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ESPECIAL

Censo de 1872: o retrato do Brasil da escravidão

Por Daniel Mariani, Murilo Roncolato, Rodolfo Almeida e Ariel Tonglet em 27 de junho de 2017

 
 () ()COLAGEM SOBRE LITOGRAFIAS DE ESCRAVOS DE JOHANN MORITZ RUGENDAS (“MALERISCHE REISE IN BRASILIEN” (HTTP://WWW2.SENADO.LEG.BR/BDSF/ITEM/ID/227417), 1835)

O Brasil contava meio século desde a sua independência de Portugal, mas


continuava sem poder dizer, em números, quem era. A prática de se recensear de
tempos em tempos a população era comum entre países tidos como modernos e
consolidados, como Estados Unidos, que contava seus habitantes desde 1790.
Durante muito tempo, o conhecimento sobre o total de brasileiros dependeu de
estimativas grosseiras. Na década de 1870, o governo imperial de D. Pedro 2º vê
o momento adequado e planeja a realização de tal empreitada para finalmente
conhecer e poder mostrar ao mundo um quadro idealmente próximo da
composição populacional do país.

O retrato em dados do país se dá em 1872 no que se chamou de “Recenseamento da População do Imperio do Brazil”
(http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/Recenseamento_do_Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf)
(seguindo a grafia original, tal qual será utilizada em todas as citações abaixo). Trata-se do primeiro censo (ou
recenseamento) geral brasileiro, o único produzido no Império cobrindo todo o território nacional.

A pesquisa trazia um outro componente inédito e extremamente relevante em se tratando da identidade nacional que se
construía pouco a pouco: seria a única a contemplar também a população escravizada, relacionando sua idade, estado
civil, origem, “raça”, profissão e nível de instrução.

Realizado 16 anos antes da abolição definitiva da escravidão, sistema que serviu de combustível para a formação do
país por mais de três séculos, o censo apresenta um Brasil de um ponto de vista temporal importante. Sob pressão
externa e interna, o Império dava sinais de um processo gradual de desmonte do chamado “elemento servil”. O
recenseamento cumpriu, assim, também, o importante papel de determinar o tamanho da população escravizada e o
tempo para tirá-la dessa condição. Segundo relatório da Diretoria Geral de Estatística
(https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/123277/326693.pdf?sequence=1), espécie de IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) dos tempos do Império, era importante se saber a “diminuição anual” do número
de escravos para “conseguir-se aproximadamente calcular o número de anos precisos para a completa extinção dos
escravos no Império”.

As condições de “livre” e “escravo” eram marcadores importantes na configuração do país naquele momento histórico
e, nesse sentido, os dados extraídos do censo e apresentados a seguir contrastam, sempre que possível, a população
segmentada por essas condições.

“A execução acontece de forma muito positiva”, diz o historiador Diego Bissigo, autor de pesquisas sobre o censo e a
produção estatística do Brasil no século 19. “O resultado se aproxima ao que se pode chamar de um bom censo, sendo
inclusive melhor do que os primeiros que serão feitos durante a República.”

Um relatório posterior (http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv49656.pdf) escrito pelo então diretor da


DGE, resume o desafio e a qualidade do trabalho.

“Esse serviço pela primeira vez executado em um Estado de vasta


extensão e cuja população, comparativamente diminuta, acha-se
disseminada por todo o território, não pode pretender o cunho de um
trabalho perfeito (...) Não sendo perfeito é o melhor que nas actuaes
circumstancias se poderia alcançar.”
Manoel Francisco Correia
Conselheiro e diretor geral do DGE, em 31 de dezembro de 1876
Em 1872, o Brasil era dividido em 20 províncias (como Bahia, “Goyaz”, Pará e “Santa Catharina”) que, por sua vez,
comportavam 641 municípios. Dentro deles, para fins do censo, o território era dividido em 1.473 paróquias – regiões
que tinham como elemento central uma igreja, comandada por um pároco.

Para o recenseamento do Império, usando a paróquia como unidade mínima de contagem, agentes recenseadores eram
os responsáveis por passar nas casas da região distribuindo as “fichas de família”. Os “chefes de família” deveriam, sob
pena de multa, completá-las com exatidão e devolver ao agente recenseador em quinze dias.

IMAGEM: REPRODUÇÃO/BIBLIOTECA IBGE

 TABELA COM RESULTADOS DO RECENSEAMENTO DE 1872, TABULADOS PELA DIRETORIA GERAL DE ESTATÍSTICAS

A ficha pedia informações como nome, cor, idade, estado civil, lugar de nascimento, nacionalidade, profissão, religião,
instrução e um campo para “observações”. Deveriam constar ali todas as pessoas da casa, nesta ordem: “Declara-se
primeiramente o nome do chefe de familia, depois o da mulher, dos filhos, dos outros parentes que com elle morem e
em seguida o dos criados, escravos, aggregados e hospedes”.

A imensa maioria da população, como mostram os dados, não sabia ler ou escrever, cabendo ao agente recenseador
(http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-4856-30-dezembro-1871-552291-publicacaooriginal-
69467-pe.html) conferir a lista, corrigir erros ou preenchê-la do zero “solicitando para isso dos mesmos chefes de
família, ou de pessoas da vizinhança, as informações e esclarecimentos necessários”. Some isso a atrasos na entrega de
fichas, erros de somatória e fica evidente a imperfeição da qual falava o diretor do DGE.

Parte da imperfeição do trabalho na época foi resolvida com um extenso trabalho de revisão dos quadros do censo por
uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, concluído em 2012. Roberto Borges Martins
fez parte do embrião dessa pesquisa. Estudando o censo, o economista e ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada) notou erros primários de soma e decidiu passá-lo a limpo.

“O Brasil não tinha censo, então não se tinha ideia de onde a população
estava. Havia estimativas grosseiramente equivocadas apenas. O censo
corrigiu muitas dessas coisas. Informação demográfica é importante para o
planejamento de qualquer coisa, sobretudo de política pública. Eu não vou
te dizer que ele foi usado para isso na época, mas ele trouxe muita
informação útil para o Estado.”
Roberto Borges Martins
Economista

É com esses dados corrigidos do recenseamento de 1872 que o Nexo apresenta neste especial parte do retrato do Brasil
daquela época, dando especial atenção para a condição do escravo, contabilizado oficialmente pelo país em todo
território pela primeira e última vez.
9.930.478 pessoas

homens livres mulheres livres

805.170 705.636
homens mulheres
escravos escravas

O Brasil contava com uma população de 9,93 milhões de pessoas, sendo 51,6% homens e 48,4%
mulheres (no censo de 2010, 138 anos depois, as mulheres representam 51% do total). Quando a análise
considera a “condição social”, separando o universo entre livres e escravos, o resultado é o seguinte:
84,8% e 15,2%, respectivamente. A população brasileira seguia a proporção aproximada de um escravo
para cada 6 pessoas livres.

O número pode até soar baixo para um país que rumava para a abolição – em 1860, a três anos do fim da
abolição nos Estados Unidos, por exemplo, os escravos representavam 12,6% da população americana.
Mas ele também é falso. Isso porque esse grupo de livres incluía escravos libertos, condicionados a servir
seus senhores enquanto estes vivessem. Ironicamente, também uma forma de escravidão ainda que
informal, justificada como demonstração de gratidão pela liberdade concedida.

É o que o historiador e professor da Unicamp, Sidney Chalhoub, chama de “precariedade estrutural da


liberdade”. Além da alforria condicional, o especialista em seu trabalho sobre “o problema da liberdade no
Brasil escravista” (https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/download/315/271) cita ainda
“restrições constitucionais aos direitos políticos dos libertos, a interdição dos senhores à alfabetização de
escravos e o acesso diminuto de libertos e negros livres em geral à instrução primária (...), a possibilidade
de revogação de alforrias, as práticas de escravização ilegal de pessoas livres de cor” e “a conduta da
polícia nas cidades de prender negros livres sob a alegação de suspeição de que fossem escravos
fugidos”.
Nacionalidade

brasileira estrangeira

Homens

Livres
96% 4

Escravos
89% 11%

Mulheres

Livres 98% 2

Escravas 92% 8%

Em meio à massa de quase 10 milhões de habitantes, o Brasil tinha 382,1 mil estrangeiros, a maioria
deles (cerca de 70%) homens. O governo imperial achou, por bem, enquadrar escravos trazidos de
diversas regiões da África também como estrangeiros, em contraposição àqueles que nasceram no Brasil,
filhos ou netos de escravos. “O escravo africano é visto como um imigrante, mas ele não é um imigrante
convencional, ele é um imigrante forçado”, destaca Diego Bissigo. Do total de imigrantes, 36% eram
escravos.

O historiador autor do estudo “O Censo e as Nações: os africanos nos levantamentos populacionais no


Brasil do século XIX” aponta para o “apagamento” da origem desses estrangeiros africanos
(http://slavevoyages.org/assessment/estimates). Seja por responsabilidade do chefe de família, do agente
recenseador ou da DGE, o tabulamento final do recenseamento agrupou quaisquer termos usados para
designar uma região ou grupo étnico original da África (“da nação Congo”, “cabinda”, “benguela” ou
“mina”) simplesmente como “africanos”.
“Muitos termos [como ‘benguela’ e ‘mina’] não correspondiam ao Estados nacionais, mas davam pistas da origem desse africano.
Mas, em 1872, a estatística simplifica”, diz Bissigo. “Ela é inimiga da diversidade, em certo sentido. O heterogêneo é caótico”.
“Colocar todos como ‘africanos’ foi uma solução encontrada na época”, continua Bissigo. “Mas não é só por culpa da estatística, até
porque o europeu não vira 'europeu', ele é alemão, belga, etc. Foi uma opção política. O Brasil reconhece esses países, mas não
reconhece países africanos.”
Origem dos estrangeiros

Homens livres Mulheres livres

Homens escravos Mulheres escravas

Africanos

Portugueses

Alemães

Italianos
Somando-se escravos e livres, africanos eram o maior
grupo de estrangeiros

Franceses

Orientais

Ingleses

Espanhóis

Paraguaios

O Censo considerava
Suissos “Orientais” como
uma única categoria

Norte-americanos

Argentinos

Bolivianos

Austríacos

Holandeses

Chineses

Belgas

Peruanos

Dinamarqueses

Suecos

Gregos

Russos

Persas

Húngaros
Japoneses

Mexicanos

Turcos

0 25 50 75 100 125 150

mil pessoas

O mesmo acontece com “orientais” (embora países do oriente, como China, Japão, Rússia e de parte da
Europa tivessem categorias próprias), sem clareza sobre quais países estavam agrupados ali. Os
“africanos”, escravos ou livres, compõem a maior parte dos estrangeiros (46%). Em seguida, estão
portugueses (33%), alemães (10,5%), italianos (2,1%) e franceses (1,8%).

Para o economista e pesquisador Roberto Borges Martins, há nesses dados um “apagamento” de outra
ordem. Em 1831, uma lei brasileira (http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37659-7-
novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html) (conhecida como “Lei Feijó” e alcunhada de
“Lei para inglês ver”) proibiu o tráfico de escravos (“Todos os escravos, que entrarem no territorio ou
portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres”), determinação reforçada em uma nova lei, essa de 1850 (Lei
Eusébio de Queirós (http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-708-14-outubro-1850-
560104-publicacaooriginal-82681-pe.html)), que garantia a apreensão de navios de traficantes em mar ou
portos brasileiros.

Por consequência, qualquer escravo declarado como africano no censo com menos de 59 anos seria uma
clara ilegalidade. “Assim, o que existe é uma grande ocultação da origem africana dos escravos. É uma
coisa que assusta: existe uma população escrava de 1,5 milhão e um número de africanos
proporcionalmente muito pequeno [9,2%]”, diz Martins. O economista explica que o dado é ilusório dado
que a população escrava brasileira nunca teve crescimento natural positivo (mais nascimento do que
morte). Ou seja, ela dependia da importação (ilegal) de pessoas para se manter.

A busca pela origem dessa população heterogênea do continente africano se tornou objeto de pesquisa
no Brasil e fora dele. Por aqui, o IBGE organizou dados que apontam uma entrada de quase 1,9 milhão
africanos escravizados a contar do início do século 18, trazidos sobretudo da Angola e da Costa do
Marfim.

Já o projeto Slave Voyages (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/05/15/O-tr%C3%A1fico-


transatl%C3%A2ntico-de-escravos-detalhado-em-um-mega-arquivo-digital), uma iniciativa conjunta de
instituições internacionais em operação desde 1960, indicam registro da entrada de mais de 3 milhões de
escravos no Brasil desde 1560 (http://slavevoyages.org/voyages/XQl1Qaqn), sobretudo em portos de Rio
de Janeiro e Bahia. Estes oriundos de ao menos oito grandes regiões do continente, como Senegâmbia,
Golfo do Benim, África Centro-Ocidental e Golfo de Biafra.
Pirâmide etária
da população livre

Mais de 100

MULHERES HOMENS

91 a 100

81 a 90

71 a 80

61 a 70

51 a 60

41 a 50

31 a 40

21 a 30

11 a 20

0 a 10 anos

20 10 0 10 20
Pirâmide etária
da população escrava

Mais de 100
MULHERES HOMENS

91 a 100

81 a 90

71 a 80

61 a 70

51 a 60

41 a 50

31 a 40

21 a 30

11 a 20

0 a 10 anos

20 10 0 10 20

A questão da idade, assim como a do local de origem, acabou se tornando uma vitrine da simplificação
imposta pela estatística, bem como da criatividade dos “senhores” para manter seu patrimônio escravo
apesar dos avanços jurídicos do país.

De um lado, havia a lei de 1831 que proibira o tráfico de escravos africanos; de outro, a Lei do Ventre
Livre – aprovada em fins de setembro de 1871, dez meses antes da realização do censo –, que declarava
livre todos os “filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio”.

Sendo assim, em 1872, escravos de origem africana não poderiam ter menos que 59 anos; nem filhos de
escravas nascidos no Brasil poderiam ter menos que 11 meses. Caso contrário, deveriam ser livres.
Embora especialistas possam apenas deduzir, seria por essas razões que as pirâmides etárias podem
estar distorcidas.

O historiador Diego Bissigo aponta também a possibilidade de que uma compra exagerada de escravos
às vésperas da lei de 1831 – para fins de se criar um “estoque” – possa ter servido para a pirâmide mais
inflada na faixa dos 40 anos para cima.

Ele observa também a existência de fichas familiares declarando a idade de escravos da seguinte forma:
“Mais de 40 anos”. “Na época não havia registro civil. Não era raro escravos ou mesmo pessoas livres não
saberem suas idades. Mas fica claro que esse arredondamento de idades para 40 anos soava como uma
boa para [os senhores] se livrarem de qualquer crime”.
Pirâmides etárias
de ambos

livres
Mais de 100

escravos

91 a 100

81 a 90

71 a 80

61 a 70

51 a 60

41 a 50

31 a 40

21 a 30

11 a 20

0 a 10 anos

20 10 0 10 20

Segundo relatório de 1876 sobre o recenseamento, em um período de três anos (entre 1872 e 1875),
aproximadamente 164 mil crianças, filhos de escravas, nasceram livres.

Vale notar, no entanto, que a “liberdade” não era completa. De acordo com a lei, a criança passava a ser
de responsabilidade do senhor até os oito anos. Nessa idade, ela poderia ser entregue ao governo (que
“lhe dará destino”) mediante pagamento de indenização ao senhor ou continuar servindo-lhe até seus 21
anos.

Na década seguinte ao censo, em 1885, entra em vigor a Lei dos Sexagenários, dando liberdade a todos
os escravos com mais de 60 anos. Liberdade, mais uma vez, condicionada a uma indenização aos
senhores. No caso, a obrigação de servi-los por mais três anos ou até a idade limite de 65 anos. Três
anos também foi o intervalo dali até a abolição definitiva da escravidão.
Religião

acatólicos católicos

Homens

Livres
99%

Escravos
100%

Mulheres

Livres
99%

Escravas
100%

imensa maioria de acatólicos era de origem estrangeira

1%

“Predomina entre nós o catholicismo. As outras religiões contão poucos adeptos.” Assim começa o
minúsculo texto dedicado a religião no relatório da Diretoria Geral de Estatística. Sobre as “outras
religiões”, o censo do governo imperial não perguntou de quais se tratavam, sejam as protestantes (80%
dos 28 mil “acatólicos” eram de origem alemã) ou de matriz africana. Isso porque, entre todos os africanos
livres, apenas 184 estão assinalados como de religião “diferente do Estado” (no censo da Corte, de 1870,
assim eram designados os não católicos). Entre escravos, não houve exceção. Todos estão apontados
como seguidores do catolicismo.

A religião era um aspecto sempre presente nas políticas adotadas pelo Estado (que só se
autodenominaria laico na República, com a Constituição de 1891). A já citada Lei Eusébio de Queirós
(http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-708-14-outubro-1850-560104-
publicacaooriginal-82681-pe.html), de 1850, assegurava a apreensão de embarcações negreiras, mas
dizia que se “os africanos” salvos dos traficantes “não tiverem sido baptisados, ou havendo sobre isso
duvida”, a autoridade deveria “providenciar para que o sejão immediatamente”.
Para o historiador Diego Bissigo, atestar o catolicismo entre os escravos era uma forma de afirmar-se
civilizado. “Desde os primórdios no Brasil, a escravidão se justificava pela chance de salvar aquelas almas
do paganismo. Seria um fracasso não ter 100% de catolicismo nas pessoas as quais controlamos”, diz.

Em “História das Estatísticas Brasileiras”, trabalho fundamental do economista Nelson Senra, pesquisador
do IBGE, diz que a falta de pluralidade religiosa observada entre escravos no censo pode ser explicada
por duas razões: “não houve divulgação porque não havia o fato ou havia o fato mas não houvera o
registro”

‘Raça’

branco pardo preto caboclo

População em geral

38% 38% 20% 4

Escravos

31% 69%

As categorias de cor ou raça nem sempre estiveram presentes nos censos posteriores ao de 1872. Da
mesma forma, os termos utilizados também variaram (em 1890, “pardo” foi substituído por “mestiço”, por
exemplo). A definição pelo IBGE de cor ou raça dentre as cinco categorias atuais (“branco”, “preto”,
“pardo”, “amarelo” ou “indígena”) passou a valer em 1991, sendo mantida em 2000 e 2010.

Os censos de 1950 e 1960 foram os primeiros em que o princípio da autodeclaração orientou a coleta de
dados. No século 19, não era assim. A classificação era feita pelo senhor ou agente do censo.

O governo imperial distinguia a população brasileira em “tres raças distinctas” (nada de cor): branca,
africana e indígena. Com uma opção adicional: “Do cruzamento da raça africana com as outras resultou a
classe dos pardos”, que compunha mais de um terço da população. Assim, pardos seriam todos os filhos
de africanos (31% dos escravos são declarados como pardos) com indígenas (ora identificados como
“caboclos”) ou brancos.

A determinação da “raça” se fundamentaria na origem dos escravos. Essa era a regra, mas
pesquisadores apontam que a condição social também podia influenciar a classificação. “O pardo é o
mestiço, mas também é o ‘crioulo’ que nasceu no Brasil então é ‘menos preto’ que o preto africano. Usa-
se o pardo para o liberto, porque é como se a liberdade produzisse um efeito branqueador de alguma
forma, mas isso tudo é muito sutil, não dá para dizer que todo caso é assim. Mas são possibilidades
averiguadas na literatura”, explica Diego Bissigo.

O “branqueamento” do brasileiro foi, na virada para o século 20, foi uma tese abraçada por parte da elite
nacional. O brasilianista americano Thomas Skidmore resumiu, no livro “Preto no Branco” (1989), a teoria
afirmando que ela “baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes, pelo uso dos
eufemismos raças 'mais adiantadas' e 'menos adiantadas' e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser
a inferioridade inata”, escreveu.
Skidmore explica que, dentro dessa lógica, a “miscigenação” foi vista como algo positivo e “natural” ao
produzir “uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as
pessoas procurassem parceiros mais claros do que elas”, citando a política de incentivo à imigração
europeia branca como um reforço desse branqueamento.

Outro caso é o dos indígenas que, pela classificação problemática, acabam misturados ao “pardo” (por
determinação da cor). “É muito fácil de imaginar que a maioria dos indígenas passou batida por essa
contagem. Houve caso de aldeias que não foram contadas porque, segundo um relatório, houve
dificuldade de se chegar”, diz Bissigo.

Proporção de escravos entre a população

AM
CE RN
PA MA

PB
PI
PE

AL

SE
BA
MT GO

6%

10% MG

12%
ES
17%
SP

RJ

PR

RS

31% SC

escala
em quantil

Ao lado, o mapa das províncias brasileiras com a distribuição de escravos pelo país. Todos os municípios
brasileiros, sem exceção, contavam com o “elemento servil”. Na comparação com o total da população da
província, lideram Rio de Janeiro (31%), Espírito Santo (24%), Maranhão (21%), Minas Gerais (17%) e
São Paulo (17%). Os com menos escravos, proporcionalmente, eram Amazonas (2%), Ceará (5%), Rio
Grande do Norte (6%), Parahyba (6%) e Goyaz (6%). Em valores absolutos, lideram Minas Gerais (345
mil), Rio de Janeiro (263 mil), Bahia (172 mil), São Paulo (126 mil) e Pernambuco (92 mil).

Na época, com o tráfico dificultado, observou-se um fluxo de comércio de escravos internamente,


sobretudo das regiões Norte e Nordeste para o Sudeste, onde se concentrava a produção cafeeira. Esse
fluxo interno, como explica o economista Roberto Borges Martins, passou a cair a partir de 1880, quando
Rio de Janeiro, Minas Gerais e depois São Paulo começaram a tributar a entrada de escravos. Martins
interpreta a adoção do imposto como uma tentativa de evitar o surgimento de dois brasis: um escravista
ao sul, e um livre ao norte. “Eles não queriam ficar isolados, não queriam que acontecesse aqui o que se
deu nos EUA”, culminando na Guerra de Secessão (1861-1865) e no fim da escravidão por lá (1863).
Índice de analfabetismo

sabe ler e escrever analfabeto

Homens

Livres
23% 77%

Escravos 99%

Mulheres

Livres 13% 87%

Escravas 99%

População escolar

(6 a 15 anos de idade)

frequentam escola sem infos

não frequentam escola

Homens

Livres 17% 83%

Escravos 99%

Mulheres

Livres 11% 89%

Escravas 99%

De longe, o grau de instrução e o analfabetismo foram os temas sobre os quais mais se dedicou atenção
por parte da Diretoria Geral de Estatística. No documento em que comentam os resultados
(http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv49656.pdf), é com um tom que aparenta vergonha que
afirmam: “É pouco animador o quadro da estatistica intellectual”, seguido de uma avaliação otimista de
que não demoraria muito até que “varie para melhor a proporção ora existente entre os que sabem e os
que não sabem ler”.

A população escravizada foi ignorada nos resultados. A avaliação é feita apenas sobre a livre. Sobre esta,
apenas 19% sabiam ler e escrever (23% entre homens, 13% entre as mulheres).

Já os dados sobre quem, dentro do universo da população de 6 a 15 anos, frequentava escola, a


proporção é de 17% entre homens e 11% de mulheres, respectivamente. Como diagnóstico, a DGE
aponta que “os governos provinciaes tem deixado de instituir o ensino obrigatorio, e apenas uma ou outra
provincia o tem estabelecido para aquelles individuos em idade propria”.

População com profissão

sem profissão com profissão

Homens

Livres 58% 42%

Escravos 77% 23%

Mulheres

Livres
51% 49%

Escravos 76% 24%

Além de registros sobre grau de instrução que provocaram embaraço, o quadro de profissões também
mostra um cenário pouco animador. Partindo da população total (homens e mulheres), cerca de 42% não
tinham profissão (55% entres os livres, 24% entre escravos). A própria DGE reconhece que o contingente
sem uma profissão específica era “enorme”, sobretudo nas províncias do Rio Grande do Norte, Minas
Gerais e Pernambuco.

Em uma época em que poucos frequentavam escolas e não havia plano de aposentadoria, é difícil
imaginar que quase metade da população não trabalhava.

Além do contingente esperado de desempregados, é possível que o dado tenha sido afetado por um
detalhe do próprio censo. O historiador Diego Bissigo avalia que a pergunta do quadro era problemática,
pois se pedia “profissão”, “ofício”, “ocupação habitual” ou “meios de vida”, equiparando categorias que, na
verdade, são diferentes na forma como definem a atividade “trabalho”.
“Além de não ter uma regulamentação sobre profissões, as pessoas executavam muitos serviços
distintos. A gama de respostas possíveis era muito grande tanto para a população livre quanto para a
escravizada”, diz.

Profissões

agricultura serviço doméstico liberais

assalariados manuais e mecânicas

militares pescadores marítimos

capitalistas e proprietários industriais

Homens livres

Operário

Lavradores Comerc.

Artistas

Militar

Criados e Serviço
Jornaleiros doméstico

A DGE acabou, assim, para aqueles que declararam alguma profissão, separando as profissões em
grandes categorias: indústria agrícola (lavradores e “criadores”, ou pecuaristas), profissões manuais e
mecânicas (construção civil, indústria têxtil, marceneiros, sapateiros, etc), comércio, manufaturas e “artes
liberais” (religiosos, juristas, médicos, professores e funcionários públicos).
Além destes, eram tipos separados as profissões de pessoas “assalariadas” (que faziam pequenos
trabalhos diários em troca de pagamento), serviço doméstico, militares, pescadores, “marítimos” e
“capitalistas” ou proprietários de terra ou fábrica.

Profissões

agricultura serviço doméstico liberais

assalariados manuais e mecânicas

militares pescadores marítimos

capitalistas e proprietários industriais

Homens escravos

Lavradores

Criados e Jornaleiros

Abaixo desses grandes grupos, contam-se 32 subcategorias profissionais. Destas, as mulheres


(sobretudo as livres) ficavam de fora de 18, como juízes, advogados, médicos, empregados públicos e
militares.
Profissões

agricultura serviço doméstico liberais

assalariados manuais e mecânicas

militares pescadores marítimos

capitalistas e proprietários industriais

Mulheres livres

Serviço doméstico

Costureiras

Operários
em tecidos
Lavradores

Criados e
Jornaleiros

Escravos, sejam homens ou mulheres, trabalhavam mais que a população livre na agricultura (54% contra
29% dos livres), bem como em serviços domésticos (12% contra 10%) e como criado ou jornaleiro (que
não é o profissional que vende jornal, mas o que é pago por uma jornada de trabalho), uma espécie de
“bico” (caso de 6% dos escravos, contra 4%).
Profissões

agricultura serviço doméstico liberais

assalariados manuais e mecânicas

militares pescadores marítimos

capitalistas e proprietários industriais

Mulheres escravas

Serviço doméstico

Operários
em tecidos

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“Quando o senhor não tinha uma função para o escravo, ele deixava o escravo ao ganho”, explica o
historiador Diego Bissigo. “Ele ia para cidade buscar emprego e o senhor ficava com o salário que o
escravo recebesse. É uma forma de uso para o escravo. Assim, ou alugando para outro senhor também.”
Como escreveu
(http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/liv31573/Historia%20das%20estatisticas%20brasileiras%20v01.pdf)
Nelson Senra, pesquisador do IBGE e grande especialista dos censos brasileiros, a realização de um censo “na
amplidão territorial brasileira, com a rarefação da população, com a precariedade das comunicações e dos transportes”
foi “sem dúvida, um grande desafio, uma sequência complexa, de difícil execução”.

Mas a complexidade do mapeamento detalhado da população não deve ser pensada como algo restrito ao século 19. O
plano original de repetir o censo a cada 10 anos, falhou vez ou outra – foram feitos 12 dos 15 possíveis entre 1872 e
2010. Os que “furaram” a programação foram os de 1880 (quando, sem recursos, a DGE foi desmontada), 1910 (na
época, estourou a Revolta da Chibata no Rio de Janeiro) e, em 1930 (ano do golpe liderado por Getúlio Vargas, que
tomou o governo).

Assim, mesmo depois de tantas edições, o recenseamento de 1872 tem um lugar de destaque. Primeiro, em função do
pioneirismo da iniciativa. Mas, além disso, o olhar sobre a população brasileira naquele momento, sob o governo
imperial e às vésperas do fim da escravidão, traz uma perspectiva valiosa acerca do país na época.

Para o economista Roberto Borges Martins, a utilidade do recenseamento de 1872 chega aos dias de hoje, servindo
como um retrato de quem o Brasil, apesar dos quase 200 milhões de habitantes a mais, ainda é. “Olhando para o
recenseamento fica evidente que diversos problemas de hoje são decorrência daquele Brasil”, diz Martins.

Como registro histórico e social, o censo de 1872 também aponta para temas que foram se mostrando fundamentais
para pensar a questão racial no país ao longo da sua história, sublinhando muitas das desigualdades que hoje, ainda que
em versões atualizadas, seguem longe de estar superadas.

ESTAVA ERRADO: O mapa de proporção de escravos entre a população das províncias apresentava uma relação
imprecisa dos dados. As informações foram corrigidas e o mapa atualizado às 15h40 no dia 10 de julho de 2017

Produzido por Murilo Roncolato


Dados por Daniel Mariani
Layout por Rodolfo Almeida
Desenvolvimento por Ariel Tonglet
Edição por Marina Menezes
© 2017 Nexo Jornal

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