, mais
biografias esportivas — uma mesa coberta de papelada e um centro de
musica com álbuns de Glenn Campbell, Tony Bennett e outros.
O escritório de Selina era algo diferente: mais revistas de palavras
cruzadas, mas tudo guardado em ordem. Havia uma máquina de tricotar
sem uso num canto, uma cadeira de balanço no outro. Dennis tirou um
álbum de fotografias de uma estante e o folheou, parando nas férias na
praia, Selina num biquíni cor-de-rosa, um sorriso tímido para a câmara.
Dennis olhou para o corredor, ouviu o Sr. Appleby abafar um espirro no
andar de baixo e tirou uma das fotos, enfiando-a no bolso. Ao descer as
escadas, lia a brochura de novo.
— Uma agradável residência familiar — comentou o Sr. Appleby.
— Absolutamente.
— E a preço fixo. O senhor vai ter de ser rápido. Tenho certeza de que
estará vendida até amanhã às quatro horas.
— Acha que sim?
— Tenho certeza.
— Bem, vou pensar — disse Dennis, percebendo que sua mão
repousava no bolso da jaqueta.
— Pense bem, Sr. Denny — disse o seu guia, abrindo a porta para ele.
Sabe, Paul, não há outra saída para mim, internamente, tenho a alma
ligada a você.
E, embutida, a partir da quarta palavra, a palavra "hospital". Dennis
olhou para o seu trabalho, o trabalho de várias horas. Muitas das cartas não
continham mensagens ocultas. Aquelas que as continham as escondiam em
passagens incitantes, presumivelmente para impedir que as pessoas as
notassem porque — como acontecera com Dennis — elas ficariam
ocupadas lendo e relendo as passagens picantes. Ou em frases do dia-a-dia.
Ajudando titia a querer um espaço com a rede da Irene ao canto
ombreado.
Enquanto Dennis se preocupava em saber quem era essa tia e qual o seu
papel na história, Selina passava outra mensagem: "ataque cardíaco".
Ela o fizera de trouxa.
Nunca suspeitou de nada.
A cada hora eu infernizo o seu Fred. Um nirvana de obrigações safadas.
O bruto resolveu infernizar gratuitamente a Denise amiga!
"Achei os fundos. Obrigada."
Achou o quê? A grana, é claro: outro rolo do dinheiro vivo de Blaine.
Ele revelava a pista para ela pouco a pouco, garantindo que ela não se
mandasse, ou não detonasse o dinheiro todo de vez. Suas cartas para ela
continham mensagens indicando onde o dinheiro estava escondido.
Pequenos montículos espalhados por toda a casa. As cartas de Blaine eram
mais desajeitadas que as de Selina. Talvez Dennis pudesse ter encontrado a
grana, se não estivesse mais interessado nela.
Caído por ela. Aquelas fotos... todos os detalhes sensuais... estava tudo
ali para impedir que enxergasse o código.
E agora ela se fora. Realmente partira. Terminara o jogo, deixara de
jogar com ele. Teria de voltar para Jean e Tam e todos os outros
escrevinhadores, de volta ao mundo real.
Ou isso, ou tentar seguir a trajetória dela. O jeito como Selina sorrira
para ele... quase em cumplicidade, como se sentisse prazer no papel dele
nesta charada.
Será que ela mandaria outra carta para ele, desta vez? E, se o fizesse,
partiria ele atrás dela, solucionando os enigmas ao longo do caminho? Tudo
o que podia fazer agora era esperar.
***
Terceiro
Jay Mclnerney
***
O último beijo
S. J. Rozan
***
A onda sorrateira
Anne Perry
***
Louly e Bonitinho
Elmore Leonard
Aqui vão algumas datas na vida de Louly Ring, desde 1912, o ano em
que ela nasceu em Tulsa, Oklahoma, até 1931, quando fugiu de casa para
conhecer Joe Young, depois que ele foi libertado da Penitenciária Estadual
do Missouri.
Em 1918, seu pai, empregado de um curral temporário, entrou para o
Corpo de Fuzileiros dos EuA e foi morto no Bois de Belleau durante a
Guerra Mundial. Sua mãe, chorando enquanto segurava a carta, disse a
Louly que era uma floresta na França.
Em 1920 a mãe se casou com um batista empedernido chamado Otis
Bender e elas foram morar na fazenda de algodão dele perto de Sallisaw, ao
sul de Tulsa, nas proximidades das Cookson Hills. Quando Louly tinha 12
anos sua mãe estava com dois filhos de Otis e ele punha Louly para colher
algodão nos campos. Ele era a única pessoa no mundo que a chamava pelo
nome de batismo, Louise. Ela odiava colher algodão, mas a mãe não dizia
nada a Otis. Otis acreditava que, quando você tem idade suficiente para
trabalhar, trabalhava. Isso significava que Louly parou de estudar na sexta
série.
Em 1924, naquele verão, foram ao casamento de sua prima Ruby em
Bixby. Ruby tinha 17 anos, o rapaz com quem se casou, Charley Floyd, 20.
Ruby era morena mas bonita, mostrando o sangue Cherokee pelo lado da
mãe. Por causa da diferença de idades, Louly e Ruby não tinham nada a
dizer uma à outra. Charley a chamava de garotinha, punha a mão na sua
cabeça e desgrenhava seu cabelo curto meio avermelhado, herdado da mãe.
Disse que seus olhos castanhos eram os maiores que ele já vira numa
menininha.
Em 1925 ela começou a ler sobre Charles Arthur Floyd no jornal: como
ele e dois outros sujeitos tinham ido a St. Louis e roubado 11.500 dólares
no escritório de pagamento da Kroger Food. Foram apanhados em Sallisaw
dirigindo um Studebaker novo em folha que compraram em Ft. Smith,
Arkansas. O tesoureiro da Kroger Food identificou Charley dizendo:
— É ele, o bonitinho com bochechas de maçã. Os jornais adoraram isso
e a partir de então se referiram a Charley como Floyd Bonitinho.
Louly se lembrava dele, da época do casamento, como um rapaz bonito
com cabelos ondulados, mas meio amedrontador pelo modo como olhava a
gente — sem ter certeza do que ele estava pensando. Apostava que ele
odiava ser chamado de Bonitinho. Olhando a foto cortada do jornal, Louly
sentiu um início de paixonite por ele.
Em 1929, enquanto ele ainda estava na penitenciária, Ruby se divorciou
argumentando negligência e se casou com um homem do Kansas. Louly
achou isso terrível — Ruby trair Charley desse modo.
— Ruby não acha que ele vá tomar jeito — disse sua mãe. — Ela
precisa de um marido tanto quanto eu precisei, para aliviar os fardos da
vida, ter um pai para seu menininho Dempsey. — Nascido em dezembro de
1924 e que recebeu esse nome por causa do campeão mundial de boxe
peso-pesado.
Agora que Charley estava divorciado, Louly queria escrever para ele e
demonstrar simpatia, mas não sabia qual de seus nomes usar. Tinha ouvido
os amigos o chamarem de Choc, porque ele gostava de cerveja Choctaw,
sua bebida predileta quando era adolescente e percorria Oklahoma e Kansas
com turmas de trabalhadores na colheita.
Sua mãe disse que foi então que Charley começou a andar com más
companhias, "aqueles vagabundos que ele conheceu na época da colheita",
e mais tarde trabalhando em campos de petróleo.
Louly começou a carta com "Querido Charley" e disse que achava uma
pena Ruby se divorciar enquanto ele ainda estava na prisão, sem ter
coragem de esperar até a saída. O que mais queria saber: "Você se lembra
de mim, do casamento?" Enfiou uma foto sua usando roupa de banho,
parada de lado e sorrindo para a máquina fotográfica por cima do ombro.
Desse modo seus seios de 14 anos, ainda chegando, eram vistos de perfil.
Charley respondeu que claro que lembrava dela, "a menininha de
grandes olhos castanhos". Dizendo: "Saio em março e vou para Kansas City
ver o que dá para fazer.
Dei seu endereço a um colega daqui, chamado Joe Young, que nós
chamamos de Booger, porque é engraçado. Ele é de Okmulgee mas tem de
cumprir mais um ano nessa lata de lixo, e gostaria de se corresponder com
uma amiga bonita como você."
Besteira. Mas então Joe Young lhe escreveu uma carta com uma foto
dele tirada no pátio, sem camisa, um rapagão bem bonito com orelhas
grandes e cabelo meio louro.
Disse que mantinha a foto dela, em roupa de banho, na parede ao lado
de sua prateleira, para olhá-la antes de dormir e sonhar com ela a noite toda.
Jamais assinava as cartas como Booger, sempre "Com amor, seu Joe
Young".
Assim que estavam trocando cartas ela contou como odiava colher
algodão, arrastar aquele saco de brim pelas fileiras de plantas o dia inteiro,
no calor e no pó, as mãos em carne viva de puxar os tufos dos galhos, já que
depois de um tempo as luvas não ajudavam nada.
Joe disse em sua carta: "O que você é, uma escrava negra? Se não gosta
de colher algodão, saia daí e fuja. Foi isso que eu fiz." Logo depois ele disse
numa carta: "Vou ser solto no próximo verão. Por que não planeja encontrar
comigo para nós ficarmos juntos?"
Louly disse que estava doida para visitar Kansas City e St. Louis,
imaginando se veria Charley de novo. Perguntou a Joe por que estava preso,
e ele escreveu de volta dizendo: "Querida, sou ladrão de banco, que nem o
Choc."
Ela estivera lendo mais histórias sobre Floyd Bonitinho. Ele havia
retornado a Akins, sua cidade natal, para o enterro do pai — Akins fica a
apenas onze quilômetros de Sallisaw — o pai foi morto por um vizinho
durante uma briga por causa de uma pilha de madeira.
Quando o vizinho desapareceu houve pessoas dizendo que Bonitinho o
havia matado. Onze quilômetros, e ela só ficou sabendo depois.
A foto dele saiu de novo. FLOYD BONITINHO PRESO EM AKRON
por assalto a banco. Condenado a quinze anos na Penitenciária Estadual de
Ohio. Agora ela nunca mais iria vê-lo, mas pelo menos poderia começar a
escrever de novo.
Algumas semanas depois outra foto. FLOYD BONITINHO ESCAPA A
CAMINHO DA PRISÃO. Quebrou uma janela do banheiro e pulou do
trem. Quando conseguiram parar, ele já havia sumido.
Simplesmente rastreá-lo era empolgante, Louly se arrepiava e se
emocionava ao saber que todo mundo estava lendo sobre esse famoso fora-
da-lei com quem ela era aparentada — por casamento, mas não por sangue
—, esse facínora que gostava de seus olhos castanhos e tinha desgrenhado
seu cabelo quando ela era pequena.
Agora outra foto. FLOYD BONITINHO EM TIROTEIO COM A
POLÍCIA. Diante de uma barbearia em Bowling Green, Ohio, e conseguiu
fugir. Estava lá com uma mulher chamada Juanita — Louly não gostou
disso.
Joe Young escreveu dizendo: "Aposto que Choc está acabado em Ohio e
nunca mais vai voltar para lá." Mas o motivo principal para ter escrito foi
dizer: "Vou ser solto no fim de agosto. Logo avisarei onde você pode me
encontrar."
Durante os invernos Louly estivera trabalhando em meio expediente na
mercearia Harkrider's, em Sallisaw, ganhando seis dólares por semana.
Tinha de dar cinco a Otis, e o sujeito nunca agradecia, deixando um dólar
para colocar na poupança da fuga.
Desde o inverno até o outono seguinte, trabalhando na loja quase seis
meses por ano, não havia economizado muito, mas mesmo assim iria. Podia
ter a aparência tímida e o cabelo ruivo da mãe, mas possuía a coragem e a
decisão do pai, morto em combate atacando um ninho de metralhadora
alemão naquela floresta da França.
No fim de outubro, quem foi que entrou naquela mercearia, senão Joe
Young? Louly o reconheceu, mesmo usando terno, e ele a reconheceu, rindo
enquanto ia até o balcão, a camisa aberta no colarinho.
— Bom, eu saí — disse ele. — Você já saiu há dois meses, não foi?
— Estive roubando bancos. Eu e Choc.
Louly pensou que tinha de ir ao banheiro, com a ânsia invadindo sua
virilha e depois sumindo. Deu-se alguns instantes para se recompor e agir
como se a menção a Choc não significasse nada especial, Joe Young
encarando-a com seu riso, dando-lhe a sensação de que era um completo
idiota. Algum outro prisioneiro devia ter escrito as cartas para ele. Disse de
modo casual:
— Ah, o Charley está aqui com você?
— Está por aí — respondeu Joe Young, olhando para a porta. — Está
pronta? A gente precisa ir.
— Gosto desse seu terno — disse ela, dando-se tempo para pensar. As
pontas do colarinho da camisa dele se abriam até os ombros, o cabelo
comprido em cima mas baixinho dos lados, as orelhas se projetando, Joe
Young rindo como se essa fosse sua expressão usual de pateta.
— Ainda não estou pronta. Não estou com o dinheiro da fuga.
— Quanto você tem?
— Trinta e oito dólares.
— Meu Deus, trabalhando dois anos aqui?
— Eu disse, Otis pega a maior parte do pagamento.
— Se você quiser eu quebro a cabeça dele.
— Eu não me importaria. Mas o negócio é que eu não vou embora sem
meu dinheiro.
Joe Young olhou para a porta enquanto punha a mão no bolso, dizendo:
— Garotinha, eu pago sua viagem. Você não vai precisar dos trinta e
oito dólares.
Garotinha — ela era uns cinco centímetros mais alta do que ele, mesmo
com as gastas botas de caubói. Agora Louly estava balançando a cabeça.
— Otis comprou um Roadster Modelo A com meu dinheiro, pagando
vinte por mês.
— Quer roubar o carro dele?
— É meu, não é, se ele está usando meu dinheiro?
Louly tinha decidido e Joe Young estava ansioso para sair dali. O dia do
pagamento estava perto, por isso iriam se encontrar em primeiro de
novembro — não, no dia dois — no hotel Georgian em Henryetta, no café,
por volta do meio-dia.
Na véspera de ir embora Louly disse à mãe que estava doente. Em vez
de trabalhar, preparou suas coisas e usou o ferro de enrolar no cabelo. No
dia seguinte, enquanto a mãe pendurava a roupa lavada, os dois meninos na
escola e Otis no campo, Louly empurrou o Ford Roadster para fora do
telheiro e o dirigiu até Sallisaw para pegar um maço de Lucky Strike para a
viagem. Adorava fumar e fazia isso com os garotos, mas nunca precisara
comprar cigarros. Quando os garotos queriam levá-la para o mato ela
perguntava:
— Você tem algum Lucky? um maço inteiro? O filho do vendedor, um
de seus namorados, deu-lhe um maço de graça e perguntou onde ela havia
estado no dia anterior. Bancou o maroto, dizendo:
— Você vive falando do Floyd Bonitinho. Fiquei imaginando se ele
passou na sua casa.
Eles gostavam de provocá-la falando do Bonitinho. Louly, sem prestar
muita atenção, disse:
— Eu digo, quando ele passar. — Mas então viu que o garoto estava
para dizer alguma coisa.
— O motivo para eu perguntar é que ele esteve aqui na cidade ontem, o
Floyd Bonitinho.
— É? — perguntou ela, agora com cuidado. O garoto se demorou, e foi
difícil não agarrá-lo pela frente da camisa.
— É, ele trouxe a família de Akins, a mãe, duas irmãs, umas outras
pessoas, para que pudessem ver enquanto ele roubava o banco. O avô ficou
olhando do campo do outro lado da rua. Bob Riggs, o escriturário do banco,
disse que Bonitinho estava com uma metralhadora, mas que não atirou em
ninguém. Ele saiu do banco com dois mil quinhentos e trinta e um dólares,
ele e outros dois caras. Deu um pouco de dinheiro aos parentes e, pelo que
disseram, a qualquer um que ele achasse que não via há um tempo, todo
mundo rindo para ele. Bonitinho mandou Bob Riggs ir em pé no estribo do
carro até o fim da cidade e depois soltou ele.
Esta era a segunda vez em que Charley estivera perto: primeiro quando
seu pai foi morto há apenas onze quilômetros de distância, e agora aqui
mesmo em Sallisaw, todo tipo de gente o viu, droga, menos ela. Ontem
mesmo...
Charley sabia que ela morava em Sallisaw. Louly ficou imaginando se
ele a procurou na multidão que olhava.
Também tinha de pensar: se ela estivesse aqui, será que ele a
reconheceria? E apostou que sim.
Disse ao namorado da loja:
— Se Charley ouvir você chamando ele de Bonitinho vai vir aqui
comprar um maço de Lucky, que é o que ele sempre fuma, e depois mata
você.
O Georgian era o maior hotel que Louly já vira. Enquanto chegava no
Modelo A estava pensando que aqueles ladrões de bancos sabiam viver
bem.
Parou na frente e um homem de cor, com uniforme de casaca verde com
botões dourados e quepe, veio abrir a porta — e viu Joe Young na calçada
sinalizando para o sujeito se afastar, dizendo enquanto entrava no carro:
— Meu Deus, você roubou ele, não foi? Meu Deus, quantos anos você
tem, para andar por aí roubando carros?
— Quantos anos a gente precisa ter? Ele lhe disse para ir em frente.
— Vocês não estão hospedados no hotel?
— Estou numa pensão de turistas.
— Charley está lá?
— Está por aí, em algum lugar.
— Bem, ele esteve em Sallisaw ontem — agora Louly parecia furiosa
—, se é isso que você chama de por aí. — Pela expressão de Joe
Young, ela estava dizendo uma coisa que ele não sabia. — Achei que
você fazia parte da quadrilha dele.
— Ele está com um cara mais velho chamado Birdwell. Eu me junto ao
Choc quando sinto vontade.
Louly teve quase certeza de que Joe Young estava mentindo.
— Eu vou ver Charley ou não?
— Ele vai voltar, não preocupe sua cabeça com isso. Nós temos esse
carro, não vou ter de roubar um. — Agora Joe Young estava de bom humor.
— Para que a gente precisa do Choc? — Rindo de perto, no carro. —
Temos um ao outro.
Isso disse a ela o que esperar. Assim que chegaram à pensão de turistas
e estavam no nº7, que parecia uma casinha de madeira de um cômodo, só
que precisava de pintura, Joe Young tirou o casaco e ela viu a Colt
automática com cabo de madrepérola enfiada na calça. Ele a colocou na
penteadeira perto de um quarto de garrafa de uísque e dois copos, e serviu
uma dose para cada um, a dele maior do que a dela. Louly ficou de pé,
olhando, até que ele disse para tirar o casaco, e quando ela fez isso Joe
Young disse para tirar o vestido. Agora ela estava de sutiã e calcinha
branca. Joe Young olhou-a de cima a baixo antes de entregar a bebida
menor e baterem os copos.
— Ao nosso futuro.
— Fazendo o quê? — perguntou Louly, vendo a diversão nos olhos
dele.
Joe Young pôs o copo na penteadeira, tirou dois revólveres .38 da
gaveta e lhe ofereceu um. Ela pegou-o, grande e pesado na mão, e disse:
— É...? — Você sabe como roubar um carro, e eu admiro isso. Mas
aposto que nunca assaltou um lugar usando uma arma.
— É isso que vamos fazer?
— A gente começa com um posto de gasolina e eu treino você até
chegar a um banco. Aposto que também nunca esteve na cama com um
homem crescido.
Louly sentiu vontade de dizer que era maior do que ele, mais alta, pelo
menos, mas não disse. Esta era uma nova experiência, diferente do que
acontecia com os garotos de sua idade, no mato, e queria ver como era.
Bem, ele grunhiu e foi rude, respirava com força pelo nariz e cheirava a
tônico capilar Lucky Tiger, mas não era muito diferente dos garotos. Louly
chegou a gostar antes que ele terminasse e bateu nas costas dele com os
dedos ásperos de colher algodão, até ele começar a respirar tranquilo de
novo. Assim que ele rolou de cima, ela tirou sua bolsa de água quente que
havia trazido e foi para o banheiro, a voz de Joe Young seguindo-a com um
"Eeeeepa..." Depois dizendo:
— Sabe o que você é agora, garotinha? É o que chamam de mulher de
gângster.
Joe Young dormiu um tempo, acordou ainda idiotizado e quis alguma
coisa para comer. Por isso foram ao Purity; Joe disse que era o melhor lugar
em Henryetta.
À mesa, Louly disse:
— Charley Floyd veio aqui uma vez. As pessoas descobriram que ele
estava na cidade e todo mundo ficou em casa.
— Como sabe disso?
— Sei tudo que já foi escrito sobre ele, e algumas coisas que só foram
contadas.
— Onde ele fica em Kansas City?
— Na pensão da Mãe Ash na Holmes Street.
— Com quem ele ia para Ohio?
— Com a gangue de Jim Bradley.
Joe Young pegou o café, no qual havia derramado uma dose de uísque.
Disse:
— Você vai começar a ler sobre mim, neném. Isso a fez lembrar que não
sabia qual era a idade de Joe Young, e aproveitou para perguntar.
— Faço trinta no mês que vem, nasci num dia de Natal, que nem o
menino Jesus.
Louly sorriu. Não pôde evitar ver Joe Young deitado numa manjedoura
com o menino Jesus, os três reis magos olhando para ele de um modo
engraçado. Perguntou quantas vezes a foto dele havia saído no jornal.
— Quando fui mandado para Jeff City saiu um monte de fotos minhas.
Quero dizer, quantas vezes diferentes, por outros assaltos?
Louly ficou olhando-o se recostar enquanto a garçonete vinha com o
jantar e Joe Young lhe deu um tapinha na bunda quando ela virou de costas
para a mesa. A garçonete disse:
— Atrevido — e fingiu surpresa de um modo maroto.
Louly estava pronta para dizer que Charley Floyd teve a foto publicada
51 vezes no jornal de Sallisaw no ano anterior, uma para cada um dos 51
bancos assaltados em Oklahoma, todos afirmando que o assaltante era
Charley. Mas, se contasse, Joe Young diria que Charley não poderia ter
roubado tantos, já que estava em Ohio em parte de 1931. O que era verdade.
Uma estimativa dizia que ele poderia ter roubado trinta e oito bancos, mas
até mesmo isso poderia fazer Joe Young ficar ciumento e irritado, por isso
ela deixou para lá e os dois comeram seus filés de frango fritos.
Joe Young lhe disse para pagar a conta, um dólar e sessenta por tudo,
inclusive torta de ruibarbo na sobremesa, com seu dinheiro da fuga.
Voltaram à pensão de turistas e ele comeu-a de novo de barriga cheia,
respirando pelo nariz, e ela viu que ser mulher de gângster não era um mar
de rosas.
De manhã partiram para leste pela auto-estrada 40 em direção às
montanhas Cookson, Joe Young dirigindo o Modelo A com o cotovelo fora
da janela, Louly apertando o casaco contra o corpo, a gola levantada por
causa do vento, Joe Young falando um bocado, dizendo que sabia onde
Choc gostava de se esconder.
Iriam até Muskogee, atravessariam o Arkansas e desceriam pelo rio até
Braggs.
— Sei que o cara gosta daquela região ao redor de Braggs. Pelo
caminho podia assaltar um posto de gasolina, mostrar a Louly como isso era
feito.
Ao sair de Henryetta ela disse:
— Ali tem um.
— Tem carros demais — respondeu ele.
Cinquenta quilômetros depois, saindo de Checoah, virando para o norte
em direção a Muskogee, Louly olhou para trás e disse:
— O que há de errado com aquele posto Texaco?
— Tem alguma coisa que eu não gosto nele. Você precisa ter o
sentimento para esse trabalho.
— Escolha você — disse Louly.
Ela estava com o .38, que ele lhe dera, numa bolsa de crochê cor-de-
rosa e preta que sua mãe tinha feito.
Chegaram a Summit e se esgueiraram pela cidade, os dois procurando,
Louly esperando que ele escolhesse um lugar para assaltar. Estava ficando
empolgada. Chegaram ao outro lado da cidade e Joe Young disse:
— Ali está o nosso lugar. Podemos encher o tanque e tomar uma xícara
de café.
— Vamos assaltar?
— Vamos dar uma olhada. — Isso aí é um pardieiro.
Duas bombas de gasolina na frente de um lugar caindo aos pedaços,
com a tinta descascando, uma placa que dizia COMIDA e informava que a
sopa custava dez centavos e um hamburguer, cinco.
Entraram enquanto um velho encurvado enchia o tanque deles. Joe
Young levou sua garrafa de uísque, quase no final, e a colocou no balcão. A
mulher atrás do balcão era pele e ossos, gasta, afastando fiapos de cabelo do
rosto. Pôs xícaras na frente deles e Joe Young derramou na sua o que
restava do uísque.
Louly não queria roubar aquela mulher. A mulher disse:
— Acho que a garrafa secou.
Joe Young estava se concentrando em pingar as últimas gotas.
— Pode me ajudar?
Agora a mulher estava servindo o café.
— Quer birita falsificada? Ou posso lhe dar Kentucky por três dólares.
— Me dá duas — disse Joe Young sacando seu Colt, colocando-o no
balcão. — E o que houver no caixa.
Louly não queria roubar aquela mulher. Estava pensando que não era
preciso roubar uma pessoa só porque ela tinha dinheiro, não é?
— Dane-se, moço — respondeu a mulher.
Joe Young pegou a arma e rodeou o balcão para abrir a caixa
registradora na outra extremidade. Enquanto tirava as notas, disse à mulher:
— Onde você guarda o dinheiro do uísque?
— Ali — respondeu ela, com desespero na voz.
— Quatorze dólares — disse ele pegando o dinheiro, e se virou para
Louly. — Aponte sua arma para ela, para ela não se mexer. Se o velhote
entrar, aponte para ele também. — Joe Young passou por uma porta
entrando no que parecia um escritório.
A mulher falou com Louly, que agora lhe apontava a arma tirada da
bolsa de crochê.
— Por que você está com esse vagabundo? Você parece uma garota de
boa família, tem uma bolsa bonita... Tem alguma coisa errada com você?
Meu Deus, não consegue coisa melhor do que ele?
— Sabe quem é meu amigo? — disse Louly. — Charley Floyd, se é que
você sabe de quem estou falando. Ele se casou com minha prima Ruby. —
A mulher balançou a cabeça e Louly disse: — Floyd Bonitinho — e sentiu
vontade de morder a língua.
Agora a mulher pareceu sorrir, mostrando linhas pretas entre os dentes
que possuía.
— Ele veio aqui uma vez. Eu preparei o café-da-manhã e ele me pagou
dois dólares. Já ouviu falar nisso? Eu cobro vinte e cinco centavos por dois
ovos, quatro tiras de bacon, torrada e todo o café que você quiser, e ele me
deu dois dólares.
— Quando foi isso?
A mulher olhou para além de Louly, tentando ver quando tinha sido, e
disse:
— Vinte e nove, depois que o pai dele foi morto naquela época.
Pegaram os quatorze da caixa e vinte e sete dólares em dinheiro de
uísque, dos fundos, Joe Young falando de novo em ir para Muskogee,
dizendo a Louly que seu instinto o mandava ir para lá. Como é que esse
lugar ainda funcionava, com dois grandes postos a apenas alguns
quarteirões de distância? Por isso tinha levado a garrafa, para ver o que ela
rendia.
— Ouviu o que ela disse? "Dane-se", mas me chamou de "moço".
— Charley tomou café-da-manhã ali uma vez. E pagou dois dólares.
— Estava se mostrando — disse Joe Young. Ele decidiu que ficariam
em Muskogee para descansar, em vez de ir a Braggs.
— É, a gente deve ter feito uns bons oitenta quilômetros hoje. Joe
Young disse para ela não bancar a engraçadinha.
— Vou colocar você numa pensão de turistas e procurar uns caras que
eu conheço. Descobrir onde Choc está.
Ela não acreditou, mas de que adiantaria discutir?
Agora era fim de tarde, o sol baixando.
O homem que bateu à porta — ela podia vê-lo pela parte de vidro — era
alto e magro, com temo escuro, um sujeito novo bem vestido, segurando o
chapéu junto à perna.
Ela achou que devia ser da polícia, mas não tinha motivo, parada ali,
olhando-o, para não abrir a porta.
Ele disse:
— Moça — e mostrou a identificação e uma estrela num círculo numa
carteira que manteve aberta.
— Sou o subchefe de polícia Carl Webster. Com quem estou falando?
— Sou Louly Ring.
Ele sorriu com dentes bem formados.
— Você é prima da mulher de Floyd Bonitinho, Ruby, não é?
Foi como se jogassem água gelada na sua cara, de tão surpresa que
ficou.
— Como sabe disso?
— Estamos fazendo um livro sobre Bonitinho, anotando conexões, todo
mundo que ele conhece. Você se lembra da última vez em que o viu?
— No casamento, há oito anos.
— E nunca mais? Que tal no outro dia em Sallisaw?
— Não vi. Mas escuta, ele e Ruby se divorciaram.
O subchefe de polícia, Carl Webster, balançou a cabeça.
— Ele foi a Coffeyville e a pegou de volta. Mas você não está sentindo
falta de um automóvel, um Ford Modelo A?
Ela não ouvira nenhuma palavra sobre Charley e Ruby estarem juntos
de novo. Nenhum dos jornais tinha falado dela, só da mulher chamada
Juanita.
— O carro não sumiu, um amigo meu está com ele.
— O carro está no seu nome? — perguntou ele, e recitou o numero da
placa de Oklahoma.
— Eu paguei com o meu salário. Por acaso está no nome do meu
padrasto, Otis Bender.
— Acho que há algum equívoco. Otis diz que o carro foi roubado de sua
propriedade no condado de Sequoyah. Quem é o seu amigo que o pegou
emprestado?
Ela hesitou antes de dizer o nome.
— Quando Joe volta?
— Mais tarde. A não ser que fique com os amigos e se embebede.
— Eu gostaria de falar com ele — disse Carl Webster, e entregou a
Louly um cartão de visitas que tirou do bolso, com uma estrela impressa e
letras que dava para sentir.
— Peça a Joe para me ligar mais tarde, ou amanhã, se ele não vier para
casa. Vocês só estão andando por aí?
— Olhando a paisagem. Toda vez que ela o encarava ele começava a
sorrir. Carl Webster. Louly podia sentir o nome dele embaixo do polegar.
Disse:
— Você está escrevendo um livro sobre Charley Floyd?
— Não um livro de verdade. Estamos coletando os nomes de todo
mundo que ele já conheceu e que poderia querer entregá-lo.
— Você vai me perguntar se eu quereria? Ali estava o sorriso. — Já sei.
Ela gostou do modo como ele apertou sua mão e agradeceu, e o modo como
pôs o chapéu, bem casual, sabendo como dar a inclinação exata.
Joe Young voltou mais ou menos às nove da manhã, fazendo caretas
medonhas ao remexer a boca, querendo tirar algum gosto dali. Entrou no
quarto e tomou um bom gole da garrafa de uísque, depois outro, respirou
fundo, soltou um arroto e pareceu melhor. Disse:
— Não acredito no que a gente armou com aquelas vagabundas ontem à
noite.
— Espera — disse Louly. E contou sobre o subchefe de polícia, e Joe
Young ficou trêmulo e não conseguiu se manter quieto, dizendo:
— Não vou voltar. Cumpri dez anos e jurei a Jesus que nunca mais vou
voltar. — Agora estava olhando pela janela.
Louly quis saber o que Joe e seus amigos tinham feito com as
vagabundas, mas sabia que precisavam sair dali. Tentou dizer que tinham de
sair agora mesmo.
Ele ainda estava bêbado, ou recomeçando, dizendo agora:
— Se vierem atrás de mim, vai ter tiroteio. Vou levar uns sacanas
comigo. — Talvez nem mesmo sabendo que estava imitando Jimmy
Cagney.
— Você só roubou setenta e um dólares.
— Fiz outras coisas no estado de Oklahoma. Se me pegarem vivo, vou
ganhar de quinze anos a perpétua. Juro que não vou voltar.
O que estava acontecendo? Eles estavam circulando à procura de
Charley Floyd — e o que esse imbecil queria era um tiroteio com a lei, e ela
estava ali, nesse quarto, com ele.
— Eles não estão atrás de mim — disse Louly. Sabendo que não podia
falar com ele, no estado em que ele estava. Precisava sair dali, abrir a porta
e fugir. Pegou a bolsa de crochê na penteadeira, começou a ir para a porta e
foi interrompida pelo megafone.
A voz amplificada era alta, dizendo: — JOE YOUNG, SAIA COM AS
MÃOS PARA O ALTO.
O que Joe Young fez foi segurar a pistola Colt na frente do corpo e
começar a disparar pelo vidro da porta. Pessoas do lado de fora atiraram de
volta, estouraram a janela, arrebentaram a porta com os tiros, Louly se
jogou no chão com sua bolsa, até ouvir uma voz gritar pelo megafone:
— CESSAR FOGO!
Louly olhou para cima e viu Joe Young parado junto da cama, agora
com uma arma em cada mão, a Colt e um .38. Disse:
— Joe, você tem de se entregar. Eles vão matar nós dois se você
continuar atirando. Ele nem olhou para ela. Gritou:
— Venham me pegar! — e começou a atirar de novo, com as duas
armas ao mesmo tempo.
A mão de Louly foi até a bolsa de crochê e saiu com o .38 que ele tinha
lhe dado para ajudar a assaltar. Do chão, apoiada nos cotovelos, apontou o
revólver para Joe Young, engatilhou e bam, acertou-o no peito.
Louly se afastou da porta e o subchefe de polícia, Carl Webster, entrou
segurando um revólver. Carl Webster estava olhando para Joe Young
enroscado no chão. Enfiou o revólver no coldre, pegou o .38 com Louly,
cheirou a ponta do cano e a encarou sem dizer nada, antes de se ajoelhar
para ver se Joe Young tinha pulsação. Levantou-se dizendo:
— A Associação de Bancos de Oklahoma quer gente como Joe morta, e
é como ele está. Vão lhe dar uma recompensa de quinhentos dólares por
matar seu amigo.
— Ele não era meu amigo.
— Ontem era. Decida-se.
— Ele roubou o carro e me obrigou a vir junto.
— Contra sua vontade — disse Carl Webster. — Mantenha isso e você
não irá para a cadeia.
— É verdade, Carl — disse Louly mostrando seus grandes olhos
castanhos. — É sim.
***
Má de nascença
Jeffery Deaver
Sleep, my child and peace attend thee, all through the night...*
* "Durma, minha criança, e que a paz esteja contigo durante toda a noite." (N. do T.)
I love you shall be near you, all through the night. Soft the drowsy
hours are creeping. Hill and vale in slumber sleeping.**
** "Eu que a amo estarei ao teu lado, toda a noite. Suaves, as horas sonolentas passam
lentamente. Colinas e vales profundamente adormecidos." (N. do T.)
Liz sentiu uma cãibra no braço direito — aquele que ela nunca curara
adequadamente — e deu-se conta de que ainda segurava o telefone, furiosa
com a notícia que acabara de receber. Que a filha estava a caminho de casa.
A filha com quem não falava havia mais de três anos.
Ela então tremeu, desgostosa. Não, não seria capaz de usar uma arma
contra a filha. Claro que não. A ideia de pôr a menina para dormir para
sempre era inconcebível.
No entanto... e se tivesse de escolher entre a sua vida e a vida da filha?
E se o ódio dentro da filha a fizesse se exceder?
Seria capaz de matar Beth Anne para salvar a própria vida? Nenhuma
mãe deveria ser obrigada a fazer uma escolha dessas. Hesitou longamente,
então fez menção de guardar a arma. Mas um brilho a deteve. Faróis
iluminaram o jardim da frente da casa e a parede da sala de costura ao lado
de Liz com uma luz amarela de olhos de gato.
A mulher olhou novamente para a arma e, em vez de guardála no
armário, deixou-a em uma cômoda perto da porta e a cobriu com um pano
de mesa.
Foi até a sala de estar e olhou através da janela para o carro lá fora,
imóvel, luzes ainda acesas, os limpadores de pára-brisa movendo-se
rapidamente, a filha hesitando em sair; Liz suspeitou que não era o mau
tempo que mantinha a garota lá dentro.
Um longo, longo instante depois, os faróis se apagaram. Bem, pense
positivo, disse Liz para si mesma. Talvez a filha tivesse mudado. Talvez o
motivo da visita fosse se aproximar para se desculpar das traições
cometidas ao longo de todos aqueles anos. Podiam finalmente começar a
trabalhar para ter um relacionamento normal.
No entanto, olhou de volta para a sala de costura, onde a arma
repousava sobre a cômoda, e disse para si mesma: Pegue-a. Guarde-a no
bolso.
A seguir: Não, guarde-a de volta no armário. Liz não fez uma coisa nem
outra. Deixou a arma sobre a cômoda, foi até a porta da frente da casa e a
abriu, sentindo a névoa fria no rosto.
Ela se afastou enquanto a silhueta da jovem se aproximava da porta.
Beth Anne entrou e parou. Fez uma pausa e então fechou a porta atrás de si.
Liz continuou no centro da sala, contorcendo as mãos com nervosismo.
Baixando o capuz do casaco, Beth Anne limpou a chuva do rosto. O
rosto da jovem estava abatido e rosado. Não usava maquiagem. Tinha 28
anos, Liz o sabia, mas parecia mais velha. Agora usava o cabelo curto,
revelando pequenos brincos nas orelhas. Por algum motivo, Liz imaginou
se alguém lhe dera os brincos ou se ela os comprara por conta própria.
— Bem, olá querida.
— Mãe. Uma hesitação, seguida de um breve sorriso desmotivado de
Liz.
— Você costumava me chamar de mamãe.
— É mesmo?
— Sim. Não se lembra?
A filha balançou a cabeça. Mas Liz achou que ela se lembrava e estava
relutante em reconhecer a lembrança. Olhou cuidadosamente para a filha.
Beth Anne voltou-se para a pequena sala de estar e seus olhos pousaram
sobre uma fotografia dela e do pai juntos: estavam nas docas, perto de sua
casa em Michigan.
Liz perguntou:
— Quando me ligou, disse que alguém havia lhe contado que eu estava
aqui. Quem foi?
— Não interessa. Alguém. Você está morando aqui desde... — Sua voz
desapareceu gradualmente.
— Já há alguns anos. Quer beber algo?
— Não.
Liz lembrou-se de ter encontrado algumas cervejas que a garota
escondera quando tinha 16 anos e imaginou se ela continuara a beber e
agora tinha um problema com álcool.
— Chá, então? Café?
— Não. — Soube que me mudei para o Noroeste? — perguntou Beth
Anne.
— Você sempre falou na região, em sair de... bem... sair de Michigan e
vir para cá. Então, depois que você se mudou chegou correspondência para
você. De alguém em Seattle.
Beth Anne meneou a cabeça. Teria feito uma ligeira careta também?
Como se estivesse aborrecida consigo mesma por ter sido displicente e
deixado uma pista de onde estava?
— Mudou-se para Portland para ficar perto de mim?
Liz sorriu.
— Acho que sim. Comecei a procurá-la mas acabei desistindo. — Liz
sentiu as lágrimas aflorarem aos seus olhos enquanto a filha continuava a
examinar a sala. A casa era pequena, sim, mas a mobília, aparelhos
eletrônicos e outros equipamentos eram dos melhores — recompensas pelo
árduo trabalho de Liz em anos recentes. Dois sentimentos competiam
dentro da mulher: esperava que a garota fosse tentada a se reconciliar com a
mãe ao ver quanto dinheiro Liz tinha, mas, ao mesmo tempo, tinha
vergonha da própria opulência. As roupas da filha e suas bijuterias baratas
sugeriam que ela passava por dificuldades.
O silêncio era como o fogo. Queimava a pele e o coração de Liz. Beth
Anne abriu a mão esquerda e a mãe percebeu um minusculo anel de
noivado e uma aliança simples.
As lágrimas agora rolavam de seus olhos.
— Você...?
A jovem seguiu o olhar da mãe até o anel. E meneou a cabeça
afirmativamente.
Liz imaginou que tipo de homem seria o genro. Seria alguém fácil de
lidar como Jim, alguém que pudesse contrabalançar a personalidade difícil
da filha? Ou seria durão? Como a própria Beth Anne?
— Tem filhos? — perguntou Liz.
— Não é da sua conta.
— Trabalha?
— Está perguntando se mudei, mãe?
Liz não queria ouvir a resposta a esta pergunta e continuou rapidamente,
vendendo o seu peixe.
— Eu estava pensando — disse, o desespero crescendo em sua voz —,
em talvez mudar para Seattle. Poderíamos nos ver... Poderíamos até mesmo
trabalhar juntas. Poderíamos ser sócias. Meio a meio. Nos divertiríamos
tanto. Sempre achei que nos daríamos muito bem juntas... Sempre sonhei...
— Você e eu trabalhando juntas, mãe? — Ela olhou para a sala de
costura, apontou para a máquina, as araras de vestidos.
— Essa não é a minha. Nunca foi. Nunca poderia ser. Depois de todos
esses anos, você realmente não compreende, não é mesmo?
As palavras e a frieza com que estas palavras foram ditas respondiam a
pergunta de Liz categoricamente: não, a filha não mudara nem um pouco.
Sua voz recrudesceu.
— Então, por que está aqui? Qual o motivo de sua vinda?
— Creio que sabe, não é?
— Não, Beth Anne, eu não sei. Algum tipo de vingança psicótica? —
Pode-se descrever assim, creio eu. — Voltou a olhar ao redor do quarto. —
Vamos. Liz começou a respirar mais rápido. — Por quê? Tudo o que
fizemos foi por você.
— Diria que fez isso para mim. — Uma arma surgiu na mão da filha e o
buraco negro do cano da arma voltou-se para Liz. — Saia — murmurou.
— Meu Deus! Não! — ela ofegou e a lembrança do tiroteio na joalheria
voltou com toda a força. Seu braço formigou e as lágrimas escorreram por
seu rosto. Lembrou-se da arma na cômoda.
Sleep, my child...
— Não vou a parte alguma! — disse Liz, enxugando os olhos.
— Sim, vai. Saia.
— O que vai fazer? — perguntou desesperada.
— O que deveria ter feito há muito tempo.
Liz apoiou-se em uma cadeira para não cair. A filha percebeu a mão
esquerda da mãe, que se aproximava lentamente do telefone.
— Não! — gritou a jovem. — Afaste-se daí.
Liz olhou desconsolada para o aparelho e fez o que lhe fora ordenado.
— Venha comigo.
— Agora? Na chuva.
A jovem meneou a cabeça.
— Deixe-me pegar um casaco.
— Há um perto da porta.
— Não é quente o bastante.
A jovem hesitou, como se estivesse a ponto de dizer que o calor do
casaco da mãe era irrelevante, considerando o que estava para acontecer.
Mas então concordou.
— Mas não tente usar o telefone. Estou de olho.
Liz entrou no quarto de costura, pegou o casaco azul no qual acabara de
trabalhar. Vestiu-o lentamente, os olhos voltados para o volume da pistola
sob o tecido. Olhou de volta para a sala. A filha olhava para uma fotografia
emoldurada onde se via ela com cerca de 11 ou 12 anos, ao lado da mãe e
do pai.
Rapidamente alcançou a arma. Poderia voltar-se apontando-a para a
filha e gritar que jogasse fora a própria arma.
Mother, I can feel you near me, all through the night... Father, I know
you can hear me, all through the night...*
* "Mãe, posso senti-la junto a mim, a noite inteira... Pai, sei que pode me ouvir, a noite inteira..."
(N. do T.)
Sleep, my child...
***
TÍTULOS DA COLEÇÃO NEGRA: