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Campinas
2017
Difícil papel o de falar de um país onde nunca estive e que pouco conheço. Fato
é que este país, ainda que tão distante, está em nós, sobre nossos corpos, dentro de
nossas casas, em nossas cidades. Em todo lugar se escuta: “a China faz todas as nossas
coisas”, “tudo é feito na China”, “a China afetou nossa indústria”, entre outras
afirmativas de quem tem vivido a entrada massiva de mercadorias produzidas em
fábricas chinesas. Em meu campo de pesquisa da tese de doutorado que desenvolvo no
âmbito do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unicamp, tenho
percorrido alguns setores fabris da indústria têxtil, como confecções e tecelagens, onde
escuto histórias de encomendas perdidas para as fábricas chinesas devido ao preço, de
confecções que pararam de fabricar para terceirizar serviços na China ou que reduziram
os funcionários em mais de 90% nos últimos anos, atribuindo tal acontecimento a uma
soma de fatores que incluem a recente crise econômica que tomou o Brasil e,
principalmente, o crescimento econômico chinês. Há menos de 30 anos vimos pipocar
nos centros das cidades brasileiras as famosas lojas de 1,99 e o crescimento dos
camelódromos, onde se encontram produtos falsificados de todas as maiores marcas do
mundo em meio a mercadorias de “procedência desconhecida”. Na grande maioria das
vezes, ao analisar esses objetos sendo vendidos, podemos ler em suas etiquetas ou
impresso em seus corpos: made in China. Estes produtos chegam à grande maioria das
casas brasileiras.
Esses novos valores têm transformado a China em um dos países com maior
consumo interno de mercadorias, para além de seu já conhecido poder de exportação e
domínio do mercado global. Esta nova noção de consumo está vinculada a uma
aparência de sucesso, um modelo higienista e um comportamento público estimulado
pela própria forma de produção de bens e da necessidade de interação com outros
países, tornando o modo de vida nas cidades chinesas, em certa medida, globalizado.
Essa mudança de comportamento tem sido chamada por alguns autores, como Deborah
Davis, de uma “revolução do consumo” (2000). Essa revolução deixa a impressão de
liberdade, uma vida guiada pela “escolha do consumidor”, uma escolha livre. Segundo
Pun Ngai, o processo de extração da mais-valia é ocultado e reprimido pela valorização
do consumo e ideologias neoliberais de autotransformação e valorização de si. Sendo,
além disso, o consumo o grande representante da democracia e do poder de decisão
individual (Ngai, 2003). Se durante o período Maoísta o consumo foi suprimido em favor
da construção socialista, da infraestrutura industrial da nação e do fortalecimento dos
valores familiares, a partir das reformas de Xiaoping, presencia-se uma enorme
mudança de valores baseada no consumo e a caminho de certa independência da
estrutura familiar.1
1
Pinheiro-Machado cita a famosa história de “um jovem faminto que, nos anos 1960, comprou sete
agulhas e as revendeu de porta em porta, gerando lucro privado. Ele foi preso, acusado de traidor aos
princípios da revolução e reeducado no campo. Hoje é um empresário milionário, exemplo da
prosperidade chinesa” (2013, p.141).
material que atravessa oceanos até chegar aos portos brasileiros começa a nos insinuar
algo em relação a um entendimento controverso do valor das coisas. Ao passo que é a
materialidade que assegura o sucesso do sujeito neoliberal, é também ela que expõe a
incoerência dos modos de conquista dessa materialidade.
Fig. 1: Imagem do bilhete postada no Facebook onde se lê: I slave, Help me (Eu escravo, Me ajude).
Tais fatos têm favorecido a criação de termos e discursos que visam, acima de
tudo, salvar a indústria da Moda dela mesma. Assim, palavras como sustentabilidade,
slow-fashion, qualidade, transparência, trabalho justo, atemporalidade, zero waste e
manualidade foram transformadas em itens de luxo, representando um “nicho de
mercado com grande potencial de crescimento” (WHITEMAN, 2015, p.19) dentro da
indústria têxtil, com o intuito de, não apenas repensar modos de consumo, mas também
de retornar a produção para as cadeias locais, estimulando a economia interna de cada
país.
Este retorno aos modos de produção ditos artesanais, com um tempo mais lento,
ainda que com incidência mínima sobre a produção global de produtos têxteis, é um
reflexo do incômodo que o volume e os modos de tratar materiais têm causado. Porém,
de outra forma, procurar outros modos de produzir e consumir é ainda assumir e buscar
suprir essa necessidade de afirmação de si através do que se pode comprar, é reafirmar
e alimentar a existência do sujeito neoliberal que se consolida na materialidade.
INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de
materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44, jun. 2012.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
71832012000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso: 09 jun. 2017.
LINDER, Alex. Dolce & Gabbana hurts Chinese netizens' feelings with campaign
showcasing 'backward' side of Beijing. Shangai: Shangaiist, 25 abr. 2017. Disponível em:
<http://shanghaiist.com/2017/04/25/dolce-and-gabbana-offends.php>. Acesso: 08 jun.
2017.
WHITEMAN, V. Você tem pressa de que?. In Revista FFWMAG. São Paulo: Lumi 5, 2015,
nº 39, p. 19-23.