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N.

REGISTRO jsooin
Universidade Federal de Uberlândia
D A TA D A D E V O L U Ç Ã O

Esta obra deve seulevolvida na última data carimbada

Arte e Comunicação representam


dois conceitos inseparáveis.
Deste modo, reunem-se na mesma colecção
obras que abordam a Estética em geral,
as diferentes artes em particular,
os aspectos sociológicos
e políticos da Arte.
assim como a Comunicação Social
e os Meios que ela utiliza.

1
VICER175
VARA UMA CRÍTICA
DA ECONOMIA POLÍTICA
DO SIGNO
NIVERSIDA^ ^BERLA n DIA

0586,1
O í O 4 ■OS Títulos publicados

DESIGN E COMUNICAÇÃO VISUAL


Bruno Munari
A DIREÇÃO CINEMATOGRAFICA
Terence Marner
MODOS DE VER
John Berger
PROJETO DE SEMIÓTICA
Emílio Garroni
ARTE E TÉCNICA
Lewis Mumford
NOVOS RITOS, NOVOS MITOS
Gillo Dorfles
HISTÓRIA DA ARTE
E MOVIMENTOS SOCIAIS
Nicos Hadjinicolaou
OS MEIOS AUDIOVISUAIS
Marcello Giacomantonio
PARA UM A CRÍTICA DA ECONOMIA
POLÍTICA DO SIGNO
Jean Baudrillard

Títulos a publicar

A COMUNICAÇÃO SOCIAL
Olivier Burgelin
A DIMENSÃO ESTÉTICA
Herbert Marcuse
A CÂMARA CLARA
Roland Barthes
A DEFINIÇÃO DA ARTE
Umberto Eco
MOM

J^/3)
JEAN BAUDRILLARD 6« At>p

‘T ARA UMA CRÍTICA


DA ECONOMIA POLÍTICA
DO SIGNO

Título original: Pour une critique de l’économie politique du signe


© Edições Gallimard, 1972
Tradução de Anfbal Alves
Capa de Alceu Saldanha Coutinho
Direitos reservados para todos os países de Língua Portuguesa
por Edições 70, Lisboa — Portugal

Desta edição foi feita uma tiragem para


LIVRARIA MARTINS FONTES
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — São Paulo
%JïïariinsJmte5 Bihmjena.
Primeira Parte

FU N Ç Ã O -SIG N O E LÓGICA DE CLASSE

* Publicado em Communications, 13, 1969


I

A FUNÇÃO SOCIAL DO OBJECTO SIGNO

A hipótese empirista: necessidade e valor de uso.

Uma análise da lógica social que regula a prática


dos objectos segundo as diversas classes ou categorias
tem que ser simultaneamente uma análise crítica de
ideologia do «consumo», no qual se baseia actualmente
toda a prática relativa aos objectos. Esta dupla análise
— a da função social distintiva dos objectos e a da
função política da ideologia a ela ligada — deve partir
de um preliminar absoluto: da superação da visão
espontânea dos objectos em termos de necessidade, da
hipótese da prioridade do seu valor de uso.
Esta hipótese, que assenta na evidência vivida,
atribui aos objectos um estatuto funcional, o de uten­
sílio ligado às operações técnicas sobre o mundo, e,
por isso mesmo, o de mediação das necessidades antro­
pológicas «naturais» do indivíduo. Nesta perspectiva,
os objectos são, antes de mais, função das necessidades,
e ganham o seu sentido na relação econômica cio homem
com o ambiente circundante.
Esta hipótese empirista é falsa. Longe de o estatuto
primário do objecto ser um estatuto pragmático que
um valor social de signo viesse depois sobredeterminar,
é o valor de troca-signo que é o fundamental — não
passando, muitas vezes, o valor de uso de sua caução
prática (ou mesmo de pura e simples racionalização):
U
uso, mas o valor de troca simbólico, de prestação social,
tal é, sob a sua forma paradoxal, a única hipótese de concorrência e, no limite, de discriminantes de
sociológica correcta. No fundo, sob a sua evidência classe — esta a hipótese conceptual fundamental de
concreta, as necessidades e funções descrevem apenas uma análise sociológica do «consumo».
um nível abstracto, um discurso manifesto dos objectos,
perante o qual o discurso social, largamente inconsciente,
aparece como fundamental. Uma verdadeira teoria dos O consumo ostentatório.
objectos e do consumo fundar-se-á, não numa teoria
das necessidades e sua satisfação, mas numa teoria
da prestação social e da significação. O eco desta função primordial dos objectos aparece
alargado, nas análises de Thomstein Veblen (*), sob a
A troca simbólica: a Kula e o potlatch. noção de conspicuous waste (prodigalidade ostentatória,
gasto ou consumo de prestígio). Mostra Veblen que, se
A alusão às sociedades primitivas é sem dúvida as classes submetidas têm primeiramente como. função
perigosa. Importa, no entanto, recordar que, original­ trabalhar e produzir, têm simultaneamente como função
mente, o consumo de bens (alimentares ou sumptuários) (e, quando mantidas na ociosidade, como única função)
não corresponde a uma economia individual das neces­ ostentar o standing do Senhor. Assim, as mulheres, o
sidades; é uma função social de prestígio e de distri­ «pessoal», a criadagem são expoentes de estatuto. Estas
buição hierárquica. Não provém inicialmente da neces­ categorias também consomem, mas em nome do Senhor
sidade vital ou do «direito natural», mas sim de um (vicarious consumption), testemunhando pela sua ociosi­
constrangimento cultural. Em suma, é uma instituição. dade e superfluidade a grandeza e riqueza daquele. A sua
Ê necessário que bens e objectos sejam produzidos e função não é, pois, económica, tal como o não é a dos
trocados (por vezes, sob a forma de delapidação violenta) objectos na kula ou no potlatch, mas uma função de
para que uma hierarquia social se manifeste. Para os instituição ou de preservação de uma ordem hierárquica
Trobriandeses (Malinowski), a distinção entre função de valores. Veblen analisa nesta perspectiva a condição
económica e função/signo é radical: existem duas espé­ da mulher na sociedade patriarcal: assim como não
cies de objectos sobre as quais se articulam dois sistemas se alimenta o escravo para que este coma mas para
paralelos — a kula, sistema dé troca simbólico fundado que trabalhe, assim também se não veste sumptuosa­
na circulação e no dom em cadeia de pulseiras, colares e mente uma mulher para que esta seja bela, mas para que
adornos, em volta do qual se organiza o sistema social testemunhe, pelo seu luxo, a legitimidade ou o privilégio
de valores e de estatuto — e o gimwali, que é o comércio social do seu senhor (o mesmo acontece no caso da «cul­
dos bens primários. tura» que funciona muitas vezes, para as mulheres, como
Esta segregação desapareceu nas nossas sociedades atributo social: nas classes abastadas, sobretudo, a
(aliás, não inteiramente: o dote, os presentes, etc.). cultura das mulheres faz parte do património do grupo).
No entanto, por detrás de todas as superestruturas Esta noção de vicarious consumption, de «consumo por
da compra, do mercado e da propriedade privada, é procuração», é capital: ela leva-nos ao teorema funda­
sempre o mecanismo da prestação social que se deve mental do consumo, a saber, que este nada tem a
ler na nossa escolha, acumulação, manipulação e con­ ver com a fruição pessoal (ainda que a mulher tenha
sumo de abjectos — mecanismo de discriminação e de prazer em ser bela), mas é uma instituição social
prestígio que está na própria base do sistema de valores coactiva que determina os comportamentos antes mesmo
e de integração na ordem hierárquica da sociedade. de ser reflectida pela consciência dos actores sociais.
A kula e o potlatch desapareceram, mas não o seu
princípio, que reteremos como base de uma teoria
(‘) Th. Veblen, The Theory of the Leisure Class, 1899,
sociológica dos objectos — o que é cada vez mais verda­ Trad, francesa, La Théorie de la classe de loisir, Gallimard,
deiro à medida que os objectos se multiplicam e diferen­ Paris, 1969.
ciam: não a relação com as necessidades, o valor de
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Indo mais longe, isto pode levar-nos a considerar deste modo, por assim dizer democraticamente, do seu
o consumo não como aquilo por que ele se dá — uma antigo estatuto aristocrático de puro signo de prestígio.
gratificação individual generalizada — mas sim como um Este estatuto antigo, fundado na ostentação e no gasto,
destino social que afecta certos grupos ou certas classes continua presente mas claramente marcado pelos efeitos
mais que outros, ou por oposição a outros. Se hoje, de moda e de decoração, é dobrado a maior parte das
na sociedade democrática moderna, já não existem cate­ vezes — em doses variáveis — por um discurso funcional
gorias votadas, por direito, ao consumo prestigiante que pode servir de alibi à função distintiva (invidious
por procuração, pode perguntar-se se, por detrás da distinction). Assim, os objectos fazem um perpétuo jogo
aparente generalização social do processo, não há classes que resulta, na realidade, de um conflito moral, de
votadas de facto a esses mecanismos de prodigalidade uma disparidade dos imperativos sociais: o objecto fun­
— restituindo assim, sob a aparente disponibilidade cional aparenta ser decorativo, reveste-se de inutilidade
total dos comportamentos individuais, a imemorial ou dos disfarces da moda — o objecto fútil e ocioso
função de instituição do valor e de discriminação social carrega-se de razão prática O- No limite, é o gadget: pura
que foi a do consumo na sociedade pré-industrial. gratuitidade a coberto de funcionalidade, pura prodiga­
Segundo Veblen, um dos maiores expoentes de lidade a coberto de moral prática. De qualquer modo,
prestígio, além da riqueza e da delapidação (wasteful todos os objectos, mesmo fúteis, são objecto de um
expenditure), é a ociosidade (waste of time) exercida trabalho: a lida da casa, a arrumação, os pequenos arran­
directamente ou por procuração (vicarious leisure). jos, as reparações — em tudo o homo faber dobra o
O mundo dos objectos não escapa a esta regra, a este homo otiosus. De um modo mais geral (e isto não apenas
constrangimento de superfluidade: efectivamente é sem­ no mundo dos objectos), estaríamos perante um simu­
pre naquilo que têm de inútil, de fútil, de supérfluo, lacro funcional (make-believe), por detrás do qual os
de decorativo, de não funcional, que se constituem objectos continuariam a desempenhar o seu papel de
categorias inteiras de objectos (bibelots, gadgets, aces­ discriminantes sociais. Ainda por outras palavras, todos
sórios) ou, em cada objecto, todas as conotações e o os objectos estão apanhados no compromisso funda­
metabolismo das formas, o jogo da moda, etc.; p.m mental (2) de ter de significar, quer dizer, conferir o
suma, os objecto.s nunca se esgotam naquilo para que sentido social, o prestígio, sob o modo do otium e do
servem, e é neste excesso de présêhça que ganham a jogo — modo arcaico e aristocrático com o qual a ideo­
süà significação de prestígio, quêr«dèsígnài5 ^ ^ logia hedonista do consumo procura reatar — e de, por
mundò, mas o ser e ã categoria social cio seu possuidor. outro lado, se submeter ao consenso fortíssimo da moral
democrática do esforço, do fazer e do mérito.
Podemos imaginar um estado da sociedade em que
O simulacro funcional. daqui resultassem duas espécies separadas de objectos:
uso/prestígio, valor de uso/valor de troca-signo — dis­
No entanto, esta imposição de ociosidade, de inuti­ junção ligada a uma forte integração hierárquica (socie­
lidade como fonte de valores, esbarra actualmente por dade primitiva, ritual, de castas). Nas nossas sociedades,
toda a parte com um imperativo antagónico; de tal modo, mais uma vez, isso leva frequentemente à ambivalência
que € de um conflito, ou melhor, de um compromisso entre ao nível de cada objecto.
.duas morais contrárias, que resulta o actual estatuto do
objecto quotidiano: da moral aristocrática do «otium» e 0) Assim, na casa de campo equipada com aquecimento
da ética puritana do trabalho. Com efeito, esquece-se central, o esquentador de cama rústico dissimula o seu carácter
facilmente, ao fazer da função dos objectos a sua razão folclórico: diz-se dele que «ainda serve durante o Inverno»!
imanente, em que medida tal valor funcional é por sua O Em boa lógica, é uma contradição, porque os dois
vez regido por uma moral social que pretende que, sistemas de valor são antinómicos. Só a estética industrial
«funcionalista», porque ignora as contradições sociais do seu
actualmente, o objecto, tal como o indivíduo, não é exercício, pode imaginar que reconcilia harmoniosamente a
ocioso. Cabe-lhe «trabalhar», «funcionar», e desculpar-se função e a forma (Cf. adiante «O luxo do efémero»),

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O importante é 1er em toda a parte, para além da II
evidência prática dos objectos e através da evidente
espontaneidade dos comportamentos, a obrigação social, PERSPECTIVAS SOCIOLOGICAS
o ethos do consumo «ostentatório» (directo ou por pro­
curação) (’); apreender, portanto, no consumo uma
dimensão permanente da hierarquia social, e no stan­
ding dos nossos dias uma moral que continua a ter o
mesmo carácter imperativo.
| Sob esta determinação paradoxal, os objectos são,
| pois, não o lugar da satisfação de necessidades, mas o de
j um trabalho simbólico, de uma «produção» no duplo
CÁ sentreKrflo rêfmõTprd-ãiicere — são fabricados, mas são
/ também produzidos como prova. São o lugar da consa-
/ gração de um esforço, de uma realização ininterrompida,
I de um stress for achievement, que visa fornecer a prova
/ contínua e tangível do valor social. Uma espécie de
j Bewarung laica, de provação, de prestação, herdeira, sob
comportamentos inversos, dos mesmos princípios morais Chapin: a escala do «living-room».
que foram os da ética protestante e, segundo Weber, do
espírito capitalista de produção: a moral do consumo Vários autores tentaram integrar os objectos como
prolonga a da produção ou encadeia-se com ela numa elementos de uma lógica social. Contudo, regra geral,
mesma lógica social da salvação. o papel que desempenham na investigação sociológica
é o de figurantes. Para os analistas do «consumo», os
objectos são um dos temas preferidos da paralitera-
tura sociológica, contrapartida do discurso publicitário.
Há, contudo, uma tentativa sistemática a assinalar:
a de Chapin (’). Define o estatuto como «a posição
que um indivíduo Ou família ocupa relativamente aos
padrões dominantes de bens oulturais, de rendimentos
objectivos, de bens materiais e de participação nas
actividades de grupo da colectividade». Quatro escalas,
portanto. Notou-se depois que as quatro componentes
estavam em relação tão estreita com a medida indepen­
dente do mobiliário da sala de estar, que este bastava
por si só para medir a classe do ponto de vista esta­
tístico. Esta «escala do living-room» faz assim apelo
a 23 itens, nos quais são repertoriados e contabilizados
0) Não se trata aqui da vaidade individual de possuir
os diferentes objectos (bem como alguns aspectos rela­
objectos mais belos que os outros: isso pertence à vivência tivos ao conjunto: limpeza, ordem, conservação). Esta
psicológica, à relação concorrencial consciente. Os fins sociais da
ostentação, toda a mecânica social do valor, são, por sua vez,
em grande parte inconscientes, e exercidos por todos os sujeitos (*) F. Stuart Chapin, Contemporary American Institutions,
sem que estes o saibam. Os jogos conscientes do prestígio e da New York, 1935, cap. XIX: «A measurement of social Status».
concorrência são apenas a refracção nas consciências daquelas Cf. também Dennis Chàpman, The Home and Social Status,
finalidades e constrangimentos. Londres, 1955.
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primeira exploração com fins sociológicos caracteriza-se, termos de lógica social, com a condição de esta topo-
portanto, pelo empirismo mais ingénuo: os estratos -análise «horizontal» ser redobrada por uma semiologia
sociais são aí simplesmente indexados a partir de um «vertical» que, por sua vez, explorasse, desde a série
balanço de objectos. Ora este procedimento só teria até ao modelo, através de todas as diferenças signi­
valor, em rigor (porque as suas conclusões são, pelo ficativas, a escala hierárquica de cada categoria de
menos, grosseiras), numa sociedade de penúria relativa, objectos (‘).
em que o poder de compra, só por si, recorta as O problema estará então em fazer surgir uma
classes com nitidez. Mesmo assim, só vale verdadeira­ coerência entre a posição relativa de tal objecto ou
mente para os extremos e não para as categorias médias. conjunto de objectos, na escala vertical, e por outro lado
Além disso, tais correlações fixas não podem apreender o tipo de organização do contexto em que se encontra
nem a lógica nem a dinâmica da estratificação. e o tipo de práticas a eles ligados. A hipótese da
coerência não se verificará forçosamente: existem barba-
rismos e lapsos não só no discurso formal, mas tâmbém
A n á lise s in tá c tic a e re tó r ic a d o a m b ie n te . no discurso social dos objectos. Tratar-se-á então, não
só de os localizar pela análise estrutural, mas também
Dito isto, a escala de Chapin poderia ter alguma de os interpretar em termos de lógica e de c o n tr a d iç õ e s
utilidade se se fundasse numa análise mais subtil, que sociais.
fizesse o inventário da qualidade dos objectos, da sua Resumindo: que pode pretender, neste domínio,
forma, dos seus cambiantes de estilo, etc.; porque uma análise sociológica? Se se trata de destacar uma
também não é verdade, conforme a objecção que lhe relação mecânica, ou especular, entre tal configuração
foi feita, que actualmente toda a gente possui virtual­ de objectos e tal posição na escala social, como faz
mente as mesmas coisas. O estudo dos modelos e das Chapin, não tem interesse. Sabe-se que os objectos
séries (') mostra a gama complexa de diferenças, de dizem muito sobre o estatuto do seu possuidor, mas
matizes, que fazem com que uma mesma categoria de há aí um círculo vicioso: reencontra-se nos objectos a
objectos (poltronas, disposição das coisas, automóvel, categoria social tal como, no fundo, já foi definida a
étc.) possa ainda restituir todas as diferenças sociais. partir dos objectos (entre outros critérios). A indução
Mas é também evidente que, actualmente, com a elevação recorrente esconde uma dedução circular. A prática
do nível de vida, a discriminação passou da posse pura social específica, e portanto o verdadeiro objecto da
e simples à organização e à prática dos objectos. Portanto, sociologia, não poderia separar-se desta operação.
seria numa semiologia mais subtil do ambiente e das prá­
ticas quotidianas que deveria fundar-se (eventualmente)
uma classificação social. Análises de interiores e de espa­ A n á lise e str a té g ic a d a p r á tic a d e o b je c to s .
ços domésticos, fundadas, não no recenseamento, mas na
distribuição dos objectos (centralidade/excentricidade Podemos certamente, num primeiro tempo, consi­
— simetria/dissemetria — hierarquia/desvio — promis­ derar os objectos em si próprios e a sua so m a como
cuidade/distância), nos sintagmas formais ou funcionais, índice de p e r te n ç a so c ia l, mas é muito mais impor­
em suma, uma análise da sintaxe dos objectos que se tante considerá-los, na sua escolha, organização e prática,
esforçasse por descobrir constantes de organização como' o suporte de uma e s tr u tu r a g lo b a l do ambiente
conforme o tipo de h a b ita t e a categoria social, bem circundante, que é simultaneamente uma estrutura activa
como a coerência ou as contradições do discurso — este de comportamento. Então, esta estrutura já não será
seria um nível preparatório para uma interpretação em
0) Para algumas categorias, a escala diferencial é rela­
tivamente pobre (electrodoméstico, TV, etc.); — para outras
(') Cf. Jean Baudrillard, Le Système des objets, Gallimard, (cadeiras, disposição), o paradigma hierárquico dos modelos
Paris, 1968. e das séries será rico.
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ligada directamente a um estatuto mais ou menos rio objectos, habitação, lazeres, actividades culturais?
assinalado e repertoriado previamente, mas analisada Ou autonomia relativa? Assim, os sectores de vestuário,
como elemento da táctica social dos indivíduos e dos aparelhos domésticos, automóvel, apartamento obedecem
grupos, como elemento que vive das suas aspirações, todos actualmente a normas de renovação acelerada,
que pode coincidir assim, numa estrutura mais larga, mas cada um segundo o seu ritmo — variando, aliás, a
com outros aspectos daquela prática social (trajectória obsolescência, relativa conforme as categorias sociais.
profissional, educação dos filhos, lugar de residência, Mas pode também admitir-se que todos os outros sec­
rede de relações, etc.), mas que pode também contradi­ tores se opõem conjuntamente ao «habitar» — o qual,
zê-los em parte O. embora solidário do processo geral, constitui no entanto
O que aqui se revela, de qualquer modo, é que só uma função específica que não pode ser brutal ou
se pode falar dos objectos noutros termos para além Idealmente assimilada aos outros aspectos do consumo
deles próprios, em termos de lógica e de estratégia social. e dá moda 0). Reduzir todos os sectores de signos
No entanto, é necessário manter simultaneamente a distintivos a uma sincronia, em relação unívoca com a
análise num terreno específico, determinando qual a situação na escala social (ou com a trajectória), seria cer­
posição específica que os objectos ocupam relativamente tamente liquidar todo um campo, muito rico de con­
a outros sistemas de signos, e qual o campo específico trastes, de ambiguidades, de disparidades. Por outras
de práticas que constituem na estrutura geral do com­ palavras: a prática dos objectos sociais é específica?
portamento social. Traduz-se através dos objectos, mais do que através
dos filhos, amigos, roupas, etc., uma exigência de con­
formidade, de segurança, ou antes as aspirações e
O discurso de objectos é específico? ambições sociais e, neste caso, que espécie de aspirações,
e através de que categoria de objectos? Porque esta
Parece que a norma das atitudes de consumo é autonomia relativa dos objectos e da sua prática no
contexto das atitudes sociais pode pôr-se como hipótese,
simultaneamente a de distinção e a de conformidade (2). de categoria para categoria, entre os próprios objectos:
Regra geral, haveria, ao que parece, predomínio do grupo observa-se com frequência que nos apartamentos, sob o
de pertença sobre o grupo ideal de referência: tem-se ângulo do estatuto, a configuração de oonjunto não é
objectos «conformes», os objectos dos pares (3). Mas o homogénea — e é raro que todos os objectos de um
problema mantém-se: qual é a posição específica dos mesmo interior estejam no mesmo comprimento de onda.
objectos — haverá uma? — em relação a essa norma Não é verdade que alguns objectos conotam a pertença
muito geral das atitudes de consumo? Haverá isofun- social, o estatuto de facto, e outros um estatuto presu­
cionalidade, redundância dos diversos sistemas de signos mido, um nível de aspirações? Haverá objectos «irrea­
e de comportamento relativos ao consumo? Vestuá­ listas», quer dizer, que se inscrevem em falso contra
o estatuto real e que testemunham desesperadamente
um standing inacessível (análogos, guardadas as devidas
(') Assim, a educação dada às crianças é um elemento proporções, aos comportamentos de «evasão» ou aos
táctico essencial em todos os níveis da sociedade: mas a certos
níveis, esta forma de realização entra em conflito com a reali­ comportamentos utópicos característicos das fases crí­
zação através dos objectos. ticas de aculturação)? Haverá, inversamente, objectos
C) É também o paradoxo da moda: cada um reveste-se de testemunha, que atestam, apesar de um estatuto móvel,
signos distintivos que acabam por ser os de toda a gente. Ries- a fidelidade à classe de origem e uma «enculturação»
man aborda o paradoxo em termos de civilização sucessivos: tenaz?
ao innerdirected que procura distinguir-se sucede o otherdirected
que procura conformar-se.
O Cf. sobre este ponto George Katona, The Powerful
Consumer, e a noção de unconspicuous consumption. (’) Ver mais adiante: «O luxo do efémero».

20 21
Código formal e prática social. Nocial. Aquilo de que nos falam, não é tanto do utente
c de práticas técnicas, como de pretensão social e de
Nunca há lugar, portanto, para estabelecer um resignação, de mobilidade social e de inércia, de acul­
repertório de objectos e de significações sociais ligadas turação e de enculturação, de estratificação e de clas­
a esses objectos: um código que, na ocorrência, não sificação social. Através dos objectos, cada indivíduo
valeria mais que uma chave dos sonhos. É certo que c cada grupo procura o seu lugar numa ordem, pro­
os objectos são portadores de significações sociais inde­ curando ao mesmo tempo forçar essa ordem conforme
xadas, portadores de uma hierarquia cultural e social u sua própria trajectória pessoal. Através dos objectos,
— e isto no mais pequeno dos seus pormenores: forma, ó uma sociedade estratificada que fala ('); e se os objec­
material, cor, duração, disposição no espaço, etc. —, tos, como aliás os mass media, parecem falar a todos
numa palavra, constituem um código. Mas, precisamente (já não existem, de direito, objectos de casta), é certa­
por isso, é de pensar que os indivíduos e os grupos, mente para voltar a colocar cada una no seu lugar.
longe de seguirem sem desvios as injunções desse Numa palavra, sob o signo dos objectos, sob o selo
código, usam-no relativamente ao repertório distintivo da propriedade privada, é sempre de um processo social
e imperativo dos objectos como usam qualquer outro contínuo do valor que se trata. E os objectos são, também
código moral ou institucional, quer dizer, à sua maneira: eles, sempre e em toda a parte, além de utensílios, os
jogam com ele, fazem batota, falam-no no seu dialecto termos e a confissão deste processo social do valor.
de classe.
É, portanto, na sua gramática de classe, nas suas
inflexões de classe, que este discurso deve ser lido,
nas contradições que o indivíduo ou o grupo mantêm
com a sua própria situação social através do seu dis­
curso de objectos. É na sintaxe concreta dos conjuntos
de objectos — equivalente de uma narrativa, e interpre-
tável em termos de destino social como a narrativa
de sonho em termos de conflitos inconscientes—, é nos
lapsos, incoerências e contradições deste discurso, que
nunca está reconciliado consigo próprio (nesse caso
traduziria um estatuto social idealmente estável, invero­
símil nas nossas sociedades), mas, pelo contrário,
exprime sempre, na sua própria sintaxe, uma neurose
de mobilidade, de inércia ou de regressão social — ;
mais ainda, é na relação, eventualmente discordante ou
contraditória, deste discurso de objectos com outros
comportamentos sociais (profissional, económico, cultu­
ral) que deve exercer-se uma análise sociológica correcta.
Quer dizer, uma análise que evite simultaneamente uma
leitura «fenomenológica» (os «quadros» de objectos refe­
ridos a caracteres ou a tipos sociais) e a simples recons­
tituição formal do código dos objectos, que, de qualquer
maneira, e embora encerrando uma lógica social rigo­
rosa, nunca é falado como tal, mas sempre restituído
e manipulado segundo a lógica própria de cada situação.
Os objectos, a sua sintaxe e retórica, remetem, (‘) Sem dúvida é, até, como veremos adiante, uma socie-
portanto, para objectivos sociais e para uma lógica
22
I ll
A PRATICA DIFERENCIAL DOS OBJECTOS

Por todas estas razões, porque a estratificação


social, a mobilidade e as aspirações são a chave de
uma investigação sociológica do «mundo» dos objectos,
é a configuração destes nas classes ascendentes, móveis
ou «promovíveis», de estatuto incerto e crítico, nas
chamadas classes médias, charneira flutuante de uma
sociedade estratificada, classes em vias de integração ou
de aculturação, quer dizer, escapando ao destino de
exclusão social do proletariado industrial ou ao do
isolamento rural, sem no entanto gozar da hereditariedade
de uma situação adquirida, é a prática dos objectos
(e os aspectos psicológicos que a ratificam) nestas cate­
gorias sociais que nos interessarão de preferência.

Mobilidade e inércia social.

É sabido que um problema essencial, nestas classes


móveis, é a disparidade entre a mobilidade intencional
(as aspirações) e a mobilidade real (as possibilidades
objectivas de promoção social). É igualmente sabido
que estas aspirações não são livres, que são função da
hereditariedade social e da situação adquirida (’)• Aquém

0) Assim, a proporção dos operários que desejam que


os filhos sigam os estudos superiores é muito menos forte que nos
indivíduos pertencentes às classes privilegiadas.

25
de um certo limiar de mobilidade, nem sequer existem: constrangimentos sociais. O «privado» e o «social» só
é a resignação absoluta. Regra geral, são relativamente não exclusivos um do outro na imaginação quotidiana
irrealistas — espera-se mais do que aquilo que é objec­ e, se os objectos aparentemente fazem parte da ordem
tivamente possível alcançar — e relativamente realistas — doméstica, vimos que O seu sentido só se esclarece na
não se deixa livre curso à imaginação ambiciosa (salvo sua relação com os constrangimentos sociais de con­
casos patológicos). Esta imagem psicológica complexa formidade e de mobilidade. Mais profundamente: a ju­
assenta, por sua vez, numa interpretação implícita, por risdição do sistema de valores sociais é imanente à
parte dos actores sociais, dos dados sociológicos objec­ ordem doméstica. A relação privada esconde um reco­
tivos; as sociedades industriais oferecem às categorias
médias possibilidades de mobilidade, mas possibilidades nhecimento e um assentimento profundos relativamente
relativas; a trajectória, salvo casos excepcionais, é curta, ao veredicto público. Cada um sabe-se, no fundo, se é
a inércia social é forte, as regressões sempre possíveis. que não se sente, julgado pelos seus objectos, julgado
Nestas condições, parece certo que: segundo os seus objectos, e cada um, no fundo, se
■a motivação para subir na escala social traduz submete a este juízo, mesmo que seja pela negação.
a interiorização das normas e esquemas gerais de uma Trata-se aqui de algo mais que o imperativo de confor­
sociedade de crescimento. midade vindo do grupo restrito ou do de mobilidade
—.rr!a.s £lue ° excesso das aspirações relativamente ascendente vindo da sociedade global; trata-se de uma
às possibilidades reais traduz o desequilíbrio, a contra­ ordem em que cada indivíduo ou grupo não pode deixar
dição profunda de uma sociedade em que a ideologia de se ordenar no próprio movimento que o faz existir
«democrática» de progresso social vem frequentemente socialmente. No «privado», no «doméstico» (e, portanto,
compensar e sobredeterminar a inércia relativa dos também no ambiente de objectos), por ele vivido como
mecanismos sociais. Por outras palavras: os indivíduos zona de refúgio para aquém ou para além das impo­
esperam porque «sabem» que podem esperar — não sições sociais, como campo autónomo de necessidades
esperam demasiado porque «sabem» que esta sociedade c de satisfações, o indivíduo nunca cessa de testemu­
põe de facto barreiras intransponíveis a uma ascensão nhar, de pretender uma legitimidade e de a assegurar
livre esperam no entanto um pouco demasiado porque por meio de signos, e de traduzir, no mais banal dos
também vivem da ideologia difusa de mobilidade e de seus comportamentos e através do mais pequeno dos
crescimento. O nível das suas aspirações resulta, pois, seus objectos, a imanência de uma jurisdição que, apa­
exactamente de um compromisso entre um realismo rentemente, recusa.
alimentado pelos factos e um irrealismo mantido pela
ideologia ambiente — compromisso que reflecte por sua
vez a contradição interna à sociedade global. Retórica ambígua: triunfalismo e resignação.
Ora, este compromisso que os actores sociais rea­
lizam nos seus projectos de futuro e naqueles que se Ora este veredicto, para as categorias que nos
referem aos filhos, exprimem-nos também, e em primeiro interessam, nunca é positivo: o seu progresso na escala
lugar, nos objectos. social é sempre relativo, às vezes irrisório e, sobretudo,
a legitimidade, quer dizer, a possibilidade de fundar
em valor próprio a sua situação adquirida, escapa-lhes.
A ordem doméstica e o veredicto público. É essa legitimidade contrariada (no plano cultural, polí­
tico, profissional) que faz com que as classes médias
Importa levantar aqui uma possível objecção, a invistam com tanto afinco no universo privado, na pro­
de que a propriedade privada dos objectos criaria para priedade privada e na acumulação de objectos, auto­
estes uma jurisdição especial, que distinguiria absolu­ nomizando tudo isso por defeito, para tentar festejar
tamente os comportamentos relativos aos objectos pri­ assim uma vitória, um verdadeiro reconhecimento social
vados de todos os outros comportamentos, regidos pelos que lhes escapa.
26 27
Impôs desde o Império e Restauração, adaptada, por
? jque con.fere aos objectos neste «meio» um Nuu vez, aos modelos aristocráticos anteriores.
estatuto fundamentalmente ambíguo: por detrás do seu Tal ordem retórica «pequeno-burguesa» rege-se por
triunfalisano de signos da promoção social, eles osten­
tam (ou confessam) secretamente a derrota social. A sua dois modos essenciais: saturação e redundância por um
proliferaçao, «estilização» e a sua organização estão lado — simetria e hierarquia por outro lado. As interfe­
ancoradas ai, numa retórica que, para retomar os termos rências s ã o , evidentemente, numerosas (assim, a simetria
ae r. tíourdieu, e propriamente uma «retórica do de­ ó também uma redundância, mas inclui a centralidadej.
sespero». No entanto, os dois modos são bem distintos: um sa-
A maneira como os objectos se dão a ver e como turacão/redundância — exprime o inorgânico; o outro
— simetria/hierarquia — exprime a estrutura orgamca
querem, por âssim dizer, prevenir as objecções de valor
e como se submetem à jurisdição latente das hierar­ da referida ordem. Note-se ainda que este modos de
quias sociais embora recusando-as previamente, tudo organização não estão ligados, por essência, a ordem
isto, que constitui o drama vivido da propriedade pri­ burguesa ou pequeno-burguesa: procedem tambem de
vada figura igualmente uma paixão social e alimenta uma análise antropológica ou estética mais geral. Mas
o patético social deste discurso de objectos. Não esque­ aqui interessam-nos apenas por definição social, como
çamos, mutatis mutandis, que a exposição da colheita retórica específica de tal categoria social. ^
A saturação: sabemos que a casa burguesa e re-
m montículos nos jardins dos Trobriandeses é sempre chada sobre si própria e cheia como um ovo. Herança,
uma provocaçao uma competição, um desafio, mas igual­ ucumulação — são signos de «estatuto» e de abastança.
mente um rito destinado a fazer surgir uma ordem de Na mesma linha, o interior pequeno-burgues caracteri-
,UT a/ egJ a - j° g0 para nela se integrarem. za-se pelo amontoado. É certo que muitas vezes ha falta
No potlatch, é a destruição insolente dos objectos e das
riquezas que «constitui a prova». Na propriedade e no de espaço, mas essa penúria de espaço suscita por sua
consumo privados que conhecemos, e que aparentemente vez uma reacção de compensação: quanto menos espaço
se fundam na ordem individual, esse aspecto social se tem, mais se acumula (um pouco c o m o acontece nos
antagónico da prestação é como que conjurado, resol­ jogos radiofónicos em que, na ausência de motivaçoes
vido. Mas nao é isso que se passa; é mesmo possível culturais «nobres», joga o critério de memória quanti­
que os processos de uma sociedade de «consumo» reac- tativa). Às vezes, aliás, são certas salas ou cantos da
ívem fortemente essa função dos objectos como expoen­ casa que estão «cheios». O que importaria apreender,
tes «antagomcos». De qualquer modo, algo destas prá­ portanto, são de preferência os diversos aspectos ae um
ticas primitivas assombra ainda os objectos actuais e jogo entre o cheio e o vazio, uma logística que trans­
forma certos lugares em reservas, stocks, armazéns o
com <lue a sua presença nunca seja neutra e seja celeiro e a cave tinham antigamente um papel analogo.
sempre veemente. J
Amontoado puro e simples ou agregados de objectos
sintagmas parciais e resíduos, concepçoes smtaticas
conjunto: uma casa ou uma sala podem a s s i m ser topo-
As modalidades estilísticas. crafadas analiticamente. Uma vez mais, esta abordagem
não tem interesse se não for retomada por uma logica
Diversas modalidades estilísticas assinalam, ao ní- social: desde a acumulação da penúria ate a arquitec­
vel dos objectos, esta «retórica do desespero». Procedem tura reflectida, cada classe tem os seus modos proprios
todas de uma lógica (e de uma estética) da simulação de organização.
simulação dos modelos burgueses de organização do­
mestica. Devemos, aliás, assinalar que os modelos de
referencia não são os das classes superiores contempo- A táctica do vaso e do guarda-vaso.
raneas, na medida em que estas acederam a uma inven­ A redundância: é todo o envolvimento teatral e
ção muito mais ampla. A referência das classes «promo­ barroco da propriedade doméstica: a mesa e coberta
viveis» é a ordem burguesa tradicional, tal como se
29
com uma toalha, por sua vez recoberta com uma outra por excesso. Mas distingue-se ao mesmo tempo, por defei­
toalha de plástico. Cortinas e cortinados nas ianelas. to das classes superiores, sublinhando os limites do que
Tapetes, coberturas, roda-pés, apainelados, quebra-luz. ulcançou, e pela consciência implícita de que isso constitui
Cada bibelot esta assente sobre um napperon. Cada tudo quanto poderá alguma vez alcançar. Daí o duplo
rlor tem o seu vaso, cada vaso tem o seu guarda-vaso. movimento de triunfo e de resignação, nesse traço negro
Tudo esta protegido e encaixilhado. Até no jardim, cada que cerca todos os objectos como que para os encaixilhar,
conjunto de plantas está cercado por gradeamento, cada para os enobrecer, e que é conjuntamente um desario
area esta assinalada por tijolos ou mosaicos, etc. Pode laborioso às formas inacessíveis de posse. Na sociedade
analisar-se isto como uma compulsão ansiosa de se­ estratificada, a classe média fez um compromisso que
questro, como simbólica obsessional: não apenas pos­ iS o seu verdadeiro destino de classe social; e é esse com­
suir, mas sublinhar duas vezes, três vezes o que se pos­ promisso, sociologicamente definível, que se rerlecte no
sui, e a obsessão do habitante de um pavilhão e do ritual simultaneamente vitorioso e resignado com que
pequeno possuidor. Aqui, como noutros casos, é na re- envolve os seus objectos.
dundancia dos signos, nas suas conotações e na sua
sobrecarga, que o inconsciente fala.
Mas outra coisa fala também aí e é importante O «gosto» do antigo.
extrair outras conclusões:
Assim, pode fazer-se do objecto antigo toda uma
1. A sobrecarga dos signos possessivos, que psicologia, ou mesmo uma psicanálise (obsessão de au­
actuam a.qui como demonstrativos, pode ser analisada tenticidade, mística do passado, da origem, densidade
como a intenção não só de possuir mas também de «simbólica» e outros aspectos vividos mais ou menos
mostrar como se possui bem (‘). Ora, esta demonstração, conscientes). Mas o que nos interessa é a funçao social
esta sobredeterminação «de estilo» é sempre relativa distintiva, indissociável a todos os níveis da «substan­
ao grupo: tem não só a função psicológica de tranqui­ cia» psicológica vivida do «antigo».
lizarão proprietário sobre a sua posse, mas também a O objecto antigo pertence ao barroco cultural. U
tunçao sociologica de o filiar na classe dos indivíduos seu valor «estético» é sempre um valor derivado, nele
que possuem da mesma maneira. Assim, os próprios se apagam os estigmas da produção industrial e as run-
signos do privado actuam como signos de pertença so­ ções primárias. Por todas estas razões, o gosto do antigo
cial. Através deste ou daquele comportamento simbó­ é característico do desejo de transcender a dimensão do
lico, e ainda o imperativo cultural de classe que fala êxito económico, de consagrar por meio de um signo
.„ qiíe naY,a. tem, a ver> evidentemente, com uma cons­ simbólico, culturalizado e redundante, um exito social
ciência política de classe). ou uma posição privilegiada. O antigo e, entre outras
coisas, o êxito social a buscar uma legitimidade, uma
, interessante, a partir daqui, relacionar o hereditariedade, uma sanção «nobre».
caracter simultaneamente ansioso e triunfante destes Será, pois, um fenómeno de classes privilegiadas
comportamentos de posse com a posição específica da interessadas em transfigurar o seu estatuto economico
(.ou das) classe media na trajectória social. Como defi- em graça hereditária. Mas é também um fenomeno de
m-la. E uma classe que foi suficientemente longe para camadas assalariadas médias que, através da compra
interiorizar os modelos do triunfo social, mas não sufici­ de móveis rústicos (pouco importa se industriais) que­
entemente longe para interiorizar simultaneamente o seu rem igualmente consagrar o seu estatuto relativo como
rracasso. Distingue-se do proletariado pela conotação do promoção absoluta (em relação às classes inferiores).
que possui, pela sobrevalorização da sua posição relativa, E será também um fenómeno de sectores marginais
— intelectuais e artistas — onde o gosto do antigo tra­
() Cf. o criado de café de Sartre, cujo iogo suDersisnifi- duzirá mais a recusa (ou a filiação envergonhada) do
como orCfaz bem ° t£mt° qual(3uer coisa- c°mo fazer ver estatuto económico e da dimensão social, uma vontade

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de se situar fora das classes, alimentando-se, tal intento, envernizado, do polido, do folheado, do encerado, do
na reserva dos signos emblemáticos do passado anterior encausticado, do lacado, do lustrado, do vitrificado, do
à produção industrial 0 . plastificado. Toda uma ética da protecção, do cuidado
Mas não teria interesse verificar que uma classe e da limpeza, a convergir com o ritual disciplinar do
se alimenta na Alta Época, outra no rústico industrial enquadramento a que fizemos referência (os círculos
e', °Jltra a*nda no mobiliário camponês autêntico do concêntricos da propriedade: persianas, cortinas, corti­
século XVIII, para construir uma estratificação social nas duplas; lambris, roda-pés, tapeçarias; toalhas, nappe-
em termos de gosto: isto reflectiria apenas as imposi­ rons, cobertas de cama, pastas de secretária, etc.). Da
ções culturais e as leis do mercado. O que importa é mesma ordem também é o ordenamento simétrico em
ver, em cada nível, o postulado social específico que o que as coisas se duplicam para se reflectirem: trata-se
gosto do antigo exprime: de que classe social se de­ ainda de uma redundância. Assim, um objecto só existe
marca? Que posição social se sanciona? A que classe literalmente se se repete em si próprio e se nessa redun­
ou modelo de classe se aspira? Para além das relações dância especular se pode ler a equação fundamental
descritivas que põem simplesmente à vista um nível que é a da propriedade: A é A. Princípio económico
social e um tipo de objectos ou de comportamentos, é sancionado pela apropriação simbólica (diferentes tipos
a lógica cultural da mobilidade que é necessário de espelhos): é a lógica formal do ambiente «(pequeno)-
apreender Q. -burguês» O- Este ordenamento formal tem certamente
valor ideológico: como lógica euclidiana e aristotélica,
tende a esconjurar o devir social por meio de uma
O envernizado e o locado. ordem, a abolir as contradições num ritual tautológico.
A simetria (juntamente com a higiene e a morali­
Outros aspectos vêm confirmar o compromisso cul­ dade) é a representação «espontânea» da cultura que as
tura^ de classe ao nível do ambiente. É o triunfo do classes médias têm. O jogo com a assimetria mais não
condicionamento, do envolvimento por uma moralidade faz do que consagrar esta representação.
puritana omnipotente, da higiene ritual. É o triunfo do
O fanatismo moral do lar.
() Ou ainda na panóplia dos objectos «desviantes» na
moda: monstruosos,_ insólitos, bizarros, viciosos — tal como Nesta perspectiva, o polido, o envernizado (tal
florescem hoje nas vitrinas da Rive Gauche. Todo um inferno do como o enquadramento, a simetria) são a exaltação de
objecto_ «único» (ou de difusão restrita) na sua inutilidade ou
excentricidade, todo um inferno do objecto de luxo, que sonha um modelo cultural «trivial» que não é o da beleza nem
no fundo do Bairro Saint-Honoré. Quer dizer que a sua origi­ do adorno, mas o modelo moral da limpeza e da cor­
nalidade forçada deve interpretar-se como um desafio das recção. Aqui os objectos são inteiramente o equivalente
classes intelectuais marginais às esferas «legítimas» dos privile­ das crianças, a quem importa antes de mais inculcar
giados da sociedade industrial.
Os objectos desviantes agradam pela sua provocação, a as boas maneiras, que é preciso «civilizar» submeten­
sua não-legitimidade, embora reivindiquem, apesar de tudo, e do-as aos imperativos formais da boa educação.^ Ora,
por desafio, na sua ilegitimidade, um valor absoluto. Desafio trata-se de um compromisso de classe: a obsessão do
aos modelos absolutos, são também um desafio aos objectos impecável, o fanatismo do lar corresponde certamente
de série: querem-se absolutos na sua singularidade — conjuntura
exacta do intelectual «fora de classe». à exigência de ultrapassar a estrita necessidade do uso
C) Apenas continuam refractários — provisoriamente —
ao barroco_ do antigo, os camponeses cujas aspirações passam
pela rejeição dos signos do passado em favor do objecto de (í) Tendência oposta, nos seus princípios de «discreção»
serie moderno e funcional, e os operários porque escapam ainda (os objectos são individuados, unidades distintas na sua função
à mobilidade cultural e não têm um estatuto válido a defender e na forma) e de redundância, aos modernos princípios do
ou a legitimar. Sobre o «Antigo», cf. 0 Sistema dos Objectos, ambiente circundante: fluidez, polivalência, combinatória e inte­
o p. cit. gração móvel de elementos.
33

l/«VW»OAg<j UBERLAM»
em direcção a um parecer — imperativo da promoção consciência infeliz. No seu formalismo perfeicionista,
cultural; parecer esse que, dado o forte ethos de traba­ ela imita a arte pela arte, precisamente porque não é
lho e de mérito, não pode permitir-se os comportamen­ um verdadeiro trabalho nem uma verdadeira cultura.
tos da gratuitidade e da prodigalidade puras: será, assim, É uma sobrevalorização dos signos de civilização corta­
objecto de um contínuo agir, de um ritual doméstico dos da sua finalidade cultural: uma retórica. A retórica
laborioso, de um sacrifício doméstico quotidiano. da salvação doméstica, e não uma economia doméstica
O objecto envernizado satisfaz uma vasta categoria socio- racional. Triunfante e sofredora. Inalterável no seu
-cultural porque resume, contraditoriamente no plano dogma e no seu ritual e alienada no seu sentido. É a
formal, mas segundo uma lógica social bem cerrada, os verdadeira cultura do quotidiano.
imperativos da prestação de prestígio (valor de troca-
-signo) e da prestação de mérito (valor de uso e de
produtividade), oferecendo, deste modo, a figura de sín­ O privilégio do «natural».
tese de uma conspicuous morality.
Tal estatuto cultural do objecto entra em contra­ A lógica da diferenciação cultural vai impor, a um
dição directa com o seu estatuto prático. A consciência nível privilegiado, a negação e o desmentido destes
doméstica ilude a contradição de todas as maneiras: valores de polido, envernizado, cuidado, em proveito dos
«O objecto envernizado é mais belo, dura mais tempo», valores de franqueza, de «natural»: o bruto, o fosco,
e no limite do paradoxo: «o objecto encerado, plastifi­ o selvagem, o negligente. No entanto, esta «franqueza»
cado, conserva-se melhor, exige menos esforço», quando do objecto sancionada pelo gosto nada tem de «natural»;
na verdade esta solicitude é precisamente a do esforço ela é deduzida, a contrário, da devolução das classes infe­
e tem o efeito de tornar os objectos frágeis, e complicar riores pelo artificial, pela afectação barroca do cenário,
o seu manejo. De facto, o trabalho doméstico só secun­ pelos valores morais do velado, do revestido, do cui­
dariamente tem um objectivo prático (tomar os objectos dado, do lambido, pelos valores morais do esforço.
aptos ao uso): trata-se de um manejo de outra ordem O esmero é aqui uma falta cultural. A correcção (o con­
— simbólica — que por vezes eclipsa totalmente o uso dicionamento repressivo), as boas maneiras em matéria
prático (as pratas regularmente polidas sem nunca se­ de objectos, que noutros tempos foram os signos cultu­
rem postas na mesa). Se o imenso trabalho das mulheres rais da burguesia, são estigmatizados como traços dis­
no lar (crianças e objectos) não aparece nas contabili- tintivos das classes pequeno-burguesas que delas se apo­
dades nacionais, é certamente porque estas são demasia­ deraram. A função essencial dos valores de «sinceri­
do abstractas para recensear outra coisa além da rendabi- dade», de «autenticidade», de «despojamento», etc. — as
lidade social formal; mas é também porque esse trabalho, paredes em cimento bruto, as madeiras baças, as peles
na sua intenção profunda, não pertence profundamente «esfoladas», etc. — é, portanto, uma função de distinção
a um cálculo económico, mas sim a um cálculo simbó­ e a sua definição é, antes do mais, social.
lico e estatutário, ditado pela configuração das relações Ainda aqui se racionaliza; mas menos em termos
sociais de classe (*). de prática imediata («é mais prático», «lava-se melhor»)
Há aliás, nesta solicitude encarniçada, e para além que em termos de funções secundárias («contacto
da ética de realização que acabámos de analisar, um directo», «ambiência mais quente») é, sobretudo, em ter­
verdadeiro patético: ao contrário da prática concreta mos de estética funcional («abolição da decoração»,
que temos dos objectos, e que é sempre definida (pela «verdade do objecto», «promoção da forma», etc.): dei­
sua função), aquela solicitude é ilimitada — alimenta-se xa-se entender que os objectos obedeceriam, segundo um
e devora-se a si própria segundo os processos de uma progresso contínuo, a uma lógica estética interna que
os levaria finalmente a transparecer na sua «verdade»,
na síntese harmoniosa da sua função e da sua forma.
0) Um critério social essencial é o emprego de pessoal É a teoria fundamental do design. Ora, a hipótese do
doméstico para este trabalho (criada, mulher-a-dias, pessoal avanço progressivo, de modelo em modelo, até um está­
doméstico, etc.). Ter criada é sair da classe média. dio ideal do ambiente circundante, hipótese que se apoia
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secretamente na representação do progresso tecnoló­ guarda, o exclusivo que votava os pequeno-burgueses ao
gico, implica toda uma ideologia, porque mascara a fun­ lustro artificial e os cultos ao «despojamento natural»
ção social da inovação formal, que é uma função de é aparentemente levantado: aqui, tudo é recuperado,
discriminação cultural. A inovação formal em matéria todas as combinações são possíveis. Mas, mais uma vez,
de objectos não tem como fim um mundo ideal de o que aparece no plano formal como uma superação
objectos, mas um ideal social — o das classes privile­ no sentido de uma posição universal ganha a sua ver­
giadas, e que é o de reactualizar perpetuamente o seu dade numa significação social inversa: o termo univer­
privilégio cultural. sal (síntese das diferenças) torna-se um factor eficaz de
Inovação formal e discriminação social. discriminação, uma vez que só alguns eleitos vão poder
aceder àquele estádio da combinatória estética — encon­
A prioridade desta função social de discriminação trando-se os outros relegados para o manejo moral dos
sobre a função «estética» é legível na moda, onde podem objectos domésticos. O universal, em matéria de objec­
reactivar-se a cada instante as formas mais aberrantes tos e de cálculo de objectos (como noutros aspectos)
e arbitrárias no plano estético, com a única finalidade torna-se de novo o título de nobreza de uma categoria
de proporcionar material sempre renovado de signos particular.
distintivos. O cálculo estético encontra-se sempre mergulhado
Tudo isto para dizer que as oposições paradigmá­ na lógica social. É por não terem em conta este pro­
ticas envernizado/fosco, revestido/despojado, polido/ cesso ideológico que os designers se matam a popula­
/bruto, etc., não são apenas instrumentos de uma aná­ rizar formas «funcionais», «racionais», audaciosas, espan­
lise semiológica do mundo dos objectos, mas discrimi­ tando-se, contudo, por elas não seduzirem espontanea­
nantes sociais, traços não só formalmente distintos, mas mente o grande público. Ora, os criadores «populares»,
socialmente distintivos; o seu valor contextuai é eviden­ por detrás da sua piedosa ladainha (educar o gosto do
temente relativo, uma vez que o nu de uma parede público), promovem a sua estratégia inconsciente: os
tanto pode ser o da miséria bruta, como o da indigência, belos objectos modernos, estilizados, etc., são subtil­
ou o do luxo «brutalista». mente criados (a despeito de toda a boa-fé contrária)
Ainda por outras palavras: aquilo que se dá como para não serem compreendidos péla maioria, pelo menos
«universal» ao nível de uma lógica racional dos modelos, imediatamente; a sua função social é, em primeiro lugar,
como beleza realizada, como verdade absoluta da função a de serem signos distintivos, objectos que distinguirão
e da forma, não tem, no fundo, outra verdade senão aqueles que os distinguirem. Os outros nem sequer os
a da sua posição na lógica social que impõe — verdade verão (')■
efémera e relativa. Esse «universal» não passa de um
signo particular, de um expoente de classe. O efeito
de «beleza», de «natural», de «funcional» (no sentido (i) A mesma análise se pode fazer relativamente aos
ideal do funcionalismo) inscreve-se nesta relação de móveis (não já segundo o seu material, mas segundo a sua
função). A última descoberta da funcionalidade mobiliária é o
classe e não pode ser dela dissociado. elemento móvel, de partes encaixadas, que pode, com algumas
Num estádio ulterior, o privilégio estético já se almofadas, fazer de cama, de assentos, de arrumação, de biblio­
não prende nem ao vemiz, nem ao bruto, mas à liber­ teca, ou «simplesmente de coisa nenhuma (objecto puro): é o
dade de combinar à discrição todos os termos: o estojo Arquimóvel. Fórmula analítica audaciosa, polivalência total, fór­
mula incontestavelmente «racional». Fórmula que recorta para­
lacado acompanha com a madeira rugosa, o mármore, doxalmente as da Idade Média ou do meio camponês pobre,
liso com o cimento bruto, etc. (*). A este nível de van- onde o mesmo elemento — a arca — servia também de _mesa,
de banco, de cama, de armário. Mas o sentido é, evidente­
mente inverso: o elemento móvel contemporâneo, longe de ser
0 A mistura, actualmente em moda por toda a parte, uma solução de penúria, é a síntese de todas as funções dife­
na publicidade, na decoração, no vestuário, dá testemunho da renciadas e de todas as distinções luxuosas. É o cúmulo da
mesma «liberdade»: o geometrismo à Mondrian coexiste pacifi­ simplicidade, e os seus inventores, com base na (má) fé desta
camente com a versão psicadélica do estilo pingão. simplicidade aparente, transformam-no na solução económica

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Fluxo e refluxo dos signos distintivos. como participam (mais ou menos) ao imperativo uni­
versal da modalidade social. Por outras palavras: os
A contradição entre lógica racional e económica objectos, ao desempenharem o papel de expoentes do
e lógica cultural de classe afecta um outro aspecto estatuto social, e dado que tal estatuto se tornou vir­
essencial dos objectos: o seu estatuto no tempo, o seu tualmente móvel, atestarão sempre simultaneamente uma
ciclo de gasto e de renovação. situação adquirida (sempre o fizeram), mas também,
As diversas categorias de objectos têm longevidade ao inscreverem-se no ciclo distintivo da moda, virtua-
variável: habitação, mobiliário, electrodomésticos, TV, lidades de modalidade desse estatuto social.
roupa interior, vestuário, «gadgets». Mas no cálculo de Pode pensar-se que os objectos, pela sua presença
duração, para toda a gama de objectos, jogam duas material, têm primariamente a função de durar, de
variáveis distintas: a taxa de gasto real, inscrita na inscrever o estatuto social «em duro». Isto era verdade
sua estrutura técnica e no seu material — o valor que na sociedade tradicional, onde o cenário hereditário
tomam como património ou, inversamente, a obsoles- atestava a realização social e, no limite, a eternidade de
cencia acelerada devido à moda. O que aqui nos interessa uma situação adquirida. A descrição e a semântica
é este_valor segundo e a sua relação com a respectiva social do ambiente circundante podiam ser então rela­
situação numa sociedade industrial móvel e estratificada: tivamente simples. E, em certo sentido, continua a ser
em que é que se distingue tal grupo pela sua adesão assim: a qualquer nível social que nos situemos, há
mais ou menos forte ao efémero* e ao duradouro, qual sempre tendência a perpetuar nos objectos (e nos filhos)
é a diferente resposta dos grupos, segundo a sua posição uma situação adquirida. Os objectos de que nos rodea­
na escala social, aos imperativos de renovação acelerada mos constituem em primeiro lugar um balanço, uma
da moda? verificação (eventualmente resignada) do destino social.
Com efeito, a moda não reflecte uma necessidade Aliás, eles aparecem muitas vezes como que simbolica­
natural de mudança: o prazer de mudar de vestuário, mente enquadrados e fixados nas paredes, tal^ como
de objectos, de carro, vem sancionar psicologicamente antigamente o diploma de estudos. Uma posição, um
constrangimentos de outra ordem, que são constrangi- ■ destino: é o que os objectos fazem ver antes de tudo
mentos de diferenciação social e de prestígio. O efeito o mais. Portanto, o contrário de uma mobilidade social.
da moda só aparece em sociedades com mobilidade social Escolhidos, comprados, arrumados, fazem parte da rea­
(e para lá de um certo limiar de disponibilidades econó­ lização passada, não do êxito ascendente. Cercam o
micas). O estatuto social ascendente ou descendente homem na sua dimensão adscritiva. Mesmo quando
deve inscrever-se num fluxo e refluxo contínuo dos recobrem (e não é raro) o êxito social real, mesmo
signos distintivos. Tal classe já não está duradoura­ quando parecem optar pelo futuro, nunca é através dos
mente destinada a determinada categoria de objectos objectos que o homem social é móvel e se realiza.
(ou por determinado estilo de vestir): pelo contrário, É sobre eles que o homem se dobra; e, no máximo, os
todas as classes estão destinadas à mudança, todas objectos traduzem quase sempre as aspirações sociais
assumem como valor a necessidade da moda, assim contrariadas.
Esta função de inércia dos o b je cto s, de que resulta
um estatuto duradouro e por vezes hereditário, é actual­
e «popular» do futuro! Quanto aos preços, sempre realistas, mente contrariada por outra, a de significar a mudança
traduzem impiedosamente a lógica social: estas formas simples social. À medida que se sobe na escala social, os objectos
são um requinte caro. Também aqui se justifica a inovação for­
mal em termos de rigor, de economia, de «estrutra», por vezes, multiplicam-se, diversificam-se, renovam-se. Muito rapi­
ate, em termos de penúria e de urgência: «Se for necessário, damente, aliás, e sob o signo da moda, a sua circulação
a sua cama transforma-se em arrumação», etc. Qual o interesse? acelerada acaba por significar e fazer ver uma mobili­
Não é mais que um jogo e que joga sobre a necessidade: aqui dade social que não existe realmente. É já este o sentido
a moda é proeminente.^ A inovação técnica — real — não tem
como fim uma economia real, mas sim o jogo da distinção de certos mecanismos de substituição: muda-se de carrò
social. porque se não pode mudar de apartamento. É ainda
38 39
mais claro que a renovação acelerada dos objectos O luxo do efémero.
compensa muitas vezes a frustração de uma aspiração
ao progresso social e cultural. E é isso que tom a tão Vamos sair um pouco do domínio dos objectos
complexa a «leitura» dos objectos: nuns casos a sua para a arquitectura, a fim de ilustrar o que foi dito
mobilidade reflete o standing ascendente de tal cate­ sobre a moda e a distinção social de classe. Com efeito,
goria social, significando-o positivamente; noutros, pelo a arquitectura é um domínio em que a posição efémero/
contrário, vem compensar a inércia social de tal grupo /duradouro é muito sensível à imaginação.
ou indivíduo, cujo desejo de mobilidade, desiludido e Para uma certa vanguarda arquitectural, a verdade
contrariado, vem então inscrever-se na mobilidade arti­ do futuro habitat está na construção efémera: estruturas
ficial da decoração. móveis, variáveis, desmontáveis. Uma sociedade móvel
Põe-se aqui em causa toda a ideologia da moda. deve ter um habitat móvel. Ê verdade que isto se
A lógica formal da moda impõe uma mobilidade acres­ inscreve, sem dúvida, na exigência social e económica
cida de todos os signos sociais distintivos: corresponderá da modernidade. É verdade que o défice social que
esta mobilidade formal dos signos a uma mobilidade representa actualmente (e cada vez mais no futuro) a
real das estruturas sociais (profissionais, políticas, cul­ construção parcelar em duro e em duradouro é colossal:
turais) ? Por certo que não. A moda — e mais ampla­ esta contradiz a racionalidade económica e a das trocas
mente o consumo, que é inseparável da moda — mascara sociais, a tendência irreversível para maior mobilidade
uma inércia social profunda. Ela própria é factor de social, maior maleabilidade das infra-estruturas, etc. ().
inércia social, na medida em que, por meio das mudanças Mas, se por todas estas razões, a arquitectura efémera
à vista, e muitas vezes cíclicas, de objectos, de vestuário deve ser um dia a solução colectiva, ela é actualmente
e de ideias, nela se ilude e desilude a exigência de monopólio de uma fracção privilegiada cujo standing
mobilidade social real. À ilusão da mudança vem juntar- económico e cultural permite pôr em causa o mito
-se a ilusão democrática (é a mesma sob outro aspecto). do duradouro. 1
Pensa-se que o carácter efémero da moda elimina a Porque as gerações burguesas puderam disfrutar
hereditariedade dos signos distintivos e que ela dá a do cenário fixo e secular da propriedade é que os seus
todos, em cada momento do ciclo, igualdade de possibi­ herdeiros podem hoje dar-se ao luxo de renegar a pedra
lidades. Todos os objectos são revogáveis perante a trabalhada e exaltar o efémero: esta moda pertence-lhes.
instância da moda: isso bastaria para criar a igualdade Pelo contrário, todas as gerações das classes inferiores,
de todos perante os objectos. Ora, isto é evidentemente cujas possibilidades, no passado, de aceder aos modelos
falso: a moda, tal como a cultura de massas, fala a culturais ao mesmo tempo que à propriedade duradoira
todos para melhor colocar cada um no seu lugar. É uma foram nulas — a que poderiam elas aspirar senão a
das instituições que melhor restitui e funda, sob a
aparência de as abolir, a desigualdade cultural e a tendências inversas: a necessidade de mudar e a necessidade
discriminação social. Pretende ser uma espécie de segun­ nostálgica das coisas antigas. Na realidade, a função do new
da natureza, para além da lógica social: na realidade, look e da old fashion é de alternância: ela é o resultado, a todos
ela é inteiramente registada pela estratégia social de os níveis, de um constrangimento lógico do sistema—-o antigo
classe. A efemeridade «moderna» dos objectos (e outros e o novo não são relativos a necessidades contraditórias: sao
o paradigma «cíclico» da moda. O «moderno» é o n o v o e o
signos) é de facto um luxo de herdeiros (l). antigo — que já não têm valor temporal. Pela mesma razao, o
«moderno» não tem nada a ver com uma prática actual, com um^
mudança real ou com uma inovação de estrutura. O novo e o
mot*a — ^ sto ® que ela é característica das socie­ antigo, o neologismo e o arcaísmo, são homogéneos no jogo
dades «modernas» — realiza um compromisso entre a necessi­ da mudança.
dade de inovar e a de nada mudar na ordem fundamental. f1) Conviria, no entanto, ter em conta as funções latentes
Torna-se, portanto, um jogo da mudança. Neste jogo da novi­ e psicocolectivas do «duro», do sólido — poderosas funções
dade o novo e o antigo são funcionalmente equivalentes. A guiar­ de integração que entram também, por sua vez, no «orçamento»
mo-nos pela psicologia vivida, poderemos distinguir aqui duas social.
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viver também o modelo burguês, e a fundar, por sua IV
vez, para elas e para os seus filhos, uma dinastia irri­
sória no cimento dos apartamentos ou no calcário das UMA LÓGICA DE SEGREGAÇÃO
pequenas casas dos arredores (da cidade) — como pode
exigir-se actualmente destas classes «pramovíveis» que
não sacralizem o imobiliário e aceitem imediatamente
a idealidade das estruturas móveis? Elas estão votadas
a desejar o que dura, e esta aspiração mais não faz que
traduzir o seu destino cultural de classe.
Reciprocamente, o culto do efémero conota ideolo­
gicamente o privilégio da vanguarda: conforme a lógica
eterna ^da distinção cultural, uma fracção privilegiada
saboreia a instantaneidade e a mobilidade das estruturas
arquitecturais no momento em que os outros acedem
à justa à quadratura das suas paredes. Só as classes
privilegiadas ^ têm direito à actualidade dos modelos.
Os outros têm direito a ela quando os modelos já
mudaram. Vimos apenas alguns elementos de uma análise
Portanto, se pela lógica das formas, o efémero lógica dos mecanismos sociais que se articulam na função
representa a verdade da modernidade, se representa a distintiva dos objectos (e da sua prática). Apoiámo-nos
fórmula de futuro de uma sociedade racional e harmo­ nos elementos culturais tácticos da «classe média»
niosa, o sentido que ele toma no sistema cultural presente opondo-os aos de uma camada privilegiada. É evidente
é inteiramente diferente. Se no seu fundamento lógico, que tal simplificação é abusiva, e uma análise mais
a cultura joga com os dois termos distintos — efémero/ aprofundada deveria levar a uma classificação hierárquica
/ duradouro —, sem que nenhum possa ser autonomizado \ mais diferenciada, a uma estratificação mais subtil da
(a arquitectura será sempre um jogo de um para o outro), pirâmide social.
no sistema cultural de classe, pelo contrário, esta relação Qualquer esforço neste sentido, no sentido de uma
rebenta em dois poios distintivos, um dos quais, o análise lógica em termos de estratificação, corre, no entan­
efémero, se autonomiza em modelo cultural superior, to, o risco de nos fazer esquecer uma verdade fundamen­
remetendo o outro — o duradouro, para a obsolescência
e para as aspirações de uma maioria ingénua ('). tal: é que a análise sociológica não poderá ser apenas uma
análise lógica, mas também uma análise ideológica, ou
política. Por outras palavras, a função distintiva dos
objectos (e igualmente dos outros sistemas de signos
pertencentes ao «consumo») inscreve-se fundamental­
mente no interior de (ou desemboca em) uma função
discriminante: por isso, a análise lógica (em termos
tácticos de estratificação) deve também desembocar
numa análise política (em termos de estratégia de classe).
Antes de generalizarmos estas conclusões ao nível
do consumo, gostaríamos de mostrar, ao nível mais
simples, o da própria prática do objecto, como as dife­
(*) Há também, evidentemente, a questão do preço: a renças, longe de marcarem uma hierarquia social pro­
moda mais audaciosa, e portanto a mais efémera, é também
a mais cara, em todos os domínios. Mas o preço só vem san­ gressiva, provocam uma discriminação radical e uma
cionar o processo lógico de discriminação. segregação de facto, que votam certas «classes» e não
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outras a determinados signos, a determinadas práticas, E é a teoria social deste objecto-signo que desejaría­
e as conduz nesta vocação e neste destino segundo mos aqui fazer, na perspectiva de uma teoria geral do
toda uma sistemática social. Encontraremos assim o consumo.
rundamento para ver no consumo, dimensão da troca A evidência segundo a qual a televisão é comprada
generalizada dos signos, o lugar de uma intensa mani- com o fito de edificação cultural ou pelo simples prazer
pulaçao política.
das imagens, quer dizer, em função de um objectivo
pessoal deliberado, é sem dúvida cada vez mais enga­
nadora, à medida que se desce na escala social. Mais
Prática objectiva e prática ritual: o objecto-TV. profundamente que o interesse ou o prazer, que mais nao
fazem, muitas vezes, do que ratificar o constrangimento
Tomaremos como exemplo a televisão, mas sob uma social,’ joga o início de conformidade e de prestígio
optica um pouco particular: a do objecto-TV. Os inqué- (e importa preservar ao termo «índice» todo o seu
valor de injunção moral), que impõe a aquisição da TV
SSS S°1 e a TV for? ecem' com efeito, num primeiro (como do frigorífico, do automóvel e da máquina de
nível, algumas verdades sobre as diversas correlações
entre taxas de posse e volume de audiência, por um lavar). Retomando Stuart Mill, a posse deste ou daquele
ado, e rendimentos e nível de instrução, por outro. obiecto em si mesma é já um serviço social: cartao de
A nível mais complexo, debruçam-se sobre o modo cidadania, a TV é um penhor de reconhecimento, de
de audiência (familiar, colectivo, individual, misto), integração, de legitimidade social. A este nível quase
sobre a qualidade da atenção (fascinada, curiosa, difusa, inconsciente de resposta, é o objecto que está em causa
selectiva, distraída, etc.) sempre em relação com cate­ e não a sua função objectiva — e já não faz runçao
gorias sociais largamente recortadas. Todos estes inqué­ de objecto, mas função de prova. Expoente social, sera
ritos mcidem nas relações do utente com a mensagem valorizado enquanto tal: exposto e sobre-exposto. Como
elevisiva, com o discurso-TV. Com as imagens como pode ser visto nos interiores das classes medias (e ínre-
mass media. Omitem largamente a dimensão do pró- ' riores), onde a TV domina sempre sobre um pedestal,
prio objecto, do aparelho de televisão. Ora, é evidente focalizando a atenção como objecto.
que antes de ser um veículo de imagens, um emissor Admirar-nos-emos menos da «passividade» de que
ÍJ"* “ aJ «m receptor, a TV é primeiramente dá mostras o telespectador médio perante o conteúdo
um aparelho vendido por um fabricante a um particular das mensagens da TV, se considerarmos que implicita­
t um objecto comprado e possuído. Sem dúvida que mente toda a sua actividade social se concentrou no
o seu estatuto, a qualquer nível da escala social, nunca esforço de acumulação económica e, sobretudo, no
e apenas esse; mas este estatuto primário induz secre­ esforço de realização, na prestação simbólica que a
tamente um grande número de comportamentos culturais aquisição do próprio objecto constitui. E porque s
ambíguos na recepção das imagens. Ainda por outras considera, segundo uma avaliação ingénua, a compra
palavras, a procura divide-se entre procura de um objecto como uma satisfação e portanto como um processo
(produtor de imagens) e procura de imagens (veículos passivo, que a seguir se exige do utente uma «actividade»
e sentido). Embora a prática vivida as misture inextri- cultural. Talvez isso seja válido para as classes supe­
cavelmente, estas duas exigências são logicamente incom­ riores e instruídas, mas o inverso e que e verdadeiro
patíveis. Conforme a TV for tomada como objecto TV a um nível inferior: toda a actividade e investida na
ou como meio de comunicação, assim o discurso-TV apropriação do objecto como signo e como penhor, por
sera recebido como objecto ou como sentido. O estatuto um lado, e como capital, por outro; por isso,_ a propria
do objecto (signo) opõe-se à função objectiva (racional prática se transforma logicamente em satisfaçao passiva,
e pratica). Esta distinção recorta a distinção entre o usufruto, proveito e benefício, recompensa
valor de troca-signo e o valor de uso. Toda a lógica por um dever social cumprido. Porque o objecto e
social da cultura se inscreve nesta divergência radical. valorizado como penhor, só pode dar lugar a um
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economia magica (cf. Mauss e o valor de troca simbólica).
Porque o objecto é considerado capita1, só pode dar culturais superiores, autónomas (isto é, não submetidas
lugar a uma rendabilidade quantitativa: em ambos os a este imperativo latente de rendabilidade), e desquali­
casos, nao pode dar lugar a uma actividade cultural ficar-se à partida. Aquela passividade portanto, apresen-
autónoma, que procede de outro sistema de valores. tar-se-á de preferência como prazer, interesse, distracção
«livre», escolha espontânea. Mas tal prazer alegado é
_ Porque é um penhor, a apropriação do obiecto um desafio à objecção profunda, a de inferioridade cul­
nao se prolonga numa prática racional mas, logicamente tural que, sem dúvida, jamais se formulará. (A nfio
na sua continua demonstração, segundo um processo ser clandestinamente, nas recriminações rituais: «Como
de ostentação quase religiosa. Porque é um capital, o eles nos aborrecem com as suas histórias!» ou então:
objecto deve ser rendável. Nas sociedades industriais «É sempre a mesma coisa!» — simulacros por onde se
modernas, raramente o objecto é um puro feitiço (')■ indicam, por defeito, os processos culturais superiores:
° 1.m Perativo técnico de funcionamento juízo, selecção, etc.).
impoe-se. E preciso mostrar objectos em estado de fun­ «É preciso que isto sirva» traduz portanto, para
cionamento ou que servem para qualquer coisa. Não certas categorias sociais, a inutilidade deste objecto
anto como razão objectiva, mas como mana suple­ quanto aos fins culturais superiores. Quanto ao prazer,
mentar: se o objecto não funciona, perde o potencial a própria racionalização ritual de um processo, que não
de prestigio. Mesmo aqui o valor de uso é, no fundo, quer reconhecer que obedece primariamente, através
um alibi para o* valor de troca-signo. É preciso que deste objecto, a uma injunção social de prestação ritual
isto sirva: a rendabilidade é um imperativo moral, não conforme. Resumindo: a quantificação da visão, ligada
uma funçao económica. Por isso, logicamente, é nas à sua «passividade», remete para o imperativo socio-
mesmas categorias sociais em que o objecto TV é sacra- -económico da rendabilidade, remete para o objecto-
lizado como tal, fora da sua função de comunicação, -capital; mas esta «capitalização» talvez só venha sobre-
que se_ pratica a visao sistemática e não selectiva. Vê-se determinar ainda mais um constrangimento social mais
televisão todas as noites, seguem-se emissões diferentes profundo, que é o de prestação simbólica, de legitimação,
e sucessivas duma ponta à o,utra. À falta de uma eco­ de crédito social, de mana, a qual se prende por sua vez
nomia racional do objecto, dá-se a submissão deliberada ao objecto-feitiço.
norma económica formal e irracional: o tempo Tudo isto desenha uma configuração cultural de
de uso_ absoluto. A passividade aparente das longas horas classe: a de uma classe em que os fins racionais e autó­
de visao esconde, pois, uma paciência laboriosa. À falta nomos de uma cultura livremente exercida pela media?
H t a H qualltatlva’ ela exprime-se pela devoção quan­ ção de um objecto nem sequer são entrevistos e são,
titativa (tal como nos jogos radiofónicos pela memori- no entanto, interiorizados contraditoriamente; a de uma
como PeIa confrontar-se
como tal. faze-lo, seria SOTfte) (2)‘ Mas
comnão
as se confessa
actividades classe aculturada e resignada, cuja exigência de cultura,
consecutiva a uma relativa promoção social, é esconju­
rada para os objectos e para o seu culto ou, pelo menos,
para um compromisso cultural regido pelos constrangi*
mentos mágicos e económicos do colectivo: é o rosto
e a própria definição do consumo.
Outros índices vêm juntar-se em constelação aos
avariado, um aspirador ou um relógio escanea do volume e modo de audiência, segundo a mesma deter­
minação de classe: por exemplo, a situação do objecto
TV no espaço doméstico. A configuração mais frequente,
ao nível inferior: aparelho isolado, num ângulo, sobre
m o d o autónmío^ * d eftm d a -d e se definir culturalmente de um pedestal (mesa, móvel TV, estante), eventualmente
(capitalista) T f o í t e * i ^ S o í t^ ^ 8oded- de industrial coberto com um pano e um bibelot fora das horas de
audiência; a sala, pouco concebida tradicionalmente para
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tal uso (o rádio ainda não muda nada à ordenação das radical funda-se um privilégio cultural de classe que se
coisas) distribui-se mais ou menos como campo de visão: inscreve num privilégio social de essência.
a TV condena logicamente os altos móveis pesados, os Ê evidente que nem uma nem outra destas classes
lustres, etc. Mas o mais das vezes, a este nível, a TV sociais antagónicas existe em estado puro: mas a estra­
constitui um pólo excêntrico à centralidade tradicional tégia cultural de classe, essa existe em estado puro (_).
da sala. A um nível intermédio, o aparelho abaixa-se A realidade social (dentro da jurisdição da investigaçao
(ao mesmo tempo que os móveis) até à altura de visão empírica) faz aparecer dosagens hierárquicas, estatutos
das poltronas. Fica em cima de uma mesa baixa ou respectivos para cada «categoria» social. Mas a lógica,
encaixado num dispositivo. Já não é um pólo, e a recep­ social (dentro da jurisdição de uma análise teórica do
ção já não exige a postura colectiva consagrada: a sala sistema cultural) faz aparecer dois termos opostos: não
é menos centrada e, portanto, o aparelho menos excên­ os dois «pólos» de uma evolução, mas os dois termos
trico. No limite, no interior mais moderno e de alto exclusivos de uma oposição; e não apenas os dois termos
standing, dá-se a integração nos elementos ou na parede, distintos de uma oposição formal, mas os dois termos
com eclipse total do objecto-móvel. O objecto-TV deixa distintivos/exclusivos de uma discriminação social.
de existir como monumento, e por isso mesmo deixa de
de ser objecto de um rito (ao mesmo tempo, a sala torna-se
arejada com espaços independentes, esbatem-se as fontes O alibi democrático: o «universo» do consumo.
luminosas, etc.).
Outros aspectos significativos: a iluminação am­ Tal lógica cultural de classe nunca é, evidentemente,
biente — segundo se recria, na obscuridade, a visão fas- manifesta: pelo contrário, o consumo apresenta-se como
cinada do cinema, ou a luz é apenas velada, ou normal. função social democrática e é nisso que ele pode jogar
O comportamento: circula-se livremente ou ninguém se como instituição de classe. O consumo apresenta-se como
mexe. Todas estas escalas de índices podem ser correla­ função das necessidades humanas — os objectos, os bens,
cionadas com a escala capital de volume e selectividade os serviços, tudo isso «responde» às motivações univer­
do uso, para desenhar uma estrutura coerente para cada sais do anthropos individual e social — e portanto, como
nível da escala social. Mas, e isto é para nós o ponto função empírica universal. Nesta base, poderá mesmo
essencial, o processo de inquérito e as correlações empí­ afirmar-se (é o leitmotiv dos ideólogos do consumo) <]ue
ricas, por mais subtis que sejam, nunca nos darão mais ele tem como função corrigir as desigualdades sociais
que a imagem de uma sociedade estratificada. Desde a de uma sociedade estratificada: perante a hierarquia do
ostentação sagrada até ao uso colectivo, desde o rito poder e da origem social, haveria a democracia do lazer,
doméstico até ao exercício cultural autónomo, os inqué­ da auto-estrada e do frigorífico.
ritos descrever-nos-ão todo o leque diferencial transiti­ A lógica cultural de classe na sociedade burguesa
vamente, de uma categoria à outra, sem que nunca seja funda-se sempre no alibi democrático dos universais.
marcada a discriminação teórica que opõe as práticas A religião foi um universal. Os ideais humanistas de
rituais centradas no objecto às práticas racionais centra- liberdade e de igualdade foram universais. Actualmente,
S- na função e no sentido. Só uma teoria da cultura o universal toma a evidência absoluta do^ concreto: são
pode dar conta deste corte teórico, no qual se funda uma as necessidades humanas e os bens materiais e culturais
estratégia social antagónica. Os trabalhos empíricos ape­ que lhe respondem. Ë o universal do consumo.
nas revelam (e não podem revelar outra) a lógica da
estratificação (distinção/inclusão/transição por patama­
re s— ascendência contínua); a análise teórica, por sua O Do mesmo modo que nem a burguesia nem o prole­
vez, faz surgir uma lógica de classe (distinção/exclusão). tariado jamais estiveram sozinhos face a face nem nunca exis­
tiram em estado puro na sociedade real, o que não impeae
Há aqueles para quem a TV é um objecto, e há aqueles que a lógica e a estratégia de classe se definam e actuem con-
para quem ela é um exercício cultural: nesta oposição cretamente segundo este modelo antagónico.

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Esta ambiguidade do consumo — a saber, que ela rente, produtos de higiene para homens e curiosidade
parece funcionar como factor de democratização numa intelectual (viagens ao estrangeiro, falar uma língua
sociedade que se diz estratificada, e isso para melhor estrangeira)!
funcionar como instituição de classe — encontra a sua Trata-se aqui, portanto, de formalizar por meio de
mais viva ilustração no recente inquérito das Selecções um esquema artificial de estratificação (A e não-A) rea­
do Reader’s Digest sobre a Europa dos consumidores 0). lidades sociais já deliberadamente simplificadas e recon­
duzidas a índices formais de consumo. O político, o
«221 750 000 consumidores (Mercado Comum e Grã- social, o económico (estruturas de produção e de mer­
-Bretanha)»: deste gigantesco quadro económico que cado), o cultural — todos estes aspectos se volatilizam.
apresenta o essencial dos dados quantificados e directa­ Apenas fica o quantificável ao nível do individual/mas-
mente comparáveis sobre o modo de vida, hábitos de sificado, o balanço estatístico dos bens de consumo
consumo, opiniões, atitudes e bens possuídos pelos habi­ tomados como indicadores absolutos da essência
tantes dos sete países, A. Piatier destaca um certo número social (’)• Sobressai, deste modo, uma élite portadora,
de perspectivas: não de valores nem de poder, mas de objectos, duma
«Graças a verificações complementares, foi possível panóplia de gadgets de luxo, em que se inscreve material­
isolar sistematicamente as respostas do grupo A (qua­ mente, para lá das ideologias, a «ideia» da Europa. Este
dros superiores) e confrontá-las com as do conjunto ideal europeu assim definido vai permitir orientar sis­
dos outros grupos. tematicamente e sancionar as aspirações confusas das
«Parece que se pode falar, para o Mercado Comum massas consumidoras: ser europeu consistirá em passar
e Grã-Bretanha, de uma civilização dos A ou, para usar da trindade da TV, do frigorífico e da máquina de lavar,
uma expressão mais figurada, de uma civilização dos à trindade sublime do carro de desporto, do conjunto
colarinhos brancos; estes, e é um dos resultados mais estereofónico e da casa de campo.
interessantes do estudo das Selecções, parecem suscép- Ora, por detrás deste grupo dos A, esquema direc­
tíveis de representar, para lá das fronteiras, um grupo tor da ideia europeia, há, por certo, uma realidade euro­
homogéneo. peia. É a solidariedade mais ou menos forçada das bur­
«Segundo esta hipótese, os habitantes dos sete paí­ guesias europeias ocidentais, industriais e tecnocráticas,
ses teriam, portanto, um modelo comum de consumo; na competição mundial. Mas esta estratégia comum, esta
no processo de desenvolvimento do consumo, o grupo A Internacional política é aqui recoberta por uma Interna­
poderia constituir uma espécie de esquema director para cional do standing. Esta solidariedade muito real reves­
o qual tenderia o resto da população à medida do cres­ te-se da solidariedade formal das massas consumidoras
cimento dos seus rendimentos.» (tanto mais formais são os seus índices, os bens de
consumo, quanto mais «concretos»). A Europa dos trusts
Os indices de conjunto em relação aos quais se põe a máscara da Europa da cilindrada, do living-room
dividem o grupo dos A (quadros superiores, profissões e do ice-cream.
liberais, grandes chefes de empresa da indústria e do
comércio) e o grupo dos não-A são: equipamento de
luxo (máquina de lavar loiça, gravador, câmara de fil­
mar, etc.), alimentação de luxo,, conforto de habitação Os «A» e os «Não-A».
e automóvel, produtos de higiene para mulheres, equipa­
mento doméstico de base (televisão, frigorífico, máquina Na realidade, este esquema de estratificação inter­
de lavar, etc.), produtos de limpeza, alimentação cor- nacional visa sobretudo, sob o símbolo da «Europa»,
uma operação política de integração nacional, própria
0 «Estruturas e perspectivas do consumo europeu»
(Andre Piatier), Paris, 1967, publicado pelas Selecções do Rea­ (l) Processo muito mais suspeito ainda que a escala do
der’s Digest.
living-room de Chapin (cf. mais atrás).

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a cada um dos países em questão — e isso, não só uo cimo paradoxal em que todos gozariam do mesmo
através do consumo, mas também através da estratifi­ standing prestigiante. Essa falsa dinâmica é, na realidade,
cação. Com efeito, poderia ter-se esquematizado por inteiramente percorrida pela inércia de um sistema
meio de um modelo complexo; mas a astúcia estatística social imutável na discriminação dos poderes reais;
consiste aqui em esquematizar num modelo em dois — ilusão de uma «democracia» do consumo. Com
termos, simples e surpreendentes: o grupo dos «A» base em balanços de objectos podem ligar-se formal­
e dos «Outros», os «não-A». Deste modo é esconjurado, mente categorias sociais muito distantes: a discrimi­
numa dicotomia estatística, o velho espantalho do duelo nação real faz-se ao nível das práticas selectivas (a esco­
de classe antagónicas: continuam a ser duas, mas é lha, o gosto, etc.) e principalmente da adesão mais ou
um conflito — os dois termos transformando-se nos dois menos forte aos próprios valores do consumo. Este
pólos de «dinâmica social». Tal divisão táctica tem como último ponto requer alguns comentários O-
efeito (e como objectivo) neutralizar os extremos e O inquérito faz parecer nítidas disparidades em
portanto qualquer contradição que daí pudesse resultar certos sectores entre os A e os não-A: equipamento,
no plano social: existe um nível-modelo (esquema direc­ alimentação de luxo, curiosidade intelectual (!). Noutros
tor) e — todos os outros. Estes, misturados pela esta­ sectores, os autores assinalam (triunfalmente) a fraca
tística, aparecem apenas como uma população, uma disparidade entre os modos de vida dos A e dos não-A.
imensa e virtual classe média, já moralmente aculturada Por exemplo, a alimentação corrente, o equipamento
aos fastos das classes privilegiadas. Acaba a distorção de base, os produtos de higiene. A disparidade atinge
radical entre o chefe de empresa e o assalariado de o grau mais fraco nos países mais ricos: Alemanha, Grã-
base, uma vez que este, estatisticamente confundido -Bretanha, Holanda. Na Grã-Bretanha, o consumo médio
com as classes médias, se vê creditado com um standing dos não-A em produtos de higiene para homem é mesmo
médio e prometido ao das classes superiores. Do fundo superior ao dos A! O critério dos bens consumidos não
ao cimo da escala, ninguém é inexoravelmente distan­ é, pois, decisivo: a desigualdade fundamental está noutro
ciado. Nem mais extremos nem mais tensão: a fronteira sítio. Mesmo se, escapando ao inquérito, a desigualdade
formal entre os A e os não-A está presente apenas se torna mais subtil, (2) é para além dos números, das
para melhor atrair a aspiração ao nível superior e a estatísticas e do próprio inquérito que é preciso procurar
ilusão de um reagrupamento generalizado, a mais ou o que ele não quer dizer, o que tem como função
menos longo prazo, no paraíso dos A. Porque a «Europa», esconder: é que o consumo, com os seus falsos aparen-
bem entendido, só poderá ser democrática. tamentos sociais, encobre a verdadeira estratégia política
Dois grupos em oposição formal e em homoge­ e portanto é, ele próprio, um dos elementos essenciais
neidade virtual: esta estratificação simplificada ao extre­ dessa estratégia política.
mo é o coroamento da sociologia integrativa de base
estatística — em que toda a lógica social da contradição
social é volatilizada. Este esquema em dois termos é Uma moral de escravos.
um esquema mágico de integração: a divisão arbitrária
de signos distintivos sobre uma mesma escala permite Toda uma nova concepção da estratégia de classe
sugerir um modelo internacional de distinção (os A) se organiza à volta da posse de bens materiais e culturais.
preservando no entanto um modelo internacional de Simula-se que se universalizam os valores e os critérios
democracia: a ideia da Europa — a qual, na realidade, de consumo apenas para melhor destinar as classes
é muito simplesmente a da homogeneização virtual de
todas as categorias sociais sob a constelação benéfica
dos objectos. 0) Sobre a prática como marca do destino social, reme­
Dupla mistificação: temos para mais atrás.
— ilusão de uma dinâmica do consumo, de uma (2) Por exemplo o facto de adquirir tal modelo um mês
espiral ascendente de satisfações e de distinções, até ou dia antes dos outros, pode constituir um privilégio radical.
A sociedade é aqui, a maior parte das vezes, ingénua
«irresponsáveis» (sem poder de decisão) ao consumo, e e cúmplice: toma a ideologia do consumo pelo própno
desse modo preservar para as classes dirigentes o exclu­ consumo. Fingindo crer que os objectos e o consumo
sivo dos seus poderes. A fronteira formal que os esta­ (como outrora os princípios morais e a religião) tem o
tísticos traçam entre os A e os não-A é, por certo, mesmo sentido no cimo e no fundo da escala social,
fundamentalmente uma barreira social; mas não separa ela dá crédito ao mito universal do standing e nessa
os que gozam de um standing superior dos que dele base se vai sociologizando, ponderando, estratificando,
gozarão mais tarde: distingue aqueles que são consu­ correlacionando ao sabor dos números.
midores privilegiados, por acréscimo, aqueles para quem Ora o que importa ler, o que importa saber ler
o prestígio do consumo é de algum modo o usufruto na superioridade da uper ciass em equipamento electro­
do seu privilégio fundamental (político e cultural e doméstico ou em alimentação de luxo, nao e justamente
aqueles que são votados ao consumo e a resignar-se-lhe o seu avanço na escala dos benefícios materiais, mas o
triunfalmente como ao próprio signo da sua relegação seu privilégio absoluto, que advém do facto de a sua
social, para os quais o consumo e a própria profusão proeminência não se fundar justamente nos signos do
dos objectos marca o limite das possibilidades sociais, prestígio e da abundância, mas alhures, nas esferas
aqueles para quem a exigência de cultura, de responsa­ reais de decisão, de gestão, de poder político e econo-
bilidade social e de realização pessoal é reduzida a mico, na manipulação dos signos e dos homens — reme­
necessidades e absorvida nos objectos que as satisfazem. tendo os «Outros», as lower e as middle classes, para os
Nesta perspectiva, que não é legível ao nível dos meca­ fantasmas da terra prometida.
nismos aparentes, o consumo, os valores do consumo
definem-se como o próprio critério duma discriminação
nova: a adesão a estes valores funciona como uma nova
moral para uso dos escravos.
Importa perguntar se a salvação social através do
consumo, se a prodigalidade, o gasto sumptuário, outrora
apanágio dos chefes e dos grandes, não estão a ser
concedidos às classes inferiores e médias — tendo este
critério selectivo, enquanto fundamento de poder, cedido
desde há muito o lugar aos critérios de produção, de
responsabilidade, de decisão económica e política.
Importa perguntar se algumas classes não esta­
riam votadas a alcançar a salvação nos objectos, votadas
a um destino social de consumo — herdeiras das classes
servas e subalternas ou dos gineceus votados às para­
phernalia— portanto, destinadas a uma moral de escra­
vos (gozo, imoralidade, irresponsabilidade), oposta a
uma moral dos senhores (responsabilidade e poder).
Neste sentido, é absurdo falar da «sociedade de
consumo» como se o consumo fosse um sistema de
valores universal, próprio de todos os homens, uma
vez que fundado na satisfação das necessidades indivi­
duais. Na verdade, trata-se de uma instituição e de uma
moral e, a este título, em qualquer sociedade passada
ou futura, de um elemento da estratégia do poder.
55
Segunda Parte

A GÉNESE IDEOLÓGICA DAS NECESSIDADES (*)

(*) Publicado em Cahiers internationaux de sociologie, 1969.


I
O CONSUMO COMO LÓGICA DAS SIGNIFICAÇÕES

O «objecto» dado, empírico, na sua contingência


As satisfações sonhadoras do consumo envolvem-nos, de forma, de cor, de material, de função e de discurso,
como no travelling do sonho, agarradas aos objectos ou, se é cultural, na sua finalidade estética, esse objecto
como aos resíduos diurnos, e a lógica que regula este é um mito. Esconde-te, disseram-lhe. Mas o objecto
discurso — o equivalente da adoptada por Freud na não é nada. Não é nada mais do que os diferentes tipos
Interpretação dos Sonhos — está por encontrar. Estamos de relações e de significações que vêm convergir, con-
ainda na psicologia ingénua e na chave dos sonhos. tradizer-se, ligar-se sobre ele enquanto tal. Não é nada
Cremos no «Consumo»: cremos num sujeito real, movido mais que a lógica escondida que ordena este feixe de
por necessidade e confrontado com objectos reais, fontes relações ao mesmo tempo que o discurso manifesto
de satisfação. Metafísica vulgar de que a psicologia, que o oculta.
a sociologia e a ciência económica são cúmplices. Objecto,
consumo, necessidades, aspiração: é necessário descons-
truir todas estas noções, porque não se teoriza melhor
a evidência da vida quotidiana do que a do sonho ou
o seu discurso manifesto; são os processos e o trabalho O estatuto lógico dos objectos.
do sonho que é necessário analisar para encontrar a
lógica, inconsciente, de um outro discurso. Do mesmo Na medida em que me sirvo do frigorífico como
modo, são os processos e o trabalho da lógica social de uma máquina, ele não é um objecto, é um frigorífico.
inconsciente que é necessário encontrar por debaixo Falar de um frigorífico ou de um automóvel em termos
da ideologia consagrada do consumo. de «objectos» não é precisamente falar deles no seu
sentido «objectivo», quer dizer na sua relação objectiva
com o frio e a deslocação; é falar deles como que descon-
textualizados da sua função. Quer seja:
1. Como objecto de investimento e de fascínio,
de paixão e de projecção — qualificado pela sua relação
total, exclusiva, com o sujeito, que assim o investe
como seu corpo próprio (no limite). Inútil e sublime,
o objecto perde então o seu nome comum e designa-se
pelo termo «Objecto» (maiúscula), como um nome pró-
58 59
prio genérico. Assim o coleccionador não diz de uma outro lado, não se inserem na troca económica, também
estatueta ou de um vaso que se trata de uma bela não podem ser alvo de sistematização em termos de
estatueta ou de um belo vaso, mas de «um belo Objecto». mercadoria e de valor de troca.
Tal estatuto opõe-se à significação genérica inversa do O que constitui o objecto como valor na troca
dicionário, a de «objecto» (minúscula): «Frigorífico: simbólica é o facto de nos separarmos dele para o dar,
objecto que serve para...» para o lançar aos pés do outro, aos olhos do outro
2. Ou ( entre o Objecto, com maiúscula, com (ob-jicere); é o facto de nos desapossarmos dele como
estatuto de nome proprio e de equivalente projectivo de uma parte de nós próprios e que se constitui como
do sujeito, e o objecto, com minúscula, com estatuto significante, o qual funda sempre simultaneamente a
de nome comum e de utensílio) como objecto especi­ presença dos dois termos entre si e a sua ausência
ficado pela sua MARCA, carregado de conotações dife­ (distância). Daí a ambivalência de todo o material de
renciais de estatuto, de prestígio e de moda. É este o troca simbólica (olhares, objectos, sonhos, excrementos):
«objecto de consumo». Pode ser um frigorífico, um médium da relação e da distância, um presente é sem­
vaso ou outra coisa qualquer. Falando com propriedade, pre amor e agressão C).
ele não existe, tal como o fonema, em linguística, não
tem sentido absoluto. Este objecto não ganha sentido,
nem numa relação simbólica com o sujeito (o «Objecto»), Da troca simbólica ao valor/signo.
nem numa relação operatória com o mundo (o objecto-
-utensílio); só ganha sentido na diferença com outros É a partir do momento (teoricamente isolável)
objectos, segundo um código de significações hierar­ em que a troca deixa de ser puramente transitiva, em
quizadas. Só isto, sob pena das piores confusões, define que o objecto (o material da troca) se imediatiza
o objecto de consumo. enquanto tal, que ele se reifica enquanto signo. Em vez
de se abolir na relação que funda, e desse modo tomar
o seu valor simbólico (como no presente), o objecto
/ torna-se autónomo, intransitivo, opaco, e passa a signi­
Sobre o valor de troca simbólica. ficar, pelo mesmo facto, a abolição da relação. O objecto-
-signo já não é aquele significante movediço da falha
Na troca simbólica, cuja ilustração mais próxima entre dois seres; é «relação» reificada (como, ^ noutro
para nós é o presente, o objecto não é objecto: ele é plano, a mercadoria é força de trabalho reificada).
indissociável da relação concreta em que é trocado, No ponto em que o símbolo remetia para a falha
do pacto transferencial que sela entre duas pessoas: (para a ausência) como relação virtual de desejo,^ o
não se pode, portanto, autonomizar enquanto tal. Para objecto-signo apenas remete para a ausência de relação,
falar com propriedade, ele não tem nem valor de uso e para sujeitos individuais separados.
nem valor de troca económica: o objecto dado tem O objecto-signo já não é dado nem trocado: é
valor de troca simbólica. Ê esse o paradoxo do presente: apropriado, mantido e manipulado pelos sujeitos indi­
é simultaneamente arbitrário (relativamente): qualquer viduais como signo, quer dizer, como diferença codifi­
objecto, contanto que seja dado, pode significar plena­ cada. É ele o objecto de consumo, e é sempre relação
mente a relação. No entanto, desde que — e porque — social abolida, reificada, «significada» num código.
é dado, é aquele e não outro. O presente é único, O que percebemos no objecto «simbólico» (o pre­
especificado pelas pessoas e pelo momento único da sente, e também o objecto tradicional, ritual ou arte-
troca. Ê arbitrário, e no entanto, absolutamente singular.
Diferentemente da língua, cujo material pode ser (í) Por isso a estrutura de troca (cf. Lévi-Strauss) nunca
dissociado dos sujeitos que a falam, o material de troca é a da simples reciprocidade. Não são dois termos simples,
simbólica, os objectos dados não se podem autonomizar mas dois termos ambivalentes que trocam, e a troca funda a
nem, portanto, codificar-se como signos. E porque, por sua relação como ambivalente.

60 61
sanai) é não só a manifestação concreta de uma relação A aliança: A aliança, símbolo da relação de casal,
total (ambivalente, e total porque ambivalente) de desejo, ò um objecto único. Não se pode trocá-la (salvo acidente),
mas também, através da singularidade de um objecto, nem usar várias. O objecto simbólico éfeito para durar
a transparência das relações sociais numa relação dual e testemunhar pela duração a permanência da relação.
ou numa relação^ de grupo integrada. O que percebemos Tal como ao nível da instrumentalidade pura, a moda
na mercadoria é a opacidade das relações sociais de não actua no plano estritamente simbólico.
produção e a realidade da divisão do trabalho. O que O anel simples é diferente: já não simboliza uma
percebemos na actual profusão dos objectos-signos, dos relação. Ê um objecto não singular, uma gratificação indi­
objectos de consumo, é a opacidade, a imposição total vidual, um signo à vista dos outros. Posso usar vános,
do codigo que rege o valor social, é o peso específico posso mudá-los. Entra num jogo de acessórios e na cons­
dos signos que regem a lógica social das trocas. telação da moda. É objecto de consumo.
O objecto tornado signo já não ganha o seu A própria aliança entra actualmente, nos Estados
sentido na relação concreta entre duas pessoas; ganha Unidos da América, nesta nova lógica. Os casais são enco­
o seu sentido na relação diferencial com outros signos. rajados a mudá-la todos os anos. Aquilo que foi símbolo
Um pouco à maneira dos mitos em Lévi-Strauss, os da relação comum integra-se na moda, que se institui
objectos-signos trocam-se entre si. É somente então, como sistema autoritário no próprio coração da relaçao
quando os objectos se autonomizam enquanto signos pessoal e a tom a uma relação «personalizada».
diferenciais e assim se tornam (relativamente) sistema­ A habitação: Casa, habitação, apartamento: matizes
tizáveis, que se pode falar de consumo e de objectos sem ânticos, ligados à produção industrial e ao standing
de consumo. _mas a qualquer nível que nos situemos em França,
o habitat actualmente não é percebido como bem «de
consumo». Permanece muito próximo do bem patrimo­
Uma lógica das significações. nial e o seu esquema simbólico é ainda, em larga medida,
o do corpo; ora, para que uma lógica do consumo se
É necessário pois, distinguir a lógica do consumo, estabeleça, é necessária a exterioridade do signo, e neces­
que e uma lógica do signo e da diferença, de várias sário que a casa deixe de ser hereditária ou interiorizada
outras lógicas que aí se prendem habitualmente, por como espaço orgânico da Família. É necessário sair da
torça da evidência (confusão repercutida por toda a filiação e da identificação para entrar na moda.
literatura ingénua ou autorizada no assunto). Quatro Por outras palavras, a prática do habitat e amda,
lógicas estariam em causa: em grande medida, função de determinações:
1. A lógica funcional do valor de uso; — simbólicas (investimento profundo, etc.);
2. A lógica económica do valor de troca; — económicas e de penúria.
3. A lógica da troca simbólica; Aliás, estão ambas ligadas: só um certo «rendimento
4. A lógica do valor/signo. discricionário» permite jogar com os objectos como
A primeira é uma lógica das operações práticas signos de estatuto — estádio da moda e do jogo, em que
A segunda é uma lógica da equivalência. se esgotam ao mesmo tempo o simbólico e o utilitário.
A terceira é uma lógica da ambivalência. Ora, em questão de domicílio, pelo menos em França,
A quarta é uma lógica da diferença. é restrita a margem para o jogo, para a combinatória
,, . aj]n da; lógica da utilidade, lógica do mercado, móvel do prestígio, para a mudança. Pelo contrário,
logica do dom, lógica do estatutp. Conforme se ordena nos Estados Unidos, vgmos que o alojamento se integra
segundo uma ou segundo outra, o objecto toma, res­ na mobilidade social, na trajectória de carreira e de
pectivamente, o estatuto de utensílio, de mercadoria, de estatuto. Ligada à constelação global do estatuto, e sub­
símbolo, ou de signo. metida à mesma obsolescência acelerada que qualquer
Apenas a última define o campo específico do outro objecto de standing, a casa torna-se verdadeira­
consumo. Dois exemplos: mente objecto de consumo.
62 63
O exemplo é, aliás, interessante: fere de inutilidade O nome comum, o nome próprio e a marca.
todas as tentativas empíricas de definição dó objecto.
Lápis, livro, estofo, alimento, bibelots, automóvel — são Resumamos os diversos estatutos do objecto
objectos? A casa é objecto? Há quem o conteste. A ques­ segundo as lógicas específicas e (teoricamente) exclusi­
tão decisiva é saber se a simbólica da casa (sustentada vas que o atravessam:
pela penúria do habitat) é irredutível, ou se a casa pode 1. O frigorífico é especificado pela sua função e
também cair na lógica das conotações diferenciais e rei- insubstituível enquanto tal. Há uma relação necessária
ficadas da moda: nesse caso ela toma-se objecto de entre o objecto e a sua função: não há signo arbitrá­
consumo — como outra coisa qualquer, por pouco que rio. Mas todos os frigoríficos são substituíveis en­
corresponda à mesma definição: ser, traço cultural, ideia, quanto tais relativamente a tal função (no seu sentido
gesto, linguagem, etc., tudo pode corresponder ao con­ objectivo).
sumo e tornar-se objecto dele. A definição é independente 2. Pelo contrário, se o frigorífico é tomado como
dos objectos e unicamente função da lógica das signi­ elemento de conforto, ou de standing, então qualquer
ficações. outro elemento de conforto ou de standing pode substi­
Não existe verdadeiro objecto de consumo a não tuí-lo. O objecto tende para o estatuto de signo, e cada
ser desligado: estatuto social será significado por toda uma constela­
— das suas determinações psíquicas como símbolo; ção de signos susceptíveis de troca mútua. Não já rela­
— das suas determinações de função como uten­ ção necessária com o mundo e o sujeito, mas relação
sílio; sistemática obrigatória com todos os outros signos. Nesta
abstracção combinatória temos os elementos de um
— das suas determinações mercantis de produto; código.
portanto, liberto como signo, e retomado pela lógica
formal da moda, isto é, pela lógica da diferenciação. 3. Na sua relação simbólica com o sujeito (ou na
troca recíproca), todos os objectos são virtualmente subs­
tituíveis. Qualquer objecto pode servir de boneca à
menina. Mas, uma vez investido, é esse e não outro.
Ordem dos signos e ordem social. O material simbólico é relativamente arbitrário, mas a
relação sujeito-objecto é ligada. O discurso simbólico
Não há objecto de consumo senão a partir do é um idioma.
momento em que se muda de objecto, e em que tal 1. O uso funcional do objecto passa pela sua
mudança é determinada pela LEI SOCIAL, que é a lei estrutura técnica e pela sua manipulação prática. Pelo
da renovação do material distintivo e da inscrição obri­ seu nome comum: frigorífico.
gatória dos indivíduos, através da mediação do seu grupo 2. O uso do objecto-símbolo passa pela sua pre­
e em função da sua relação com os outros grupos, sença concreta e pelo seu nome «próprio». A posse, a
na escala de estatuto que é propriamente a ordem paixão baptizam o objecto (com o nome metafórico do
social, pois que a aceitação desta hierarquia de signos sujeito), apõem-lhe o seu selo.
diferenciais, a interiorização pelo indivíduo dessas nor­ 3. O «consumo» do objecto passa pela sua marca,
mas, desses valores, desses imperativos sociais que são que não é um nome próprio, mas uma espécie de nome
os signos, constitui a forma decisiva, fundamental, do de baptismo genérico (*).
controlo social — muito mais que a concordância com
normas ideológicas.
É claro que a partir daí não há problemática autó­
0) Na lógica da mercadoria, todos os bens ou objectos
noma dos objectos, mas a necessidade muito mais vasta são universalmente substituíveis. A sua prática (económica)
de uma teoria da lógica social, e dos códigos que ela passa pelo seu preço. Não há relação nem com o sujeito nem
põe em jogo (sistemas de signos e material distintivo). com o mundo, mas apenas com o mercado.

64 65
II
O CONSUMO COMO ESTRUTURA
DE TROCA E DE DIFERENCIAÇÃO

Sobre a invalidade da noção de objecto e de necessidade.

Vemos que os objectos só têm sentido em contextos


lógicos que muitas vezes se misturam contraditoriamente
ao nível dum só e mesmo objecto, e que estas diversas
significações estão ligadas ao índice e às modalidades
de substituição possíveis no quadro de cada uma das
lógicas. A partir do momento em que os objectos (mais
uma vez, no sentido mais largo do termo) são substi­
tuíveis segundo múltiplas regras: regra da equivalência
no domínio funcional e económico; regra da diferença
no domínio dos signos; regra da ambivalência no domí­
nio do símbolo — a partir do momento em que o cons­
ciente e o inconsciente aí encadeiem os seus discursos:
o discurso pleno da denotação, o discurso paralelo das
conotações, o discursò do sujeito consigo próprio e o
discurso social da relação e até o discurso, totalmente
latente, da falha simbólica do sujeito relativamente a si
próprio e ao Outro no objecto (') — qual pode ser o sen­
tido de qualquer classificação, definição, categorização

(*) O mesmo vale para a alimentação: enquanto «neces­


sidade funcional», a fome não é simbólica; o seu objectivo
é a satisfação; o objecto-alimento é insubstituível. Mas sabe-se
que comer pode satisfazer uma pulsão oral, ser um substituto
neurótico da falta de amor. Nesta função segunda, comer, fumar,
coleccionar objectos, memorizar obsessivamente podem equiva-

67
dos objectos enquanto tais? E que fundamento podem o indígena e Mauss) uma força mágica imanente ao
ter todas as teorias possíveis das necessidades, mais ou objecto, o hau — força que vem assombrar o donatário
e o impele a desapossar-se dele. A oposição insuperável
menos marcadas pelas categorias de objectos? Todas entre os termos da troca é assim reduzida, ao preço de
estas formalizações empíricas são desprovidas de sen­ um conceito suplementar, mágico, artificial, tautológico,
tido. Estamos a lembrar-nos da classificação zoológica que Lévi-Strauss economiza na sua crítica, ao afirmar
de Borges: «Os animais dividem-se em: a) pertencentes n troca em primeiro lugar como estrutura. Por isso o
ao Imperador; b) embalsamados; c) domesticados; psicólogo, o economista, etc., afirmando um sujeito e um
d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães em liberdade; objecto, só conseguem juntá-los graças à necessidade.
h) incluídos na presente classificação, etc.» Qualquer Este conceito não faz mais do que exprimir a relação
classificação de objectos e de necessidades não é nem do sujeito com o objecto em termos de adequação, de
mais lógica nem menos surrealista do que esta. resposta funcional dos sujeitos com os objectos e reci­
procamente: nominalismo funcionalista que inaugura
toda a ideologia psico-económica do optimalismo, do
A necessidade e o mana. equilíbrio, da regulação funcional, da adaptação das
necessidades, etc.
Na realidade, a operação resume-se em definir o
Reduzir a entidade conceituai chamada objecto é sujeito pelo objecto e reciprocamente: trata-se de uma
desconstruir por isso mesmo a entidade conceptual cha­ gigantesca tautologia que o conceito de necessidade vem
mada necessidade. Teríamos podido também fazer explo­ consagrar. A própria metafísica nunca fez outra coisa
dir a entidade conceptual chamada sujeito. Sujeito, e, no pensamento ocidental, a metafísica e a ciência
objecto, necessidade: a estrutura mitológica destes três económica (bem como a psicologia tradicional) são pro­
conceitos é a mesma, triplamente categorizada segundo fundamente solidárias, mental e ideologicamente, no
a evidência ingénua e os esquemas de uma psicologia modo como afirmam o sujeito e resolvem tautologica-
primária. mente a sua relação com o mundo. Mana, força vital,
Tudo o que fala em termos de necessidade é penv instintos, necessidades, escolhas, preferências, utilidades,
sarnento mágico. Pondo o sujeito e o objecto como enti­ motivações: é sempre a mesma cópula mágica, o
dades autónomas e separadas, como mitos especulares signo = em A = A. Aliás, metafísica e economia esbar­
e distintos, torna-se necessário fundar a sua relação: ram ambas nos mesmos impasses, nas mesmas aporias,
o conceito de necessidade, que será a ponte mágica. nas mesmas contradições e disfunções, por se terem
Acontece com a necessidade, em igualdade com todos condenado à partida ao afirmarem a autonomia do
os outros aspectos, o mesmo que com o mana, em Mauss, sujeito e a autonomia especular do objecto à especulação
no Essai sur le don (ensaio sobre o dom). Concebendo tautológica ilimitada.
a troca como uma operação entre dois termos separados,
isoladamente preexistentes à troca, toma-se necessário
fundar a existência desta numa dupla obrigação: a de A tautologia do poder.
dar e a de restituir. É preciso supor então (como fazem
Sabe-se, porém, que a tautologia nunca é inocente,
ler-se: o paradigma simbólico é radicalmente diferente do para­
como o não é o finalismo que sustenta toda a mitologia
digma funcional. A fome enquanto tal não significa; satisfaz-se. das necessidades. A tautologia é sempre a ideologia
Quanto ao desejo, esse significa-se ao longo de toda uma cadeia racionalizadora de um sistema de poder. A virtude ador-
de significantes. E desde o momento em que é desejo de algo mecedora do ópio, o «é assim porque e assim», bem como
perdido, em que é falha, ausência sobre a qual vêm inscrever-se a categoria de animais de Borges, definidos como
os objectos que a significam — que é que pode querer dizer
tomar os objectos pelo que são? Que significa a noção de «fazendo parte da presente classificação», bem como o
necessidade? enunciado mágico «tal sujeito compra tal ou tal objecto
68 69
em função das suas escolhas e preferências» todas estas as ciências humanas. Virtuosos pensadores que desde
admiráveis metáforas do vazio sancionam, no fundo, há uma geração se esforçam por reconciliar (em nome
sob um princípio lógico de identidade, o princípio tau­ do Homem, sua ideia fixa) estas disciplinas estranhas;
tológico de um sistema de poder, a finalidade reprodu- se esforçam por reduzir o que há de profundamente
tora de unia ordem social e, no caso das necessidades inadmissível, de obsceno, para cada disciplina respectiva,
mais precisamente, a finalidade da ordem de produção. na própria existência das outras, e a obsessão de um
É por isso que a ciência económica, que poderia muito saber que lhes escapa. Em especial, a economia não
bem dispensar nos seus cálculos o conceito de neces­ pode deixar de afastar a irrupção nos seus cálculos de
sidade, uma vez que opera ao mvel da procura quanti­ uma lógica psicológica do inconsciente ou de uma lógica,
ficada, precisa imperiosamente dele como suporte ideo­ igualmente inconsciente, das estruturas sociais. Lógica
lógico.
da ambivalência por um lado, lógica da diferença por
• •É . í a5° que a PetiÇão de princípio em que se funda a outro, são incompatíveis com a lógica da equivalência,
legitimidade da produção, a saber, que as pessoas se
vêem a posteriori, e como que miraculosamente, a ter sagrada para ela. Para iludir esta incidência propriamente
necessidade daquilo que é produzido e oferecido no destrutiva sobre a «ciência economica», condescenderá
mercado (e portanto, para que tenham necessidade disso, então com formas débeis e inofensivas da psicologia e
seria necessário que já existisse neles a postulação vir­ da sociologia, quer dizer, com a psicologia e a sociologia
tual), esta racionalização forçada mascara muito sim- como disciplinas tradicionais: tudo sob o signo piedoso
plesmente a finalidade int&vtia da ordem de produção. da interdisciplinaridade. Assim, nunca se introduzirá a
Qualquer sistema, para se tornar fim em si, deve afastar dimensão social ou psíquica específica^ juntar-se-á^ sim­
a questão da sua finalidade real. Através da legitimidade plesmente aos critérios de utilidade individual (variáveis
falseada da necessidade e das satisfações, é toda a ques­ económicas «racionais») um pouco de psicologico indivi­
tão da finalidade social e política que é recalcada. dual «irracional» (estudos de motivação, psicologia das
Poderia objectar-se que tal racionalização não é profundidades) um pouco de psico-sociológico interindi-
forçada, dado que o discurso das necessidades é a forma vidual (a necessidade individual de prestígio e de esta­
espontânea como os sujeitos interpretam a sua relação tuto) ou um pouco de socio-cultural global. Em suma,
com os objectos e com o mundo. Mas precisamente ao um pouco de contexto.
retomar este discurso, o analista das sociedades moder­ Exemplos: alguns inquéritos (Chombart de Lauwe)
nas comete o mesmo contra-senso que o antropólogo fazem aparecer nas categorias inferiores um consumo
ingênuo, naturaliza os processos de troca e de significa­ anormal de carne: demasiado fraco ou demasiado torte.
ção. Escapa-lhe, portanto, toda a lógica social. É ver­ Enquanto se está na média, está-se na racionalidade
dade que todo o pensamento mágico retira uma certa económica: não há problema. Abaixo ou acima, faz-se
eficácia da manipulação empírica e do desconhecimento apelo ao psicológico: necessidade de prestígio, sobre ou
teórico do seu próprio processo. Assim, a especulação subconsumo ostentatório, etc. O social e o psicologico
sobre^ as necessidades vai ao encontro da longa espe­ são assim definidos como o «economicamente patoio-
culação dos primitivos sobre o mana. É um pensamento gico»! Katona descobre, maravilhado, o seu «rendimento
mítico que se reflecte no espelho da «racionalidade» discricionário» e as suas implicações culturais, explora,
económica. para além do poder de compra, uma «propensão para
comprar que reflecte as motivações, as tendências e as
expectativas da clientela»! (A Sociedade de Consumo^ de
O neo-humanismo interdisciplinar, ou a psico-socioeco- Massa): tais são as iluminações comovidas da psico-
nomia.
-economia.
. P°*s»toda a lógica social que é necessário recons- Ou então observa-se (quando se torna impossível
tniir. A este respeito, nada mais instrutivo que as rela­ proceder de outro modo) que o indivíduo nunca está
ções adulterinas que a ciência económica mantém com só, que se determina em relação aos outros e trocam-
70 71
"s.e as «robinsonadas» pelo amadorismo microssocioló- Chega-se, deste modo, a decompor a compra de
gico. Toda a sociologia americana parou aí. O próprio um automóvel em motivações biográficas, técnicas, uti­
Merton, com a teoria do grupo de referência, trabalha litárias, psico-simbólicas (sobrecompensação, agressivi­
dade), sociológicas (normas de grupo, desejo de prestígio,
sempre sobre grupos empiricamente dados e sobre a de conformismo ou de originalidade). O pior e que
noçao empírica de aspiração como lubrificante da dinâ­ tflo «verdadeiras» são umas como as outras, bena
mica social.
difícil encontrar entre elas alguma falsa. Com frequencia
O psicologismo caminha geralmente na companhia contradizem-se formalmente: necessidade de segurança/
do culturalismo, outra versão benigna de uma sociologia /necessidade de risco, necessidade de conformidade/
sem vertigem: as necessidades são função da história /necessidade de distinção, etc. E quais é que são deter­
e da cultura respectivas de cada sociedade! É o cúmulo minantes? Como estruturá-las ou hierarquizá-las? Num
da análise liberal; esta não podia ir mais longe. O pos- último esforço, os nossos pensadores tentam «dialectizar»
tulado do homem dotado de necessidades e da incli- a sua tautologia: falam de interacção contínua (entre
nação natural para as satisfazer não é de modo algum o indivíduo e o grupo, entre um grupo e outro, entre
posto em causa: simplesmente, mergulham-no numa uma motivação e outra). Os economistas, geralmente
dimensão histórica e cultural (muitas vezes definida pouco gulosos de variáveis «dialécticas», voltam depressa
previamente, e em diferente contexto) e, por implicação, às suas utilidades calculáveis.
impregnação, interacção, articulação ou osmose, dão-lhe É verdade que esta confusão é irreparavel. Os resul­
um contexto numa história social ou numa cultura, na tados obtidos nestes diferentes níveis (necessidades,
realidade consideradas como uma segunda natureza! aspirações sociais, papéis, modelos de consumo, grupos
Chega-se, assim, a grandes «personalidades de base», a de referência, etc.), sem serem desinteressantes, sao
grandes tipos culturais que se dão por estruturas mas não parciais e perigosos. A psico-socioeconomia é uma espe-
passam de totalizações empíricas de traços distintivos cie de hidra afectada de estrabismo. Mas vigia e defende
e, mesmo aí, no fundo, de gigantescas tautologias, pois qualquer coisa. Esconjura o perigo de um análise radical,
que o «modelo» é feito da mistura daqueles mesmos cujo objecto não seria nem o grupo nem o sujeito
expMc caractenst*cos *?ue em seguida vai servir para individualizados ao nível consciente, mas a própria
lógica social, de que é necessário fazer um principio
A tautologia actua por todo o lado. Por exemplo, de análise. . ,, . , ,.r
na teoria dos «modelos de consumo»: as situações Desta lógica dizemos que e uma lógica da dire-
sociais podem ser tão importantes como o gosto para renciação. Mas, mais uma vez, não se trata aqui de
determinar o nível de consumo (o açúcar, em França, motivações de prestígio, de estatuto, de distmçao, nível
é inseparável da sua utilização como instrumento de largamente tematizado pela sociologia contemporanea,
educação por parte dos pais). «Seria portanto possível, mas que não passa ainda da extensão p arasso cio ló gica
uma vez conhecida a significação sociológica dos pro­ dos dados psicológicos tradicionais. Que os indivíduos
dutos, pintar o retrato de uma sociedade por meio (ou os grupos individualizados) procurem consciente ou
dos produtos que correspondem àquelas normas. Os gru­ subconscientemente posição social e prestígio, isso e
pos de referência e os grupos de pertença podem ser verdade, e este nível deve ser tomado em considera­
apreendidos no plano dos comportamentos de consumo». ção na análise. Mas o nível fundamental e o das
Ou ainda o conceito de papel em Lazarsfeld (e noutros): estruturas inconscientes que ordenam a produção social
supõe-se que a boa dona de casa é aquela que lava das diferenças.
ela própria, cose à máquina, não utiliza café solúvel.
O papel desempenha na relação do sujeito com as Lógica da troca dos signos: a produção das diferenças.
normas a mesma função que a necessidade na relação
do sujeito com os objectos. A mesma tautologia e Qualquer indivíduo ou grupo, antes mesmo de
magia branca. assegurar a sobrevivência, encontra-se na urgência vital
72
de ter de produzir-se como sentido num sistema de lá não em termos de cálculo, uma estrutura diferencial
trocas e de relações. Simultaneamente com a produção cm que se funda a relação social e não o sujeito
de bens, há urgência em produzir significações, sentido, enquanto tal.
em fazer com que exista o um-para-o-outro antes que
o um e o outro existam para si.
A lógica da troca é, pois, primordial. O indivíduo, Veblen e a distinção estatutária.
de certo modo, não é nada (tal como o objecto de que
falávamos no começo), e uma certa linguagem (de pala­ Referimo-nos aqui a Veblen que, embora tenha
vras, de mulheres, de bens) já lá está antes, uma forma posto a lógica da diferenciação mais em termos de
social perante a qual não há indivíduos, porque ela é indivíduos que de classes, e mais em termos de interacção
estrutura de troca. Esta estrutura procede de uma lógica de prestígio do que de estrutura de troca, oferece no
da diferenciação em dois planos simultâneos: entanto, relativamente a todos os que o seguiram e
pretenderam «ultrapassá-lo», a imensa superioridade de
1. Diferencia os termos humanos da troca em fazer da diferenciação uma lógica radical, um princípio
parceiros, não individuados, mas distintos, e ligados de análise social total — não uma variável acrescentada,
pela regra da troca. contextuai, uma variável dada de situação, mas uma
2. Diferencia o material da troca em elementos variável relacional de estrutra. Toda a obra de Veblen
distintos e portanto significativos. ilustra como a produção de uma classificação social
Isto é verdade para a comunicação da linguagem. (distinção de classe e concorrência estatutária) é a lei
É-o também para os bens e os produtos. O consumo fundamental que ordena e subordina a si todas as outras
é troca. Um consumidor nunca está só, tal como um lógicas conscientes, racionais, ideológicas, morais, etc.
locutor. É aqui que deve intervir uma revolução total Toda a sociedade se regula pela produção de
na analise do consumo: assim como a linguagem não material distintivo: The end of acquisition is conven­
existe porque existia a necessidade individual de falar tionally held to be the consumption of the goods
■ j —6 ^evan^ar^a ° duplo problema insolúvel de fundar accumulated... but it is only in a sense far removed
individualmente esta necessidade, e de a articular depois from its native meaning that consumption of goods can
uma troca possível), mas temos primeiramente a lin­ be said to afford the incentive from which accumulation
guagem, não como sistema absoluto, autónomo, mas proceeds... Possession of wealth confers honours: it is
como estrutura de troca contemporânea do próprio sen­ an individious distinction (Theory of leisure class). ()
tido, sobre a qual vem articular-se a intenção indivi­
dual da palavra — assim também não há «consumo»
porque haveria necessidade objectiva de consumir, inten­ O Lazer.
ção^ final do sujeito para com o objecto: há produção
social, num sistema de troca, de um material de dife­ Conspicuous abstention from labor becomes the
renças, de um código de significações e de valores convencional index of reputability. O trabalho produtivo
estatutarios ; a funcionalidade dos bens e das neces­ é aviltante: esta tradição nunca morreu. Cada vez se
sidades individuais vem depois ajustar-se sobre, racio­ reforça mais com a complexidade da diferenciação social.
nalizar e, no mesmo movimento, recalcar estes meca­ Acaba por tomar a força axiomática de uma prescrição
nismos estruturais fundamentais. absoluta — mesmo por detrás do cartaz da reprovação
O sentido nunca tem origem na relação, que é
propriamente a relação económica, quer dizer, raciona­ (!) (N. T.) «Sustenta-se convencionalmente que o objec­
lizada em termos de escolha e de cálculo, 4ntre um tivo da acumulação de bens é o consumo dos bens acumu­
sujeito dado a priori como autónomo, consciente, e lados... mas só num sentido muito afastado da significaçao
original se pode dizer que o consumo dos bens fornece o
um objecto produzido com fins racionais; tem origem incentivo de que procede a acumulação... A posse da riqueza
numa diferença, sistematizável em termos de código e confere o prestígio: trata-se de uma distinção invejável.»

74
ín° íaíi.da oc.iosi^ade e da valorização reaccional do de tempo como capital sumptuário, como riqueza.
trabalho, muito forte nas classes médias, hoje ideolo­ 0 tempo dos lazeres, como o tempo do consumo em
gicamente recuperada pelas próprias classes dirigentes: geral, torna-se o tempo social forte e marcado, produtivo
um P.D.G. deve trabalhar quinze horas por dia; é ó de valor, dimensão não da sobrevivência económica,
seu índice de servidão afectada. De facto, esta formação mas da salvação social (*)• .......
reaccional prova, a contrário, a força do lazer/valor nobre Veblen leva muito longe a lei do valor distintivo,
na representação profunda. «o cânone da prodigalidade distintiva, diz ele, aiecta
j , tazcr não é, portanto, função de uma neces­ directa ou indirectamente o sentido do dever, o sentido
sidade de lazer no sentido corrente de fruição de tempo da beleza, o sentido da utilidade, o sentido das obngaçoes
livre e de descanso funcional. Pode ser investido em rituais ou religiosas, e até o sentido cientirico do
actividades, desde que estas não sejam de necessidade verdadeiro».
económica. A sua definição é a de consumo de tempo
improdutivo. Ora, isto nada tem a ver com a passivi­ A lei do valor distintivo e o seu paradoxo.
dade: trata-se de uma actividade, de uma prestação
social obrigatória. O tempo, aqui, não é «livre»; é Esta lei do valor pode jogar no sentido da riqueza
sacrificado, gasto: é o momento de uma produção do ou do despojamento. Luxo ostentatório ou austeridade
valor, de uma produção estatutária, e o indivíduo social ostentatória respondem à mesma regra fundamental.
n.j° ,e «livre» de lhe escapar. Ninguém tem neces­ Tudo aquilo que, ao nível da teoria empírica das neces­
sidade de lazer, mas todos são obrigados a prestar sidades, aparecia como contradição formal insolúvel,
provas da sua disponibilidade relativamente ao trabalho ordena-se segundo esta lei numa teoria geral do mate­
produtivo. O consumo do tempo vazio é ainda um rial distintivo. . ,
potlatch. O tempo livre funciona aqui como material Assim, as igrejas são tradicionalmente mais raus-
de troca e de significação. Tal como acontece com a tosas nos bairros chiques, mas o imperativo de classe
parte maldita de Bataille, ele ganha valor na própria pode impor um tipo de religiosidade ascética: a pompa
troca ou na destruição; e o lazer é o lugar desta católica é própria das classes baixas, ao passo que, para
operação «simbólica» ('). os protestantes, o despojamento do templo faz a gloria de
Os actuais lazeres permitem uma espécie de veri­ Deus (e, ao mesmo tempo, o signo distintivo da classe;.
ficação experimental: o homem do lazer, deixado a si São inúmeros os exemplos deste paradoxo do valor
própno e nas condições de disponibilidade criativa enfim em que o despojamento representa riqueza. Paga-se
realizadas, procura desesperadamente um prego para muito caro para não comer nada. Um vazio subtil e
pregar, um motor para desmontar. Fora da esfera manipulado nos interiores modernos. Privar-se e um
concorrencial, não há necessidades autónomas, nenhuma luxo: é toda a sofística do consumo, para a qual a inscri­
motivação espontânea. Mas nem por isso renuncia a não ção em falso contra um valor é ainda uma cambiante
tazer nada; pelo contrário. Sem saber que fazer do hierárquica na inscrição desse valor (2).
seu tempo livre, tem no entanto a «necessidade» impe­
riosa de não fazer nada (ou nada de útil), porque isso Convém aproximar o tempo «livre» da «liberdade» do
tem valor social de distinção. trabalho e da «liberdade» de consumir no quadro do mesmo
. Actualmente ainda, o que o indivíduo médio rei­ sistema: é preciso que o tempo seja «liberto» para se
vindica^ através das férias e do tempo livre, não é a uma função/signo e ganhar valor de troca socml — ao passo
mie o terrroo de trabalho, que é tempo imposto, só tem valor
liberdade de «se realizar» (enquanto quê? Que essência de troca económica (cf. primeira parte: pode ac^®f.,;®ntaJ's® ’^ 1g
escondida vai surgir?); é, antes de tudo o mais, fazer a definição do tempo — como do objecto — simbolico. e aquele
demonstração da inutilidade do seu tempo, do excedente que não é nem economicamente imposto ,ne™ *1^ re” c°™°
função/signo, mas ligado, quer dizer, indissociável do
concreto de troca — um ritmo).
() Remeto para a análise de um tipo de operação aná­ (2) Cf. o móvel «universal» (ou o vestuário «universal
loga. para «O leilão da obra de arte». em Barthes): resumo de todas as funções, volta a ser passível

76
O que é preciso ver é que por detrás de todas as da moda devem ser alargados à dimensão da «cultura»
pretensas finalidades: funcionais, morais, estéticas, reli­ inteira, a toda a produção social de signos, de valores
giosas e suas contradições — por toda a parte está em e de relações.
acção um lógica da diferença e da sobrediferença, embora Para tomar um exemplo recente: nem a saia
sempre recalcada, porque desmentiria a finalidade ideal comprida nem a mini-saia têm valor absoluto — apenas
de todos os comportamentos. É ela a Razão social, a a relação diferencial de uma com a outra joga como
Lógica social. Esta lógica é transversal a todos os valores, critério de sentido. A mini-saia não tem nada a ver
a todos os materiais de troca e de comunicação. com a libertação sexual, e só tem valor (de moda) por
Não há nada, nem objecto nem ideia nem compor­ oposição à saia comprida. Este valor de moda é rever­
tamento, que escape a esta lógica estrutural do valor, sível: a passagem da mini-saia à maxi-saia terá o mesmo
ao facto de ser, não só praticado no seu valor de uso, valor distintivo e selectivo de moda que o inverso, e
no seu sentido «objectivo», no seu discurso oficial, mas daí resultará o mesmo efeito de «beleza».
ainda e sempre virtualmente trocado como signo, quer Mas é evidente que tal «beleza» (ou qualquer outra
dizer, ganhar um valor completamente diferente no interpretação em termos de «chique», de «gosto», de
próprio acto de troca e na relação diferencial com o outro «elegância», ou mesmo de «distinção») é apenas a função
que institui. Esta função diferencial vem sempre sobrede- expoencial, a racionalização do processo fundamental de
terminar a função manifesta, por vezes contradizê-la produção e de reprodução do material distintivo. A beleza
totalmente, reapreendê-la como alibi, e mesmo produzi-la («em si») nada tem a fazer no ciclo da moda (')• É irrece-
• Só assim se pode explicar que ela se realize bível. Um trajo verdadeiramente belo, definitivamente
indiferentemente através dos termos adversos ou contra- belo, poria fim à moda. Portanto, esta não pode fazer
ditorios: o belo ou feio, o bem ou o mal, o antigo ou o mais do que negá-la, recalcá-la, apagá-la —- embora con­
novo; a lógica da diferença atravessa as distinções servando em cada um dos seus passos o alibi da beleza.
rormais. E o equivalente dos processos primários no Assim, a moda fabrica continuamente «belo» na
inconsciente e no trabalho do sonho: não se preocupa base da denegação radical da beleza, na base de uma
com o princípio de identidade e de não-contradição (*). equivalência lógica do belo e do feio. Pode impor
como eminentemente distintivos os traços mais excên­
tricos, mais disfuncionais e mais ridículos. É aí que
A moda. ela triunfa — impondo e legitimando o irracional segundo
uma lógica mais profunda que a da racionalidade.
Esta lógica profunda está próxima da moda.
A moda é o que há de mais inexplicável: este constran­
gimento à inovação de signos, esta produção contínua
de sentido aparentemente arbitrário, esta pulsão de
sentido e o mistério lógico do seu ciclo constituem, de
facto, a essência do sociológico. Os processos lógicos

de oposição aos outros, e portanto um termo a mais no para­


digma... O seu valor não é universal, mas de distinção relativa.
Assim, todos os valores «universais» (ideológicos, morais, etc.)
se tornam de novo — são talvez produzidos à partida — como
valores diferenciais.
0) As outras funções, em relação a esta, são processos (') Tal como a originalidade, o valor específico, o mento
secundários. Fazem parte, evidentemente, da sociologia; mas obiectivo na pertença à classe aristocrática ou burguesa Esta
so ela (tal como os processos primários em psicanálise) constitui define-se por signos, com exclusão dos valores «autênticos»
o objecto próprio duma verdadeira ciência social. (Goblot, La Barrière et le niveau).

78
O SISTEMA DAS NECESSIDADES
E DO CONSUMO
COMO SISTEMA DE FORÇAS PRODUTIVAS

Vê-se que uma «teoria das necessidades» não tem


sentido: só pode haver um teoria do conceito ideológico
de necessidade. Da mesma maneira, uma reflexão sobre
a «génese das necessidades» tem tão pouco fundamento
como, por exemplo, uma história da vontade. Há falsos
problemas que é necessário saber ultrapassar e refor­
mular de modo radical. Era o caso da falsa dialéctica
do ser e da aparência, da alma e do corpo, é o caso
igualmente da falsa dialéctica do sujeito e do objecto
na necessidade. A especulação define-se precisamente
pelo jogo «dialéctico» de interacção contínua em espelho:
quando se não pode determinar, numa análise, qual dos
dois termos gera o outro e se é reduzido a fazê-los
reflectir-se ou produzir-se reciprocamente, é sinal seguro
que é necessário mudar os termos do problema.
É necessário, pois, ver como opera a ciência eco­
nómica e, por detrás dela, a ordem política, com o
conceito de necessidade.

O mito das necessidades primárias.


A legitimidade deste conceito funda-se na existên­
cia de um mínimo vital antropológico que seria o de
«necessidades primárias» — zona irredutível em que o
indivíduo se determinaria a si próprio, porque saberia
o que quer: comer, beber, dormir, fazer amor, alojar-
-se, etc. A este nível, ele não poderia alienar-se na
própria necessidade que tem destas coisas, mas simples­
mente ser privado dos meios de a satisfazer.
Este postulado bio-antropológico leva imediata­ recém-nascidos (ou os prisioneiros de guerra antes de
mente à dicotomia insolúvel de necessidades primárias o escravo se tornar rendável num novo contexto de
e necessidades secundárias: para lá do limiar de sobre­ forças produtivas). Os Siane da Nova-Guiné, enrique­
vivência, o Homem já não sabe o que quer — é aí que cidos pelo contacto com os Europeus, desperdiçam tudo
ele se torna propriamente «social» para o economista, cm festas, sem deixar de viver abaixo do «mínimo vital».
quer dizer, alienável, manipulável, mistificável. Para lá É impossível isolar um estádio abstracto, «natural* de
disso, é presa do social e do cultural; para aquém, é penúria e determinar em absoluto «o necessário para
essência autónoma, inalienável. Vemos como esta dis­ as pessoas viverem». Pode agradar a alguém perder tudo
tinção, esconjurando o socio-cultural para as necessi­ no poker e deixar a família morrer à fome. Sabe-se
dades secundárias, permite recuperar, por detrás do que são os mais desfavorecidos que desperdiçam da
alibi funcional das necessidades-sobrevivência, um nível maneira mais irracional. Sabe-se que o jogo floresce
de essência individual, um homem-essência fundado na em função directa do subdesenvolvimento. Há mesmo
natureza. Ideologia aliás versátil: porque, ora (versão uma estreita correlação entre o subdesenvolvimento, o
espiritualista) se separam as necessidades primárias e excesso das classes pobres e o desenvolvimento
secundárias para remeter umas para a animalidade, as tentacular do religioso, do militar, do pessoal doméstico,
outras para o imaterial (sobre este assunto, ver Ruyer, do sector dispendioso e inútil.
La Nutrition psychique), ora (versão racionalista) se Inversamente, assim como a sobrevivência pode
instituem umas como sendo as únicas objectivamente cair muito abaixo do mínimo vital se a produção do
fundadas (portanto racionais), e outras como subjectiva­ excedente o exigir, também o limiar de consumo obri­
mente variáveis (portanto irracionais). Mas ideologia coer gatório pode ser estabelecido muito para além do estrito
rente, dado que o homem é aí definido prioritariamente, necessário, sempre em função da produção da mais-valia:
num caso como no outro, por uma essência ou raciona­ é o caso das nossas sociedades, em que ninguém é livre
lidade que o social só vem obscurecer. de viver de raízes cruas e de água fresca. Daí o absurdo
Na realidade, o «mínimo vital antropológico» não do conceito de «rendimento discrecionário», comple­
existe, em todas as sociedades, é determinado residual­ mento do de «mínimo vital»: é «a parte do rendimento
mente pela urgência fundamental de um excedente: a que o indivíduo é livre de gastar a seu bel-prazer»! Em
parte de Deus, a parte do sacrifício, o gasto sumptuário, que é que eu serei mais livre ao comprar uma peça de
o lucro económico. É esta primeira extracção de luxo que roupa ou um carro do que ao comprar a minha alimen­
determina negativamente o nível de sobrevivência, e não, tação (ela própria bem sofisticada!)? Em que sou eu livre
o contrário (ficção idealista). Por toda a parte, há prece­ de não escolher? E a compra do carro ou de roupas será
dência do ganho, do lucro, do sacrifício na determinação discrecionária quando é a substituição inconsciente de
da riqueza social, precedência do gasto «inútil» sobre a um desejo de habitação irrealizável? Actualmente, o
economia funcional e a subsistência mínima. mínimo vital é o standard package, o mínimo de con­
Nunca houve «sociedades de penúria», nem «socie­ sumo imposto. Abaixo disso, sois um associai — e a
dades de abundância», uma vez que os gastos de um a perda de estatuto, a inexistência social será menos grave
sociedade se articulam, qualquer que seja o volume que a fome?
objectivo dos recursos, em fução de um excedente estru­ De facto, o «rendimento discrecionário» é uma
tural e de um défice igualmente estrutural. Um enorme noção racionalizada «à discreção» dos empresários e
excedente pode coexistir com a pior das misérias. analistas de mercado. Justifica-os para manipularem «as
Em todos os casos, um certo excedente coexiste com necessidades secundárias», uma vez que «isso não toca
uma certa miséria. Mas, de qualquer modo, é a produção no essencial». Esta linha de demarcação entre essencial
desse excedente que rege o conjunto: o limiar de sobre­ e inessencial tem uma dupla função bem precisa:
vivência nunca é determinado por baixo, mas por cima. 1. Fundar e preservar uma esfera da essência do
Eventualmente, se os imperativos sociais o exigirem, homem individual — pedra angular do sistema de valo­
nem sequer haverá sobrevivência: liquidar-se-ão os res ideológico.
82
Si
2. Mascarar, por detrás do postulado antropoló­ ueontece com a liberdade de consumir como com a liber­
gico, a verdadeira definição produtivista da «sobrevivên- dade de trabalhar. O sistema do capital ergue-se sobre
cia»; é «essencial», em fase de acumulação, o que é a liberdade, sobre a emancipação formal da força do
estritamente necessário para a reprodução da força de trabalho (e não sobre a autonomia concreta do trabalho,
trabalho — na fase de crescimento, o que é necessário que abole): do mesmo modo, o consumo existe apenas
para a manutenção da taxa de crescimento e de mais- na abstracção de um sistema, que se funda na «liberdade»
-valia. do consumidor. É preciso que o utente tenha a escolha,
e por essa escolha se torne enfim «livre» de entrar como
força produtiva num cálculo de produção, muito exacta­
mente como o trabalhador, no sistema capitalista, se
A emergência da consumatoriedade. torna enfim livre de vender a sua força de trabalho.
A necessidade/força produtiva. E do mesmo modo que o conceito fundamental
deste sistema, falando estritamente, não é o de produ­
Podemos generalizar esta conclusão até definir as ção, mas o de produtividade (trabalho e produção liber­
necessidades — quaisquer que sejam — já não de modo tam-se de qualquer conotação ritual, religiosa, subjec­
nenhum, conforme a tese naturalista/idealista, como tiva, etc., para entrar num processo histórico de racio­
força inata, infusa, apetência espontânea, virtualidade nalização), assim também se deveria falar não de con­
antropológica mas como função induzida nos indivíduos sumo mas de consumatoriedade: embora o processo
pela lógica interna do sistema; mais exactamente, não esteja longe de ser tão racionalizado como o da produ­
como força consumatória «libertada» pela sociedade de ção, também se passa facilmente da fruição concreta,
abundancia, mas sim como força produtiva requerida contingente, subjectiva, ao cálculo indefinido de cres­
pelo funcionamento do próprio sistema, pelo seu pro­ cimento fundado na abstracção das «necessidades», às
cesso de reprodução e de sobrevivência. Por outras pala­ quais o sistema impõe, desta vez, a sua coerência, que
vras: só há necessidades porque o sistema tem delas ele produz mesmo como subproduto da sua produti­
necessidade. vidade 0 .
O capital-necessidades investido por cada consumi­ Assim como o trabalho concreto é pouco a pouco
dor privado é tão essencial actualmente à ordem de abstraído em força de trabalho para o tornar mais homo­
produção como os capitais investidos pelo empresário géneo aos meios de produção (máquinas, forças energé-
capitalista, tão essencial como o capital-força de traba­
lho investido pelo trabalhador assalariado.
Há, pois, imposição de necessidade, imposição de (l) Por isso, é inútil confrontar, como se faz habitual­
consumo. Podemos imaginar que um dia haja leis para mente, consumo e produção, para subordinar aquele a esta
a sancionar (obrigação de mudar de automóvel de dois ou reciprocamente em termos de causalidade ou de influência.
Porque na realidade, comparam-se dois sectores heterogéneos:
em dois anos) ('). uma produtividade, quer dizer, um sistema abstracto e genera­
É certo que esta imposição sistemática é colocada lizado do valor de troca em que já não entram para nada o
sob o signo da escolha e da «liberdade» e parece assim trabalho, a produção concreta, mas as leis, os modos e as rela­
ções de produção; uma lógica e um sector — o_ do consumo,
opôr-se inteiramente aos processos de trabalho como o inteiramente concebido ainda como o de motivações e de satis­
princípio de prazer ao princípio de realidade. De facto, fações concretas, contingentes, individuais. Confrontá-los é, pois,
propriamente um barbarismo.
Pelo contrário, se se conceber o consumo como produção,
produção de signos, também ele em vias de sistematizaçao na
(')_ É tão verdade que o consumo é uma força produtiva, base de uma generalização do valor de troca (dos signos), entao
que muitas vezes, por analogia significativa, é colocado sob o as duas esferas são homogéneas — mas, pelo mesmo facto, não
signo do lucro: «Quem contrai dívidas enriquece.» «Comprem e comparáveis em termos de prioridade causal, mas homólogas
serão ricos.» É assim exaltado não como gasto, mas como em termos de modalidades estruturais. A estrutura e a do modo
investimento. de produção.
85
ticas, etc.), e assim poder multiplicar os factores homo­ pode, reprimem-se as necessidades. Quando é preciso
géneos um pelo outro com vista a uma produtividade Nuscitam-se as necessidades como meio de repressão ().
crescente, assim o desejo é abstraído e parcelado em
necessidades para o tornar homogéneo aos meios de
satisfação (produtos, imagens, objectos-signos, etc.) e A dessublimação dirigida.
assim multiplicar a consumatoriedade. É o mesmo pro­
cesso de racionalização (parcelação e abstracção ilimi­ O sistema capitalista nunca deixou de fazer traba­
tada), mas em que o conceito de necessidade desempe­ lhar em primeiro lugar as mulheres e as crianças nos
nha um papel ideológico mais importante, com a neces- limites do possível. Só absolutamente forçado «desco-
sidade-gozo a mascarar, com todo o seu prestígio hedo­ bre» os grandes princípios humanitários e democráticos.
nista, a realidade objectiva da necessidade-força produ­ A escolarização é concedida passo a passo, e só se gene­
tiva. Necessidade e trabalho (‘) aparecem, deste modo, raliza, como o sufrágio universal, quando se impõe
como as duas modalidades de uma mesma explora­ como meio de controlo social e de integração eficaz
(ou como meio de aculturação a sociedade industrial).
ção 0 das forças produtivas. 0 consumidor saturado Em fase de industrialização, extrai-se a força de trabalho
aparece como metamorfose enfeitiçada do produtor ao preço mínimo, sem contemplações: não há neces­
assalariado. sidade de lançar necessidades para a extracção da mais-
Por isso se não deve dizer — outro contra-senso — -valia. Depois o capital, confrontado com suas contradi­
que «o consumo é totalmente função da produção»: ções (sobreprodução, baixa tendencial da taxa de lucro),
é a consumatoridade que é um modo estrutural da pro­ começou por tentar ultrapassá-las relançando a acumu­
dutividade. Sobre este ponto, nada mudou com a pas­ lação na base da destruição massiva, do défice e da
sagem das necessidades «vitais» às necessidades «cultu­ bancarrota, evitando portanto uma redistribuição das
rais», das necessidades «primárias» às necessidades riquezas que pusesse em causa as relações de produção
«secundárias». Para o escravo, a única certeza de comer e as estruturas de poder. Só depois de atingido o limiar
está em que o sistema precisa de escravos para traba­ da ruptura, o capital suscita finalmente o indivíduo
como consumidor, e já não apenas o escravo como força
lhar. Para o cidadão moderno, a única possibilidade de de trabalho. Ele produ-lo enquanto tal. Ao faze-lo, mais
ver satisfeitas as suas necessidades «culturais» está em não faz do que suscitar um novo tipo de servo, o indi­
que o sistema tem necessidade dessas necessidades, e víduo enquanto força de consumo (2).
que o indivíduo não se contenta apenas com comer. Aí se situa o ponto de partida de uma analise do
Por outras palavras, se a ordem de produção tivesse «consumo» no plano político — e DEVE ultrapassar-se
tido outro meio qualquer de assegurar a sua sobrevi­ o ponto de vista ideológico do consumo como processo
vência na base do modo anterior, o da exploração bru­ de apetência e de gozo, como extensão metafórica das
tal, nunca teria havido necessidades (3). Enquanto se noções funcionais de digestão — naturalizado o conjunto

____ (1) Cf- «hesoin» e «besogne» (contraste que as palavras (!) Contudo, a emergência das necessidades, mesmo for­
portuguesas «necessidade» e «tarefa» não reproduzem). mal e subjugada, nunca vai sem perigo para a ordem social
— como é o caso da libertação de qualquer força produtiva,
O Nos dois sentidos do termo: técnico e social como o foi e continua a ser a emergência da força de trabalho,
w » J™HHl?ÓteSe: é Jque ° próPrio trabalho só apareceu como dimensão da exploração, ela é também a ongem das eontradiç
e da d o m i n a r S o ^ ^ ' * ° rdem SOCÍal (estrutura do privilégio sociais mais violentas, duma luta de classes. Quem pode dizer
da dommaçao) dele teve necessidade para sobreviver iá nãn que contradições históricas nos reservam a emergencia e a
exploração desta nova força de produção que sao as «neces­
pessoas emS
pessoais á r o u i c ^ e iAS
e nierarquicas. Pe/ 0 P- derDelo
A exploracao fundado nas0 'relações
trahniVin sidades»? . ,
menor para a ordem social. O acesso ao frabalho é Íindl re^usTdo (2) Não há outro fundamento para a ajuda aos países
as mulheres como perigo de subversão social «cusado
subdesenvolvidos.
86 87
produtivista. Todo o sistema d e individuais. toda
v a l o r e s
segundo o esquema primário da pulsão oral — , deve a religião da espontaneidade, da liberdade, da cnauvi
ultrapassar-se esta prenoção imaginária poderosa para dade, etc., estão carregados da opção produtivi .
definir o consumo não só estruturalmente como sistema as funções vitais são imediatamente «funções* dc. sis
de troca e de signos, mas estrategicamente como meca­ tema. Em parte alguma o homem se encontra Pe
nismo de poder. Ora, é claro que ele não se define nem
pelas necessidades, nem pela sua mudança qualitativa, as suas próprias necessidades.
nem pela sua extensão massiva: tudo isso não passa do É preciso inverter os termos da análise, a b o lira
efeito característico, ao nível dos indivíduos, de uma referência cardeal ao indivíduo, porque ela própr
certa estrutura de produtividade monopolista; de uma produto da lógica social — partir da estratura so<aal
economia totalitária (capitalista ou socialista), impelida constitutiva do indivíduo até à percepção vividaqueei
a suscitar o lazer, o conforto, o standing, etc., numa tem de si próprio: vê-se então que em parte algum
palavra, a própria realização do indivíduo privado como homem se encontra perante a s suas n e c e s s i d a d e s pr
força produtiva, obrigada a extorquir-lhe a liberdade prias. Não só no que se refere as n e c e s s ^ d e s ^secun
e o gozo como elementos funcionais de reprodução do dárias», em que ele é reproduzido segundo as ff também
sistema de produção e das relações de poder que o san­ da produção enquanto força de consumo, m a s tamoe
cionam. Ela faz surgir estas funções privadas segundo relativamente à s necessidades de «sobrevivencia>n
o mesmo princípio de abstracção e de «alienação» radi­ homem não é reproduzido enquanto homem; e-o enquamo
cal que, outrora (e actualmente ainda), a sua força de sobrevivente (força produtiva sobrevivente). Se comesse
trabalho. Neste sistema, a «libertação» das necessidades, bebe, se tem casa, se se reproduz é o sistema
p o r q u e

dos consumidores, das mulheres, dos jovens, do corpo, tem necessidade que ele se reproduza para cuncjonar
etc., é sempre simultaneamente a mobilização das neces­ zir: tem necessidade de homens. S e pudesse
com escravos, não haveria trabalhadores « l i v r e s ^
sidades, dos consumidores, do corpo... Nunca se trata
de uma libertação explosiva, mas de uma emancipação pudesse funcionar com escravos mecânico .
dirigida, uma mobilização com vista à exploração con­ dos 0 , deixaria de haver reprodução sexual.
correncial. tema pudesse funcionar sem alimentar os seus h™ 0
Até as forças profundas, até as pulsões inconscien­ nem sequer haveria pão para os +h°mens' ^ nf ^rev iv en -
tes são mobilizáveis neste sentido, na «estratégia do que, no quadro deste sistema, todos s o m o s sobreviv
desejo». Chegamos aqui aos próprios confins do conceito tes. Aliás, o instinto de conservaçao nao e fundamenta^L
de dessublimação dirigida (ou repressiva, segundo Mar- é uma tolerância ou um imperativo socia^’ ^i m esse
cuse). No limite, retranscrito nesta psicanálise primária, sistema o exige, ele faz com que os homens anulem ess
o consumidor é um nó de pulsões (eventuais forças pro­ «instinto» e se exaltem em morrer (por uma ca
dutivas) recalcadas pelo sistema de defesa do Ego. sublime, evidentemente). ,.
É preciso «dessublimar» estas funções e portanto des- Não queremos de modo nenhum dizer que «o ma
construir as funções do Ego, as funções morais e indi­ víduo é um produto da^ s o c i e d a d e » ; porque, ^
viduais conscientes a favor de uma «libertação» do Id acepção corrente, essa vulgaridade cidturalista ^ ^
e do Superego como factores de integração, de parti­ apenas a verdade, bem mais radical, que • nto
cipação e de consumo— a favor de uma imoralidade que, na sua lógica totalitária, um sistema de c r e s c i m e n x
consumidora total em que o indivíduo se abismaria
finalmente num princípio de prazer inteiramente con­
trolado pela planificação da produção. (i) Os autómatos são o fantasma f mal „e infegra^ Neste
Resumindo: o homem não é dado, de início, £om sistema produtivista total. Ou a j ^ ^ t i c a devora-se a si
as suas necessidades, e votado pela Natureza a reali­
zasse enquanto Homem. Tal proposição, que é o fina- ^ t o t T p ^ u t i v i d a d e , q«e *
Srts
lismo espiritualista, define de facto, na nossa socie­
dade, a função-indivíduo, mito funcional da sociedade um fim político.
89
produtivista (capitalista, mas não só) não pode fazer
outra coisa senão produzir e reproduzir os homens nals
suas mais profundas determinações, na sua liberdade1,
nas suas «necessidades», no seu próprio inconsciente,
como forças produtivas. O sistema só pode produzir é
reproduzir os indivíduos enquanto elementos do sis­
tema. Não pode haver excepção.

A troca/signo generalizada e o crepúsculo dos «valores».

Daí o facto de actualmente tudo ser «recuperá­


vel» (*). Se se admitir que em prim eiro lugar existe
necessidade, valor autêntico, etc., que seria depois alie­
nado, mistificado, recuperado — é demasiado simples,
Terceira Parte
e tal maniqueísmo hum anitário nada explica. Se tudo
é «recuperável», é porque tudo, num a sociedade capita­
lista monopolista 0 , os bens, o saber, a técnica, a cul­ FEITICISMO E IDEOLOGIA:
tura, os homens, as suas relações e aspirações são
à partida produzidos imediatamente como elementos do A REDUÇÃO SEMIOLÓGICA *
sistema, como variável integrada.
Aquilo que é uma verdade e reconhecido desde
há muito tempo no sector da produção económica, a
saber, que já não aparece em parte alguma o valor de
uso, mas por toda a parte a lógica determinante do valor
de troca, deve ser actualmente reconhecido como a ver­
dade da esfera do «consumo», e do sistema cultural em
geral: a saber, que tudo, e até a produção artística,
intelectual, científica, até a inovação e a transgressão,
tudo é aí imediatamente produzido como signo e cqjno
valor de troca (valor racional de signo).
É na medida em que as «necessidades», os com­
portamentos de consumo, os comportamentos culturais
são deste modo não somente recuperados, mas sistema­
ticamente induzidos e produzidos como forças produtivas,
que uma análise estrutural do consumo é possível, na
base desta abstracção e desta sistematização tendencial
total. Ê possível na base da análise da lógica social da
produção e da troca generalizada dos signos.

0) O próprio termo, que supõe valores «autênticos», uma


pureza original, e designa o sistema capitalista como instância
maléfica de perversão, atesta ainda uma visão moralizante.
(2) Ou, mais simplesmente, num sistema de troca gene­
ralizada.
* Publicado em Nouvelle Revue de Psychanalyse, II,
Outono, 1970.
Feiticismo da mercadoria, íeiticismo do dinheiro:
aquilo que, em Marx, descreve a ideologia vivida da
sociedade capitalista, isto é, o modo de sacralização,
de fascínio, de sujeição psicológica através do qual os
indivíduos interiorizam o sistema generalizado do valor
de troca, ou ainda todo o processo pelo qual os valores
sociais concretos de trabalho e de troca, negados,
abstraídos, «alienados» pelo sistema do capital, se insti­
tuem em valores ideológicos transcendentes, em instância
moral que regula todos os comportamentos alienados,
sucedendo na mesma função ao feiticismo arcaico e à
mistificação religiosa (o «ópio do povo») — este feiti­
cismo tornou-se pau para toda a colher na análise con­
temporânea. Ao passo que Marx o ligava ainda (embora
de modo muito ambíguo) a uma forma (a mercadoria,
o dinheiro), portanto a um nível de análise científica,
vemo-lo hoje explorado a um nível sumário e empírico:
feiticismo dos objectos, feiticismo do automóvel, feiti­
cismo do sexo, feiticismo das férias etc., em que remete
apenas para uma visão idolátrica, difusa e dispersa,
do ambiente de consumo, em que ele próprio não é
mais que o conceito-feitiço dum pensamento vulgar,
trabalhando alegremente, a coberto de uma crítica paté­
tica, na reprodução alargada da ideologia.
O termo é perigoso, não só porque faz curto-
-circuito na análise, mas porque, orquestrado desde o
século XVIII pelos colonos, etnólogos e missionários,
93
veicula toda a ideologia ocidental cristã e humanista. do gadget e do objecto, votada ao culto dos valores
A conotação cristã está presente à partida na condenação «artificiais», libidinais ou de prestígio, incorporados no
lançada sobre os cultos «primitivos» por uma religião objecto) — o que supõe algures o fantasma ideal de
que se pretende abstracta e espiritualista: «O culto de uma consciência não alienada, ou de um estatuto objec­
certos objectos terrestres e materiais chamados feitiços tivo «verdadeiro» do objecto: o seu valor de uso?
[...] que por esta razão chamarei feiticismo» (*). Depois, Por toda a parte onde aparece, esta metáfora
sem jamais se desfazer desta conotação moral e racio- feiticista implica o feiticismo de um sujeito consciente
nalista, a grande metáfora feiticista não cessou de ser ou de uma essência do homem, uma metafísica da
o leitmotiv da análise do «pensamento mágico», quer racionalidade que funda todo o sistema de valores
o das tribos bantas, quer o das populações modernas cristão-ocidental. Precisamente onde a teoria marxista
metropolitanas mergulhadas nos seus objectos e nos parece basear-se na mesma antropologia, ela subscreve
seus signos. ideologicamente o mesmo sistema de valores que, por
A metáfora feiticista consiste em analisar, num outro lado, desvia ao fazer a sua análise histórica
sincretismo herdado das representações primitivas, os objectiva. Remeter todos os problemas do «feiticismo»
mitos, os ritos, as práticas em termos de força, de para os mecanismos superestruturais da «falsa cons­
força mágica transcendente, de mana (cuja última meta­ ciência», é retirar-se toda a possibilidade de analisar
morfose seria eventualmente a libido), força transferida o verdadeiro processo de trabalho ideológico. Recusar
para seres, objectos, instâncias, força difusa e universal analisar as estruturas e o modo de produção ideológica
mas cristalizada em pontos estratégicos, e cujo fluxo na sua lógica própria, é condenar-se, por detrás do
Pode ser regulado e desviado em seu proveito pelo discurso «dialéctico» em termos de luta de classes,^ a
indivíduo ou pelo grupo: tal será o objectivo maior de trabalhar de facto na reprodução alargada da ideologia,
j j S, as sixas práticas, mesmo alimentares. Assim se portanto, do próprio capitalismo.
desdobra a visão animista: tudo se passa entre a hipós- Deste modo, o problema da «feiticização» genera­
tase de uma força, a sua perigosa transcendência, e a lizada da vida real remete-nos para o da produção da
captura desta força, que então se torna benéfica. Foi ideologia e daí para uma explosão da teoria-feitiço da
nestes termos que os indígenas racionalizaram a sua infra-estrutura e da superestrutura, para uma teoria
visão do mundo ou do grupo. Foi nestes mesmos termos mais vasta das forças produtivas, todas elas actualmente
que os antropólogos racionalizaram a sua experiência implicadas estruturaltnente no sistema do capital (e não
dos indígenas, esconjurando assim a interrogação cru­ umas infra-estruturalmente — a produção material, e as
cial que estas novas sociedades faziam pesar sobre a outras superestruturalmente — a produção ideológica).
sua própria civilização (2). De certo modo, uma fatalidade está ligada ao
São os prolongamentos desta metáfora feiticista' termo «feiticismo», que faz com que, em vez de designar
nas nossas sociedades industriais modernas que aqui o que quer dizer (metalinguagem sobre o pensamento
nos interessam, na medida em que ela fecha a análise mágico), se volte sub-repticiamente contra aqueles que
crítica (liberal ou marxista) na mesma armadilha subtil o empregam e designe nas suas obras a utilização de
duma antropologia racionalista. Que significa o conceito um pensamento mágico. Ao que parece, só a psicanálise
de «feiticismo da mercadoria», senão a ideia de uma saiu deste círculo vicioso, ligando o feiticismo a uma
«falsa consciência», de uma consciência votada ao culto estrutura perversa, a qual estaria talvez no fundo de
do valor de troca (ou ainda, actualmente, no «feiticismo» todo o desejo. O termo, assim cingido pela sua definição
estrutural (articulado sobre a realidade clínica do
objecto-feitiço e da sua manipulação) de recusa da
( ) De Brosses (1760), Du Culte Ses dieux fétiches. diferença dos sexos, já não é suporte de um pensamento
(2) Racionalistas de direito foram ao ponto de saturar mágico: toma-se um conceito analítico para uma teoria
muitas_ vezes, logica _e mitologicamente, um sistema de repre­ da perversão. Se, no campo das ciências sociais, não
sentações que os indígenas sabiam conciliar com práticas objec­
tivas mais maleáveis. é possível encontrar o equivalente (não analógico) desta
94 95
acepção rigorosa, o equivalente ao nível do processo nhol, hechar, «fazer», de que deriva hechizo, «artificial,
de produção ideológica do que é em psicanálise o processo fingido, postiço».
da estrutura perversa — isto é, uma articulação que Por todo o lado aparece o aspecto de «fingimento»,
faça da célebre fórmula do «feiticismo da mercadoria» de disfarces, de inscrição artificial, numa palavra, de
outra coisa que não um barbarismo (o «feiticismo» um trabalho cultural de signos na origem do estatuto
remetendo para um pensamento mágico e a «mercadoria» do objecto-feitiço e, portanto, em parte também no
para uma análise estrutural do capital), que afaste a fascínio que ele exerce. Este aspecto é cada vez mais
metáfora feiticista do «culto do bezerro de ouro», nem recalcado pela representação inversa (as duas coexistem
ainda em português, em que feitiço como adjectivo signi­
que seja na nova redacção marxista do «ópio do povo», fica «artificial», e, como substantivo, «objecto encantado,
que afaste toda a magia ou animismo transcendental ou sortilégio»), que substitui a manipulação dos signos por
(o que dá o mesmo) todo o racionalismo da falsa uma manipulação de forças, e um jogo regrado de
consciência e do sujeito transcendental, para restituir significantes por uma economia mágica de transferência
o processo de feiticização em termos de estrutura — de significados.
então mais vale abolir o termo e o seu emprego (bem O talismã é também vivido e representado, sobre
como todas as noções aparentadas). Após a análise de o modo animista, como receptáculo de forças: esquece-se
Lévi-Strauss, o «totem» é invertido; só conserva sentido que ele começa por ser um objecto marcado com sinais
a análise do sistema totémico, e a integração dinâmica — são os sinais da mão, do rosto, ou os caracteres da
desse sistema. É este mesmo corte radical, simultanea­ cabala, ou a figura de algum corpo celeste que, inscritps
mente teórico e clínico, que é necessário impor na no objecto, dele fazem um talismã. Assim, na teoria
análise social. A partir do feiticismo, é toda a teoria «feiticista» do consumo, tanto a dos estrategas como
da ideologia que está em causa. a dos utentes, os objectos são sempre dados e recebidos
Portanto, se os objectos não são essas instâncias como dispensadores de força (felicidade, saúde, segu­
reifiçadas, dotadas de força e de mana, nas quais o rança, prestígio, etc.): esta substância mágica espalhada
sujeito se projecta e aliena, se o feiticismo designa por toda a parte faz esquecer que se trata antes do mais
outra coisa além da metafísica da essência alienada, de signos, um código generalizado de signos, um código
qual é o seu processo real? totalmente arbitrário (factício, «feitiço») de diferenças,
Uma vez não são vezes: a etimologia pode ter e que é daí, e de modo nenhum do seu valor de uso, nem
aqui uma palavra a dizer. O termo «fétiche», que actual­ de suas virtudes infusas, que vem o fascínio que eles
mente remete para uma força, para uma propriedade exercem.
sobrenatural do objecto, e portanto para a mesma virtua­ Se há feiticismo, não é, pois, um feiticismo das
lidade mágica do sujeito, através dos esquemas de pro­ substâncias e dos valores (ditos ideológicos) que o
jecção e de captura, de alienação e de reapropriação, objecto-feitiço incarnaria para o sujeito alienado — é,
este termo sofreu uma curiosa distorção semântica, pois por detrás desta reinterpretação (que, ela sim, é verda­
que, na origem, significa exactamente o inverso: um deiramente ideológica) um feiticismo do significante, isto
fabrico, um artefacto, um trabalho de aparências e de é, a marca do sujeito naquilo que, do objecto, é «fac­
signos. Aparecido em França no século XVII, vem do tício», diferencial, codificado, sistematizado. No feiti­
português feitiço, que significa «artificial», o qual vem cismo, não é a paixão das substâncias que fala (a dos
do latim facticius. O sentido de «fazer» é, primeiro, o objectos, ou a do sujeito), é a paixão do código que,
sentido de «imitar por sinais» («fazer de devoto», etc.; regulando e subordinando a si simultaneamente objectos
— reencontrasse tal sentido em «maquillage», que vem e sujeitos, os vota conjuntamente à manipulação abs­
de maken, aparentado a machen e a to make). Da mesma tracta. Aí reside a articulação fundamental do processo
raiz (facio, facticius) que feitiço: em espanhol, afeitar, da ideologia: não na projecção de uma consciência
«pintar o rosto, enfeitar, embelezar», afeite, «enfeite, alienada nas superestruturas, mas na própria genera­
adorno, cosmético», o francês «feint» (fingido) e o espa- lização a todos os níveis, de um código estrutural.
96 97
Parece, assim, que o «feiticismo da mercadoria» Assim, a feiticização da mercadoria é a do produto
se interpreta, já não segundo a dramaturgia paleo- esvaziado da sua substância concreta de trabalho O e
-marxista, como a instância, neste ou naquele objecto, submetido a um outro tipo de trabalho, um trabalho
de uma força que voltaria a assombrar o indivíduo, de significação, ou seja, de abstracção codificada — pro­
cortado do produto do seu trabalho, como todos os dução de diferenças e de valores-signos — processo
prestígios de um investimento (trabalho e afectividade) activo, colectivo, de produção e de reprodução de um
desviado, mas sim como o fascínio (ambivalente) de código, de um sistema, investido de todo o desejo
uma forma (lógica da mercadoria ou sistema do valor desviado, errante, desintricado do processo de trabalho
de troca), como a inclusão, para o melhor e para o real e transferido para aquilo que precisamente nega o
pior, na lógica impositiva de um sistema de abstracção. processo de trabalho real. Assim, o feiticismo actual
Algo como um desejo, como um desejo perverso, o do objecto liga-se ao objecto-signo esvaziado da sua
desejo do código, é revelado aqui, um desejo que visa substância e da sua história, reduzido ao estado de
a sistematicidade dos signos precisamente naquilo em marca de uma diferença e resumo de todo um sistema
que ela nega, em que ela apaga, em que ela exorcisa de diferenças.
todas as contradições nascidas do processo de trabalho O facto de o fascínio, o culto, o investimento de
real — tal como, no objecto-feitiço do feiticista, a estru­ desejo e finalmente o gozo (perverso) serem devolvidos
tura perversa vem organizar-se à volta de uma marca, ao sistema, e não à substância (ou ao mana), aparece
à volta da abstracção de uma marca que apaga, que no não menos célebre «feiticismo do dinheiro». O que
nega, que exorcisa a diferença dos sexos. fascina no dinheiro (o ouro) não é nem a sua materia­
Neste sentido, o feiticismo não é a sacralização lidade, nem mesmo o equivalente captivo de uma certa
deste ou daquele objecto, deste ou daquele valor (caso força (de trabalho) ou de um certo poder virtual; é a
em que podíamos esperar vê-lo desaparecer na nossa sua sistematicidade, é a virtualidade, fechada nessa
época em que a liberalização dos valores e a abundância matéria, de substituir totalmente todos os valores graças
dos objectos deveriam «normalmente» tender a dessacra- à sua abstracção definitiva. É a abstracção, a artificia­
lizá-los); é a do sistema enquanto tal, é a da mercadoria lidade total do signo que «é adorada» no dinheiro, é a
enquanto sistema: é, portanto, contemporâneo do valor perfeição fechada de um sistema que é «enfeitiçada»,
de troca, e propaga-se com ele. Quanto mais o sistema não o «bezerro de ouro» ou o tesouro. Isto constitui
se sistematiza, mais o fascínio feiticista se reforça e, toda a diferença entre a patologia do avaro, a qual se
se este invade domínios sempre novos, cada vez mais prende à materialidade fecal do ouro, e o feiticismo
afastados do estrito valor de troca económica (sexuali­ tal como tentamos defini-lo aqui, enquanto processo
dade, lazeres, etc.), não é por causa de uma obsessão de ideológico. Vimos noutro lado 0 como, na colecção,
gozo, de um desejo substancial de prazer ou de tempo não é a natureza dos objectos nem sequer o seu valor
livre, mas devido à sistematização progressiva ( e mesmo simbólico que interessa, mas algo que é precisamente
bastante brutal) destes sectores, quer dizer, devido à feito para negar tudo isso e negar simultaneamente a
sua redução a valores-signos substituíveis no quadro realidade da castração no sujeito, e que é a sistemati­
de um sistema, agora virtualmente total, do valor de cidade do ciclo colectivo, em que a passagem contínua
troca 0). dum termo ao outro ajuda o sujeito a tecer um mundo
fechado e invulnerável, sem obstáculos à realização do
desejo (perverso, bem entendido).
(‘) No quadro deste sistema, o valor de uso torna-se
inapreensívèl, não enquanto valor original perdido, mas preci­
samente enquanto função derivada do valor de troca. A partir (’) A este título, a força de trabalho, enquanto merca­
de agora, é o valor de troca que induz o valor de uso (neces­ doria, é ela própria «enfeitiçada».
sidades e satisfações), como fazendo (ideologicamente) sistema (2) Em Le Système des Objets, Gallimard, 1968 (Trad.
com ele no quadro da economia política. portug. em Edições 70).
98 99
Há actualmente um domínio em que esta lógica O erótico é, assim, a reinscrição do erógeno num sistema
«feiticista» da mercadoria se pode ilustrar com relevo homogéneo de signos (gestos, movimento, emblemas,
e permitir assinalar mais precisamente aquilo a que «heráldica do corpo») que visa o fecho e a perfeição
chamamos processo de trabalho ideológico: o domínio lógica, que se basta a si próprio. Nem a ordem genital
do corpo e da beleza. Não falamos de um nem de outra (que põe em causa uma finalidade externa) nem a ordem
em valor absoluto (aliás, qual é ele?), mas da actual simbólica (que põe em causa a divisão do sujeito) têm
obsessão da libertação do corpo, da obsessão da beleza esta coerência: funcional ou simbólica, não tecem de
que ocupam por todo o lado a crónica do quotidiano. signos um corpo abstracto, impecável, coberto de marcas,
Esta beleza-feitiço já nada tem a ver com um e por isso invulnerável, «maquilhado» (feito e fingido)
efeito da alma (visão espiritualista), com uma graça no sentido profundo do termo, cortado das determina­
natural dos movimentos ou do rosto, transparência da ções externas e da realidade interna do seu desejo, mas
verdade (visão idealista), ou com a «genialidade» do por isso mesmo oferecido como ídolo, como falo perfeito
corpo que podia traduzir-se igualmente bem através da ao desejo perverso. O dos outros e o seu próprio (‘)-
fealdade expressiva (visão romântica). Ela é a própria Já Lévi-Strauss fala deste atractivo erótico do
Antinatureza, ligada à estereotipia geral dos modelos corpo entre os Caduvéo e os Maori, desses corpos
de beleza, à vertigem perfeicionista e ao narcisismo «completamente recobertos de arabescos de uma subti-
dirigido. É a Regra absoluta em questão de rosto e de lidade perversa», de «algo de deliciosamente provocante».
corpo. Ê a generalização do valor de troca-signos aos E basta pensar em Baudelaire para saber como só a
efeitos de corpo e de rosto. É o corpo finalmente sofisticação tem encanto (no sentido forte), e como ela
distanciado e submetido a uma disciplina, a uma cir­ se prende sempre à marca (vestes, jóias, perfumes) ou
culação total de signos. É a selvajaria do corpo enfim à divisão do corpo em objectos parciais (pés, cabelos,
velada pela pintura, são as pulsões encaixadas num seios, coxas, etc.), o que é profundamente a mesma
ciclo de moda. Por detrás desta perfeição moral, pondo coisa: trata-se sempre de substituir o corpo erógeno,
em jogo um trabalho de valorização em exterioridade dividido na castração e fonte de um desejo sempre
(e já não, como na moral tradicional, um trabalho de perigoso, por uma montagem, um artefacto de peças
sublimação em interioridade), trata-se da segurança con­ fantasmáticas, um arsenal ou uma panóplia de aces­
tra as pulsões. Contudo, isto não vai sem desejo, uma sórios ou de bocados do corpo (mas o corpo inteiro,
vez que se sabe que esta beleza é fascinante, e fascinante na sua nudez enfeitiçada, pode também jogar como
precisamente porque está inserida em modelos, porque objecto parcial), de objectos-feitiços sempre inseridos
é fechada, sistemática, ritualizada no efémero, sem valor num sistema de reunião ou de divisão, num código, e
simbólico. É o signo, a marca (maquillage, simetria ou por isso circunscritos, objectos possíveis de um culto
dissimetria calculada, etc.) que fascina, é o artefacto tranquilizador. Trata-se de substituir a grande linha de
que é objecto de desejo. Ora, os signos estão presentes fissura da castração pela.;linha de demarcação entre
para fazer do corpo, através de um longo trabalho elementos/signos. Trata-se de substituir a ambivalência
específico de sofisticação, um objecto perfeito em que irredutível, a «diferença» simbólica, pela diferença signi­
já nada transpareça do processo de trabalho real do ficativa, a divisão formal entre os signos.
corpo (trabalho do inconsciente ou trabalho físico e Seria interessante aproximar este fascínio perverso
social): é este longo trabalho de abstracção, é isto que daquele que, segundo Freud, exercem a criança e o
ela nega e censura na sua sistematicidade, que faz o animal, ou ainda aquelas mulheres que se bastam a
fascínio desta beleza enfeitiçada.
Tatuagens, lábios distendidos, pés botos das chine­ (‘) Ora, é por isso mesmo, enquanto reelaborado como
sas — pintura para as pálpebras, fundo de cor, depilação, idolo fálico pela estrutura perversa, que ele se torna simulta­
«rimmel» — ou então, pulseiras, colares, objectos, jóias, neamente modelo ideológico de socialização e de realização.
É o mesmo corpo «sofisticado» sobre o qual se articulam o
acessórios: tudo serve para reinscrever sobre o corpo desejo perverso e o processo ideológico. Voltaremos a este
a ordem cultural, e é isto que faz efeito de beleza. ponto um pouco mais à frente.
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elas próprias, que não gostam propriamente senão delas 1.° É porque esta trouxe à luz, através do corpo
próprias e que «por essa razão exercem o maior encanto (mas não é a mesma coisa), a divisão fundamental do
sobre os homens, não só por razões estéticas... mas sujeito, que importa esconjurar esta ameaça, restaurar
também devido a constelações psicológicas interessantes». o indivíduo (o sujeito não dividido da consciência),
«O encanto da criança», diz ainda, «assenta em grande dando-lhe por base, por legitimidade, por emblema, já
parte no facto de se bastar a si própria, na sua inaces­ não uma alma ou um espírito, mas um corpo bem seu,
sibilidade. O mesmo acontece com certos an im ais que donde seja eliminada toda a negatividade do desejo,
parecem não se preocupar connosco, como os gatos e e que funcione apenas como expoente de beleza e de
os animais de rapina...» (’) Haveria que distinguir a sedu­ felicidade. Neste sentido, o mito actual do corpo define-se
ção ligada, na criança, no animal ou na mulher-criança, como um processo de racionalização fantasmática, pró­
à perversão polimorfa, (e à espécie de «liberdade», de ximo do feiticismo na sua estrita definição analítica.
autonomia libidinal que a acompanha) daquela outra Assim pois, paradoxalmente, esta «descoberta do corpo»,
ligada ao sistema erótico dos mass media actuais, a pretensamente consecutiva e solidária das descobertas
qual, por sua vez, põe em jogo uma perversão «feiticista» psicanalíticas, é trazida aqui precisamente para escon­
fixista, imposta, limitada por modelos. Num caso como jurar o que estas implicam de revolucionário. O Corpo
noutro, contudo, o que é procurado e reconhecido na é trazido aqui para liquidar o Inconsciente e seu trabalho,
sedução, é um aquém ou um além da castração, que toma para dar força ao Sujeito Uno e Homogéneo, pedra
sempre o aspecto quer de uma indivisão «natural» angular do Sistema de Valores e da Ordem.
harmoniosa (a criança, o animal) quer de uma soma e 2.° Simultaneamente, é porque o capitalismo mono­
de um fecho perfeito através dos signos. O que nos polista, não contente em explorar o corpo como força
fascina é sempre aquilo que nos exclui radicalmente de trabalho, consegue desunir, dividir em pedaços a
pela sua lógica ou pela sua perfeição interna: uma própria expressividade do corpo no trabalho, na troca,
fórmula matemática, um sistema paranóico, um deserto no jogo, recuperando tudo isso como necessidades
de pedra, um objecto inútil, ou ainda um corpo liso e individuais, portanto como forças produtivas (consuma-
sem orifícios, desdobrado e redobrado pelo espelho, tórias) sob seu controlo — e porque esta mobilização
votado à auto-satisfação perversa. É acariciando-se a dos investimentos a todos os níveis como forças pro­
si própria, é pela manobra auto-erótica que a mulher dutivas cria a longo prazo contradições muito profundas,
que faz strip-tease melhor evoca o desejo 0 . políticas ainda, mas segundo uma redifinição radical
O que aqui nos importa é sobretudo mostrar o do político que levaria em conta esta socialização tota­
processa ideológico de conjunto pelo qual a beleza, no litária de todos os sectores da vida real — é por isso
sistema actual, joga simultaneamente, enquanto cons­ que o Corpo, a Beleza e a Sexualidade se impõem como
telação de signos e trabalho sobre signos, como negação novos universais sob o signo dos Direitos do Homem
da castração (estrutura psíquica perversa) e como nega­ novo, emancipado pela Abundância e pela Revolução
ção do corpo dividido na sua prática social e na divisão Cibernética. A espoliação, a manipulação, a reciclagem
do trabalho (estrutura social ideológica). Do mesmo dirigida dos valores colectivos e subjectivos por meio
modo, a descoberta moderna do corpo e dos seus pres­ da extensão ilimitada do valor de troca e a especulação
tígios não é inocentemente contemporânea do capita­ concorrencial ilimitada sobre os valores/signos tomam
lismo monopolista e das descobertas da psicanálise: necessária a sacralização duma instância gloriosa cha­
mada Corpo, que se tornaria para cada indivíduo o san­
tuário ideológico, o santuário da sua própria «alienação».
(') «Pour introduire le narcisisme», in La vie sexuelle, À volta desse Corpo inteiramente positivado como capi­
P. U. F., p. 94. tal de direito divino vai restaurar-se o Sujeito da Pro­
(2) O discurso ideológico é sempre, também ele, redun­ priedade Privada.
dância de signos e, no limite, tautologia. É por essa especula- Assim vai a ideologia, jogando sempre em planos,
ridade, essa «miragem em si próprio» que esconjura os conflitos
e exerce o seu poder. segundo o mesmo processo de trabalho e de desejo
102 103
ligado à organização dos signos (processo de significa­ que pode coexistir com todas as outras no processo sis­
ção e de feiticização). Voltaremos mais de perto a esta temático da moda: aliás, actualmente vêmo-la jogar por
articulação do semiológico e do ideológico. toda a parte «ém alternância». É essa nudez, a que é
Tomemos o exemplo da nudez, tal como é proposta tomada no jogo diferencial de signos (e não a do eros
na publicidade, a «escalada erótica», a redescoberta pelos e da morte) que é objecto do «feiticismo»: a condição
mass media do corpo e do sexo. Esta nudez pretende-se absoluta para que funcione ideologicamente é a perda
progressista, racional: pretende reencontrar a «verdade do simbólico e a passagem ao semiológico.
do corpo», a sua razão «natural», para além do vestuá­ Rigorosamente, nem sequer acontece, como acaba
rio, dos tabus, e da moda. Demasiado racionalista, de de ser dito, que «uma vez liquidada a função simbólica,
facto, ela passa ao lado do corpo, cuja verdade sexual haja passagem para o semiológico». Na realidade, é a
e simbólica não está justamente na evidência ingénua própria organização semiológica, a absorção num sis­
da nudez, mas num acto de pôr a nu (cf. Bataille), na tema de signos que tem por fim reduzir a função sim­
medida em que isso é o equivalente de um acto de bólica. Esta redução semiológica do simbólico constitui
dar a morte, portanto a verdadeira via de um desejo, propriamente o processo ideológico.
simultaneamente amor e morte, que é sempre ambiva­ Outros exemplos podem ilustrar esta redução semio­
lente. A nudez moderna e funcional já não implica abso­ lógica, esquema fundamental do processo ideológico.
lutamente em nada esta ambivalência, nem portanto a O Sol: o Sol das férias já nada tèm a ver com a
função simbólica profunda, pois revela um corpo inteira­ função simbólica colectiva que tinha para os Àstecas,
mente positivado pelo sexo, como valor cultural, como para os Egípcios, etc. (‘). Já não tem aquela ambivalência
modelo de realização, como emblema, como moral (ou duma força natural — vida e morte, benfeitor e assas­
imoralidade lúdica, o que é o mesmo), e não um corpo sino — que tinha nos cultos primitivos ou ainda no tra­
dividido, fendido peto sexo. O Corpo sexuado já só fun­ balho rural. O Sol das férias é um signo inteiramente
ciona aqui pelo seu lado positivo, que é este: positivo, fonte absoluta de felicidade e de euforia e,
— o de necessidade (e não de desejo); como tal, significativamente oposto ao não-sol (chuva,
— o da satisfação (já se não inscrevem nele a frio, mau tempo). Ao mesmo tempo que perde toda a
falha, a negatividade, a morte, a castração); ambivalência, inscreve-se numa oposição distintiva que,
— o do direito ao corpo e ao sexo (a capacidade aliás, nunca é inocente: funciona aqui em proveito exclu­
de subversão, a negatividade social do corpo e do sexo sivo do Sol (contra o outro termo negativizado). A par ­
são nele fixadas numa reivindicação «democrática» for­ tir daí, desde o momento em que funciona como ideolo­
mal: o «direito ao corpo» (')). gia e valor cultural inscrito num sistema de aposições,
Uma vez liquidadas a ambivalência e a função sim­ o Sol, como o Sexo, inscreve-se também na instituição
bólica, a nudez torna-se signo entre outros signos, entra social como Direito ao Sol (que vem sancionar o seu
numa aposição distintiva com o vestuário. A despeito de funcionamento ideológico), e nos costumes, como obses­
suas veleidades «libertadoras», já se não opõe radical­ são «feiticista», individual e colectiva.
mente ao vestuário, não é mais que uma sua variante, O masculino/feminino: ninguém está «por natu­
reza» adstrito a um sexo. A ambivalência sexual (activi­
(‘) Toda a ilusão da Revolução Sexual reside nisto: a dade/passividade) está no centro de cada sujeito; a sexua-
sociedade não poderia ser fendida, dividida, subvertida em nome ção está inscrita como diferença no corpo de cada sujeito,
de um sexo e de um corpo cuja encenação actual tem por fun­
ção ideológica velar a divisão, a subversão do sujeito. Uma vez e não como termo absoluto ligado a tal órgão sexual.
mais, tudo se liga: a função redutora que esta nudez mítica A questão não é «tê-lo ou não». Mas esta ambivalência,
preenche relativamente ao sujeito dividido pelo sexo e pela esta valência sexual profunda deve ser reduzida, porque
castração, preenche-a ela simultaneamente ao nível macroscó­ escapa como tal à organização genital e à ordem social.
pico da sociedade dividida pelos conflitos históricos de classe.
A revolução sexual é, pois, uma filial da revolução industrial
ou da revolução da abundância (e de tantas outras): todas
elas logros e metamorfose ideológica da ordem não mudada. (') Cf. Alain Laurent, in Communications, n.° 10.

104 105
Todo o trabalho ideológico vai, também aqui, consistir em consciência e da propriedade privada. A partir de agora:
reduzir semiologicamente, em fazer o balanço desta reali­ a cada um o seu inconsciente, o seu próprio jazigo
dade irredutível numa grande estrutura distintiva mas­ simbólico para explorar, o seu capital! E em breve:
culino/feminino— sexos plenos, distintos e opostos um o Direito ao Inconsciente, o habeas corpus do homo
ao outro — baseada no alibi dos órgãos biológicos (redu­ cyberneticus, quer dizer, a transferência das liberdades
burguesas para um domínio que lhes escapa por todo o
ção do sexo como diferença à diferença dos órgãos lado e que as nega; mas a razão disso é clara: é a trans­
sexuais) e, sobretudo, inseridos em grandes modelos ferência do controlo social para o domínio do irredutí­
culturais que têm por função separar os sexos com pri­ vel. A Revolução do Inconsciente torna-se a metamorfose
vilégio absoluto de um sobre o outro. Se cada um é de um novo humanismo do sujeito da consciência e,
levado, conforme esta estruturação dirigida, a confun­ através da ideologia individualista do Inconsciente enfei­
dir-se com seu estatuto sexual, é para melhor resignar tiçado, reduzido pelos signos, como o Sexo e o Sol,
ao seu sexo, quer dizer, à diferenciação erógena do a um cálculo de prazer e de satisfação consumida, cada
próprio corpo, em proveito de uma segregação sexual sujeito escoa e controla ele próprio, em benefício da
que é um dos fundamentos ideológicos e políticos da ordem social, o movimento e o perigoso trabalho do
ordem social Q. Inconsciente. O mito do Inconsciente toma-se a solução
O Inconsciente: O Inconsciente actual, massme- ideológica para os problemas do Inconsciente 0 .
diatizado, semiologizado, substantivado, museificado, Vemos que a redução semiológica do inconsciente
individualizado, «personalizado». Actualmente, cada qual a um simples termo oposicional à consciência implica
«tem» um inconsciente: o Meu, o Teu, o Seu Incons­ na realidade uma subordinação hierárquica à consciên­
ciente. O possessivo é aqui redutor semiológico e efec- cia, uma formalização redutora do inconsciente em pro­
tuador ideológico, na medida em que reduz o incons­ veito da consciência, e portanto, uma redução ideológica
ciente, que é antes do mais, na sua estrutura e no seu ao sistema de ordem e de valores sociais capitalistas.
trabalho, contestação do sujeito da consciência, a um Não há conclusão para este esboço de análise do
termo simplesmente oposicional à consciência — tudo processo ideológico. Os esquemas que dele se destacam
sob o signo do Indivíduo (de que o possessivo dá teste­ para resumir, são:
munho), ou seja, fundamentalmente em proveito do 1.° A homologia, a simultaneidade da operação
sujeito da consciência. O Inconsciente «redescoberto» ideológica no plano da estrutura psíquica e da estrutura
e por toda a parte exaltado em uníssono, vai pois, exac­ social. Não há aqui causa nem efeito, nem super, nem
tamente em sentido contrário ao seu sentido original: infra-estrutura, nem privilégio analítico dum campo ou
de estrutura e de trabalho que era, torna-se função/signo, doutro, duma instância ou doutra, sob pena de distor­
força de trabalho e objecto de apropriação por parte ção causal e de recurso desesperado à analogia.
de um sujeito autónomo, unificado, o eterno sujeito da 2° O processo de trabalho ideológico visa sempre
reduzir o processo de trabalho real (processo de traba­
lho simbólico do inconsciente na divisão do sujeito,
(‘) O facto de esta grande oposição estrutural ser à par­ processo de trabalho das forças produtivas na explosão
tida uma diferença logística, hierárquica, funcional para a das relações de produção). Este processo é sempre um
ordem social, o facto de, se tem de haver dois sexos, ser para
que um se submeta ao outro, faz explodir a ambiguidade da processo de abstracção pelos signos, de substituição do
«libertação sexual». Sendo esta «libertação» a das necessidades
sexuais de cada um enquanto adstrito ao «seu» sexo no quadro
do modelo estrutural/ideológico da bissexualidade, qualquer (!) Logicamente, aliás, esta «libertação», como a de qual­
reforço das práticas sexuais nesse sentido só pode reforçar quer outra força produtiva, ganha força de imperativo moral.
essa estrutura e a discriminação ideológica que ela suporta. Todos são chamados (nem que seja a título de higiene!) a
Na nossa sociedade «liberal» e «mista», o desvio entre os modelos tomar consciência do seu Inconsciente. A não deixar em terreno
masculino e feminino não cessa de aumentar e de se cristalizar baldio esta virtualidade produtiva. A fazer surgir o seu Incons­
desde a era industrial. Contrariamente ao pathos liberalista e ciente para se «personalizar»! Absurdo, mas coerente na lógica
piedoso sobre o assunto, toma actualmente formas generalizadas. do sistema ideológico.

106 i<n
processo de trabalho real por um sistema de oposições
distintivas (primeiro tempo: processo de significação).
Mas essas oposições não são neutras: elas hierarqui­
zam-se com privilégio para um dos termos (segundo
tempo: processo de discriminação). A significação nem
sempre traz a discriminação (oposições fonemáticas ao
nível da língua), mas a discriminação supõe sempre
a significação, a função/signo redutora da ambivalência
e do simbólico.
3.° O recorte, a marcação pelos signos é sempre
duplicada por uma totalização pelos signos e por uma
autonomia formal dos sistemas de signos. A lógica dos
signos opera por diferenciação interna e por homogenei­
zação de conjunto. Só o trabalho sobre o material abs­
tracto, formal, homogéneo que são os signos tom a pos­ Quarta Parte
sível este fecho, esta perfeição, esta miragem lógica que
faz a eficácia da ideologia. Ê a coerência abstracta, O GESTUAL E A ASSINATURA
suturando todas as contradições e divisões, que faz o
seu poder de fascínio (o «feiticismo») e que se encontra
tanto no sistema erótico como na sedução perversa
exercida pelo sistema do valor de troca, inteiramente
presente na mais pequena das mercadorias.
4,° Esta totalização permite aos signos funcionar
ideologicamente, quer dizer, fundar e perpetuar as dis­
criminações reais e a ordem do poder.

108
Ô586I-/3?

Semiurgia da arte contemporânea

Tanto quanto superfície pintada, o quadro é um


objecto assinado. A rubrica do criador vem como que
revesti-lo de uma singularidade ainda maior. Que assi­
nala esta assinatura? O acto de pintar, o sujeito que
pinta. Mas assinala este sujeito em pleno objecto, e o
próprio acto de pintar é nomeado por meio de um
signo. Imperceptivelmente mas radicalmente, a assina­
tura introduz a obra no mundo diferente do objecto.
E a tela só se torna única — não já como obra mas
como objecto — revestida daquele gatafunho. Transfor­
ma-se então num modelo, ao qual um signo visível traz
um valor diferencial extraordinário. Mas não é um valor
de sentido — o sentido do quadro não está aqui em
causa — é um valor de diferença, trazido pela ambigui­
dade de um signo, que não dá a ver a obra, mas leva a
reconhecê-la e a avaliá-la num sistema de signos e que,
embora diferenciando-a como modelo, a integra já por
outro lado numa série, que é a das obras do pintor.
Assim, a obra pintada torna-se, através da assina­
tura, um objecto cultural: ela já não é somente lida,
mas percebida no seu valor diferencial — uma mesma
emoção «estética» confundindo muitas vezes a leitura
crítica e a percepção sinalética (*).
Um facto que pode interessar-nos: até ao século

0) Isto não é particular à pintura: esta apreensão ambí­


gua define o consumo de qualquer bem cultural.

111
XIX, a cópia de uma obra original tem um valor pró­ Actualmente, é completamente outra a conjuntura
prio, é uma prática legítima. Nos nossos dias, a cópia dos valores: abolida a transcendência, a obra toma-se
é ilegítima, «inautêntica»: já não é Arte. Do mesmo o «original». O seu sentido passa da restituição das apa­
modo, mudou o conceito de falso — ou melhor, ele sur­ rências para o acto de as inventar. O valor é transferido
giu com a modernidade. Outrora, os pintores usavam de uma beleza eminente, objectiva, para a singularidade
correntemente colaboradores, ou negros: este era espe­ do artista no seu gesto.
cializado nas árvores, aquele nos animais. O acto de Ora, este acto novo é temporalizado: é o momento
pintar, e portanto também a assinatura, não tinha a da invenção, irreversível, ao qual só podem suceder
mesma exigência mitológica de autenticidade — impera­ outros momentos criadores irreversíveis. Aqui começa a
tivo moral a que se votou a arte moderna — pelo qual modernidade. A obra moderna já não é sintaxe de diver­
se torna moderna — desde que a relação com a ilusão sos segmentos dum quadro geral do universo, «em
e portanto o próprio sentido do objecto artístico muda­ extensão», em que joga a continuidade e a reversibili­
ram ao mesmo tempo que o acto de pintar. dade: é uma sucessão de momentos. As obras já se não
Não se diga que, se o falso, a cópia, a imitação somam para restituir através da sua contiguidade o
são actualmente irrecebíveis, é porque a técnica foto­ modelo na sua semelhança (o mundo e a sua ordem);
gráfica desqualificou a «fotocópia» à mão. Este tipo de podem apenas suceder-se para remeter assim, através
explicação é ilusório. Foi outra coisa que mudou: as da sua diferença e descontinuidade no tempo, para um
condições de significação da própria obra. modelo totalmente diferente, o próprio sujeito criador,
Num mundo que é o reflexo de uma ordem (a de em sua dissemelhança e na sua ausência repetida. Esta­
Deus, da Natureza Ou mais simplesmente do Discurso), mos no tempo e já não no espaço, na diferença e já não
em que as coisas são representação, dotadas de sentido na semelhança, na série e já não na ordem. Este último
e transparentes à linguagem que as descreve, a «criação» ponto é essencial. Transferida a legitimidade para o
artística não se propõe outra coisa senão descrever. acto de pintar, este apenas pode produzir, infatigavel­
A aparência das coisas tem direito de cidadania (*), mente, a prova de si próprio: pelo próprio facto, cons­
sendo ela própria a assinatura de uma ordem que nela titui uma série. Por outro lado, dado que o termo final
se dá a reconhecer e não a analisar. A obra pretende-se desta série já não é o mundo a representar, mas o sujeito
comentário perpétuo de um texto dado, e todas as cópias sempre ausente, toma-se absolutamente necessário assi­
que nela se inspiram são justificadas como reflexo mul­ nalar este sujeito como tal e, no mesmo acto, significar
tiplicado de uma ordem cujo original é, de qalquer a obra como objecto deste sujeito: é a função da assina­
modo, transcendente. Por outras palavras, a questão da tura e é desta necessidade que ela retira o seu actual
autenticidade não se põe, e a obra de arte não é amea­ privilégio.
çada pelo seu duplo. As diversas cópias não constituem Senão, como explicar esta exigência encarniçada,
uma série, no sentido moderno do termo, da qual a mitológica, de autenticidade na arte contemporânea —
obra original seria o modelo: uma e outra são, guarda­ cada quadro emanação de um momento único, sancio­
das as devidas proporções, iguais numa mesma finalidade, nado frequentemente pelo dia e hora e pela assina­
cuja razão lhes escapa. Para resumir, é impossível loca­ tura — , e o facto de qualquer obra actual se constituir
lizar a verdadeira fonte dos valores. O falso não existe. por si própria como uma declinação de objectos — cada
Tal como a assinatura não está presente pára constituir quadro termo descontínuo de uma série indefinida, e
a obra em objecto puro, pateticamente surgido do acto legível não na sua relação ao mundo, mas primeira­
de pintar. Mesmo que assine (por vezes com um mono­ mente na sua relação com os outros quadros do mesmo
grama), o artista não testemunha por si próprio: nunca artista, submetido, portanto, no seu sentido, à sucessão
passa de um doador. e à repetição? Que lei paradoxal dobra a autenticidade,
no seu próprio movimento, ao constrangimento serial?
0) Como o mostra Michel Foucault (Les Mots et les
Ainda aqui, podem procurar-se determinações de facto,
choses). as condições do mercado, por exemplo, que acorrentam
112 113
o artista à sua «maneira» e à cadência da produção. Uma ção nela do signo e do nome — do signo diferente dos
vez mais, isso seria demasiado simples. outros signos do quadro mas homogéneo a eles, do nome
Na realidade, é precisamente porque a série se tor­ diferente dos outros nomes da pintura mas cúmplice no
nou a dimensão constitutiva da obra moderna que a mesmo jogo — , é sobre esta conjunção ambígua, neste
inautenticidade de um dos elementos da série se torna signo inflectido, das séries subjectivas (a autenticidade)
catastrófica. Cada termo, na sua diferença específica, é e das séries objectivas (o código, o consenso social, o
essencial ao funcionamento da série como tal, à conver­ valor comercial) que o sistema do consumo pode fun­
gência sentido, de um termo para o outro, em direcção cionar.
ao modelo (aqui, o próprio sujeito). Se falta um, é a Eis porque o menor atentado a este signo simul­
rotura da ordem. Um falso Soulages, talvez valha bem taneamente autêntico e admitido, imotivado e codifi­
um outro Soulages Q), mas lança a suspeita sobre todos cado, é ressentido como um atentado profundo ao pró­
os Soulages. Ê o código do reconhecimento que se toma prio sistema cultural — porque o falso e a cópia fazem
suspeito e, portanto, a integridade de sentido da obra. actualmente figura de sacrilégio.
Se se prefere, actualmente já não há Deus para separar Aliás, nos nossos dias, já não há diferença entre
os seus. A obra já se não funda em Deus (na ordem a cópia e o falso (o falso jogando sobre a assinatura e
objectiva do mundo), mas na própria série. Nesse caso, dando-se por autêntico, a cópia jogando sobre o con­
a tarefa essencial é preservar a autenticidade do signo. teúdo e confessando-se como tal). Se admitimos que o
Daí, o valor mítico que toma este certificado de quadro tem o seu fundamento de valor sobre o gesto,
origem: a assinatura. É ela que se torna a verdadeira é claro que toda a cópia é uma falsidade, visto que já
«legenda» das nossas obras. Na ausência da fábula, das não é um conteúdo, mas o gesto irreversível da inven­
figuras do mundo e de Deus, é ela que diz o que a obra ção pictural que simula.
significa: o gesto do artista que nela se materializa. Actualmente, só o artista se pode copiar a si pró­
Como, aliás, nos outros signos do quadro. Porque, se prio. Em certo sentido, ele está condenado a fazê-lo e
a assinatura pode preencher esta função de sentido legí­ a assumir, se for lógico, o carácter serial da criação.
vel, é porque enquanto signo, na sua singularidade alu­ No limite, reproduzir-se-á literalmente: «Em Factum I
siva, ela é, no fundo, homogénea da ordem combinató­ e Factum II, Rauschenberg refez duas vezes a mesma
ria de signos que é a do quadro: em certas obras moder­ tela, quase de empreitada, literalmente... O que parece
nas, ela mistura-se graficamente com o contexto da tela, pincelada a toda a velocidade seguida de borrões ao
torna-se elemento rítmico, e podemos até conceber que acaso da sorte é, na verdade, um gesto bem estudado que
um quadro se realize, se anule na sua assinatura, não Rauschenberg é capaz de repetir à vontade» (Otto Hahn,
seja mais que uma assinatura — mas isto é um limite, Les Temps modernes, Março de 1964).
porque — signo entre os signos — a assinatura guarda Há aqui uma espécie de verdade da arte contem­
sempre, no entanto, valor de legenda. Se cada signo do porânea: que já não é literalidade do mundo, mas lite-
quadro retraça o sujeito em acto, só ela no-lo designa ralidade do gestual de criação — manchas, traços, bor­
explicitamente, nos restitui essa parcela de sentido, essa rões. Pelo mesmo facto, o que era representação, redu-
referência e, portanto, essa segurança que a verdade ile­ plicação do mundo no espaço, toma-se repetição, redu-
gível do mundo já não restitui na pintura moderna. plicação indefinida do gesto no tempo. O feito de Raus­
Sobre ela joga o consenso social e, para além dele, evi­ chenberg, essa tautologia do gesto, marca apenas, aliás,
dentemente, todas as combinações subtis da oferta e da o limite paradoxal de uma evolução lógica. Há no seu
procura. Mas vemos que este mito não é puro e simples caso uma espécie de galanteria (realista) ou de obsessão
efeito da orquestração comercial. É através da conjun- (paranóica) em retomar a sua tela traço por traço; mas
de facto, essa literalidade não é minimamente necessá­
ria para se dar a repetição. De qualquer modo, Raus­
0 No fundo, Soulages copia-se a si próprio, e Fautrier chenberg sabe bem que, embora idênticos os seus dois
admite que nem sempre sabe se uma dada tela é dele. quadros, são no entanto diferentes, pois testemunham
114 115
dois momentos distintos e conservam portanto o seu no seu próprio movimento (*). Desmultiplicando-se
próprio valor comercial no mercado. Portanto, tal dupli­ segundo uma exigência formal de sucessão e jogando
cação nada tem a ver com uma cópia. A subjectividade nas variações e nas diferenças (a leitura da obra consis­
triunfa aí pela repetição maquinal de si própria. tirá, ao invés, na maior parte dos casos, na descodifi­
O que importa apreender bem, é que esta litera- cação destas variações e diferenças).
lidade formal do gesto leva consigo, dum signo para Qualquer função que se queira atribuir à arte
outro de uma mesma tela e duma tela para outra, uma (entre outras a do «realismo crítico» e de qualquer
imposição estrutural de sucessão e de diferenciação que forma de «comprometimento») deve confrontar-se com
opera por toda a parte nas nossas obras. Mesmo quando esta estrutura de fundo, e portanto com este limite de
nelas se especificam temas e técnicas individuais. Neste sentido. À falta disto, o artista condena-se a uma pie­
sentido, o «duplo» de Rauschenberg (e o método aná­ dosa ideologia (que é sempre, aliás, a ideologia domi­
nante em matéria de arte): à eterna ilusão da cons­
logo de outros pintores «de série») seria antes engana­ ciência filosófica, que lhe faz viver a sua obra como
dor, pelo facto de exorcizar ao nível do conteúdo, numa singularidade absoluta perante o mundo, e responsável
literalidade fotográfica, uma serialidade que é profun­ em dar testemunho dele (porque toda a consciência filo­
damente de outra ordem. sófica se desdobra em consciência moral).
Mas então tudo se resume nesta pergunta: quais são, Dito isto, a arte moderna nem por isso é menos
para a arte moderna, as possibilidades de retraçar a actual, mas a sua actualidade não é nem directa nem
actualidade do nosso mundo (a realidade quotidiana crítica: se ela descreve inteiramente o que nós somos,
dos objectos, a realidade social e os seus conflitos)'? é na sua própria ambiguidade.
Qual pode ser o seu valor crítico? Os próprios artistas Reconstruamos esta ambiguidade. Numa civiliza­
encontram-se muitas vezes divididos entre a ideologia ção técnica de abstracção operatória, em que nem as
dos valores gestuais puros (valores de autenticidade) máquinas nem os objectos domésticos exigem mais que
e essa outra ideologia que é a exigência crítica de um gesto de controlo (sendo esta abstracção gestual
reapreensão da realidade. O mesmo dilema, aliás, se põe significativa de todo um modo de relações e de com­
aos críticos de arte, que sentem grande dificuldade em portamento), a arte moderna sob todas as suas formas
conciliar uma paráfrase desenfreada do gestual criador tem primeiramente como função salvar o momento ges­
e a análise das significações objectivas. tual, a intervenção do sujeito inteiro. É a parte de nós,
À luz do que acaba de ser dito, esta veleidade sem­ desfeita pela conformação técnica que a arte esconjura
pre nova na arte contemporânea (recentemente ainda para o gestual puro do acto de pintar e para a sua apa­
na arte pop e na figuração nova) de reapreender o rente liberdade. Assim se inscreve ela negativamente,
mundo revela-se ingénua: parece ignorar aquela dimen­ como signo de uma falha, no seu gesto. Mas tal inscri­
são sistemática segundo a qual começa por se organizar, ção, de que se alimenta a ideologia mais corrente (a Arte
na modernidade, o gesto de pintar — aquém, ou fora, é «espontaneidade», surgimento, «contestação viva de
ou a despeito das intenções conscientes do artista. um universo mecanizado») não é crítica: ela coloca-se
Parece ignorar que o que é significado, portanto de em desafio face ao mundo, mas por defeito, está mar­
algum modo domesticado, na arte actual, já não é o cada por valores nostálgicos, compensa. E sobretudo: ela
mundo em substância e em extensão, mas uma certa é retomada na sua subjectividade, no seu próprio acto
temporalidade que é a do sujeito em busca de si pró­ por esta serialidade contra a qual se inscreve no mundo
prio (e não do indivíduo social na sua biografia). Descon- exterior. Contra si própria, a subjectividade em acto,
tinuação e reconstituição do sujeito de gesto em gesto,
de que a assinatura é o índice socio-culturalmente codi­
ficado. A arte moderna é «actual» no sentido estrito em (') Assim, já não, agora, ao nível da «criação», mas da
que se exerce «em acto», e de acto em acto: não contem­ apropriação, a colecção de objectos não tem outra temporalidade
porânea do mundo, mas de si mesma e apenas de si que a do ciclo que a constitui: está fora do tempo «real».

116 111
apesar da instantaneidade sublime que ostenta (aliás, ligeiramente dissemelhantes, etc. O quotidiano é a dife­
de boa-fé: acredita nisso a sério), não pode deixar de obe­ rença na repetição. Ao isolar a cadeira sobre a tela, tiro-
decer às mesmas exigências formais de organização que -lhe todo o quotidiano e, pelo mesmo facto, tiro à tela
o mundo funcional. E aí está certamente a verdade da todo o carácter de objecto quotidiano (por onde ela
nossa arte moderna: se ela dá testemunho do nosso devia, na ilusão dos teóricos, parecer-se absolutamente
tempo, não é nem pela alusão directa, nem sequer no pom a cadeira).
seu gesto puro que nega um mundo sistematizado — é O impasse é este: nem a arte pode absorver-se no
testemunhando a sistemática deste mundo cheio através quotidiano (tela = cadeira) nem tão pouco apreender o
da sistemática inversa e homóloga do seu gesto vazio, quotidiano enquanto tal (cadeira isolada sobre a tela =
gesto puro que marca uma ausência. = cadeira real). A imanência e a transcendência são
Esta dimensão serial e este valor de ausência são igualmente impossíveis: são os dois aspectos de um
as suas condições absolutas de significação. Que as mesmo sonho. Na realidade, o discurso da arte moderna
assuma ou não, que as desempenhe ou lhes escape, é é de uma outra ordem: é para significar sobre o mesmo
nisso que ela é a única arte possível. Arte nem positiva modo que os objectos na sua quotidianidade, quer dizer,
nem contraditório-crítica (são dois aspectos de uma na sua sistemática latente. É esta organização serial e
mesma ilusão), mas homóloga e conclusiva: ambígua, diferencial, com sua temporalidade própria ritmada
portanto. A maior parte dos artistas (e dos «consumido­ pela moda e pela recorrência dos modelos de compor­
res») fogem desta condição. E até o reconhecimento tamento, é isso que a arte «actualmente» atesta, dando
desta dimensão sistemática pode ser ainda um desvio continuamente provas de si própria num gesto repetido,
para lhe escapar. É o que se entrevê no maneirismo da segundo um jogo de variações não essenciais e combina­
repetição literal, em Andy Warhol, Rauschenberg, etc., tórias que lhe permite justamente ser outra coisa além
por onde se exibem como pintores da serialidade e da repetição absoluta. «Queria ser uma máquina», diz
assim reconduzem esta estrutura fundamental com um Andy Wahrol.
efeito de moda. Por certo, esta fórmula é paradoxal, pois que não
A arte pop terá tido como mérito, antes de mer­ há para a arte maior afectação que afirmar-se como
gulhar no puro consumo, revelar melhor estas contra­ maquinal, nem maior galanteria para a subjectividade
dições no exercício actual da pintura e as dificuldades que votar-se ao automatismo serial. Mas ela atesta, ape­
desta em encarar o seu verdadeiro objecto. Lemos assim sar de tudo, uma exigência lógica e a condição limite
em Warhol: «A tela é um objecto absolutamente quoti­ da arte moderna: a de uma subjectividade fascinada
diano, ao mesmo título que esta cadeira ou este cartaz.» por um mundo técnico que a nega, fascinada pela posi-
Aplaudamos esta concepção democrática, mas reconhe­ tividade deste mundo, mas que não pode assumi-la,
çamos que é muito ingénua ou de muito má-fé. Se a paradoxalmente, senão repetindo-se a si própria através
arte quer significar o quotidiano, não o é: é confundir a das suas difracções seriais.
coisa e o sentido. Ora, a arte é obrigada a significar; O mundo na sua sistemática objectiva e a arte
nem sequer se pode suicidar no quotidiano. Há nesta na sua sistemática subjectiva trocam as suas significa­
vontade de absorção da arte ao mesmo tempo algo do ções. Tal é a sua situação homóloga Q. É a isso, em
pragmatismo americano (o terrorismo do útil, a chan­ toda a lucidez, que a arte está destinada: não pode signi­
tagem à integração) e uma espécie de eco duma mística ficar o mundo senão na base de uma afinidade de estru-
do sacrifício. Acrescenta Warhol: «A realidade não pre­
cisa de intermediário, basta simplesmente isolá-la do
ambiente e passá-la para a tela.» Todo o problema está (>) Esta homologia estrutural, aliás, não constitui apenas
aí: porque o quotidiano desta cadeira (ou de um bocado o mundo como série, mas também o próprio mundo como
de salchicharia, guarda-lama de automóvel ou rosto de «maquinal». O mundo apenas se torna verdadeiramente maqui­
pin-up) é justamente o seu contexto, e singularmente nal a partir do momento em que só pode ser evocado maqui­
o contexto serial de todas as cadeiras semelhantes, ou nalmente.

118 119
tura que marca simultaneamente a «fatalidade» da sua sua redundância, mostrava seres e objectos reconcilia­
integração. dos com a sua imagem (toda a figuração veicula esta
ideologia de reconciliação). Na arte moderna, irrecon-
Só o reconhecimento desta homologia estrutural ciliada com o mundo, é a subjectividade que tenta recon­
entre um mundo sistematizado e uma arte serial no ciliar-se com a sua imagem: a sua redundância, compro­
seu exercício profundo (') permite, com efeito, apreen­ metida numa serialidade implícita, está votada a ilus­
der esta contradição da arte moderna — deplorada por trar homologicamente, no seu próprio recuo e no seu
toda a parte e pelos próprios artistas como uma fata­ desafio, a serialidade de todos os outros objectos e a
lidade— de se querer negatividade, crítica, inovação e sistemática de um mundo cada vez melhor integrado.
superação perpétua, e de ser, imediatamente ou quase,
assimilada, aceite, integrada, consumida. Temos que
nos render à evidência: a arte já não contesta nada, se
é que alguma vez o fez. A revolta é fechada, a maldição
«consumida». Por isso, o melhor é deixar toda a nostal­
gia, resignar toda a maldição, para admitir finalmente
que é no próprio movimento da sua autenticidade que
a obra de arte, ao sistematizar-se segundo uma imposi­
ção formal, ao constituir-se segundo um jogo de dife­
renças sucessivas, se oferece por si própria como ime­
diatamente integrável num sistema global que a declina
como a qualquer outro objecto ou conjunto de objectos.
Neste sentido, as obras modernas tornaram-se cer­
tamente objectos quotidianos: embora pesadas de cono­
tações culturais, não põem problemas ao ambiente cir­
cundante. Um quadro moderno, «pop», abstracto, de
manchas, não contradiz coisa nenhuma: entra no jogo
de distribuição sintagmática dos objectos no espaço (no
interior moderno), bem como — e porque saiu do inven­
tário de uma subjectividade circunscrita — de um signo
para o outro, de um momento para outro. Duas cadeias
se cruzam: aquilo que constitui a dimensão necessária
da significação é também a dimensão «fatal» da inte­
gração e do consumo.
A meio caminho entre um terrorismo crítico (ideo­
lógico) e uma integração estrutural de facto, a arte
moderna é muito exactamente e relativamente a este
mundo contemporâneo, uma arte da colusão. Joga com
e entra no jogo. Pode parodiar a ordem, ilustrá-la, simu­
lá-la, enganá-la, mas nunca perturba essa ordem que é
também a sua. Já não estamos na arte burguesa que, na

(*) E para o qual a referência ao mundo se torna segunda


— tal como o exercício da colecção prevalece sobre a temática
dos objectos coleccionados.

120 121
Quinta Parte

O LEILAO DA OBRA DE ARTE


Troca/signo e valor sumptuário

Pode parecer estranho q facto de ir analisar o pro­


cesso da ideologia fora dos santuários tradicionais, polí­
ticos ou culturais. Mas precisamente: o mercado da pin­
tura e a venda nos leilões da obra de arte, porque se
situam nos confins do poder económico e do campo cul­
tural, permitem decifrar a sua articulação e portanto o
processo de trabalho ideológico. O leilão, esse cadinho
em que se trocam os valores, em que valor económico,
valor/signo e valor simbólico se transfundem segundo
uma regra do jogo, pode ser considerado uma matriz
ideológica — um dos lugares altos da ECONOMIA POLÍ­
TICA DO SIGNO.
Trata-se de decifrar o nascimento da forma/signo,
tal como Marx, na Critica da economia política, pôde
decifrar o nascimento da forma/mercadoria. Por toda
a parte, no consumo, o valor de troca económico
(dinheiro) é reconvertido em valor de troca/signo (pres­
tígio, etc.), mas tal operação sustenta-se ainda do alibi
do valor de uso. O leilão da obra de arte tem isto de
exemplar: o valor de troca económico, sob a sua forma
pura de equivalente geral, o dinheiro, é aí trocado pelo
signo puro, o quadro. É, pois, um terreno experimental,
simultaneamente colectivo e institucional, para esclare­
cer a operação deste valor/signo (')•

0) Os problemas consideráveis que põe a análise do valor


de uso serão abordados mais adiante.

125
0 acto decisivo é o de uma dupla redução simul­ I
tânea, a do valor de troca (dinheiro) e do valor simbólico O OUTRO LADO DA ECONOMIA POLÍTICA
(o quadro como obra), e da sua transmutação em valor/
/signo (o quadro assinado, cotado, valor sumptuário e
objecto raro) através do gasto e da competição agonística.

É no gasto que o dinheiro muda de sentido. Tal


facto, estabelecido no leilão, pode ser transferido como
hipótese para toda a esfera do consumo. O acto de con­
sumo nunca é apenas uma compra (reconversão do valor
de troca em vâlor de uso), é também — aspecto radical­
mente negligenciado tanto pela economia política como
por Marx — um DISPÊNDIO, ou seja, uma riqueza
manifestada, e uma destruição manifesta da riqueza.
É este valor ostentado para além do valor de troca, e
fundado na destruição deste, que investe o objecto
comprado, adquirido, apropriado, do seu valor diferen­
cial de signo. Não é a quantidade de dinheiro que ganha
valor, como na lógica económica da equivalência, mas
o dinheiro dispendido, sacrificado, consumido, segundo
uma lógica da diferença e do desafio. Todo o acto de
compra é, assim, simultaneamente um acto económico
e um acto transeconómico de produção de valor/signo
diferencial.
Ê certo que no consumo corrente, os aspectos espe­
cíficos da venda em leilão (e fundamentais, como se verá
mais adiante): competição vivida, desafio, comunidade
agonística de pares, etc., que tornam esse momento fasci­
nante, tal como o poker e a festa, esses aspectos apagam-se
em grande parte. Mas fica sempre, por detrás da compra
(ou reapropriação individual de valor de uso), o momento
do dispêndio que, até na sua banalidade, supõe algo
como uma competição, uma parada, um desafio, um
sacrifício e, portanto, uma comunidade virtual de pares
126 127
e uma medida aristocrática do valor. Não nos iludamos; a mesma mistificação ideológica em autonomizar como
é isso, e de modo nenhum a. «satisfaçãq» das «neces­ instância determinante o campo da produção material.
sidades», que torna o consumo, de vez em quando, uma Aqueles que especificam a cultura (a produção de signos)
paixão, um jogo fascinante, outra coisa que não um para a circunscrever como superestrutura são, também
comportamento económico e funcional; um campo com­ eles, culturalistas sem o saber: operam o mesmo corte
petitivo de destruição do valor económico em proveito que os idealistas da cultura, e restringem também
de um outro tipo de valor. arbitrariamente o campo da economia política. Se a
Descreveu-se como essencial — e é-o, efectiva­ cultura, o consumo, os signos devem ser analisados
mente — o processo de produção e de sistematização como ideologia, não é expulsando-os, esconjurando-os
do valor de troca económica: a economia política é para um campo exterior mas, pelo contrário, integran-
justamente essa imensa transmutação de todos os valores do-os nas próprias estruturas da economia política. Mas
(trabalho, saber, relações sociais, cultura, natureza) em isto implica a explosão dos quadros tradicionais da eco­
valor de troca económico. Tudo é abstraído e absorvido nomia política, canonizados tanto pela ciência económica
num mercado mundial e no eminente papel do dinheiro burguesa como pela análise marxista. E as resistências
como equivalente geral. Privilegiou-se (por razões histó­ são vivas, porque são de todas as ordens: teóricas, polí­
ricas, nem todas baseadas na «objectividade científica», ticas, fantasmáticas. No entanto, só uma economia polí­
e cuja análise ideológica mesmo em Marx é necessário tica generalizada pode actualmente definir uma teoria
fazer) este lado da análise; mas negligenciou-se grande­ e uma prática revolucionárias.
mente o processo igualmente essencial e igualmente No que se refere mais precisamente ao mercado
generalizado — processo que não é nem o inverso, nem o da pintura, pode dizer-se: é a apropriação dos quadros
resíduo, nem o substituto do da «produção», e que é o como signos que joga como factor de legitimação do
imenso processo da transmutação do valor de troca econó­ poder económico e social. Isso não nos adianta nada.
mico em valor de troca/signo. Processo do CONSUMO Continuamos ainda na vulgata política: a cultura anexada
enqtianto sistema do valor de troca/signo. De modo ne­ e manipulada pela classe dominante. A mesma coisa
nhum o consumo definido pela economia política tradi­ se diz para as «necessidades», o «consumo», os lazeres
cional (reconversão do valor de troca económica em valor ou o sexo. A classe dominante teria de algum modo
de uso, momento do ciclo da produção), mas definido direito da «primeira noite» sobre a cultura. Não contente
como conversão do valor de troca económico em valor de com explorar os «jazigos de mão d'obra», exploraria
troca/signo. Com isto, o campo da economia política, os jazigos de signos, os sistemas de valores, para baralhar
articulado unicamente nos valores de troca económica a luta de classes e mistificar as consciências proletárias.
e no valor de uso, explode e deve ser inteiramente Mas de onde vêm estes signos? Estarão eles já nas
reanalisado no sentido de uma ECONOMIA POLÍTICA coisas, numa natureza social, de tal modo que bastaria
GENERALIZADA, que implicará a produção do valor apoderar-se deles? Visão mágica. E como podem os
de troca/signo ao mesmo título e no mesmo movimento signos, os mitos articular-se sobre uma condição objec­
que a produção dos bens materiais e do valor de troca tiva, social e económica, para lhe perturbar o sentido?
económico. A análise da produção dós signos e da Não nos venham com o truque da «consciência»! E, por
cultura impõe-se, portanto, não como exterior, ulterior, outro lado, porque precisaria a classe dominante da
«super estrutural» em relação à da produção material; cultura, se o económico é verdadeiramente a instância
impõe-se como uma revolução da própria economia determinante?
política, generalizada pela irrupção teórica e prática da Mais profundamente: o que é uma significação?
economia política do signo. Em que relação social é ela produzida? Qual é o modo de
Qualquer tentativa de autonomizar este campo do produção das significações? Modo de produção «capi­
consumo, (quer dizer, a produção sistemática de signos) talista»? Absurdo.
como objecto de análise, é mistificador: leva directa­ Os valores/signos são produzidos por um certo
mente ao culturalismo. Mas é necessário ver que existe tipo de trabalho social. Mas produzir diferença, sistemas
128 129
diferenciais, hierárquicos, não se confunde com a extor­ código, que é decisivo. As classes dominantes, desde
são da mais-valia económica e muito menos resulta Ncmpre, ou asseguraram à partida o domínio sobre os
dela. Entre ambos, um outro tipo de trabalho intervém, valores/signos (sociedades arcaicas e tradicionais), ou
que transforma o valor e a mais-valia económica em tentaram (a ordem burguesa capitalista) ultrapassar,
valor/signo: operação sumptuária, de consumpção e de transcender, consagrar o seu privilégio económico em
superação do valor económico segundo um tipo de troca privilégio dos signos, porque este estádio ulterior repre­
radicalmente diferente, mas que de certo modo produz senta o estádio realizado da dominação. Esta lógica,
também uma mais-valia: a dominação, a qual não se ue vem prolongar a lógica de classe e já se não
confunde de modo nenhum com o privilégio económico
e o lucro. Estes últimos não são mais, de certo modo,
3 efine pela propriedade dos meios de produção, mas pelo
controlo do processo de produção —, esta lógica, que põe
do que a matéria-prima e o trampolim de uma operação em jogo um modo de produção radicalmente diferente
política de transfiguração do poder pelos signos. A domi­ do modo de produção material (e, por esta razão, escapa
nação está, pois, ligada ao poder económico, mas não à análise «marxista»), encontramo-la inteirinha, embora
«emana» dele de uma maneira simultaneamente auto­ microscopicamente, no leilão da obra de arte.
mática e misteriosa; provém dele através de um retra-
balho do valor económico. A análise marxista, por ter
esquecido este trabalho específico, encontra-se actual­
mente, no campo da ideologia, no mesmo ponto que
as economias burguesas antes de Marx (e depois de
Marx) no campo da produção material: a verdadeira
fonte do valor e o verdadeiro processo de produção
são escamoteados. É do esquecimento deste trabalho
social de produção dos signos que a ideologia retira
a sua transcendência; é por aí que os signos, a cultura
se revestem de um «feiticismo», de um mistério igual
e contemporâneo do da mercadoria.
Os teóricos críticos da economia política do signo
são raros. Relegados, enterrados sob a análise marxista
(neo-marxista) terrorista. Veblen, Goblot O são os gran­
des precursores de uma análise cultural de classe que,
para além do «materialismo dialéctico» das forças pro­
dutivas, leva em conta a lógica dos valores sumptuários,
único meio através do qual a classe dominante assegura
a sua dominação e a perpetua pelo código, colocando-a
de certo modo, através da «transubstanciação» dos
valores, ao abrigo das revoluções na ordem económica
e das suas repercussões nas relações sociais.
Na ordem económica, é o domínio da acumulação,
da apropriação da mais-valia, que é essencial. Na ordem
dos signos (da cultura), é o domínio do dispêndio, ou
seja, da transubstanciação do valor de troca económico
em valor de troca/signo, a partir do monópolio do

(') Veblen, La Théorie de la classe de loisir; Goblot,


La Barrière et le niveau.

130 131
II
DIFERENÇA COM A TROCA ECONÓMICA

1. Tal como o jogo (poker, etc.), ele é sempre


simultaneamente um acontecimento ritual e um acon­
tecimento único. As regras são arbitrárias e fixas;
contudo, nunca se sabe exactamente o que se vai passar,
nem exactamente a seguir o que se passou — visto que
se trata de uma dinâmica de confronto pessoal, de
uma álgebra de pessoas, ao contrário da operação econó­
mica, em que os valores são trocados impessoalmente,
segundo uma aritmética de números.
2. Este carácter pessoal da troca implica a unici­
dade do lugar: não se pode participar por correspon­
dência — e, sobretudo, a unicidade concreta do processo:
o tempo, a ordem, o ritmo, o tempo são elemento
essencial do leilão. Na altercação e no sobre-lanço, cada
momento depende do momento anterior, e da relação
recíproca dos parceiros. Daqui, um desenrolar específico,
diferente do tempo abstracto da troca económica.
3. Não há, como mercado, jogo de oferta e de
procura, com aproximação máxima do valor de troca
oferecido e o valor de uso esperado. Esta espécie de
leilão mercantil, que vai dar ao equilíbrio pontual de
uma procura e de uma oferta, realiza-se, por exemplo,
na lota do peixe. Mas aqui, no momento do lanço,
valor de troca e valor de uso já não são correlacionados
segundo o cálculo económico. O valor de uso esperado
(se há algum) não aumenta no decurso do leilão.
Na realidade, o jogo próprio do leilão institui uma
133
relação específica e passa-se fora do valor de uso. de paridade aristocrática (entre os parceiros). Ao invés
Posto esta fora de jogo, o valor de troca (em troca de) da operação comercial, que institui uma relação de
já não é oferecido; é posto em jogo. Pelo próprio facto, concorrência económica entre particulares em pé de
deixa de ser valor de troca, e toda a situação se trans­ igualdade formal, conduzindo cada um o seu cálculo
fere para fora do económico. Mas nem por isso deixa de apropriação individual, o leilão, tal como a festa
de ser uma troca: já não do tipo de oferta e procura, e o jogo, institui um espaço-tempo concreto e uma
mas do tipo da parada recíproca. O leilão institui, pois, comunidade concreta de troca entre pares. Seja qual
simultaneamente: for o vencedor do desafio, a função essencial do leilão
— uma transmutação do valor e das coordenadas é a instituição de uma comunidade de privilegiados
económicas; definindo-se como tais pela especulação agonística à
— um outro tipo de relação social. volta de um corpo restrito de signos. A competição de
tipo aristocrático sela a sua paridade (que nada tem a
ver com a igualdade formal da concorrência económica)
Transmutação do valor. e, portanto, o seu privilégio colectivo de casta relativa­
mente a todas as outras, das quais se separa não já
No momento crucial do leilão, o dinheiro é negado pelo seu poder de compra, mas pelo acto colectivo e
como valor de troca divisível e transubstanciado pelo sumptuário de produção e de troca de valores/signo Q.
dispêndio em valor sumptuário indivisível. Toma-se, Aqui reside a matriz da ideologia, na lógica coerente
assim, homólogo do objecto único e indivisível que é de um sistema de produção, de troca e de relações sociais
o quadro como signo. Entre o dinheiro tomado matéria radicalmente diferente do sistema de produção, de troca
sumptuária pela perda do seu valor de troca económico e e de relações sociais fundadas no económico. A ideolo­
o quadro tomado signo prestigioso (elemento do corpus gia não é uma falsificação misteriosa de consciência;
restrito que é a pintura) pela perda do seu valor sim­ é uma lógica social que substitui outra (e lhe resolve
bólico O estabelece-se não já uma equivalência, mas as contradições) mudando a própria definição de valor.
uma paridade aristocrática 0 . Por não nos colocarmos a este nível de estratégia lógica,
somos remetidos para a psicologia envergonhada da «inte-
riorização». Mas de onde provém esta estranha perver­
Relação social. são das «consciências» em se deixar mistificar, em se
abandonar aos «valores ideológicos», enquanto os acto­
No acto sumptuário, o dinheiro é negado como res sociais (sujeitos destas «consciências»), continuariam
equivalente geral, como forma e, portanto, como relação pelo seu lado a produzir a sua relação social «objectiva»?
social específica (capitalista) regida por essa forma. De tempos a tempos, aliás, a consciência passa para o
A relação social que o leilão institui é, ainda aqui, lado «objectivo» (revolucionário!): é a «tomada de cons­
ciência»! Estranho romance burguês, o da psicologia
— ela infecta profundamente a teoria revolucionária.
(‘) Ver mais à frente: «Valor simbólico e função estética».
(2) «O preço por que é vendido o quadro não é a medida
do seu valor ao mesmo título que para um bem de consumo.
O preço só tem sentido no próprio instante da venda, pelo jogo (‘) «No interior desta comunidade, há circulação de quadros
da competição, em que é o equivalente relativo das significações na base da competição entre pares, enquanto que, do ponto de
e dos valores absolutos para que o quadro remete» (P. Dard e vista da sociedade global, há retenção da pintura em e por
J. Micner, Étude sur l'échange de valeur). De facto, já não é essa comunidade — quer dizer que esta última funciona na base
um preço, é uma parada. Aliás, para os verdadeiros jogadores, de um discriminação social. Contudo aquela comunidade dá-se
o dinheiro ganho ao jogo fica marcado pelo jogo, e não deveria como aberta através do aspecto competitivo da aquisição...
ser dispendido para fins úteis, económicos: deve ser reposto em Estamos aqui nas fronteiras das estratégias da dominação, em
jogo, revertido ao jogo, «queimado» — é, de algum modo, a que a mobilidade individual possível mascara a discriminação
«parte maldita» de Bataille. social.» (P. Dard e J. Micner, ibid.)

134 135
Na realidade, o que se chama a «psicologia» do III
amador de arte reduz-se, por sua vez, inteiramente devido PODER ECONÓMICO E DOMINAÇÃO
ao sistema de troca. A singularidade que ele pretende,
essa paixão enfeitiçada do objecto vivida como afinidade
electiva, funda-se no seu reconhecimento como par, atra­
vés de um acto competitivo, numa comunidade de pri­
vilegiados. Ele iguala-se ao próprio quadro, cujo único
valor reside na relação de paridade, de privilégio esta­
tutário que mantém, enquanto signo, com os outros
termos de corpus restrito da pintura. Daí a afinidade
«elitista» entre amador e quadro, que conota psicologi­
camente o próprio tipo de valor, de troca e de relação
social aristocrática que o leilão institui. A paixão do
amador é feita da soma latente, do trato contínuo e
exaltante de todos os outros amadores, tal como o valor
enfeitiçado do quadro, o seu mana, é feito de: Outra redução ideológica: a que faz do quadro
— o seu reenvio diferencial para todos os outros pura e simplesmente uma mercadoria. Não: não se trata
quadros na mesma esfera sublime de estatuto; aqui da reprodução alargada do capital e da classe capi­
— o seu pedigree, a sua genealogia, isto é, a sua talista; trata-se da produção de uma casta pela graça
assinatura e o ciclo dos seus proprietários sucessivos.
colectiva de um jogo de signos e da produção desses
Não é, pois, da relação psicológica do indivíduo
com o objecto que nasce o feiticismo e que se sustenta signos pela destruição do valor económico. É algo desta
o princípio da troca. Nunca é o «feiticismo do objecto» troca sumptuária e deste modelo aristocrático, mas enfra­
que sustenta a troca no seu princípio, mas o princípio quecido e desmultiplicado, que se difunde através de todo
social da troca que sustenta o valor enfeitiçado do o sistema do consumo e faz a sua eficácia ideológica.
objecto. Parece absurdo falar de uma lógica de casta «democra­
tizada». É, no entanto, a partir deste modelo de troca
agonística de valores/signos que se institui o consumo,
a partir da troca das diferenças, de um material distin­
tivo e portanto de uma comunidade virtual que, por
pouco que dela reste e precisamente porque nada resta,
se articula ainda e apesar de tudo sobre uma ficção de
paridade aristocrática. A diferença — capital — entre o
potlatch aristocrático e o consumo, é que as diferenças
são actualmente produzidas industrialmente, burocrati-
camente programadas sob a forma de modelos colecti­
vos, e não já na reciprocidade pessoal do desafio e da
troca. Uma vez mass-mediatizado, já não passa do simu­
lacro da competição que opera na concorrência estatu­
tária. Esta já não tem a função distintiva real que tinha
ainda em Veblen: os grandes dinossauros da wasteful
expenditure transformaram-se em inumeráveis indivíduos
votados a uma paródia de consumpção sacrificial, mobi-

136 137
lizados como consumidores pela ordem de produção. antes de tudo o mais uma sociedade de dominação pelos
O «dispêndio» mudou, portanto, radicalmente de sen­ signos. Daí a exigência total de uma «revolução cultural»
tido. Resta que é porque nele, no consumo mass-media- que implique todo o processo de produção da ideologia
tizado se reactiva o fantasma colectivo dos valores per­ _e cujas bases teóricas só podem ser dadas por uma
didos (sumptuários), que esta prática pode ser vivida economia política do signo.
individualmente como gratificante, como liberdade,
como realização — e assim jogar como ideologia. Mesmo
o simulacro de código diferencial aristocrático age ainda
poderosamente como factor de integração, de controlo,
como participação na mesma «regra do jogo». O pres­
tígio assombra por toda a parte as nossas sociedades
industriais, cuja cultura (burguesa) nunca é mais que
o fantasma de valores aristocráticos. Por toda a parte
se reproduz colectivamente, para além do valor econó­
mico e a partir dele, a magia do código, a magia de uma
comunidade electiva e selectiva, soldada pela mesma
regra do jogo e pelos mesmos sistemas de signos. Por
toda a parte este processo vem atravessar os conflitos
de classe, por toda a p arte— desmultiplicado em toda
a extensão da sociedade e seja qual for o estatuto e a
condição de classe — actua em proveito da classe domi­
nante. É ele a pedra angular da dominação. Não é auto­
maticamente desmantelado pela lógica revolucionária das
forças produtivas, pelo processo «dialéctico» do capital
ou pela crítica tradicional da economia política.
Só uma crítica da economia política do signo pode
analisar como o modo de dominação actual sabe as­
sumir e integrar e jogar simultaneamente — todos os
modos de produção — não só o modo de produção capi­
talista, mas todos os modos de produção e de troca
«anteriores», «arcaicos», infra ou transeconómicos. Como
ele reinventa (ou reproduz), no próprio coração do eco­
nómico, a lógica e a estratégia dos signos, das castas,
da segregação, da discriminação, da lógica feudal das
relações pessoais, ou ainda a da troca/dom e da reci­
procidade, ou da troca agonística — para por toda a
parte iludir e simultaneamente coroar a lógica «mo­
derna», socio-económica, de classe. Mas talvez que a
exploração económica e a dominação «de classe» não
sejam mais, no fundo, que uma variante «histórica»
e um desvio na imensa genealogia das formas da domi­
nação social. Talvez que a sociedade actual se tome
m 139
IV
VALOR SIMBÓLICO E FUNÇÃO ESTÉTICA

Que é feito do valor simbólico, do valor próprio


da «obra de arte» em toda esta operação? Ele não apa­
rece em parte nenhuma. É negado, está ausente. Parale­
lamente à assumpção do valor de troca económico em
valor/signo, há redução do valor simbólico a valor/signo.
De um lado e doutro, valor de troca económico e valor
simbólico perdem o seu estatuto próprio e tornam-se
satélites do valor/signo. Ao nível dos quadros manipu­
lados como supersignos, o valor simbólico converte-se
em função estética, isto é, não faz mais que jogar em
filigrana por detrás da operação do signo, como refe-
rência-alibi, como racionalização sublime da operação
sumptuária Q.
Negado como trabalho simbólico, o quadro joga
como:
— material distintivo, suporte da troca «nobre» e
restrita:
— como valor «estético» universal — desdobra-se
numa ideia da Pintura que serve para legitimar a ope­
ração no absoluto.
Mas este absoluto é um alibi. O verdadeiro valor
do quadro, já o vimos, é o seu valor genealógico (o seu
«nascimento»: a assinatura, e a auréola das suas suces-

(*) O económico pode também servir, portanto, de racio­


nalização. O mercado da pintura ora se coloca sob o signo do
«amor da arte», ora sob o signo do «bom emprego» (de dinheiro).

141
sivas transacções: o seu «pedigree»). Assim como o ciclo mercado privado paralelo para as «nacionalizar», as res­
dos sucessivos dons, nas sociedades primitivas, carrega titui a uma espécie de propriedade colectiva e, desse
o objecto de cada vez mais valor, assim o quadro cir­ modo, à sua função estética «autêntica». Na realidade,
cula, como um título de nobreza, de herdeiro em her­ o museu actua como caução da troca aristocrática.
deiro, carregando-se de prestígio no decurso da sua Dupla caução:
história. Há aqui uma espécie de mais-valia produzida — assim como é necessário um fundo-ouro, a cober­
a partir da própria circulação dos signos, e que importa tura pública do Banco Nacional, para que se organize
distinguir radicalmente da mais-valia económica. Ela a circulação do capital e a especulação privada, assim
não cria lucro, mas legitimidade, e é a ela que o ama­ é necessária a reserva fixa do museu para que possa
dor se associa no leilão, através do seu sacrifício eco­ funcionar a troca/signo dos quadros. Os museus desem­
nómico. Para os membros da casta, não há, portanto, penham o papel dos bancos na economia política da
valores reais para além dos que se produzem e trocam pintura;
na casta (a mesma coisa acontece com os Burgueses de
Goblot, para os quais a originalidade, a virtude, o génio, — não contente em funcionar como caução orgâ­
etc. — tudo valores «universais» — não contam à vista da nica da especulação sobre a arte, o museu funciona como
«distinção», valor específico de classe — ou de casta). instância que garante a universalidade da pintura, e
portanto o gozo estético (valor, como vimos, social­
A casta dos parceiros sabe, no fundo, que o ver­ mente não essencial) de todos os outros.
dadeiro estatuto, a verdadeira legitimidade, a reprodu­
ção da relação social e portanto a perpetuação da classe
dominante «no seu ser», se jogam na manipulação aris­
tocrática das obras enquanto material de troca/signo.
No fundo, ela despreza o «estético», a «arte», o simbó­
lico, a «cultura» que justamente são bons, enquanto
valores «universais», para o consumo colectivo. O pra­
zer estético, o convívio com as obras, os chamados valo­
res «absolutos» eis o que é deixado àqueles que não
podem aceder ao potlatch privilegiado (‘).
O processo da ideologia, no seu conjunto, joga-se,
portanto, na operação simultânea:
— de um sistema de troca restrito, sobre um cor-
pus restrito, e sobre o modo da competição paritária
aristocrática;
— de um sistema de troca de valores universais,
para uso de todos, sobre o modo da igualdade formal.
Neste sentido, é interessante confrontar, ainda no
domínio da pintura, a função recíproca da instituição
do mercado e do leilão, e da instituição do museu. Pode­
ria pensar-se que o museu, ao retirar as obras a esse

(*) Guardadas as devidas proporções, é a mesma discri­


minação que, no consumo, vota a imensa maioria ao valor de
uso, ao gozo funcional dos produtos — reservando-se a classe
dominante, estrategicamente, a manipulação do valor de troca,
do capital e da mais-valia.

142 143

UNIVERSIDADE UBERLÂNDIA
V
CONCLUSÃO

Quisémos apreender no leilão e no mercado da


arte uma espécie de nucleum da estratégia dos valores,
uma espécie de espaço-tempo concreto, de momento
estratégico e de matriz no processo da ideologia, que
é sempre produção de valor/signo e de troca codificada.
Esta economia dos valores, que vai muito para além do
cálculo económico e que interessa a todos os processos
de transmutação dos valores, às transições socialmente
produzidas e localizáveis em lugares e instituições deter­
minadas, de um valor para outro, de uma lógica para
outra lógica do valor — e portanto à conexão e à impli­
cação dos diferentes sistemas de troca e modos de pro­
dução, esta economia dos valores é uma economia polí­
tica. A crítica desta economia política geral do valor é
a única que actualmente pode tom ar a captar a análise
de Marx a um nível global. E é a única que pode revelar
teoricamente este para além do valor, em Que fundar
praticamente o derrubamento desta economia política.
N. B. — Outros objectos além da pintura, bem
entendido, poderiam ser analisados nos mesmos termos:
o saber. O espaço-tempo institucional da comunidade
competitiva é então o exame, ou melhor, o concurso.
É aí que se opera essa «transubstanciação do saber
profano em saber sagrado», esse «baptismo burocrático
do saber» (Marx), cuja função Goblot analisou bem, a
propósito do exame final dos liceus, limiar social da
casta. A mesma operação de transmutação do saber
como valor universal em saber como valor/signo, como
145
título de nobreza, é acompanhada da mesma legitimação,
da mesma discriminação de todos os pares que partici­
pam nessa missa branca, nesse sacramento. Poder-se-ia
também analisar se os congressos (de sábios, de inte­
lectuais, de sociólogos) como lugares de transmissão, de
reprodução hereditária da «intelligentsia» e de uma comu­
nidade privilegiada na base de uma orgia agonística
de signos. — Os congressos servem para o avanço do
saber pouco mais ou menos como as corridas de cavalos
e as apostas servem para o avanço da raça cavalar (os
cavalos e as corridas, aliás, seriam também, como mer­
cado paralelo dos valores sumptuários, um bom objecto
de estudo).

Sexta Parte

PARA UMA TEORIA GERAL

146
I

«A génese ideológica das necessidades» postulava


quatro lógicas diferentes do valor:
— lógica funcional do valor de uso;
— lógica económica do valor de troca;
— lógica diferencial do valor/signo;
— lógica da troca simbólica;
tendo, por princípios respectivos: a utilidade, a equiva­
lência, a diferença, a ambivalência.
O estudo sobre «O leilão da obra de arte» explorava,
através da passagem do valor de troca económico ao
valor de troca/signo, um caso particular da estratégia
dos valores. É tentador, a partir daí e a título hipotético,
traçar um quadro geral de conversão de todos os valores,
que poderia servir de tabela de orientação para uma
antropologia geral.

Valor de uso (VU):


1. VU — VTEc
2. VU — VTSg
3. VU — TSb

Valor de troca económico (VTEc):


4. VTEc — VU
5. VTEc — VTSb
6. VTEc — TSb
149
Valor de troca/signo (VTSg): culares, na compra ou pela produção no consumo pro­
dutivo). 4 e 1 são os dois momentos do ciclo da econo­
7. VTSg — VU mia política clássica (e marxista), que não tem em conta
8. VTSg — VTEc a economia política do signo. Situa-se igualmente aqui
9. VTSg — TSb o campo da consagração do valor de troca pelo valor de
uso, da transfiguração da forma/mercadoria na forma/
/objecto (cf. mais à frente «Para além do valor de uso»).
Troca simbólica (TSb):
5. VTEc — VTSg: É o processo do consumo
10. TSb — VU segundo a sua redifinição na economia política do signo.
11. TSb — VTEc O acto de dispêndio como produção de valor/signo.
12. TSb — VTSg É o campo do valor sumptuário, conjuntamente com 2.
Mas, mais propriamente aqui, é a assunção da forma/
/mercadoria na forma/signo, a transfiguração do eco­
Não há aqui qualquer tentativa de articulação teó­ nómico nos sistemas de signos e a transmutação do
rica das diversas lógicas: apenas uma tentativa de loca­ poder económico em dominação e em privilégio social
lização dos respectivos campos e da passagem de um de casta.
para outro. 6. VTEc — TSb: Ao passo que 2 e 5 descrevem a
1- VU — VTEc: É o campo do processo de produ­ transfiguração do valor de uso e do valor de troca
ção do valor de troca, da forma/mercadoria, etc., des­ em valor/signo (ou ainda: da forma/objecto e da forma/
crito pela economia política. Consumo produtivo. /mercadoria em forma/signo), 3 e 6 designam a trans­
2. VU — VTSg: É o campo de produção dos signos gressão destas duas formas (isto é, do económico) na
a partir da destruição da utilidade (prodigalidade, valor troca simbólica. Conforme a redifinição que implica
sumptuário). Consumo «improdutivo» (do tempo tam­ também a forma/signo no campo da economia política
bém na ociosidade distintiva e no lazer), na realidade (geral). 9 vem completar 3 e 6 como transgressão da
produtor de diferenças. É a diferença funcional a jogar forma/signo em ordem à troca simbólica.
como diferença estatutária (máquina de lavar semi auto­ Entre estas três formas que descrevem a economia
mática e inteiramente automática). É o fazer-valer publi­ política geral, e a troca simbólica, não há articulação,
citário, que transforma os bens de uso em valores/signo. mas separação radical e transgressão, ou desconstrução
São a técnica e o saber extraídos da sua objectiva e eventual dessas formas, que são os códigos do valor.
assumidos pelo sistema «cultural» de diferenciação. Propriamente falando, não há «valor» simbólico; há ape­
Ê pois, por toda a parte, o campo do consumo no sen­
tido que lhe damos, de produção, sistemas e jogo de nas «troca» simbólica, que se define precisamente como
signos. Este campo cobre também, evidentemente, a pro­ outra coisa, para além do valor e do código. Toda a
dução de signos a partir do valor de troca económico forma de valor (objecto, mercadoria ou signo) deve
(mais à frente, 5). ser negada para inaugurar a troca simbólica. Nisso
consiste o corte radical no campo do valor.
3. VU — TSB: Ê o campo da consumpção, isto é,
da destruição do valor de uso (ou do valor de troca 7. VTSg — VU: Os signos, como as mercadorias,
económico, cf. 6), não já com o fim de produzir valo­ são simultaneamente valor de uso e valor de troca.
res/signo, mas sobre o modo de uma transgressão do As hierarquias sociais, as diferenças estatutárias, os pri­
económico, que restitui a troca simbólica. O dom, o vilégios de casta e de cultura que sustentam são conta­
presente, a festa. bilizados como benefício, como satisfação pessoal, _e
4. VTEc — VU: É o processo de «consumo» se­ vividos como «necessidade» (necessidade de valorização
gundo o sentido económico e tradicional do tempo: recon­ social à qual corresponde a «utilidade» dos signos
versão do valor de troca em valor de uso (pelos parti­ diferenciais e o seu «consumo»).

150 151
i 8. VTSg — VTEc: Reconversão do privilégio cul­ II
tural, do monopólio dos signos, etc., em privilégio
economico. Combinando com 5, esta reconversão des­
creve o ciclo total de uma economia política em que a
exploraçao económica na base do monopólio do capital
e a. dominação «cultural» na base do monópolio do
código se geram continuamente uma à outra.
9. VTSg — TSb: Desconstrução e transgressão da
rorma/signo em ordem à troca simbólica (cf. 3 e 6).
10, 11, 12.TSb— VU, VTEc, VTSg: Descreve um
•j111*0 Processo> inverso da transgressão descrita em
; ' ° processo de rotura e de redução da troca
simbólica e de inauguração da económica. Avaliação da
troca simbólica sob a jurisdição abstracta e racional dos
aiterentes códigos do valor (valor de uso, valor de troca,
valor/signo). Exemplo: os objectos em jogo na troca
reciproca, cuja circulação ininterrupta funda a relação Uma seguncia fase consiste em extrair deste con­
sociai, o sentido social, e que se destroem nessa troca junto movediço de produção e de reprodução, de conver­
continua sem ganhar valor próprio (isto é, apropriável) são, de transgressão e de redução de valores, uma certa
— este mesmo material, uma vez rompida a troca articulação dominante. A primeira que se propõe pode
simbólica, abstrai-se em valor útil, valor mercantil, valor formular-se assim:
estatutário. De simbólico que era, torna-se instrumento,
mercadoria ou signo, conforme os diferentes códigos VTSg VTEc
que entre si o partilham, mas todos eles ligados numa
só grande forma alternativa à troca simbólica, e que TSb VU
e a forma da economia política.
Esta^ interpretação «combinada» da grelha dos ou seja: o valor/signo está para a troca simbólica como
valores não passa de uma primeira abordagem. Parece o valor de troca (económico) está para o valor de uso.
que certas correlações se agrupam, que algumas são Quer dizer que entre a troca simbólica e o valor/
reversíveis, que certos valores são convertíveis um no /signo há a mesma redução, o mesmo processo de
outro, que alguns são exclusivos um do outro. Alguns abstracção e de racionalização (cf. «Feiticismo e ideo­
runcionam termo a termo, outros num ciclo mais com­ logia», a propósito do corpo, do inconsciente, etc.) que
plexo. Os seus princípios gerais: utilidade, equivalência, entre os múltiplos valores de uso «concretos» e a
diferença, ambivalência, não se articulam claramente. abstracção do valor de troca na mercadoria. Conse­
sobretudo, nenhuma teoria ordena, o que permanece quência: a forma da equação, a ser aceite, implica
uma exploração combinatória, com as suas simetrias que um mesmo processo trabalha os dois lados da
rormais. equação. Esse processo não é outro senão o da economia
política (tradicionalmente centrado na segunda relação:
VTEc/VU). Isto implica que se analise a primeira relação
em termos de economia política do signo, a qual vem
articular-se na economia política da produção material
e inscrevê-la no processo de trabalho ideológico. Esta
economia do signo existe de alguma maneira: é a
linguística e, mais geralmente, a semiologia. Mas estas
evitam colocar a sua análise sob o signo da economia
152 153
política (o que implica uma crítica da economia política UI
do signo, segundo o mesmo processo teórico que Marx
utilizou). No entanto, fazem-na sem o saber. Simples­
mente, elas são o equivalente, neste domínio, da econo­
mia política clássica burguesa antes de a sua crítica ter
sido feita por Marx.
Se a economia política do signo (a semiologia)
é susceptível de uma crítica ao mesmo título que a eco­
nomia política clássica, não quer isso dizer que o seu
conteúdo seja assimilável, mas sim que a sua forma
é a mesma: forma/signo e forma/mercadoria.
Esta segunda fase faz-nos passar duma «grelha»
e duma combinatória mais ou menos mecânica dos valo­
res para uma relação de formas e para uma homologia
de conjunto: é um progresso considerável mas não deci­
sivo. Esta relação articula, por certo, todas as lógicas Estas incoerências levam à explosão da fórmula e
do valor mas, para a homologia ser coerente, seria a uma reestruturação geral.
necessário que uma relação horizontal viesse apoiar a
relação vertical. De modo que não só o valor/signo esteja 1. Em vez do signo como valor global, é necessá­
para a troca simbólica como o valor de troca está para rio fazer aparecer os seus elementos constituintes, o
o valor de uso (relação afirmada mais atrás), mas tam­ significante e o significado.
bém que o valor/signo esteja para o valor de troca como 2. A partir daí, a correlação definitiva entre a
a troca simbólica está para o valor de uso. Ou seia forma/signo e a forma/mercadoria estabelece-se assim:
também:
VTEc Ste
VTSg/VTEc = TSb/VU
VU Sdo
Ora, se pela sua forma lógica, há implicação do
valor/signo e do valor de troca (forma/signo e forma/ ou seja: o valor de troca está para o valor de uso como
/mercadoria) no quadro de uma economia política geral, o significante está para o significado.
nenhuma afinidade da mesma ordem liga a troca sim­ A implicação horizontal, ou seja, o valor de troca,
bólica e o valor de uso — muito pelo contrário, pois que está para o significante como o valor de uso está para
um implica a transgressão do outro e o outro a redução o significado (por outras palavras: a afinidade lógica
do primeiro (cf. em 1, 3 e 10-12). A fórmula não é pois do valor de troca e do significante, por um lado, do
coerente, tanto mais que, ao integrar a troca simbólica valor de uso e do significado, por outro) e destacar-se-á da
como factor homogéneo aos outros na relação, não tem análise respectiva das implicações verticais. Nesta base,
em conta o que foi afirmado, a saber: que o simbólico diremos que esta relação homológica (agora coerente)
não é valor (positivo, autonomizável, mensurável ou descreve o campo da economia política geral.
codificável), mas ambivalência (positiva e negativa) na 3. Uma vez a relação homológica saturada, pelo
troca pessoal — e que, enquanto tal, se opõe radical­ facto mesmo, a troca simbólica encontra-se como que
mente a todos os valores. expulsa para fora do campo do valor (ou campo da eco­
nomia política geral), o que corresponde à alternativa
radical que a define (transgressão do valor).
4. A barra que marca o processo de redução, ou
de abstracção racional, que separa (na acepção corrente)
154 155
1. A extensão da crítica da economia política a
o valor de uso do valor de troca, e o significado do uma cr ític a ra d ica l do valor de uso, a fim de reduzir
significante, desíoca-se. A redução fundamental já não u antropologia idealista que sustenta ainda, mesmo em
fnaf a efn tre y u e VT, entre Ste e Sdo 0 : passa entre Marx (quer ao nível das «necessidades» dos indivíduos
todo este sistema e a troca simbólica. ciuer ao nível do «valor de uso do trabalho»). Critica ao
A barra que separa o valor de uso e o valor de leiticismo do valor de uso — análise da forma/objecto
roca, e a que separa o significado do significante é uma nas suas relações com a forma/mercadoria.
barra de implicação lógica formal: não separa radical­ 2. A extensão da crítica da economia política ao
mente estes termos respectivos, estabelece entre eles uma signo e aos sistemas de signos, para mostrar como a
relaçao estrutural. A mesma coisa acontece entre valor lógica dos significantes, o jogo e a circulação dos sigm-
de troca e significante, entre valor de uso e significado. licantes se organizam inteiramente como a lógica do
Na realidade, todas estas relações fazem sistema no qua­ sistema do valor de troca e como a lógica do significado
dro da economia política. E todo este sistema, na sua se lhe subordina taticamente, tal qual como a do valor
organização lógica, nega, recalca e reduz a troca simbó­ de uso à do valor de troca. Crítica do feiticismo do
lica. A barra que separa todos estes termos em conjunto significante. Análise da forma/signo na sua relaçao com
da troca simbólica não é uma barra de implicação estru­ a forma/mercadoria.
tural: e a barra da exclusão radical (a que supõe a Estes dois primeiros pontos visam, na relação
alternativa radical da transgressão).
global
Chega-se assim a esta distribuição geral: VTEc Ste
VTEc Ste /
— T— / TSb (troca simbólica) VU Sdo
VU Sdo /
fazer a teoria crítica dos três termos que a análise mar­
ou seja, uma só grande oposição entre todo o campo do xista até agora não tratou. Com efeito, Marx, falando
valor, em que se articulam numa mesma lógica sistemá­ estritamente, fez apenas a teoria crítica do valor de
tica o processo de produção material (a forma/merca­ troca Quanto ao valor de uso, ao significante e ao
doria) e o processo da produção dos signos (a forma/ significado, a sua teoria crítica continua por fazer.
/signo) — e o campo do não-valor, o da troca simbólica.
3. Uma teoria da troca simbólica.

Economia política geral / Troca simbólica

Crítica da economia política geral (ou teoria crí­


tica do valor) e teoria da troca simbólica são uma e a
mesma coisa. É a base de uma antropologia revolucio­
naria, de que a análise marxista deu os elementos
(alguns), mas que depois não soube levar a cabo.
Esta teoria supõe, a partir e para além da análise
marxista, três tarefas essenciais:

Mais tarde voltaremos ao problema do referente, que


so existe numa relação integrada com o significado (de tal modo
que sao muitas vezes confundidos).

156 157
Sétima Parte

PARA ALÉM DO VALOR DE USO


O estatuto do valor de uso em Marx é ambíguo.
Sabe-se que a mercadoria é simultaneamente valor de
I troca e valor de uso. Mas este último é sempre concreto
e particular, segundo o seu próprio destino, seja no pro­
I cesso de consumo individual ou no processo de traba­
I
f lho (neste caso, o toucinho vale como toucinho, e o algo­
dão como algodão; não podem ser substituídos um pelo
outro, nem portanto «trocar-se»), ao passo que o valor
de troca é abstracto e geral. Por certo, não pode haver
valor de troca sem haver valor de uso; os dois estão
emparelhados, mas não estão implicados no sentido
forte: «Para definir a noção de mercadoria, pouco
importa conhecer o seu conteúdo particular e o seu
destino exacto. Basta que o artigo que deve ser merca­
doria— por outras palavras, o suporte do valor de
troca — satisfaça qualquer necessidade social que tenha
a propriedade útil correspondente. É tudo» (O Capital,
I, VI). Portanto, o valor de uso não está implicado na
lógica própria do valor de troca, que é uma lógica da
equivalência. Aliás, pode haver valor de uso sem que
haja valor de troca (tanto para a força de trabalho como
para os produtos, fora da esfera do mercado). Mesmo
se é continuamente recaptado pelo processo de produ­
ção e de troca, o valor de uso não se inscreve verdadei­
ramente no campo da economia mercantil: tem a sua
finalidade própria, mesmo restrita. E há nele, a partir
daí, a promessa de ressurgir para além da economia
mercantil, do dinheiro e do valor de troca, na autonomia
gloriosa da relação simples do homem com o seu traba­
lho e com os seus produtos...
161
Parece, pois, que o «feiticismo da mercadoria» lcr-se na base do trabalho social abstracto. E afirma,
(a saber, que aquilo que é relação social se disfarça em inversamente, a «incomparabilidade» dos valores de uso.
qualidade e em atributo da própria mercadoria) não Ora, é necessário ver que:
actua sobre a mercadoria definida simultaneamente como
valor de troca e valor de uso, mas somente sobre o valor 1. Para que haja troca económica e valor de
de troca. O valor de uso, nesta análise restritiva do fei­ troca, também já é preciso que o princípio de utilidade
ticismo, não aparece como relação social nem, portanto, se tenha tornado o princípio de realidade do objecto
como lugar de feitização: a utilidade enquanto tal escapa ou do produto. Para os produtos serem trocáveis abs­
à determinação histórica de classe: designa uma relação tracta e geralmente é preciso também que sejam pen­
final objectiva com destino próprio que se não mascara sados e racionalizados em termos de utilidade. Onde o
e cuja transparência desafia a história, enquanto forma não forem (na troca simbólica primitiva) também não
(mesmo se o seu conteúdo muda continuamente com as terão valor de troca. A redução ao estatuto da utilidade
determinações sociais e culturais). É aqui que entra o é a base da possibilidade de troca (económica).
idealismo marxista, é aqui que se tom a necessário ser 2. Se o princípio da troca e o princípio da utili­
mais lógico que o próprio Marx, no seu próprio sentido, dade têm uma tal afinidade (e não se limitam a «coe­
mais radical: o valor de uso, a própria utilidade, tal xistir» na mercadoria), é que, contrariamente ao que
como_ a equivalência abstracta das mercadorias, é uma Marx diz da «incompatibilidade» dos valores de uso,
relação social enfeitiçada — uma abstracção, a do sis­ a lógica da equivalência está já inteiramente na utili­
tema das necessidades, que toma a evidência falsa de dade. O valor de uso, se não se inscreve no quantitativo
um destino concreto, de uma finalidade própria dos no sentido aritmético, inscreve-se já no equivalente.
bens e dos produtos — tal como a abstracção do traba­ Enquanto valores úteis, todos os bens são já comparáveis
lho social que funda a lógica da equivalência (valor de entre si, porque adscritos ao mesmo denominador comum
troca) se esconde sob a ilusão do valor «infuso» das
mercadorias. funcionai/racional, à mesma determinação abstracta.
Só os objectos ou categorias de bens investidos na troca
A hipótese é, com efeito, que as necessidades (o sis­ simbólica, singular e pessoal (o dom, o presente) são
tema das necessidades) são o equivalente do trabalho
social abstracto: nelas se funda o sistema do valor de uso, estritamente incomparáveis. A relação pessoal (a troca
como no trabalho social abstracto se funda o valor de não-económica) toma-os absolutamente singulares. Pelo
troca. A hipótese implica também, para que haja sistema, contrário, enquanto valor útil, o objecto atinge a univer­
que uma mesma lógica abstracta da equivalência regule o salidade abstracta, a «objectividade» (por redução de
valor de uso e o valor de troca, um mesmo código. toda a função simbólica).
O código da utilidade é também um código de equiva­ 3. Trata-se, portanto, de uma forma/objecto, cujo
lência abstracta dos objectos e dos sujeitos (de cada equivalente geral é a utilidade. E não se trata de uma
um deles e dos dois conjuntamente na sua relação), «analogia» com as fórmulas do valor de troca. Trata-se
portanto de combinatória e de cálculo virtual (voltaremos da mesma forma lógica. Qualquer objecto é traduzível
a este ponto): é aliás, enquanto tal, enquanto sistema no código abstracto geral da utilidade, que é a sua razão,
e não, evidentemente, enquanto operação prática, que o a sua lei objectiva, o seu sentido — e isso independente­
valor de uso pode ser «enfeitiçado». É sempre a abstrac­ mente de quem dele se serve ou daquilo que serve.
ção sistemática que é enfeitiçada (cf. «Feiticismo e ideo­ É a funcionalidade que triunfa como código, e este
logia»). Acontece o mesmo com o valor de troca. E são código, que se funda unicamente na adequação de um
as duas feitizações, a do valor de uso e a do valor de objecto ao seu fim (útil), submete a si todos os objectos
troca, só elas reunidas, que constituem o feiticismo da reais ou virtuais, sem acepção de pessoa. Aqui nasce
mercadoria. o económico, o cálculo económico, do qual a form a/
Marx define a forma do valor de troca e da merca­ /mercadoria não é mais que a forma desenvolvida e
doria pelo facto de todos os produtos poderem equiva- que aí volta continuamente.
162 163
4. Ora este valor de uso (utilidade), contrariamente simultânea dos objectos e das necessidades O). O indi­
à ilusão antropológica que pretende fazer dele a simples víduo é uma estrutura ideológica, uma forma histórica
relação de uma «necessidade» do homem com uma correlativa da forma/mercadoria (valor de troca) e da
propriedade útil do objecto, é certamente também uma forma/objecto (valor de uso). O indivíduo não é mais que
relação social. Do mesmo modo que no valor de troca o sujeito pensado em termos de economia, repensado,
o homem /produtor não aparece como criador, mas como simplificado e abstraído pela economia. E toda a história
força de trabalho social abstracto, assim no sistema do da consciência e da moral (todas as categorias da psico-
valor de uso, o homem / «consumidor» nunca aparece metafísica ocidental) não é mais que a história da eco­
como desejo e gozo, mas como força de necessidade nomia política do sujeito.
social abstracta (poderia dizer-se Bedürfniskraft, Bedür­
fnisvermögen, por analogia com Arbeitskraft, Arbeits­ O valor de uso é a expressão de toda uma meta­
vermögen). física: a da utilidade. Inscreve-se no centro do objecto
O produtor social abstracto é o homem, pensado como uma espécie de lei moral — e inscreve-se aí em fun­
em termos de valor de uso. O indivíduo social abstracto ção da finalidade da «necessidade» do sujeito. É a trans­
(o homem da «necessidade»), é o homem pensado em crição no coração das coisas da mesma lei moral (kantiana
termos de valor de uso. Existe homologia entre a «eman­ e cristã) inscrita no coração do sujeito, que o positiva na
cipação», na era burguesa, entre o indivíduo privado sua essência e institui numa relação final (com Deus ou
que é finalizado pelas suas necessidades e a «emanci­ com qualquer outra realidade transcendente). Num caso
pação» dos objectos no seu valor de uso. Esta resulta como noutro, a circulação do valor é regulada por um
de uma racionalização objectiva, por superação das código providencial que vela pela correlação do objecto
antigas obrigações rituais, simbólicas, que faziam com com a necessidade do sujeito, sob o signo da «funcio­
que os objectos, num outro tipo de troca radicalmente nalidade» — como, por outro lado, assegura a coinci­
diferente, não tivessem de modo nenhum o estatuto de dência do sujeito com a lei divina, sob o signo da moral.
«objectividade» que nós lhes damos. A partir de agora, É o mesmo finalismo que sela a essência do sujeito
os objectos, secularizados, funcionalizados, racionali­ (a sua identidade consigo próprio através do reconhe­
zados naquilo para que servem, tornam-se a promessa cimento desta finalidade transcendente) e que institui
de uma economia política ideal (e idealista), tendo como o objecto numa «verdade», numa essência chamada valor
palavra de ordem «a cada um segundo as suas neces­ de uso, numa transparência em relação a si próprio e ao
sidades». sujeito, sob o signo racional da utilidade. E esta mesma
Simultaneamente, o indivíduo, liberto de qualquer lei moral opera a mesma redução fundamental de todas
obrigação colectiva de ordem mágica ou religiosa, as virtualidades simbólicas do sujeito e do objecto. Uma
«liberto» dos seus laços arcaicos, simbólicos ou pessoais, finalmente simples substitui uma multiplicidade de sen­
finalmente «privado» e autónomo, define-se por uma tidos. E também aqui é o princípio de equivalência que
actividade «objectiva» de transformação da natureza — opera como redutor da ambivalência simbólica:
o trabalho — e pela destruição da utilidade em seu 1. Institui o objecto numa equivalência funcional
proveito: necessidades, satisfações, valor de uso. consigo próprio no quadro único desta valência determi­
Utilidade, necessidades, valor de uso: nada disto nada: a utilidade. Esta simplificação absoluta, esta racio-
alguma vez descreve um sujeito a braços com as suas
relações de objecto ambivalentes, ou a troca simbólica
(*) A este título, não há diferença fundamental entre o
entre sujeitos; isto descreve a relação do indivíduo con­ consumo «produtivo» (destruição directa de utilidade no processo
sigo próprio pensado em termos económicos, ou para de produção) e o dos particulares. O indivíduo e suas necessidades
dizer, melhor ainda, a relação do sujeito com o sistema são produzidos pelo sistema económico como células de base
económico. Longe de ser o indivíduo a exprimir as suas da sua reprodução. Devemos repetir que «as necessidades» são
necessidades no sistema económico, é o sistema econó­ um trabalho social, uma disciplina produtiva. Em parte alguma
o sujeito ou o seu desejo são postos em causa. A este nível,
mico que induz a função/indivíduo e a funcionalidade portanto, há apenas consumo produtivo.
164 165
nalização por identidade (equivalência de si a si) permite- mente a abstracção do indivíduo privado como relação
-Ihe entrar no campo da economia política como valor social). Contra toda esta metafísica regurgitante das
positivo. necessidades e do valor de uso, é ^ necessário ver
_2. A mesma simplificação absoluta do sujeito como que a abstracção, a redução, a racionalização e a
sujeito da consciência moral e das «necessidades» permi­ sistematização são tão profundas e tão generaliza­
te-lhe entrar como indivíduo abstracto (definido por das ao nível das «necessidades» como ao nível das
identidade, a equivalência consigo próprio) no sistema mercadorias. Talvez isso não fosse ainda claro num
de valores e de práticas da economia política. estádio anterior da economia política- em que se
Portanto, a funcionalidade dos objectos, o seu código pôde pensar que, se o invidíduo estava alienado pelo sis­
moral de utilidade é tão regulado pela lógica da equi­ tema do valor de troca, pelo menos voltava a ser d e
valência como o seu estatuto de valor de troca. Por­ próprio nas suas necessidades e no momento do valor de
tanto, cai igualmente sob a jurisdição da economia uso. Mas hoje, no estádio de mobilização consumatória
política. E se chamamos FORMA/OBJECTO a esta equi- em que nos encontramos, tornou-se possível ver que as
yalencia abstracta das utilidades, podemos dizer que a necessidades, longe de se articularem no desejo ou na
forma/objecto não é mais que a forma acabada da exigência própria do sujeito, encontram a sua coerência
forma/mercadoria. Por outras palavras, uma mesma em lugar inteiramente diferente: num sistema generali­
lógica (e um mesmo feiticismo) opera nos dois lados da zado que é para o desejo aquilo que o sistema de valor
mercadoria especificados por Marx: valor de uso e valor de troca é para o trabalho concreto: fonte de valor. Todas
de troca. as pulsões, relações simbólicas, relações de objecto, e
até as perversões, todo o trabalho de investimento do
Ao não submeter radicalmente o valor de uso a sujeito se abstraem e encontram o seu equivalente geral
esta lógica da equivalência, ao manter o valor de uso na utilidade; e o sistema das necessidades, como todos
no «incomparável», a análise marxista contribui para os valores e o trabalho social real, encontram o seu equi­
a mitologia (verdadeira «mística» racionalista) que faz valente geral na moeda e no dinheiro. Tudo o que brota
passar a relação do indivíduo com os objectos, conce­ do sujeito, do seu corpo, do seu desejo, é dissociado e
bidos como valor de uso, por uma relação concreta e catalizado em termos de necessidades, mais ou menos
objectiva, «natural» em suma, entre a necessidade pró­ especificadas previamente por objectos. Todas as pulsões
pria do homem e a função própria do objecto — ao são racionalizadas, finalizadas e objectivadas em neces*
invés da relação «alienada» reificada, abstracta, que ele sidades, e portanto são simbolicamente anuladas. Toda
teria com os produtos como valor de troca: haveria
aqui, no uso, como que uma esfera concreta da relação
privada, em oposição à esfera social e abstracta do mer­ sistema, como código universal da utilidade — tal como simul­
cado C). (Marx, contudo, analisa, por outro lado, radical­ taneamente a produção na sua finalidade actual já nao é pro­
dução de bens «concretos», mas reprodução alargada do sistema
do valor de troca. _
Somente a consumpção não entra nesta reprodução alar­
(*) O próprio consumo só aparentemente é uma operação gada do sistema do valor — não porque seja destruição da subs­
«concreta» (por oposição à abstracção da troca). Porque o que tância, mas porque é transgressão da lei e da finalidade dos
é consumido não é o próprio produto, é a sua utilidade. Os eco­ objectos, abolição da sua finalidade abstracta. O consumo, quando
nomistas tem razão neste ponto: o consumo não é destruição parece consumir (destruir) os produtos, não faz mais do que
de produtos, mas destruição de utilidade. No ciclo do económico, consumar (acabar, realizar) a sua utilidade. Destrói os objectos
e pois, de qualquer maneira, uma abstracção que é produzida ou como substância para melhor perpetuar a sua forma universal
consumida como valor (de troca num caso, de uso noutro). Em e abstracta, reproduzir o código do valor. A consumpção (jogo,
parte alguma o objecto «concreto», o produto «concreto» (que dom, destruição em pura perda, reciprocidade simbólica) ataca
quer isto dizer?) estão em causa, mas sempre um ciclo abstracto, o próprio código, quebra-o, desconstrói-o: é a destruição do
um sistema de valor que se produz e reproduz de maneira alar­ código do valor (de troca ou de uso) que constitui o acto sim­
gada. Por isso mesmo o consumo não é de modo nenhum uma bólico, não a destruição dos objectos em si propnos. Só este acto
destruição (do valor de uso «concreto»), mas um trabalho de pode dizer-se «concreto», porque só ele quebra e transgride a
reprodução alargada do valor de uso como abstracção, como abstracção do valor.

166 167
Diz Marx em substância: «A produção não produz
a ambivalência é reduzida por equivalência. E dizer que o Homente bens, produz também homens para os a m
sistema de necessidades é um sistema de equivalên­ e as necessidades correspondentes.» Proposição quase
cia geral não é minimamente uma metáfora: isso quer sempre desviada no sentido simplista da «manipulaçao
dizer que estamos plenamente na economia política. Por das necessidades» e da denúncia das «necessidades artifi­
isso mesmo falámos no feiticismo do valor de uso. Se as ciais» C) É necessário ver que o que produz o sistema
necessidades fossem a expressão concreta, singular, do 5aa mercadoria na sua.forma geral é o ^ concho
sujeito, seria absurdo falar de feiticismo. Mas se as neces­ constitutivo da própna estrutura do indivíduo quer
sidades se erigem cada vez mais num sistema abstracto, dizer o conceito histórico de um ser social q.ue, em
regulado por um princípio de equivalência e de combina­ rotura de troca simbólica, se autonomiza e racionaliza
tória geral, então certamente que o mesmo feiticismo o seu desejo, a sua relação com os outrosmj com os
que se liga ao sistema do valor de troca e da mercadoria objectos em termos de necessidades, de utilidade, de
funciona aqui num sistema que é homólogo do outro, e
que o exprime em toda a sua profundidade e perfeição. satisfação e de valor de uso.
Assim o que reduz a troca simbólica, o que emerge
E do mesmo modo que o valor de troca não é subs­ da rotura da troca simbólica, não é este ou aquele valor,
tancial ao produto, mas uma forma que exprime uma é imediatamente a oposição estrutural dos dois v^ores
relação social, assim o valor de uso tambm não é uma _valor de troca e valor de uso, cuja forma lógica é
função infusa do objecto, mas uma determinação social mesma e cuja organização dual marca o económico.
(ao mesmo tempo do sujeito, do objecto e da sua relação). Estamos aqui, a um nível antropológico global, perante
Por outras palavras, assim como a lógica da mercadoria
se estende indiferentemente aos homens e às coisas, e faz o mesmo esquema de «redução . f ^ f X t S o s ^ o s t í í d o
<;ámos em «Feiticismo e ideologia». Tínhamos mostraoo
com que os homens, obedecendo à mesma lei, apareçam nesse estudo como esta redução, esta estruturaçao oposi-
apenas como valor de troca — assim a finalidade restrita tiva em termos duais constituía* Própria m atnz do
da utilidade se impõe aos homens como aos objectos. funcionamento ideológico - pelo facito de
É ilógico e ingénuo esperar que, através dos objectos ção nunca ser V n r ^ n ^ s t r n ^ l ,
pensados em termos de valor de troca, isto é, nas suas
necessidades, o homem se possa realizar a si próprio de sem ^e de uma estratégia (assim, masculino/
red o brf-se
outro modo que não como valor de uso. Tal é, contudo, /feminino em proveitoi do masculino, consciente/incons-
a vulgata humanista moderna: julga-se que é através da dente em proveito da consciência, etc.). Acontece aqui
funcionalidade, da finalidade doméstica doi mundo exte­ o mesmo exactamente. Na correlação:
rior, que o homem se realiza enquanto homem. A verdade
é inteiramente outra: rodeado de mercadorias e de valor VT Ste
de troca, o próprio homem não é mais que valor de troca
e mercadoria. Rodeado de objectos que funcionam e que VU Sdo
«servem», o próprio homem é apenas o mais belo dos
abjectos funcionais e servis. Não só o Homo oeconomicus
se tom a inteiramente valor de uso no processo de pro­
dução capitalista, mas esse imperativo utilitário estrutura ' (-1} (b necomorÍa° anlTopo^ogiaaque° implicamf sã íf bastante
até a relação do indivíduo consigo próprio: no processo
de satisfação, faz valer e frutificar as suas próprias vir- necessidades sao fu n g o necessidades são produzidas pelo
em versão mais radicai, as i reprodução alargada» — ou
tualidades de prazer, «realiza» e gere, da melhor maneira sistema para assegurara s u a p P P conteúdo m últiplo
(isto é, ao máximo) a sua própria «faculdade» de gozar, seja, a interpretaçao ^ c r í t i c a radical o próprio
literalmente tratada como uma força produtiva. Não se S c í “o “ e e o * < - to necessidades como
funda toda a moral humanista no «bom uso» de si
forma.
próprio?
168
valor de uso e significado não têm de modo nenhum o a qual todos os homens são iguais. As necessidades,
mesmo peso respectivo que valor de troca e significante. diferentemente dos meios de as satisfazer, seriam a coisa
Digamos que têm um valor táctico, enquanto que valor mais bem distribuída do mundo. Os homens não são
de troca e significante têm um valor estratégico. O sis­ Iguais relativamente aos bens tomados como valor de
tema organiza-se segundo uma bipolaridade funcional, troca, mas seriam iguais relativamente aos bens tomados
mas hierarquizada, e na qual a proeminência absoluta como valor de uso. Dispõe-se deles ou não, conforme
cabe ao valor de troca e ao significante. Valor de uso a classe ou o rendimento, mas a virtualidade de se servir
e necessidades não são mais que um efeito do valor de deles é a mesma para todos. Toda a gente é igualmente
troca. Significado (e referente) não são mais que um rica de possibilidades de felicidade e de satisfação. É a
efeito do significante, (voltaremos a este ponto mais democracia das «necessidades», secularização da igual­
tarde). Nem um nem outro são uma realidade autónoma dade virtual de todos os homens perante Deus. Assim,
que o valor de troca ou o significante viriam exprimir o valor de uso, remetido para a esfera antropológica,
e traduzir no seu código; são, no fundo, apenas modelos reconcilia no universal os homens socialmente divididos
de simulação, produzidos pelo jogo do valor de troca e pelo valor de troca.
do significante, e através dos quais estes se conferem a O valor de troca é o apagamento do processo de
caução do real, do vivido, do concreto, a caução de uma trabalho real ao nível da mercadoria, de tal modo que
realidade objectiva que, no entanto, no mesmo momento esta apareça como valor autónomo. O valor de uso faz
estes sistemas enquanto sistemas substituem pela sua melhor: confere à mercadoria, inumana na sua abstrac­
própria lógica total (aliás, «substituir» ainda é falso: ção, uma finalidade «humana». No valor de troca, o tra­
o termo subentende que existe realmente em qualquer balho social desaparece. No sistema do valor de uso,
lado uma realidade fundamental, que o sistema viria é a reabsorção sem traços de todo o processo de traba­
captar ou desviar. De facto, não há outra realidade ou lho ideológico e histórico que leva o sujeito a pensar-se
princípio de realidade a não ser a que é imediatamente como indivíduo, definido pelas suas necessidades e satis­
produzida pelo sistema como sua referência ideal). O que fações, e a integrar-se assim idealmente na estrutura da
equivale a dizer que valor de uso e significado não cons­ mercadoria.
tituem um alhures (objectivo e concreto) em relação ao Deste modo, sem deixar de ser sistema, quer dizer,
valor de troca e ao significante: não são mais que o histórica e logicamente solidário do sistema do valor de
seu alibi. troca, o sistema do valor de uso vem naturalizar este
Vimos, num primeiro tempo, que através do sis­ último e oferecer-lhe a caução universal e intemporal sem
tema do valor de uso, (isto é, da extensão do processo a qual o sistema do valor de troca muito simplesmente
de abstracção e de racionalidade produtiva a todo o domí­ não poderia reproduzir-se (nem sequer, sem dúvida, ser
nio do «consumo» através das «necessidades» como sis­ produzido na sua forma geral).
tema de valores e de forças produtivas), é o campo da O valor de uso é, portanto, o coroamento, o fim do
economia política que se generaliza e se satura. Neste fim da economia política:
sentido, o valor de uso aparece como o acabamento e a — na sua realidade vivida: é a imanência da econo­
realização do valor de troca (da economia política em mia política no quotidiano real, até no acto em que o
geral). E o feiticismo do valor de uso vem redobrar e homem crê reencontrar-se. Ele não encontra os ^seus
aprofundar o feiticismo do valor de troca. objectos senão naquilo para que estes servem, e não se
Isto é um primeiro ponto. Mas é necessário ver que encontra a si próprio, mesmo na expressão e satisfação
o sistema do valor de uso não é somente o duplo, a trans­ de suas necessidades, senão naquilo para que serve;
posição ou a extensão do do valor de troca. É ao mesmo — no seu valor estratégico: ele é aquilo através de
tempo a sua caução ideológica (e, mais uma vez, se pode que é selado ideologicamente o sistema de produção e de
sê-lo, é porque está estruturado logicamente da mesma troca, graças à instituição de uma antropologia idealista
maneira). Ideologia, bem entendido, naturalizante: o valor que retira o valor de uso e as necessidades da sua lógica
de uso é dado fundamentalmente como instância perante histórica para os inscrever numa eternidade formal:
170 171
a da utilidade para os objectos, a da apropriação útil ao valor de troca, quando não é mais que a sua forma
dos objectos pelo homem na necessidade. naturalizada.
Por isso mesmo dizemos que o feiticismo do valor
de uso e mais profundo, mais «misterioso» ainda que o
feiticismo do valor de troca. O mistério do valor de troca Marx e Robinson
fartr, m aÍnd£Í P° dem ser relativ am en te-e Marx, O Capital, I, I, IV:
foram-no apos Marx — desmascarados e aflorar à cons­ «A mercadoria... enquanto valor de uso, nada tem
ciência como relação social. No valor de uso, o veàor em si de misterioso, quer no caso de ela satisfazer as
reveste-se de um mistério total, pois que se funda necessidades do homem pelas suas propriedades, quer
^ ^ntr°po!ogi.a ' na evidência de uma naturalidade, no caso de as suas propriedades serem prodmidas pelo
numa referencia original inultrapassável. É aqui que trabalho humano. É evidente que a actividade do homem
fitfniv? verdadeira «teologia» do valor, na ordem das transforma as matérias fornecidas pela natureza de modo
finalidades — na relaçao «ideal» de equivalência, de «har-
a tomá-las úteis...» . ,
ÍIInSaH 6 er°nom!a e de ecluilíbrio que o conceito de «O carácter místico da mercadoria nao provem,
utilidade implica, e isto a todos os níveis, entre o homem
e a natureza, entre o homem e os objectos, entre o homem pois, do seu valor de uso.»
«As categorias da economia política burguesa sao
e o seu corpo entre ele e os outros. É aí que o valor formas do intelecto que têm uma verdade objectiva,
toma uma evidencia absoluta e se tom a «a coisa mais enquanto reflectem relações sociais reais, mas ^ is rela­
r ^ Su é^ ° rtant,° t^ nbérP aí 9ue o mistério e a astú- ções pertencem apenas a esta epoca histónca determi
e m ü t S lS r 6 86 t0rnam maÍS Profundos nada, em que a produção mercantil e o modo de produ­
ção social. Portanto, se considerarmos outras fori™p
de produção, veremos desaparecer mediatamente todo
tema Sn Val° r de US° é ProduzidO pelo sis- este misticismo que obscurece os produtos do trabalh
í , de troca como sua própria ideologia — se
s a té íZ Sei? ai\tonomia>não sendo mais do que do período actual. , ,
rn n l L a VaÍ°r de troca' embora fazendo sistema «Uma vez que a economia política gosta das robm-
com ele no quadro da economia política, então já não é sonadas', visitemos Robinson na s u a / h a-.-T odas as
afirmar ° valor de uso como alternativa para o relações entre Robinson e as coisas que formam a riqueza
n o í E r í T * * asUa «restituição» no termo da economia que ele próprio criou para si são tão simples e transpa-
? da «adm?n- ? sl§no da «libertação das necessidades» rentes que o Sr. Baudrillard P) podia compreende-las
luc£nári™ aÇa° colsas»’ como perspectiva revo- sem demasiada tensão de espírito. E, no_ entanto, todas
as determinações essenciais do valor estao ai contidas.
Toda a perspectiva revolucionária passa hoje pela Tendo ele próprio ridicularizado a justo titulo as
contestaçao radical da metafísica racionalizante redutora robinsonadas dos economistas burgueses, Marx .devena
a» uti/ idade- toda a teoria c n T ^ p Z ter desconfiado de Robinson. Ao opor o «misticismo-
!íf
n n t? m a/ jec,to i )’ ausente da análise marxista,
tir^ ' 57e como resultado, com as consequências polí­
obscuro do valor mercantil à simplicidade e transparên­
cia das relações de Robinson com a sua nqueza,cav
ticas e ideológicas que isso implica, que todas as ilusões numa armadilha. Se se admite a hipótese (marxista) de
convergissem para o valor de uso, idealizado por oposição que a economia política burguesa resumiu no mito de
Robinson toda a sua ideologia, e necessano adrmtir qu
tudo nesta história está de acordo com a mística e com
0) E da forma/signo. Veremos que uma mesma lóeira
regula a organização do signo no sistema contemporâneo e faz
do significado (referente) o termo satélite, o temo alibi do 0 Qualquer semelhança com uma pessoa viva é uma
da^eaHdade J° g° d° S Slgnificantes- conferindo a este a caução coincidência puramente acidental.

172
a metafísica do pensamento burguês, mesmo e sobretudo Terrestr^^uebrad^^^o^wS^^^e^ol^frimento^^r-
essa «transparência» nas relações do homem com os manecem inscritos;comc
seus instrumentos e com os produtos do seu trabalho.
Este confronto ideal do homem com a sua capaci­ A mesma lóg£a° o signo duo»
dade de trabalho (Arbeitsvermögen) e com suas necessi­ natureza doadora, em que transparece o m °d° de pro
dades não é (apenas) abstracto porque estaria cortado 3 S £ ad . colheita primitiva,
da esfera da economia política e das relações sociais J narece a servidão e o trabalho, o mito ao rarais
mercantis; é abstracto em si próprio, não abstraído da íê m f m d S S v e aTdealidada das rdações feudais (pr£
economia política, mas abstracto porque resume toda a
abstracção da economia política, a saber, a assumpção
do valor de troca no valor de uso, a realização da econo­ S È b iS S (ím R,u e £ « £ a ^ o r da
mia política na finalidade providencial da utilidade.
Robinson é o termo de toda uma mutação em curso
desde a aurora da sociedade burguesa (mas só teorizada
e £s x r s i t ó
verdadeiramente a partir do século XVIII) e que faz
simultaneamente do homem uma força produtiva e um
«homem das necessidades». Os manufactores e os ideólo­
gos da Natureza partilham-no entre si. Ele torna-se, no
seu trabalho» valor de uso para um sistema de produção, fazer Sexta-feira no assunto?). _
e simultaneamente os bens e os produtos tomam-se para Na realidade, nada é claro nesta historia, í,_ta^
ele valor de uso, ganham sentido em função das suas 3 evidência da simplicidade e da transparência,
neoessidades, doravante legalizadas como «natureza».
Penetra no reino do valor de uso, que é também o da
«Natureza», mas de modo nenhum segundo uma finali­
dade original reencontrada: muito simplesmente porque
todos estes conceitos (necessidades, natureza, utilidade)
nasceram conjuntamente, numa mesma fase histórica de
sistematização da economia política e da ideologia que
a sanciona.
0 mito de Robinson é a metamorfose burguesa do
mito do Paraíso Terrestre. Qualquer grande ordem de coisas.
produção (burguesa ou feudal) alimenta um mito ideal,
que é simultaneamente mito de realização e mito de
origem. A economia política sustenta-se do grande mito
de realização do homem segundo a lei natural das neces­
sidades, tal como a teologia se sustenta do mito da rea­
lização do homem segundo a lei divina. A mesma finali­
dade se reconhece num e noutro caso: a de uma relação
ideal do homem com o mundo através das suas necessi­
dades e da regra da Natureza — a de uma relação ideal
do homem com Deus através da fé e da regra divina,
a Providência. Por certo, esta vocação ideal é sempre, e de
imediato, vivida como perdida ou comprometida, mas
a finalidade permanece, e o valor de uso, sepultado sob
175
174
Oitava Parte

PA R A UMA C R IT IC A

DA E C O N O M IA P O L ÍT IC A DO S IG N O
I
0 PENSAMENTO MAGICO DA IDEOLOGIA

Esta estruturação homológica dos valores naquilo


que se convencionou chamar o campo do económico e
o campo da significação tem como efeito deslocar e
colocar em termos radicalmente diferentes todo o pro­
cesso da ideologia. Este já se não funda numa relação
infra/superestrutural entre uma produção material (sis­
tema e relações de produção) e uma produção de signos
(cultura, etc.) que viria exprimir e mascarar as suas
A Crítica da economia política do signo propõe-se contradições. Tudo isto faz parte a partir de agora, com o
fazer a análise da forma/signo, como a crítica da econo­ mesmo grau de objectividade, da economia política (da
mia política se propôs fazer a da forma/mercadoria.
Assim como a mercadoria é simultaneamente valor sua crítica) geral, atravessada de lado a lado pela mesma
de troca e valor de uso — impondo-se por isso a análise forma e regida pela mesma lógica.
total desta forma sobre os dois lados do sistema — , É necessário recordar que a visão tradicional da
assim também o signo é simultaneamente significante ideologia com a sua distinção artificial do «eco­
e significado, e a análise da forma/signo deve instituir-se nómico» e do «ideológico», alem da ginastica deses­
aos dois níveis. Impõe-se simultaneamente, bem enten­ perada («superestrutural», «dialéctica», «estrutural com
dido, a análise lógica e estratégica da relação entre os dois dominante», etc.) que implica, comporta também
termos, ou seja: a impossibilidade de apreender a função «ideoló­
1. Entre o sistema do VT e o sistema do VU (ou gica» da cultura e dos signos assim separados,
entre forma/mercadoria e forma/objecto): é o que ten­ de outro modo que não ao nível dos significados;.
támos no artigo anterior. A ideologia (deste ou daquele grupo, da classe domi­
2. Entre sistema do Ste e sistema do Sdo (ou nante), são sempre grandes temas- grandes conteúdos,
entre o seu respectivo código, que define a articulação grandes valores (nação, moral, família, humanismo, feli­
do valor/signo e da forma/signo). cidade, consumo) cujo poder alegórico vem actuar, não
Esta relação estabelece-se nos dois casos como uma se sabe como, sobre as consciências para as integrar.
função hierárquica entre uma forma dominante e uma São conteúdos de pensamento que vêm actuar sobre
forma-alibi, ou forma-satélite, que é ao mesmo tempo o situações reais, e, no conjunto, a ideologia define-se
coroamento lógico e a realização ideológica da primeira. como a ressaca da cultura sobre a economia.
178 179
Ora é claro que a ideologia é esta mesma forma como valor (autónomo), como conteúdo (transcendente),
que atravessa tanto a produção dos signos como a como representação de consciência (significado). É o
produção «material» — ou antes, o desdobramento lógico mesmo processo que faz ler na mercadoria um valor
desta forma em dois termos: autónomo, uma realidade transcendente, por desconhe­
cimento da sua forma e da abstracção do trabalho
VT / VU social que ela opera. A cultura define-se, pois, no pen­
/ samento burguês (ou marxista!) como transcendência
Ste / Sdo dos conteúdos, correlacionados com as consciências por
meio da «representação», circulando entre eles como
— desdobramento funcional, estratégico, por onde a valores positivos, tal como a mercadoria enfeitiçada
forma se reproduz. Isto significa que a ideologia está aparece como valor real imediato, correlacionado com
já inteirinha na relação do VT com o VU, isto é, já os sujeitos por meio da «necessidade» e do valor de
inteirinha na lógica da mercadoria, como o está na uso, e circulando segundo as regras do valor de troca.
relação do Ste com o Sdo, ou seja, na lógica interna É uma astúcia própria da forma o velar-se conti­
do signo. nuamente na evidência dos conteúdos. É uma astúcia
Marx mostrou que a objectividade da produção do código o velar-se e produzir-se na evidência do valor.
material residia não na sua materialidade, mas na sua É na «materialidade» do conteúdo que a forma con­
forma. Aí está o ponto de partida de qualquer teoria suma a sua abstracção e se reproduz como forma.
crítica. A mesma redução analítica deve fazer-se da É assim a sua magia, jogando simultaneamente na for­
ideologia: a sua objectividade não reside na sua «idea­ mação dos conteúdos e das consciências para os rece­
lidade», isto é, numa metafísica realista dos conteúdos ber (como a produção produz ao mesmo tempo os pro­
de pensamento, mas na sua forma. dutos e as «necessidades» que lhes correspondem) — ,
A «crítica» (a marxista também) da ideologia vive instalando assim a cultura numa transcendência dual
de um pensamento mágico da ideologia. Ela não a dos valores (dos conteúdos) e das consciências, e numa
decifra como forma, mas como conteúdo, valor dado metafísica da troca entre os dois termos. E se a vulgata
transcendente — uma espécie de mana que se prenderia burguesa a instala nessa transcendência para aí a sacra-
a algumas grandes representações que impregnam magi­ lizar como cultura, a vulgata marxista, por sua vez, ins-
camente as subjectividades flutuantes e mistificadas cha­ tala-a na mesma transcendência para aí a denunciar
madas «consciências». Do mesmo modo que a «neces­ como ideologia. Mas as duas vulgatas encontram-se no
sidade» se dá como relação entre a «utilidade de um mesmo pensamento mágico (')•
objecto» e a «procura por um sujeito», assim a ideologia Quase todo o pensamento contemporâneo se enterra
aparece como a relação entre a projecção de uma cons­ em falsos problemas, em controvérsias intermináveis
ciência e a idealidade de uma... ideia, ou de um valor. provenientes de disjunções artificiais:
A mesma passagem mágica entre conceitos artificiais,
mesmo metafísicos, transpostos dos bens materiais para 1. A disjunção sujeito/objecto, colmatada pelo
as representações colectivas e para os valores C). conceito mágico de «necessidade». Tudo iria bem, se
A ideologia é, de facto, todo o processo de redução não surgisse o problema insolúvel da «oferta e da pro­
e de abstracção do material simbólico numa forma cura» no sistema geral da produção/consumo. Autono­
— mas esta abstracção redutora dá-se imediatamente mia da escolha ou manipulação? Pseudodialéctica entre
as duas? Eterna ladainha e falso problema.

Q É preciso notar que a «alienação» é, também ela, um


destes_ conceitos mágicos, votados a colmatar uma disjunção (‘) Assim, a denúncia «crítica» das «necessidades arti­
artificial — aqui, a situada entre a «consciência» do sujeito e o ficiais» e da «manipulação das necessidades» encontra-se na
seu próprio conteúdo ideal (a sua totalidade «reencontrada»). mesma mistificação com a exaltação incondicional do consumo.
180 181
2. A disjunção infra/superestrutura que, já vimos, social. Tal como a forma/signo, a mercadoria é um
recobre sub-repticiamente a resistente disjunção entre código que ordena a troca dos valores. Conteúdos mate­
materialidade dos conteúdos e idealidade das consciên­ riais de produção ou conteúdos imateriais de significa­
cias— sendo os dois pólos, assim separados, reunidos ção, pouco importa, é o código que é determinante: a
pelo conceito mágico de ideologia. Aqui também tudo regra do jogo dos significantes, a regra do jogo do
iria bem se pelo facto não ficasse eternamente em sus­ valor de troca. É ele que, num caso e noutro, generali­
penso - para a maior felicidade de gerações de inte­ zado no sistema da economia política, reduz toda a
lectuais — o problema da «instância determinante» e ambivalência simbólica para fundar sobre a equivalência
toda a acrobacia de «interacção», de «dialéctica», de regulada dos valores a sua circulação «racional» e o
«autonomia relativa» e de «sobredeterminação» daí jogo das trocas.
resultante. É aqui que o conceito de alienação se revela inuti-
lizável, por causa da sua implicação na metafísica do
3. A distinção exploração/alienação, que reper­ sujeito da consciência. Assim como os mitos das socie­
cute este falso problema ao nível da análise política. dades primitivas não são «falsas» histórias que as cons­
O debate infindável de saber se uma funda a outra, ciências se contam, mas sim um código de signos que
se a segunda sucede à primeira como «estádio mais se trocam, integrando o grupo por essa mesma circula­
avançado do capitalismo», tudo isso é absurdo e resulta ção e não pela força dos «conteúdos» míticos sobre as
mais uma vez da divisão artificial entre signo e merca­ consciências (a «crença»), assim também o código fun­
doria não analisados na sua forma e postos como con­ damental das nossas sociedades, que é o da economia
teúdos (um de significação, outro de produção). Donde política (forma/mercadoria e forma/signo), não opera
a distinção de uma «exploração» da força de trabalho pela alienação das consciências nos conteúdos: racio­
e de uma «alienação pelos signos». Como se a merca­ naliza e regula a troca, faz comunicar, mas sob a lei
doria, o sistema da produção material, não «signifi­ do código e sob o controlo do sentido.
casse»! Como se os signos e a cultura não fossem ime­ A divisão do trabalho, a divisão funcional dos ter­
diatamente produção social abstracta ao nível do código mos do discurso não mistificam os homens; socializam-
e dos modelos, sistema de troca de valores generalizado! -nos e informam a sua troca segundo um modelo geral
A ideologia não está, pois, nem dum lado nem do abstracto. O próprio conceito de indivíduo é o produto
outro. Ela é essa mesma e única forma que atravessa deste sistema geral de troca. E a ideia de «totalidade»
todos os campos da produção social. É a inserção de sob a qual o sujeito se pensa (o da consciência ou o da
toda a produção (material ou simbólica) num mesmo História) na sua referência ideal não passa de_ efeito,
processo de abstracção, de redução, de equivalência de sintoma, da sombra deste sistema. A alienação, con­
geral e de exploração. ceito mágico pelo qual a consciência se pensa como seu
1. É porque a lógica da mercadoria e da econo­ próprio conteúdo ideal (sua «totalidade» reencontrada)
mia política está no próprio coração do signo, na equa­ é um conceito ideológico — e a ideologia, na sua versão
ção abstracta do significante e do significado, na com­ superestrutural dos conteúdos de consciência, é um con­
binatória diferencial dos signos, que estes podem fun­ ceito alienado.
cionar como valor de troca (o discurso da comunica­ Actualmente, o consumo — se este termo tem um
ção) e como valor de uso (a descodificação racional e sentido, além do que lhe dá a economia vulgar — define
o uso social distintivo). precisamente esse estádio em que a mercadoria e ime­
2. É porque a estrutura do signo está no próprio diatamente produzida como signo, como valor/signo, e
coração da forma/mercadoria que esta pode ganhar ime­ os signos (a cultura) como mercadoria. Se, em vez de se
diatamente efeito de significação — não «a mais» dividirem em especialistas, uns da «produção» (econo­
como «mensagem» e conotação — mas porque ela se mia, infra-estrutura), outros da ideologia (os signos, a cul­
institui, pela sua própria forma, como médium total, tura), ou em dialécticos sem margens da totalidade, os
como sistema de comunicação que rege toda a troca «investigadores», e particularmente os do lado de Marx,
183
quisessem de facto aperceber-se das realidades mais II
r P eSl saberiarnJ l ue nada do que actualmente se pro-
A METAFÍSICA DO SIGNO
faber I t c ? ? i°bJ,ectos; servi?os' c°rpos, sexo, cultura,
J ♦ + mda estntamente descodificável como
^ estritamente mensurável como mercadoria; que
r +n de de Uma economia Poética geral cuja ins-
determinante já não é a mercadoria (mesmo
m pnífaínv0rn ” a SUa fun?ao significante, com sua
mensagem, as suas conotações, mas como se subsistisse
sempre uma objectividade possível do p ro d u to )-n e m
evidentemente a cultura (mesmo na sua versão «criticai
Va ° re^’ ia? Por todo o lado comercializadas
ou «recuperadas» pelo sistema dominante, mas também
aqui como se sempre subsistisse alguma coisa cuia
n m m S ? Cla f?sse localizável, e simplesmente com­
prometida — especie de valor de uso sublime da cultura O signo oferece-se com a mesma evidência de valor
m i Va de troca)‘ 0 obJ'ecto desta econo­ de sentido que a mercadoria na evidência «natural» do
mia política, isto e, o seu elemento mais simples o seu seu valor. São «as coisas mais simples» e as mais mis­
elemento nuclear — o que foi precisamente para Marx
a mercadoria — e que actualmente já não é propria- teriosas. A semiologia, por sua vez, semelhante à eco­
nomia política, não faz mais que descrever a sua cir­
° ria nem, signo' mas os dois indissocia- culação e funcionamento estrutural 0).
velmente, e em que os dois são abolidos enquanto deter-
o í í t o w tes]pect^lcas' mas não enquanto forma, esse Vimos, no ensaio precedente, que a abstracção do
objecto e talvez muito simplesmente o objecto, a forma/ sistema do valor de troca apenas se baseia no efeito de
S° j re a qual vêm c°nvergir, num modo com- realidade concreta e de finalidade objectiva do valor
que descreve a forma mais geral da economia de uso e das necessidades. Tal é a lógica estratégica
política, o valor de uso, o valor de troca e o valor/signo. da mercadoria, que faz do segundo termoi o satélite
e alibi do primeiro. O mesmo acontece com a lógica
e a estratégica do signo. Esta hipótese faz explodir os
«postulados científicos» da semio-linguística, em parti­
cular o do arbitrário do signo, tal como foi definido por
Saussure e corrigido por Benveniste.
O arbitrário do signo não está na sua imotivação,
no facto de o Ste-mesa não ter qualquer vocação «natu­
ral» para significar o conceito ou a realidade-mesa
(pois que é Tisch, em alemão, etc.), mas no próprio facto
de afirmar a equivalência entre tal Ste e tal Sdo. Neste
sentido, o arbitrário é igualmente total no caso do «sím-

(‘) Dois tipos de análise abordaram este feiticismo para­


lelo da mercadoria e do signo. A crítica da economia política,
ou teoria da produção material, inaugurada por Marx — a semio­
logia crítica ou teoria da produção textual, conduzida mais
recentemente pelo grupo Tel Quel.
184 185
vacilar de u m p rincípio que, pelo essencial, con tin ua
bolo», O em que a analogia entre Ste e Sdo não muda instituíd o. O en fraqu ecim en to da ia *
em nada o princípio de equivalência. O arbitrário está
na instituição fundamental duma correlação exacta entre
tal Ste «discreto» e tal Sdo igualmente discreto. Por
Z£T seÜ Pp 5 S & $ S " a Í n d l ? e á J j£
outras palavras, o arbitrário está na «discrição», a única
a fundar a possibilidade da relação equacionai do signo, sistem a d.6 con tro lo do sentido. -
de tal modo que: isto = isto, e não significará mais S om en te a am b ivalên cia (à qual d am os a acepção
nada. Esta discrição é, pois, o próprio princípio da m u ito fo r te de rotura do valor, para aquem P
racionalidade do signo, que funciona como abstractor
e redutor universal de todas as virtualidades de sentido
que não pertençam ao enquadramento respectivo, da
equivalência e da especularidade dum Ste e dum Sdo.
Racionalização directiva e redutora do signo, não rela­
tivamente a uma «realidade concreta», exterior, ima­ à resDectiva d efm içao do S te e do s a o , .
nente, que os signos assumiriam abstractamente para a
exprimir, mas relativamente a tudo o que transborda
o esquema da equivalência e da significação e que o
signo, na própria operação que o constitui, nessa crista­
lização súbita dum Ste e dum Sdo, reduz, recalca, ani­ do sim b ólico , esta m o s perante um P r^ so a e , se
quila. A racionalidade do signo funda-se na exclusão,
na aniquilação de toda a ambivalência simbólica, em
proveito de uma estrutura fixa e equacionai. O signo T da: inte^ada, opaca, nunca duc'dada 0
é um discriminante: estrutura-se por exclusão. O signo,
a partir de agora cristalizado nessa estrutura exclusiva,
designando o seu campo fixo, resignando tudo o resto
e consignando o Ste e o Sdo num sistema de controlo ^ T c r i t a d a “econom faTolW -, condurida por Manj
respectivo, o signo dá-se como valor pleno, positivo, ao nível do valor de troca, mas cuja
racional, trocável. Todas as virtualidades de sentido
foram passadas ao fio da estrutura. S tfS o S o d a r S o r ia eUd°a s ~ ^ o

Esta consignação do Ste e do Sdo termo a termo


pode muito bem complexificar-se numa relação equí­
voca, multívoca, sem infringir a lógica do signo. Um Ste que é p reciso esten d er ao cam po da sigm V
pode remeter para vários Sdo, ou inversamente: o prin­ Crítica da economia política do signo.
cípio de equivalência, portanto de exclusão e de redução
sobre o qual se funda o arbitrário, permanece o mesmo.
A equivalência tornou-se simplesmente polivalência,
embora continuando a opor-se com igual radicalidade à
ambivalência. A própria ambiguidade não é mais que o
0 E s ta re s o lu ç ã o do « ig n o a c a r r e t a a a b ^ i ç ã ^ S te
(0 Tomado aqui no sentido semio-linguístico clássico do e do Sdo enquanto tòis, mas n serltido e da operação do
símbolo enquanto variante analógica do signo. Empregaremos algum nada místico, do material id exerce-se, também
sempre, pelo contrário, o símbolo (o simbólico, a troca simbó­ sentido. A operaçao simbólica en“ °uaf (e sodal), mas
lica) em oposição e em alternativa radical ao conceito de ela, sobre a p a t e n a f o m e a visual gestuai ^ havemos de
signo e de significação. segundo uma lógica inteiramente diterenxe, a qud
voltar. jg j
186
III
A MIRAGEM DO REFERENTE

Onde o signo se apresenta como unidade de sentido


«discreta» e funcional, o Ste remete para um Sdo e o
I conjunto para um referente. O signo como estrutura
abstracta remete para um fragmento de realidade objec­
tiva. É, aliás, entre dois termos que Benveniste, corri­
gindo Saussure, situa o arbitrário do signo — o qual
está entre o signo e a coisa que este designa, e não
entre o Ste e o Sdo, que são ambos de natureza psí­
quica e necessariamente associados no espírito dos su­
jeitos por uma verdadeira consubstancialidade. E mais
(Problemas de linguística geral, p. 52): «O que é arbi­
trário, é que tal signo, e não outro, seja aplicado a
tal elemento da realidade e não a outro. Neste sentido,
e só neste sentido, é que se pode falar de contingência,
e mesmo assim, menos para dar uma solução ao problema
do que para o assinalarmos e dele nos vermos livres
provisoriamente... O domínio do arbitrário é assim
relegado para fora da compreensão do signo linguístico.»
Expulsar o arbitrário para fora do signo nunca
é outra coisa senão deslocar o problema, e julgar poder
«ver-se livre dele» é dar-lhe uma solução que, longe de
ser «provisória» e metodológica, se arrisca fortemente
a reconduzir a eterna solução metafísica do problema.
Por meio desta operação, tenta Benveniste salvar
a organização interna do signo, a sua necessidade lógica
(e a da semio-linguística), ao passo que em Saussurre,
a hipoteca do arbitrário do signo pesa ainda sobre
a coerência recíproca do Ste e do Sdo. Mas este ajus-
189
tamento só é possível na base duma separação entre «realidade». O código torna-se o verdadeiro princípio
o signo e a realidade (o referente), cuja solução Benve- de realidade;
niste se contenta em remeter para a filosofia. Na reali­ 2. Ou então que é o arbitrário, a convenção do
dade, ele responde-lhe, e muito metafisicamente, como signo que reina sobre toda a cadeia. O concreto não
todos os linguistas e semiólogos, através dos conceitos existe; ele depende, na sua própria percepção, da abs­
de «motivação» e de «arbitrário». tracção e da «discrição» do Ste. O espectro do Ste esten­
Porque as coisas não se recortam de modo nenhum de-se sobre o mundo (nos dois sentidos: «analisa-o»
segundo o esquema idealista de Benveniste (e dos outros). espectralmente e assombra-o).
A divisão não passa entre um signo e um referente O essencial é ver que a separação do_ signo e do
«real». Passa entre o Ste como forma e, por outro lado, mundo é uma ficção e leva à ciência-ficção. A lógica
da equivalência, a abstracção, a discrição, a divisão
o Sdo e o Rfte, que se inscrevem conjuntamente como do signo engloba tanto o Rfte como o Sdo — esse
conteúdo, um de pensamento, outro de realidade (ou «mundo» que o signo «evoca» para melhor dele se
antes de percepção), sob o signo do Ste. O referente de distanciar não é mais que o efeito do signo, a sua
que aqui se trata não está mais fora do signo do que sombra, a sua projecção «pantográfica». Ou antes, e o
o Sdo: é comandado pelo signo, recorta-se à partida Sdo/Rfte — uma só e mesma coisa, como vimos— um
em função do signo, não tem outra realidade senão só e mesmo conteúdo, que funciona como sombra
aquela que se inscreve em filigrana do signo. No sentido do Ste, efeito de realidade por onde o jogo dos Ste
rorte, ele reflecte o signo, e essa colusão profunda, se realiza e dá o troco.
que depende da forma, tradu-la o sujeito «falante» É aqui que aparece a homologia entre a logica
«instintivamente» ao nível dos conteúdos. «Para o sujeito da significação e a da economia política. Esta última
falante, existe adequação completa entre língua e reali­ ioga com a referência às necessidades e com a actua­
dade: o signo recobre e comanda a realidade: melhor lização do valor de uso como com um horizonte antro­
ele é essa realidade...», diz Benveniste. Este pobre pológico, sem que eles, no fundo, interfiram no seu
sujeito falante nada sabe, evidentemente, do arbitrário funcionamento e na sua estrutura própria. Do mesmo
do signo (não é o sujeito semiológico!), mas, na sua modo, o referente é mantido no exterior da compreensão
metafísica ingénua, ele tem, de certo modo, razão, do signo: este faz alusão a ele, mas a sua organizaçao
P p/W f ° arbitrário de Benveniste (entre signo e rea­ interna exclui-o. Na realidade, vimos que o sistema
lidade) não tem mais existência do que o de Saussure das necessidades e do valor de uso está inteiramente
entre Ste e Sdo. implicado na forma da economia política como seu
acabamento. O mesmo se passa com o referente, essa
Se se admitir, contra Saussurre, que o Sdo é «substância de realidade» inteiramente implicada na
consubstanciai ao Ste, então o referente (a realidade) lógica do signo. Nos dois campos respectivos, as duas
e-o igualmente, porque o Sdo e o Rfte têm o mesmo formas dominantes (o sistema do valor de troca e a
que ° Ste lhes determina, e o processo de combinatória dos Ste) dão-se uma razão referencial, um
divisão, de formalização abstracta é contínuo duma conteúdo, um alibi, e significativamente, num caso como
ponta à outra da cadeia, do Ste ao Rfte (incluído). no outro, a articulação faz-se sob o mesmo signo meta­
Pode dizer-se indiferentemente: físico da necessidade e da motivação.
Ou que a motivação é geral duma ponta à Toda a velha psicologia alimenta o edifício semio­
outra da cadeia — mas já não se trata então da moti- lógico:
vaçao substancial de tipo psicologista, a do conteúdo, 1. O referente, o objecto «real», é o objecto feno-
que sobe, por assim dizer, do Rfte para o Ste; trata-se menal, é o conteúdo da percepção e da experiência vivida
de uma motivação formal «a partir de cima», é a lei do sujeito — a meio caminho entre a fenomenologia e a
o código e do Ste que informa e determina até à substância bergsoniana oposta à forma.
190 191
2. Este conteúdo de percepção aflora, por assim tio arbitrário e da motivação do signo, seria também
dizer, é prolongado ao nível do signo pelo significado esmagar a possibilidade de qualquer semiologia.
conteúdo de pensamento. Entre ambos, julga-se passar O vazio dos conceitos esconde, evidentemente, uma
da percepção vivida ao conceituai, segundo o velho estratégia, simultaneamente analisável no campo da sig­
idealismo filosófico e o associacionismo abstracto iá nificação e da economia. A motivação (a necessidade)
poeirento no século XIX. não faz mais do que descrever, por detrás da oposição
E como se faz a articulação entre signo e referente lormal entre dois termos, uma espécie de circuito, de
(ou entre Ste e Sdo) assim subtilmente repartidos, per­ processo especular e tautológico entre duas modalidades
manecendo no entanto imagem um do outro ? Pela de uma mesma forma, através do desvio de um pretenso
motivação. Quer seja para a negar, segundo a teoria conteúdo, a reprodução de uma abstracção sistematica
saussuriana do signo, para a relativizar ou dosear na (quer seja a do valor de troca, quer a do codigo do
definição do «símbolo», para a afirmar, como Benveniste, significante) através do desvio do real. Vimos que as
necessidades (o VU) não constituem uma realidade con­
na sua crítica da teoria saussuriana (fundada, mas só creta, incomparável, exterior à economia política, mas
do ponto de vista interno da semio-linguística) — a única um sistema que é induzido ele próprio pelo sistema
relação pensável, o único conceito sob o qual pode ser do VT e que funciona segundo a mesma logica. Se os
pensada a articulação do fenomenal (psicológico) e do dois sistemas são de algum modo emparelhados numa
signo é a motivação. Conceito vazio e mágico, mas mesma forma, é então evidente que o conceito de neces­
nao poderia ser de outra maneira, desde que se admitiu sidade não analisa coisa nenhuma e nao faz mais que
esta representação metafísica do referente, esta sepa- descrever, sob uma articulação ilusória, a circulaçao
raçao abstracta entre o signo e o mundo — é necessária geral de um mesmo modelo e a sua operação mterna.
uma passagem mágica para reunir e, como se por acaso, O que traduz a definição tautológica da necessidade
e a mesma pela qual a economia política tenta ligar (não há outra): as pessoas apropriam-se desta coisa ou
o sujeito e o objecto, afirmados aí também como daquela como valor de uso «porque têm necessidade
separados : a necessidade. NECESSIDADE, MOTIVAÇÃO,
não saímos daqui. O mesmo termo esconde a mesma dela». â. .
A mesma circularidade, a mesma tautologia psico­
astúcia metafísica. Num caso, o termo tem uma resso- lógica para a motivação de Benveniste:
nancia mais lógica, no outro, mais psicológica, mqs 1. O signo retira a sua necessidade do consenso
nao nos iludamos, lógica e psicologia estão aqui indis- psicológico que liga indissociavelmente tal Ste a tal Sdo
sociavelmente misturadas: a motivação semiológica tem (tal fracção do «real» de pensamento).
toda a psicologia por detrás dela — quanto à necessidade 2. Mas: a objectividade desta fracção «denotada»
economica, ela é muito mais que a procura pelo sujeito: do real é, evidentemente, o consenso perceptivo dos
toda a articulação lógica da «ciência» económica a exige
como postulado funcional. sujeitos.
3. E este alimenta-se, não menos evidentemente,
Estes conceitos não são acidentalmente vazios. do consenso psicológico que liga tal Ste a tal Sdo.
Um conceito não quer dizer nada quando pretende col­ O círculo que legitima o signo pelo real e que
matar uma separação que o não é. A distinção entre funda o real pelo signo é rigorosamente vicioso, mas
signo e referente só o é para a visão metafísica, aue esta circularidade, como se sabe, é o próprio segredo
idealiza e abstrai simultaneamente o signo e o mundc de toda a eficácia metafísica (ideológica).
vivido, um como forma, o outro como conteúdo, na Do mesmo modo que as necessidades nao sao a
sua oposição formal. Estabelecendo falsas distinções, expressão motriz e original de um sujeito, mas já sem­
ela so pode resolvê-las por meio de falsos conceitos. pre a sua redução funcional pelo sistema do valor ae
Mas tais distinções são estratégicas e eficazes, e resolvê- uso, solidário do do valor de troca, assim tambem o rere-
-las (quebrar a ^irrealidade mágica destes conceitos), o rente não constitui de modo nenhum uma realidade
que seria o único meio de resolver o falso problema concreta autónoma. Ele não é mais que a extrapolaçao
192 193
para o mundo das coisas (para o universo fenomeno- o duplo aspecto da mercadoria (VU/VT) esconde de
iogico da percepção) do corte instaurado pela lógica do lacto uma homogeneidade formal em que o valor de
signo. E o mundo tal como é visto e interpretado através uso, regido pelo sistema de valor de troca, traz a este,
do signo — quer dizer, virtualmente cortado e cortável ao contudo, a sua caução «naturalista». A dupla face do
arbítrio. A mesa «real» não existe. Se ela é localizável signo (Ste/Sdo, que se pode generalizar em Ste/Sdo-Rfte)
na sua identidade (=se ela «existe»), é porque já está esconde de facto uma homogeneidade formal em que
designada, abstraída e racionalizada pelo corte que a Sdo e Rfte, regidos por uma mesma forma lógica que
institui nessa equivalência a si própria. A este título, c apenas a do Ste, lhe servem, contudo, de referencia/
não há, mais uma vez, diferença fundamental entre /alibi, de caução «substancial».
o referente e o significado, e a confusão espontânea A teoria da folha de papel de Saussure (a dupla
que se faz entre eles, um pouco por toda a parte, é lace do signo que se recorta) é, pois, perfeitamente
sintomática: o referente não tem outro valor além do idealista. Ao afirmar o Ste e o Sdo «em igualdade»
significado, de que pretende ser a referência substancial como instâncias constitutivas do signo, ela vela todo o
in vivo, e de que não é mais que o prolongamento dispositivo estratégico da significação, que assenta pre­
in abstracto (*)• Deste modo, a estratégia é a mesma: cisamente na disparidade dos dois termos e na circula­
ridade fundamental do termo dominante:
, O Este fâosimile do conceito «em duro» (cf. J.-M. Lefe- 1. Metafísica do Sdo/Rfte, homóloga à das neces­
re, N. R. F., Fever. 70, n.° 1: «O referente não é verdadeiramente
a realidade... e a imagem que nós nos fazemos da realidade. sidades e do valor de uso. O Sdo/Rfte é dado como
E um significado determinado por uma intenção dirigida para realidade original, substância do valor e finalidade recor­
as coisas (!), e não considerado na sua simples relação com o rente através do jogo das significantes como suporte
5>te, como acontece em linguística. Do Sdo-conceito, passo ao (cf. a análise de Derrida, de Tel Quet). Do mesmo
referente como abordagem concreta do mundo...») não faz mais
que traduzir o feiticismo realístico, feiticismo da substância modo, o valor de uso dá-se como origem e finalidade,
— ultimo estádio do idealismo que fatasia a matéria. É, no as necessidades como móbil fundamental do económico
entanto sobre estes vestígios materialistas e idealistas à mistura, — aparecendo o ciclo do valor de troca como um desvio
vmdos de todos os confins da metafísica ocidental, que se funda necessário, mas estranho às verdadeiras finalidades.
a semiologia. A posição de J.-M. Lefebvre é característica, aliás,
u astúcia através da qual a realidade consegue ressuscitar 2. Na realidade, este privilégio moral e metafí­
sub-repticiamete por detrás de qualquer pensamento semio- sico dos conteúdos (VU e Sdo/Rfte) apenas mascara o
logico, por mais crítico que seja, para melhor restituir a estra­ privilégio decisivo da forma (VT e Ste). Estes dois
tégia do signo. Testemunha, assim, a impossibilidade de sair
dos problemas metafísicos postos pelo signo sem pôr radical­ termos são respectivamente a «Razão» última, o prin­
mente em causa _a articulação semiológica. Com efeito, diz cípio estrutural de todo o sistema, de que os dois
ele: «O referente não é a realidade (quer dizer, um objecto cuja outros são apenas um subterfúgio. É a abstracção racio­
existencia eu poderia sentir e controlar): visamo-lo como real, nal do sistema do valor de troca e do jogo dos signi­
mas esta intencionalidade é precisamente um acto do espírito
que desmente a sua realidade, que faz dela uma ficção, uma ficantes que comanda o conjunto. Mas esta estratégia
construção artificial.» Assim, numa espécie de fuga para a frente, fundamental (cujos ecos operacionais a todos os níveis
o referente é destituído da sua realidade, torna-se de novo das sociedades contemporâneas, desde a programação
um simulacro, por detrás do qual surge no entanto imediata­ cibernética até aos sistemas burocráticos e ao do «con­
mente o objecto palpável. Deste modo, pode a articulação do sumo» será inútil (’) mostrar) é cuidadosamente velada
signo desmultiplicar-se até ao infinito, «em abismo», reinventando
continuamente o real como seu além e sua consagração. O signo, pela ostentação da significação sobre as duas (ou três)
no fundo, está assombrado pela nostalgia de ultrapassar a sua instâncias (Ste, Sdo, Rfte), e pelo jogo da sua distinção e
própria convenção, o seu arbitrário; está assombrado, de certo da sua equivalência.
modo, pela motivação total. Por isso, ele visa o real como
seu além e sua abolição. Mas não pode «saltar por cima da
sua sombra»: esse real é ele próprio que o produz e o reproduz,
e nunca é o seu além, mas apenas seu horizonte. A realidade é o (') Não é de modo nenhum inútil, mas trata-se aí do
fantasma pelo qual o signo se preserva indefinidamente da des- processo de desenvolvimento da economia política do signo,
construção simbólica que o assombra. a que voltaremos noutro lugar.

194 195
IV

DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO

A mesma metafísica opera ao nível da mensagem,


através dos conceitos de denotação e de conotação (toda
a bateria conceituai da semio-linguística deve ser sub­
metida à análise radical que Marx fez dos conceitos
da economia política clássica).
A denotação assenta inteiramente no mito da
«objectividade» (seja o signo linguístico, o fotográfico,
o ícone, etc.), da adequação directa de um Ste a
uma realidade precisa. A dificuldade que surge no
caso da imagem (não-discrição, continuum do signifi-
cante e do> significado) não põe em causa, também
aqui, a regra da equivalência do signo, esse encontro
de dois termos que torna possível o encontro de um
real fictício com a imagem recortada do signo, e portanto
a racionalização e o controlo geral do sentido.
O Sdo de conotação (*) é certamente passível da
mesma análise, visto que também ele se torna «efeito
de denotação» do novo processo de significação «desli­
gado». Outra coisa tem mais interesse. Tomemos com
Barthes a análise da imagem publicitária das massas

0) Conhecemos o esquema de conotação «por desligação»:


o signo inteiro torna-se o Ste dum outro Sdo:

Ste/Sdo

Ste/Sdo

197
Panzani, com a sua conotação de «italianidade». A «italia- algo de objectivo? Este discurso manifesto é a mais
nidade» só em aparência é significado, conteúdo concei­ subtil das suas mitologias. Falsa ingenuidade, perversão
tuai, etc.; na realidade, ela constitui só por si um da objectividade. A utilidade, tal como a literalidade
código — um mito, se quisermos, mas sabe-se que os de que fala Barthes, não é uma natureza, mas um
mitos não são conteúdo, mas o processo de troca e código da evidência natural, que tem sobre muitos
de circulação de um código, um processo de atribuição outros códigos possíveis (estético, moral, etc.) o privi­
e de classificação cuja forma é determinante. Assim légio de aparecer, ele e só ele, como racional, aparecendo
acontece com a conotação — e se ela é o lugar da os outros apenas como racionalização de finalidades
ideologia, não é de modo algum por vir enxertar signi­ mais ou menos «ideológicas». Denotação ou valor de
ficações anexas, parasitas, sobre a denotação «objec­ uso, objectividade ou utilidade, é sempre a cumplicidade
tiva», não é porque faça passar conteúdos paralelos, do real com o código sob o signo da evidência. E tal
estranhos à infra-estrutura do signo que seria o pro­ como o valor de uso, finalidade «literal» e ideal do
cesso de denotação O; mas porque ela é precisamente objecto, ressurge continuamente do sistema do valor de
um jogo de encadeamento e de troca dos Ste, um troca, assim o efeito de concreto, de real e de denotação,
processo de reprodução indefinida do código (cf. «Feiti- resulta continuamente do jogo complexo de interferên­
cismo e ideologia»: a ideologia está ligada à forma e cia dos canais e dos códigos, como a luz branca resulta
não ao conteúdo, é a paixão do código). da interferência das cores do espectro. A luz branca da
Dito isto, podemos voltar ao processo de denotação denotação não é mais que o jogo do espectro das
para m ostrar que ele não difere em nada da conotação: conotações.
0 Sdo denotado, essa «realidade» objectiva, é simples­ A distinção denotação/conotação parece, assim, vã
mente ele próprio uma forma codificada (código da e ela própria ideológica. Poderia, no entanto, ser resti­
percepção, código «psicológico», código dos valores «rea­ tuída num sentido paradoxal, exactamente no oposto
lísticos», etc.). O mesmo é dizer que a «ideologia» é da acepção corrente. Porque a denotação distingue-se
tão total no processo de denotação como no de cono­ das outras significações (conotadas) pela sua função
tação e que, para resumir, a denotação nunca é outra singular de apagar os traços do processo ideológico
coisa senão a mais perfeita e mais subtil das conotações. restituindo-o ao universal e à inocência «objectiva».
Barthes em S/Z: «A denotação não é o primeiro dos A denotação, longe de ser o termo objectivo ao qual
sentidos, mas finge sê-lo. Debaixo desta ilusão, ela não se opõe a conotação como termo ideológico, é, portanto,
passa, finalmente, da última das conotações (a que pelo facto de naturalizar o próprio processo da ideologia,
parece fundar e fechar a leitura simultaneamente), o o termo mais ideológico, ideológico em segundo grau
mito superior graças ao qual o texto finge voltar à — o mito superior de que fala Barthes. Trata-se exacta­
natureza da linguagem, à linguagem como natureza: uma mente da mesma função táctica que reconhecemos ao
frase, qualquer que seja o sentido que liberta, ao que valor de uso na sua relação com o valor de troca. Deste
parece posteriormente ao seu enunciado, não tem o ar modo se esclarecem reciprocamente os dois campos no
de nos dizer algo de simples, de primitivo, de literal processo de conjunto da ideologia (')■
— de verdadeiro, em relação ao qual tudo o mais é
literatura?»
O A análise pode prolongar-se ao nível da metalinguagem
Tudo isto, como vimos, é válido ponto por ponto (desligação inversa):
para o valor de uso como função «denotativa» dos
objectos. O objecto, ao «servir», não tem o ar de dizer Ste/Sdo
Sdo/Ste
0 Mais uma vez, não é por acaso que o esquema mítico
da infra e da superestrutura trabalha implicitamente da mesma (o signo inteiro torna-se Sdo dum novo Ste). O Sdo da denotação
maneira no campo da significação e no da economia: infra- metalinguística não é ele próprio, no limite, mais que um
-estrutura denotativa e superestrutura «ideológica». efeito do Ste, um modelo de simulação cuja coerência provem

198 199
V
PARA ALÉM DO SIGNO: O SIMBÓLICO

Uma crítica da economia política do signo implica


certas perspectivas de superação, um para além deste
processo da significação sobre o qual se organiza o valor
de troca/signo, e portanto também um para além da
semiologia, a, qual mais não faz, em perfeita «inocência
objectiva», que descrever-lhe o funcionamento.
Geralmente, as perspectivas críticas de superação
do signo (da sua racionalidade abstracta, do seu «arbi­
trário») fazem-se em nome de um dos dois termos que
o compõem: ou em nome do Sdo (do Rfte: a mesma
coisa) que importa libertar do domínio do código (do
Ste) — ou em nome do Ste, que importa libertar do
domínio do Sdo.
A primeira perspectiva — o partido do Sdo — deve
analisar-se no quadro da crítica feita por Derrida e Tel
Quel do primado do significado no processo ocidental
do sentido. Estatuto moral e metafísico do sentido, em
inteiramente da troca regrada dos Stp c Ar:_ ■ . , que o signo é moralizado 110 seu conteúdo (de pensa­
até aoj^aradoxo a hipótese (apenas uma h i ^ T d ^ " mento ou de realidade) a expensas da sua forma. Esta
«filosofia natural» da significação implica um «idea­
ficação sucesslvl pdos m e d ^ f ^ T ? Wst- rÍC° n a 'sua “ di-
por simples operação de código, efeito cÒmbmatório “ e&dEclfrso0
lismo do referente». É a crítica da abstracção e do arbi­
trário do signo em nome da realidade «concreta». O seu
de que-oDOo b S o md u ^ c iê n ^ a S fantasma é o de uma ressurreição total do «real», numa
intuição imediata e transparente, fazendo a economia
racionahdade ^^eTClusãc^^e0?^^0 o ^ m a ií^
do signo (do Ste) e do código para fazer surgir os Sdo
afnZ Po“ ’ (os sujeitos, a história, a natureza, as contradições) na
objecto como modelo de s i L Í i ã o F ^ , s™ plesm® te no seu sua verdade movediça, dialéctica, autêntica... Esta visão
desenvolve-se hoje largamente na crítica da abstracção
dos sistemas e dos códigos em nome dos valores «autên-
200
201
ticos» (colhidos em grande parte no sistema de valores senão que é ambivalência, isto é, a impossibilidade de
individualista burguês). É a grande ladainha moralista distinguir termos respectivos, separados, e de os posi­
sobre a alienação pelo sistema, que se torna, com a tivar como tais. E que sobre esta ambivalência se funda
extensão deste mesmo sistema, uma espécie de discurso um tipo de troca radicalmente diferente da troca de
universal. valores (valores de troca ou valores/signos). Isso é
Esta tentação de fazer a crítica do Ste em nome excluído, abolido, pelo signo, na instituição simultânea:
do Sdo (Rfte), de fazer do «real» a alternativa ideal ao 1. Duma separação, duma estrutura distintiva;
jogo formal dos signos, vai exactamente ao encontro 2. Duma relação positiva, duma espécie de copu-
daquilo que analisámos como o «idealismo do valor lação estrutural entre os dois termos, que mais não faz
de uso». Salvar o VU contra o sistema do VT, sem ver evidentemente do que eternizar a sua separação. Esta
que o VU é um sistema solidário e satélite do do VT: copulação é objectivada na barra de inclusão estrutural
tal é o idealismo fundamental, o humanismo transcen­ entre Ste e Sdo (Ste/Sdo) (‘). Ela é muito mais objecti­
dental dos conteúdos que vamos encontrar na tentativa vada e positivada ainda no R da fórmula de Hjemslev:
de salvar o Sdo (Rfte) contra o terrorismo do Ste. Toda E R C. É esta relação positiva que faz do signo um valor.
a ideologia da significação passa já nesta veleidade de Arbitrário, motivação, pouco importa: estes termos des­
emancipação e de libertação do «real» — do mesmo viam o problema ao inscrevê-lo numa lógica do signo
modo que a ideologia da economia política passa já, já instituída. O verdadeiro arbitrário, ou a verdadeira
inteiramente, na autonomização ideal do valor de uso. motivação do signo, o que faz a sua racionalidade, é
Qualquer tentativa de superação da economia polí­ essa positivação que não é outra coisa, através da sua
tica do signo que se apoie num dos seus constituintes, abstracção dual, que a redução radical de toda a ambi­
pelo facto de assim ratificar a separação que funda a valência. A motivação do signo é, pois, pura e simples­
lógica do signo, está votada a reproduzir-lhe o arbitrá­ mente a sua estratégia: cristalização estrutural, liquida­
rio (portanto, a ideologia) sobre o modo alternado do ção da ambivalência por «solidificação» do valor. E esta
Sdo e do Ste Q. O que pode fazer pesar uma interroga­ motivação passa, evidentemente, pelo arbitrário1 da sua
ção crucial sobre o signo, é aquilo que ele expulsa e forma: exclusão e redução. Arbitrário e motivação não
aniquila na sua própria instituição, na respectiva emer­ são, portanto, de modo nenhum contraditórios, numa
gência e consignação estrutural do Ste e do Sdo. E aquilo perspectiva estratégica (política).
que é abolido neste processo de significação que no
fundo é apenas um gigantesco modelo de simulação de
sentido, não é o «real», o referente, alguma substância (') Essa barra em que se condensam todo o arbitrário
e positividade do signo, essa cópula estrutural/inclusiva funda­
de valor lançada para as trevas exteriores do signo: é dora do processo de significação como positivo e ocultaiido
o SIMBÓLICO. E é o simbólico que continua a assom­ o que é antes de tudo: um processo de redução e de abolição
brar o signo, a desmantelar a correlação formal entre do sentido (ou não sentido: ambivalência), um processo de des­
Ste e Sdo. Mas o simbólico, na sua virtualidade de sen­ conhecimento e de denegação do qual aliás o signo nunca se
tido subversiva do signo, não pode ser nomeado senão desembaraça — essa barra que na verdade é _a barreira cujo
levantamento significaria a desconstrução do signo, a sua reso­
por alusão, por arrombamento, porque a significação, lução, e a dissolução dos seus constituintes, Ste e Sdo, enquanto
que nomeia tudo a partir de si, só pode dizer o valor, tais, toma o seu verdadeiro sentido na fórmula gráfica de
e o simbólico não é valor. É perda, dissolução do valor s ,
Lacan:—. Torna-se a própria barra do recalcamento, ja nao
e da positividade do signo. s
Porque, finalmente, é da positividade do signo que a que articula, mas a que censura, e portanto o lugar da trans­
se trata. Da sua «tomada de valor». Daquilo que está gressão. Esta barra aponta o que o signo nega, aquilo_ sobre
que ele se institui negativamente e de que, na sua instituição
fora do signo, que não é o signo, nada podemos dizer, positiva, é apenas o sintoma.
Contudo a fórmula lacaniana introduz esta barra radical­
mente nova no esquema tradicional do signo, conservando ao
O O impasse é muito mais subtil no caso da «liberta­ significado o seu lugar próprio. Este já não é o do Sdo/Rfte
ção do significante». Voltaremos ao problema. da linguística, é o recalcado. Nem por isso deixa de permane-

202 203
No entanto, o arbitrário do signo, no fundo, é A significação, organização funcional e terrorista
insustentável. Tal como o valor de troca, o valor/signo de controlo do sentido sob o signoda í
não pode reconhecer-se na sua abstracção redutora. valor, tem, assim, algo de reificaçao, Ela e o lugar- de
O que ele nega e recalca, vai tentar exorcizá-lo e inte­ uma objectivação elementar que se repercute através
grá-lo na sua operação: tal é o estatuto do «real», do dos sistemas 'ampliados de signos até ac; terronsmo
referente, que nunca é mais que o simulacro do sim­ social e político do enquadramento do sentido. Toda a
bólico, a sua forma reduzida e captada pelo signo. estratégia repressiva e redutora dos sistemas de poder
Através desta miragem do referente, que é sempre o está já na lógica interna do signo, como esta na logica
fantasma daquilo que o próprio signo recalca na sua interna do valor de troca e da economia política. É toda
operação 0 , o signo tenta iludir: permite-se aparecer uma revolução, teórica e prática, que deve restitu r
como totalidade, apagar os traços da sua transcendên­ simbólico a expensas do signo e do valor. Tambem os
cia abstracta e dar-se como o princípio de realidade signos devem arder.
do sentido 0 .
cer uma espécie de conteúdo, e a sua representação continua
a ser a de uma substância, já não adstrita termo a termo,
mas apenas coincidente em certos pontos com a cadeia meta­
fórica dos Ste (como os pontos de estofo acolchoado). Segundo
uma lógica muito diferente da linguística, trata-se ainda da
partição de duas instâncias, com referência representativa a
uma de entre elas. Parece-nos, pelo contrário, que conceber
o signo como censura, como barra de exclusão, não é pretender
conservar para o recalcado a sua posição de significável, de
valor latente — é concebê-lo como aquilo que, negado pelo signo,
o nega na sua forma e nunca aí tem lugar, como não-lugar e
não-valor por oposição ao signo, como ambivalência simbólica
barrada e riscada pelo signo, e que só ressurge na resolução
total do signo, na explosão da positividade estrutural do signo
e do valor. O simbólico não se inscreve em parte nenhuma.
Não é aquilo que vem inscrever-se sob a barra do recalca­
mento, o Sdo lacaniano. É o que desfaz todo o Ste e todo o
Sdo, porque é o que desmantela a sua aparelhagem e seu
recorte simultâneo (ver a nota da pág. 187).
Dito isto, a operação do sentido e o significante psicana-
lítico têm tão pouco a ver com o significante linguístico e a
operação do signo que o uso dos mesmos termos cria mal-enten­
didos insolúveis. É preciso deixar de uma vez para sempre os
termos Ste e Sdo (e outros ainda) na sua pertinência linguística
e dar, numa perspectiva de crítica radical da economia linguística
do valor, todo o seu valor antagónico ao termo simbólico como
não-lugar do valor, não-lugar da significação.
(>) Por uma curiosa inversão, pode dizer-se que o refe­
rente se torna «simbólico» de novo, não no sentido radical do
termo, mas no sentido de gesto «simbólico», isto é, do seu
pouco de realidade. Neste sentido, o referente é apenas «sim­
bólico», tendo o princípio de realidade passado inteiramente
para o código.
(2) O valor de troca não poderia, também ele, existir no
estado puro, na sua abstracção total. Só pode funcionar a coberto
do valor de uso, em que se restitui, no horizonte da economia
política, um simulacro de totalidade, e em que ressuscita fan-
tasmaticamente, através da funcionalidade das necessidades,
aquilo que precisamente abole: o simbólico do desejo.
205
204
Nona Parte

REQUIEM PELOS «MEDIA»


INTRÓITO

Não existe teoria dos media. A «revolução dos


media» permaneceu até aqui empírica e mística, tanto
em Mac Luhan como naqueles que o contestam. Dizia
ele com a sua brutalidade de canadiano-texano, que a
teoria de Marx, contemporânea do vapor e dos caminhos-
-de-ferro, fora já ultrapassada em sua vida, quando o
telégrafo fizera o seu aparecimento. À sua maneira cân­
dida, é o mesmo que dizer que Marx, na sua análise
materialista da produção, como que circunscreveu um
domínio reservado das forças produtivas, de onde se
viram excluídos a linguagem, os signos e a comunicação.
A bem dizer, nem sequer existe em Marx uma teoria
dos caminhos-de-ferro como «médium», como modo
de comunicação: eles entram em consideração, e toda
a evolução técnica em geral, apenas sob o aspecto da pro­
dução, produção de base, material, infra-estrutural, única
determinante das relações sociais. O «modo de comunica­
ção», votado a uma idealidade intermediária e uma prática
social cega, teve vagar, desde há um século, para «fazer
a sua revolução» sem nada mudar à teoria do modo
de produção.
A partir daí, e na condição (o que já é uma
revolução relativamente ao marxismo hereditário) de
não considerar a troca dos signos como dimensão mar­
ginal, superestrutural em seres que a única verdadeira
teoria (materialista) define irrevogavelmente como «pro­
dutores da sua vida real» (dos bens destinados a satis­
fazer as suas necessidades) — podem considerar-se duas
perspectivas:
209
1. Ou se conserva a forma geral da análise mar­ posto à teoria revolucionária pela produção do sentido,
xista (contradição dialéctica entre forças produtivas e das mensagens e dos signos em termos de forças pro­
relações de produção), mas se admite que a definição dutivas clássicas — isto é, em vez de generalizar uma
«clássica» das forças produtivas é uma definição restrita, análise marxista considerada definitiva e lacrada pelos
e se alarga a análise em termos de forças produtivas «porta-vozes da Revolução» —, a alternativa é subverter
a todo aquele campo cego da significação e da comuni­ esta última à luz da irrupção deste problema no campo
cação. Isto implica que se ponham em relevo, em toda teórico (o que nenhum marxista que se «respeita» fará,
a sua originalidade, as contradições provenientes desta mesmo a título de hipótese).
extensão teórica e prática do campo da economia política. Por outras palavras: talvez a teoria marxista da
Esta é a hipótese de partida de Enzensberger, no seu produção seja irremediavelmente parcial e não possa
artigo da New Left Review («Constituents of a theory ser generalizada. Ou ainda: a teoria da produção (enca­
of the media», Outono, 1970): «O capitalismo monopo­ deamento dialéctico das contradições ligado ao desen­
lista desenvolve a indústria da consciência mais rapida­ volvimento das forças produtivas) é estritamente homo­
mente e de um modo mais extensivo do que qualquer génea do seu objecto, a produção material, e não poderá
outro sector de produção. Mas simultaneamente deve ser transferida, como postulado ou quadro teórico, para
refreá-la e restringi-la. É sobre esta contradição que conteúdos que nunca se atribuiu 0). A forma dialéctica
deve trabalhar uma teoria socialista dos media». Esta é adequada a um certo conteúdo, o da produção material:
hipótese não faz mais, em suma, que tomar em consi­ esgota-lhe o sentido, mas não excede, tal como um
deração (e, neste sentido chega cá muito tarde) a exten­ arquétipo, a definição deste objecto. A dialéctica está
são virtual da forma/mercadoria a todos os domínios em cinzas porque se apresentou como sistema de inter­
da vida social e o facto de existir já uma teoria «clássica» pretação da ordem separada da produção material.
da comunicação, uma economia política «burguesa» dos No fim de contas, esta hipótese é lógica. Concede
signos e da sua produção, tal como pôde existir uma à análise marxista uma coerência global, uma homoge­
da produção material desde o século XVIII — disciplina neidade interna que proíbe reter um elemento e excluir
teórica de classe (') a que não correspondeu até agora outro, segundo uma técnica de arranjos em que os
nenhuma crítica fundamental que fosse a extensão lógica althusserianos são os artífices mais subtis. Ao invés,
da de Marx no seu tempo. Essa crítica da economia daremos à teoria marxista o crédito de uma coerência
política do signo foi impossibilitada pela relegação de máxima, e por essa mesma razão diremos que esta
todo este domínio para a superestrutura. Portanto, coerência deve ser quebrada, porque não tem resposta
quando muito, a hipótese Enzensberger não faria mais perante um processo social que excede de longe o da
que preencher o imenso atraso tomado pela teoria mar­ produção (material) (2).
xista clássica.
2. Esta hipótese só é radical relativamente ao (‘) Neste caso, a expressão «indústria da consciência»
marxismo oficial, o qual, totalmente submerso nos mode­ que Enzensberger emprega para caracterizar os media actuais,
los dominantes, e para sua própria sobrevivência, chega não é mais que uma metáfora perigosa. Ora, ela sustenta
a proibir-se de a pôr. Mas a alternativa radical está toda a sua hipótese analítica, que é estender aos media a
alhures. Em vez de reinterpretar o problema crucial análise marxista do modo de produção capitalista, até ao ponto
de encontrar uma analogia estrutural nas relações:
classe dominante/classe dominada
produtor-empresário/consumidor
(l) Esta economia política do signo é a linguística estru­ emissor-transmissor/receptor
tural (com a semiologia, evidentemente, e todos os seus derivados,
entre os quais a teoria da comunicação de que falaremos mais O Na realidade, a análise marxista pode ser contestada
adiante. Sabemos que, no quadro da ideologia geral, é ela a dois níveis muito diferentes de radicalidade: ou enquanto
actualmente a disciplina mestra, que inspira a antropologia, sistema de interpretação da ordem separado da produção mate­
as ciências humanas, etc., tal como no seu tempo o foi a rial, ou enquanto sistema de interpretação da ordem
economia _política, cujos postulados inspiravam profundamente separado da produção (em geral). No primeiro caso, a
toda a psicologia, a sociologia e as ciência «morais e políticas». hipótese da não - pertinência da dialéctica fora do seu

210 211
I
ENZENSBERGER: UMA ESTRATÉGIA «SOCIALISTA»

À falta de uma teoria e de uma estratégia ofensiva,


diz Enzensberger, a «esquerda» permanece desarmada.
Contenta-se em denunciar a cultura mass-mediática como
manipulação ideológica. Sonha com uma tomada de
poder sobre os media, ora como meio de ajudar a
tomada de consciência revolucionária das massas, ora
como consequência de uma mudança radical das estru­
turas sociais. Veleidade contraditória que reflecte sim­
plesmente a impossibilidade de integrar os media numa
teoria da infra e da superestrutura. Por não os conceber
como um novo e gigantesco potencial de forças produ­
tivas (Enzensberger), os media (e, deve acrescentar-se,
todo o domínio dos signos e da comunicação) perma­
necem um mistério social para a «esquerda»: ela está
dividida entre o fascínio e a prática perante esta feiti­
çaria à qual não escapa, mas que reprova moral e
intelectualmente (aqui, é evidentemente o «intelectual de
esquerda» que fala pela boca de Enzensberger e faz a
campo «de origem» deve logicamente ser levada mais longe: sua autocrítica). Esta ambivalência não faz mais que
se as contradições «dialécticas» entre forças produtivas reflectir a ambivalência dos próprios media, sem a
e relações de produção se apagam em grande parte no campo
da linguagem, dos signos e aa ideologia — talvez elas nunca ultrapassar nem a reduzir. Como bom sociólogo mar­
tenham também verdadeiramente operado no campo da produção xista, Enzensberger imputa esta «fobia» dos intelectuais
material, uma vez que um certo desenvolvimento capitalista e dos movimentos de esquerda, à sua origem burguesa
das forças produtivas pôde absorver, não por certo todo o
conflito, mas os antagonismos revolucionários ao nível das rela­ ou pequeno-burguesa: eles defendem-se instintivamente
ções sociais. Qual é então a validade destes conceitos, senão da cultura de massa porque esta quebra o seu privilégio
uma coerência puramente conceituai? cultural 0 . Verdade ou mentira, talvez valesse mais
No segundo caso, é na sua própria raiz (e não nos seus
diversos conteúdos) que o conceito de produção deve ser con­
testado com a forma separada que institui, com o esquema
de representação e de racionalização que impõe. É certamente (') Encontra-se este género de determinismo redutor em
aí, no extremo, que importa chegar. Bourdieu e na fraseologia do P. C. Não tem valor teórico. Faz

212 213
perguntar-se que responsabilidade tem neste desprezo É claro que se trata aqui da extensão do mesmo
fascinado, nesta confusão táctica e nesta recusa de esquema atribuído desde sempre, de Marx a Marcuse,
investimento da intelligentsia de esquerda perante os às forças produtivas e à técnica. Estas são a promessa
media, que responsabilidade tem precisamente o precon­ da realização humana, mas o capitalismo gela-as ou
ceito marxista, o seu idealismo nostálgico do infra-estru- confisca-as. São libertadoras, mas é preciso libertá-las
tural e a sua alegria teórica a tudo quanto não é produção C). Os media, como estamos a ver, não escapam a essa
«material» e «trabalho produtivo». A doutrina «revolu­ lógica fantástica de inscrever em filigrana a revolução
cionária» nunca tomou em conta a troca dos signos nas coisas. Remeter os media para a lógica das forças
de outro modo que não para uso funcional: informação, produtivas já não é então vim acto crítico, porque é para
difusão, propaganda. E o new look actual em matéria melhor os fechar na metafísica revolucionária.
de relações públicas, toda a subcultura modernista dos Como habitualmente, esta posição perde-se aliás
partidos de esquerda, não é de molde a quebrar esta em contradições. Por um lado, os media, em virtude
tendência: ela mostra suficientemente como a ideologia do seu próprio desenvolvimento (capitalista), garantem
burguesa pode passar por outro lado sem ser pela uma socialização cada vez mais desenvolvida — embora
«origem social». isso seja tecnicamente pensável, não há circuito fechado
De tudo isto resulta, continua Enzensberger, uma de televisão para os happy few, «porque isso iria contra
esquizofrenia política da esquerda. Por um lado, toda a estrutura do médium TV» (against the grain of the
uma fracção revolucionária (subversiva) lança-se na explo­ structure) — «pela primeira vez na história, os media
ração apolítica dos novos media (subcultura, under­ tomam possível uma participação de massa num pro­
ground), por outro lado, os grupos políticos «militantes» cesso produtivo social e socializado, participação cujos
vivem ainda, no essencial, sobre um modo arcaico de meios práticos estão nas mãos das próprias massas»;
comunicação, recusando-se a «jogar o jogo», a explorar por outro lado «os movimentos socialistas devem com­
as gigantescas virtualidades dos media electrónicos. Cen­ bater e combaterão pelos seus próprios comprimentos
sura também os estudantes de Maio 68 por terem recor­ de onda». Porquê bater-se (sobretudo por um compri­
rido a meios artesanais (as belas-artes) para a difusão das mento de onda), se os media realizam por eles próprios
suas palavras de ordem, e por terem ocupado o Odéon, o socialismo? Se tal é a sua vocação estrutural?
velho lupanar da cultura, em vez do O. R. T. F. (Office A ordem actual, diz Enzensberger depois de Brecht
de la Radio et Télévision Française). (Théorie de la radio, 1932), reduz os media a um simples
O pensamento de Enzensberger pretende-se opti­ «médium de distribuição»; importa fazer deles um ver­
mista e ofensivo. Os media estão actualmente sob o dadeiro médium de comunicação (sempre o mesmo
monopólio das classes dominantes, que os desviam em sonho a assombrar o imaginário marxista: arrancar os
seu proveito. Mas a sua estrutura, essa permanece «fun­ objectos ao seu valor de troca para os restituir ao seu
damentalmente igualitária», e pertence à prática revo­ valor de uso), e tal transformação, acrescenta, «não é
lucionária destacar esta virtualidade neles inscrita, mas tecnicamente um problema». Mas:
pervertida pela ordem capitalista — digamos a palavra: 1. É falso que os media sejam, na ordem actual,
libertá-los, restituí-los à sua vocação social de comuni­ «pura e simples distribuição». Uma vez mais, é fazer
cação aberta e de troca democrática ilimitada, ao seu deles o prolongamento de uma ideologia que encontraria
verdadeiro destino socialista. as suas determinações alhures (no modo de produção
material). Por outras palavras: os media como marketing
do mecanismo de democratização um valor revolucionário em si.
O facto de os intelectuais terem repugnância pela cultura de
massa não basta para fazer dela uma alternativa revolucionária. (') Do mesmo modo as instituições, do poder e do Estado;
Os aristocratas resmungaram do mesmo modo contra a cultura conforme estão nas garras do Capital, ou o povo se apodera
burguesa: nunca isso bastou para fazer desta outra coisa que deles, assim se esvaziam ou se enchem de conteúdo revolucio­
não uma cultura de classe. nário, sem que jamais a sua forma seja interrogada.

214 215
e merchandiring da ideologia dominante — de onde a II
assimilação da relação capitalista/assalariado com a de A PALAVRA SEM RESPOSTA
produtor-emissor de media/massas receptoras irrespon­
sáveis. Não é como veículo de um conteúdo, mas na
sua forma e na sua própria operação, que os media
induzem um a relação social, e tal relação não é de
exploração, é de abstracção, de separação, de abolição
da troca. Os media não são coeficientes, mas efectuadores
de ideologia. Não só não são revolucionários por destino,
mas nem sequer são, alhures ou virtualmente, neutros
ou não ideológicos (o fantasma do seu estatuto «técnico»
ou do seu «valor de uso» social). Reciprocamente, a
ideologia também não existe em qualquer outro lugar
como discurso da classe dominante antes de se investir
nos media. O mesmo acontece na esfera da mercadoria: O que caracteriza os media de massa é que eles
em parte alguma esta tem outro estatuto de realidade são antimediadores, intransitivos, fabricam não-comuni-
(o «valor de uso do produto») além da forma que toma cação — se aceitarmos definir a comunicação como uma
na operação do sistema do valor de troca. E a ideologia troca, como o espaço recíproco de uma palavra e de
também não é um imaginário flutuando no rasto do uma resposta, portanto de uma responsabilidade—, e
valor de troca: é a própria operação do valor de troca. não uma responsabilidade psicológica e moral, mas uma
Depois do Requiem pela Dialéctica, é preciso tocar o correlação pessoal de um com outro na troca. Por
Requiem da Infra e da Superestrutura. outras palavras, se a definirmos como algo diferente
2. Segue-se que, quando Brecht e Enzensberger da simples emissão/recepção de uma informação, mesmo
afirmam que a transformação dos media em verdadeiro que esta fosse reversibilizada pelo feed-back. Ora, toda
médium de comunicação não é tecnicamente um pro­ a arquitectura actual dos media se funda nesta última
blema («ela não é, diz Brecht, senão a consequência definição: eles são o que proíbe para sempre a resposta,
natural do seu desenvolvimento técnico»), é efectiva­ o que torna impossível qualquer processo de troca (a
mente necessário entender (mas ao contrário e sem de
modo algum jogar com as palavras) que não é justa­ não ser sob formas de simulação de resposta, elas pró­
mente um problema técnico, visto que a ideologia dos prias integradas no processo de emissão, o que não
media está ao nível da forma, da separação que ins­ altera em nada a unilateralidade da comunicação).
tituem, e é uma divisão social. Aí reside a sua verdadeira abstracção. E é nessa abs­
tracção que se funda o sistema de controlo social e
de poder.
Para bem compreender o termo resposta, é neces­
sário entendê-lo num sentido forte, e para isso referir-se
ao que é o seu equivalente nas sociedades «primitivas»:
o poder pertence àquele que pode dar e ao qual se
não pode retribuir. Dar e fazer de tal modo que se não
possa retribuir é quebrar a troca em seu proveito e
instituir um monopólio: o processo social fica assim
desequilibrado. Pelo contrário, retribuir é quebrar esta
relação de poder, e instituir (ou restituir), na base de
uma reciprocidade antagónica, o circuito da troca sim­
bólica. O mesmo acontece na esfera dos media: aí se
216 217
fala, e se faz de tal modo que em parte alguma possa dade de receber ou de rejeitar o texto: a leitura não é
haver resposta. Por isso mesmo, a única revolução neste mais que um referendo» (S/Z). O estatuto do consumidor
domínio — e em todos os outros, a revolução simples­ define actualmente esta relegação, e a ordem generalizada
m ente— está na restituição desta possibilidade de res­ do consumo não é outra senão aquela em que já não
posta. Esta simples possibilidade supõe a subversão de é permitido dar, retribuir ou trocar, mas simplesmente
toda a actual estrutura dos media. tomar e usar (apropriação, valor de uso individualizado).
Não há outra teoria ou estratégia possível. Qualquer Neste sentido, os bens «de consumo» são também um
veleidade de democratizar os conteúdos, de os subverter, médium de massa: respondem à forma geral que des­
de restituir a «transparência do código», de controlar crevemos. Pouco importa a sua função específica: o
®| processo de informação, de organizar uma reversibi­ consumo de produtos e de mensagens é a relação abs­
lidade dos circuitos, ou de tomar o poder sobre os media, tracta que eles instituem, é a interdição lançada sobre
é sem esperança — se não for quebrado o monopólio toda a forma de resposta e de reciprocidade.
da palavra, e isto não para a dar individualmente a Por isso não é verdade, como afirma Enzensberger,
cada um, mas para que ela possa ser trocada, ser dada que «pela primeira vez na história, os media tornam
e retribuída 0 , como por vezes o olhar ou o sorriso, possível uma participação de massa num processo social
e sem que possa jamais ser detida, fixada, armazenada produtivo», nem que «os meios práticos desta produção
e redistribuída em qualquer local do processo social 0 . estejam nas mãos das próprias massas». Como^ se a
De ^momento, estamos na não-resposta, na irres­ posse de um aparelho de televisão ou de uma máquina
ponsabilidade. «Actividade autónoma mínima por parte de filmar inaugurasse uma possibilidade nova de relação
do espectador ou do eleitor», diz Enzensberger. Com e de troca. Estritamente, nem mais nem menos que um
efeito, o primeiro e mais belo dos mass media é o frigorífico ou uma torradeira. Não há resposta para um
sistema eleitoral: o seu coroamento é o referendo, em objecto funcional: a sua função está aí, palavra integrada
que a resposta está implicada na pergunta, como nas a que já foi respondido, e que não deixa lugar algum
sondagens — é uma palavra que se responde a si própria para um jogo, para uma parada recíproca (a não ser
pelo desvio simulado de uma resposta e, uma vez mais, destruí-lo ou desviá-lo da sua função) 0 . O objecto
a absolutização de uma palavra sob a máscara formal funcional, como todas as mensagens funcionalizadas
da troca é a própria definição do poder. Barthes assinala pelos media, como a operação do referendo, controla
a mesma não-reciprocidade na literatura: «A nossa lite­ pois a rotura, a emergência do sentido e a censura. No li­
ratura é marcada pelo divórcio implacável entre o fabri­ mite, o poder (se não estivesse também ele obcecado pelos
cante e o utente do texto, entre o proprietário e o conteúdos e convencido da forma de «persuasão» ideoló­
cliente, entre o autor e o leitor. Este leitor é assim gica dos media, e portanto da necessidade de um controlo
mergulhado numa espécie de ociosidade, de intransitivi- das mensagens) ofereceria uma televisão a cada cidadão,
dade e, para resumir, de seriedade: em vez de jogar sem se preocupar com os programas. Com efeito, é inútil
ele próprio, de aceder plenamente ao encantamento do fantasiar o desvio policial da TV pelo poder (Orwell,
significante..., fica-lhe apenas na partilha a pobre liber- 1984): a TV é, pela sua própria presença, o controlo
social em casa. Não há necessidade de a imaginar como
periscópio espião do regime na vida privada de cada
() Não se trata de «diálogo», que nunca passa do aloja­ um, uma vez que ela faz melhor que isso: é a certeza
mento funcional de duas palavras abstractas sem resposta, em de que as pessoas já não se falam, que estão definiti­
que os dois interlocutores nunca são presentes um ao outro,
mas somente o seu discurso modelizado. vamente isoladas perante uma palavra sem resposta.
0 Vê-se que a tomada da O.R.T.F. em Maio de 68 nada 0) A multifuncionalidade nada altera a isto, evidente­
teria mudado por si, senão para «difundir» «conteúdos» subver­ mente. Multifuncionalidade, pluridisciplinaridade, polivalência
sivos— ou então para afundar a O.R.T.F. enquanto tal, cuja sob todas as formas: é a resposta do sistema à sua propna
estrutura, tanto técnica como funcional, reflecte inteiramente obsessão da centralidade e da uni-equivalência. E a reacçao do
o uso monopolístico da palavra. sistema à sua própria patologia, mas sem tocar na sua lógica.

218 219
preza tratando-o^dé rentóíojuo esté ^ I nsber? er des‘ III
de uma teoria quando diz au e« n' m ^ - ° mais Perto
(excepto que! S n ? e n £ ESTRATÉGIA SUBVERSIVA E ACÇAO SIMBÓLICA
de que falamos, exalta os media T l 1

sua forma paradoxal, tem valor T nalíticcfV ^^ó S° b 3


SSJuTd^á,Er ,?be^r**>«*«nwSSã
poder pode x L Z f i t Z vu f S undo a qual «nenhum
pretendendo-se revolucionária &é anen^ P°tencialidade»,

rista peto S b o t S í SUa “ “ ipalaçlo tarn>.


° s cnstãos asshii o diasin DeUS ^ pel° Pôde objectar-se que os media de massa haviam
desempenhado o seu papel em Maio de 68, amplificando
espontaneamente o movimento revolucionário. Num mo­
mento da acção, pelo menos, ter-se-iam virado (involun­
tariamente) contra o poder. É nesta falha e neste desvio
possível que se funda a estratégia subversiva dos hippies
americanos (Hoffman, Rubin) e se elabora nos movi­
mentos revolucionários mundiais uma teoria da «acção
simbólica». Desviar os media no seu poder de reacção
em cadeia. Utilizar a sua função de generalização instan­
tânea da informação. Subentendido: o impacte dos
media é reversível, é uma variável da luta de classes que
importa saber integrar em proveito próprio. Devemos
interrogar-nos sobre o que talvez seja apenas, mais
uma vez, uma grande ilusão estratégica.
Maio de 68 pode servir de exemplo. Tudo pode
fazer crer no impacte subversivo dos media durante
esse período. Rádios periféricos e jornais repercutiram
por toda a parte a acção estudantil. Se esta foi o
detonador, os media foram o repercutidor. Aliás, o
poder não se privou de os acusar de «fazer o jogo»
dos revolucionários. Mas tal evidência funda-se numa
ausência de análise. Eu diria, pelo contrário, que os
media nunca desempenharam tão bem o seu papel e
que, na sua função de controlo social habitual, estiveram
à altura dos acontecimentos. Isto porque conservaram
é uma proposição^M rgííes^s^eniff8^ 111' ,Wt:íÍ!"w !i Message a sua forma (sob a subversão dos conteúdos) e porque
ma» tem í d izei S l S d o “ bur8““ fa
joga a carta do médium pelo méd^m V PiSa íransmitir. é esta forma, seja qual for o contexto, que os toma
inexoravelmente solidários do sistema do poder. Ao difun­
” MS “ d» * » ■ « m ^ a r T a ^ o ír ia la r -S direm o acontecimento na universalidade abstracta da
221
opinião pública, impuseram-lhe um desenvolvimento Tudo isto é legível na derivação, na distorção do
repentino e desmedido e, através desta extensão forçada termo «simbólico». A acção do 22 de Março em Nan-
e antecipada, despojaram o movimento original do seu terre era simbólica porque transgressora, porque, em
ritmo próprio e do seu sentido — numa palavra: fize­ tal momento e em tal lugar, inventava uma rotura radi­
ram-lhe curto-circuito. cal ou, para retomar a análise proposta mais atrás,
No campo tradicional da política (de esquerda ou inventava uma resposta onde a instituição do poder
de direita) 0 , onde se trocam modelos consagrados e administrativo e pedagógico falava sozinha e tinha como
uma palavra canónica, os media transmitem sem alterar função não permitir nenhuma. Não foi de modo nenhum
o sentido. São homogéneos dessa palavra como o são pelo facto da difusão e do contágio mass-mediático que
da circulação da mercadoria. Mas a transgressão e a esta acção foi simbólica. Actualmente, contudo, cada
subversão, pelo seu lado, não passam sobre as ondas vez mais esta última acepção (o impacte da divulgação)
sem serem subtilmente negadas enquanto tais: transfor­ basta para definir a acção simbólica. No limite, o acto
madas em modelos, neutralizadas em signos, são esva­ subversivo já não é produzido senão em função da sua
ziadas do seu sentido (2). Não existe modelo da trans­ reprodutibilidade (‘). Já se não inventa^ produz-se de
gressão, nem de protótipo nem de série. Portanto, o improviso como modelo, como gesto. O simbólico desli­
j r mot^° a reduzir é ainda fazer-lhe uma publi­ zou da ordem da própria produção do sentido (político
cidade mortal. Num primeiro tempo, esta operação pode ou outro) para a ordem da sua reprodução, que e sem­
fazer crer em resultados «espectaculares». Na realidade, pre a do poder. O simbólico torna-se puro e simples
ela equivale a desmantelar o movimento, tirando-lhe coeficiente simbólico, a transgressão torna-se valor de
o seu impulso próprio. O acto de rotura é transformado troca. . t- .
em modelo burocrático à distância — e esse é propria­ Todo o pensamento crítico racionalista (Benjamm,
mente o trabalho dos media (3). Brecht, Enzensberger) vê nisto um progresso decisivo.

() Esta distinção já não tem sentido relativamente aos necessário, aliás, interrogar-mo-nos sobre se estas resistências
media. Deve atnbuir-se-lhes a honra de terem contribuído lar­ não visam, mais que os conteúdos, a abstracção do propno
gamente para a apagar. Ela é solidária de uma ordem caracte­ médium: a dupla articulação de Lazarsfeld iria neste sentido,
rizada pela transcendencia do político, e já nada tem a ver uma vez que a segunda articulação, oposta à generalidade das
com o que se anuncia sob todas as espécies de formas como mensagens mass-mediáticas, é a da rede das relações pessoais»).
a transversaltda.de do político. Mas não devemos iludir-nos: os Contudo, esta leitura «segunda», em que o grupo de pertença
media so contribuem para liquidar a transcendência do político, opõe o seu próprio código ao dos emissores (cf. p. 195, a tese
para a substituir pela sua própria transcendência, a trans­ de Umberto Eco), não chega certamente a neutralizar, a «reduzir»
cendencia abstracta da forma mass-mediática, a qual é defi­ os conteúdos ideológicos dominantes do mesmo modo que os
nitivamente integrada e já nem sequer oferece uma estrutura conteúdos críticos ou subversivos. Na medida em que os pri­
de conflito (esquerda/direita). A transcendência mass-mediática meiros (modelos culturais, sistemas de valores impostos, sem
e, pois, redutora da transcendência tradicional do político, mas alternativa nem resposta, conteúdos burocráticos) sao homoge-
e-o amda muito mais da nova transversalidade do político. neos da forma geral mass-mediática (não-reciprocidade, irrespon­
sabilidade) e nela se integram reduplicando-a, há como que um
(2) Esta forma da «divulgação» ou «propagação» anali- efeito de sobredeterminação e, portanto, maior pregnancia dos
*,anto no campo da ciência como no da arte. A reproduti- conteúdos ideológicos dominantes. Estes «passam» melhor que
bilidade generalizada oblitera o processo de trabalho e de os conteúdos subversivos. Mas isto não é essencial. U que
sentido para apenas fornecer conteúdos modelizados (cf. Raoul importa saber é que a forma da transgressão nao passa «mais
Ergmann, «Le miroir en miettes», Diogène, n.° 68, 1969; Bau- ou menos bem»: ela é negada radicalmente pela forma mass~
doum Jurdant, «La vulgarisation scientifique», Communications -meâiâtica.
n. 14).
(‘) Assim, para Walter Benjamm («L’oeuvre d’art à l’ere
() Importa assinalar que este trabalho é sempre redo­ de sa reproductibilité technique»), a obra reproduzida torna-se
brado por um trabalho de selecção e de reinterpretação ao cada vez mais a obra «designada» em função da sua reproüuti-
nível do grupo de pertença (twb step flow of communication, bilidade (designada for reproductibility). É entao, segundo ele,
ae Lazarsteld). Dai a pregnância muito relativa dos conteúdos que a obra passa do ritual para a «política». O «valor de exi-
aos media, e as resistências múltiplas que provocam (seria bição» revoluciona a obra de arte e suas funçoes.

222 223
Os media mais não fazem que actualizar e reforçar a é o que passa pela imprensa, pela TV, pela rádio: é o
«natureza demonstrativa de qualquer acto político» que é assumido pela forma/signo, articulado em mode­
(Enzensberger). Isto está de acordo, evidentemente, com los, regido pelo código. Assim como a mercadoria não
a concepção didáctica da revolução e, mais longe, com é aquilo que é produzido industrialmente, mas aquilo
a «dialéctica da tomada de consciência», etc. Este pen­ que é mediatizado pelo sistema de abstracção do valor
samento racionalista não renegou o pensamento bur­ de troca. Vemos que, quando muito, o que pode ope­
guês das Luzes; é herdeiro de todas as suas concepções rar-se sob o signo dos media, é a superação formal das
sobre a virtude democrática (aqui revolucionária) da categorias do «caso do dia» e do político e da sua sepa­
difusão das luzes. Na sua ilusão pedagógica, este pensa­ ração tradicional, mas para melhor os adscrever con­
mento esquece que — o acto político visando delibera­ juntamente no mesmo código geral. É estranho que
damente os media e esperando deles o seu poder — os nunca se tenha querido medir o alcance estratégico
media, pelo seu lado, o visam deliberadamente para o desta socialização forçada como sistema de controlo
despolitizar. Um facto interessante pode ser aqui citado social. Mais uma vez, o sistema eleitoral é o seu pri­
como apoio: a irrupção contemporânea dos «casos do meiro grande exemplo histórico. Nunca faltaram revolu­
dia» na esfera do político (o que converge com a ideia cionários (outrora entre os maiores, actualmente entre
de Benjamin sobre a passagem da obra de arte ao está­ os mais pequenos) que pensaram poder «jogar o jogo».
dio político em virtude da sua reprodutibilidade). Um A própria greve geral, esse mito insurreccional de tan­
maremoto no Paquistão, um jogo de boxe negro nos tas gerações, tornou-se um esquema redutor. A de Maio
Estados Unidos, o patrão de uma taberna que dispara de 68, para a qual os media contribuíram grandemente,
sobre um jovem, etc. — este tipo de acontecimentos exportando a greve para todos os cantos da França,
outrora menores e apolíticos encontra-se investido de foi aparentemente o ponto culminante da crise; na rea­
todo um poder de difusão que lhe dá uma envergadura lidade, foi o momento da sua descompressão, da sua
social e «histórica». Não resta dúvida de que o sentido asfixia por extensão, da sua derrota. É certo que milhões
novo que tomam, a conflitualização de incidentes que de operários entraram em greve. Mas esta greve «media-
outrora faziam parte da crónica, e onde vêm cristali­ tizada», transmitida e recebida como modelo de acção
zar-se formas novas do político, se devem em boa parte (quer pelos media quer pelos sindicatos) — eles não sou­
aos media. Estes casos do dia são «acções simbólicas» beram que fazer dela. Abstracta em certo sentido, ela
não deliberadas, mas que entram no mesmo processo neutralizou as formas de acção local, transversais,
de significação política. Não há dúvida também que a espontâneas (nem todas). Os acordos de Grenelle não
audiência que recebem é ambígua e que, se graças aos a traíram. Sancionaram essa passagem à generalidade
media o político ressurge sob a categoria do caso do da acção política, que põe fim à singularidade da acção
dia, graças aos mesmos media, a categoria do caso do revolucionária. Actualmente, ela tornou-se (sob a forma
dia invade o político por toda a parte. Aliás, o caso de extensão calculada da greve) a arma absoluta dos
do dia mudou de estatuto com a extensão dos massme- sindicatos contra as greves selvagens.
dia: de categoria paralela (vinda dos almanaques e das Assim, também o sistema eleitoral e a greve geral
crónicas populares), tornou-se sistema total de interpre­ são, de certa maneira, media. Jogando na socialização
tação mitológica, rede apertada de modelos de significa­ formal, extensiva, são as instituições mais subtis e mais
ção a que nenhum acontecimento escapa. É isso a seguras de filtragem, de desmantelamento e de censura.
mass-mediatização. Não é um conjunto de técnicas de Não há excepção, nem milagre.
difusão de mensagens, é a imposição de modelos. A fór­ O verdadeiro médium revolucionário em Maio
mula de Mac Luhan deve ser revista aqui: Medium is são as paredes e a sua palavra, as serigrafias ou os
Message opera uma transferência de sentido sobre o cartazes na mão, a rua onde a palavra se toma e se
próprio médium enqw nto estrutura tecnológica. Tra­ troca — tudo o que é inscrição imediata, dado e retri­
ta-se ainda de idealismo tecnológico. Na realidade, o buído, falado e respondido, móvel, num mesmo tempo
grande Médium é o Modelo. O que é mediatizado não e num mesmo lugar, recíproco e antagónico. Neste v
224 225
sentido, a rua é a forma alternativa e subversiva de IV
todos os massmedia, porque ela não é, como estes, 0 MODELO TEORICO DA COMUNICAÇÃO
suporte objectivado de mensagens sem resposta, rede
de trânsito à distância, ela é o espaço aberto da troca
simbólica da palavra, efémera e mortal, palavra que não
se reflete no écran platónico dos media. Instituciona­
lizada pela reprodução, espectacularizada pelos media,
ela morre.
Portanto, é uma ilusão estratégica crer num desvio
crítico dos media. Semelhante palavra passa hoje pela
destruição dos media enquanto tais, pela sua descons-
trução enquanto sistema de não-comunicação. Isto não
implica liquidação, tal como a crítica radical do discurso
não implica a negação da linguagem enquanto material
significante. Mas implica certamente a liquidação de Resumamos as diversas hipóteses:
toda a sua estrutura actual, funcional e técnica, da 1. Mac Luhan (de memória): os media fazem, são
sua forma operacional, se assim se pode dizer, que a revolução, independentemente do seu conteúdo, pela
reflecte por toda a parte a sua forma social. No limite, sua simples estrutura tecnológica. Após o alfabeto foné­
certamente, é o próprio conceito de médium que desa­ tico e o livro, a rádio e o cinema. Após a rádio, a
parece, que deve desaparecer: a palavra trocada, a troca televisão. Estamos desde já na era da comunicação
recíproca e simbólica nega a noção e a função de instantânea e planetária.
médium, de intermediário. Este pode implicar um dis­
positivo técnico (som, imagem, ondas, energia, etc.), 2. Os media são controlados pelo poder. É neces­
bem como um dispositivo corporal (gestos, linguagem, sário arrancar-lhos, quer pela tomada do poder, quer
sexualidade), mas já não funciona nesse caso como desviando-os por meio da maior oferta espectacular de
médium, como sistema autónomo regido por um código. conteúdos subversivos. Os media são considerados aqui
A reciprocidade passa pela destruição do médium en­ apenas enquanto mensagem. A sua forma não é posta
quanto tal. «Encontramos finalmente os nossos vizinhos em causa (evidentemente, também o não é em Mac
quando contemplamos com eles o nosso prédio em Luhan, para quem o médium é apenas considerado
chamas» (Jerry Rubin, Do it). enquanto médium).
3. Enzensberger: a forma actual dos media induz
um certo tipo de relação social (assimilável ao do modo
de produção capitalista). Mas há neles, pela sua estrutura
e pelo seu desenvolvimento, a virtualidade de uma univer­
salidade da informação. Basta libertar o seu potencial.
Só nos interessam (não falamos da prática da
esquerda oficial, marxista ou não, que se confunde com
a da burguesia) a hipótese de Enzensberger (marxista-
-esclarecida) e a da esquerda racional americana (esquer-
dista-espectacular). Analisámo-las como ilusões estraté­
gicas, sendo isso devido ao facto de que tanto uma como
outra partilham com a ideologia dominante a referência
implícita a uma mesma teoria da comunicação —- teoria
admitida por toda a parte, valendo-se da evidência aceite
226 227
e de uma formalização altamente «científica» por parte dois termos (*), visto que um e outro se determinam
de uma disciplina, a semio-linguística da comunicação, isoladamente na sua relação à mensagem e ao código,
apoiada por um lado na linguística estrutural e por outro intermedium que mantém ambos numa situação respec­
na informática, avalizada nas universidades e na cultura tiva (é o código que os mantém a ambos «em respeito»),
de massa (os teóricos dos massmedia são ávidos dela). à distância um do outro, distância que o «valor» pleno
Toda a infra-estrutura conceituai desta teoria é ideologi­ e autonomizado da mensagem (na realidade, seu valor
camente solidária da prática dominante, como o era, e de troca) vem preencher. Esta construção «científica»
ainda o é, a da economia política clássica. Ela é o institui um modelo de simulação da comunicação de onde
equivalente desta economia política burguesa no campo são excluídos à partida, a reciprocidade, o antagonismo
da comunicação. E penso que, se as práticas revolucio­ dos parceiros, ou a ambivalência da sua troca. O que
nários se ficaram pela ilusão estratégica dos media, é circula, com efeito, é informação, conteúdo de sentido
porque nunca fizeram mais que uma análise crítica supostamente legível e unívoco. É a instância do código
superficial, sem ir até à crítica radical desta matriz que garante esta univocidade, e por isso mesmo as
ideológica que é a teoria da comunicação. respectivas posições de codificador e descodificador.
Mais particularmente formalizada por Jakobson, ela Tudo se mantém: a fórmula tem uma coerência formal
toma como unidade de base a sequência: que a garante como único esquema da comunicação
possível. Mas desde que se suponha uma relação ambi­
valente, tudo se desmorona. Porque não há código da
EMISSOR — MENSAGEM — RECEPTOR
ambivalência. Sem código, acaba-se o codificador e o
descodificador, os figurantes evaporam-se. Acaba-se tam­
(CODIFICADOR — MENSAGEM — DESCODIFICADOR) bém a mensagem, pois que esta se define como «emitida»
e «recebida». Toda aquela formalização é dada apenas
para evitar esta catástrofe. Aí reside a sua «cientificidade».
sendo a própria mensagem estruturada pelo código e O que ela na verdade funda, é o terrorismo do código.
determinada pelo contexto. A cada um destes «conceitos» Neste esquema director, o código torna-se a única ins­
corresponde uma função específica: referencial, poética, tância que fala, que se troca a si própria e se reproduz
fática, etc. Cada processo de comunicação é, assim, vecto- através da dissociação dos dois termos e da univocidade
rizado num único sentido, do emissor ao receptor: este (ou equivocidade, ou multivocidade, pouco importa:
pode, por sua vez, tomar-se emissor, reproduz-se o através da não-ambivalência) da mensagem. (Do mesmo
mesmo esquema, podendo a comunicação reduzir-se sem­ modo, no processo económico de troca, já não são as
pre a esta unidade simples em que os dois termos pessoas que trocam, é o sistema do valor de troca que
polares não se trocam. Esta estrutura dá-se por objectiva se reproduz através delas.) Esta fórmula de base da
e científica, uma vez que segue a regra de método: comunicação consegue dar, portanto, como que em mo­
decompor o seu objecto em elementos simples. Na reali­ delo reduzido, um perfeito resumo da troca social tal
dade, ela contenta-se em formalizar um dado empírico, como ela é, tal como, em todo o caso, a regem a abstrac­
a abstracção da evidência e da realidade vivida:ou seja, ção do código, a racionalidade forçada e o terrorismo
as categorias ideológicas sob as quais se fala um certo da separação. Assim vai a objectividade da ciência.
tipo de relação social, precisamente aquele em que um Separação e clausura: é já o mesmo esquema que
fala e o outro não, em que um tem a escolha do funciona ao nível do signo na teoria linguística. Cada
código e o outro apenas a liberdade de se submeter a signo esquartejado num significante e num significado,
ele ou de se abster. Esta estrutura funda-se no mesmo adstritos um ao outro, mas em posição «respectiva», e
arbitrário que a da significação: dois termos são nela
artificialmente isolados e artificialmente reunidos por
0) Os dois termos são tão pouco presentes um ao outro
um conteúdo objectivado chamado mensagem. Não há que foi preciso criar uma categoria de «contacto» para recons­
relação recíproca nem de presença de um ao outro dos tituir teoricamente o conjunto.
228 229
cada signo «comunicando» do fundo do seu isolamento V
arbitrário com todos os outros através de um código A ILUSÃO CIBERNÉTICA
chamado língua. Também aqui a interdição científica
foi lançada sobre a possibilidade que os termos têm
de se trocar simbolicamente, para além da distinção
significante/significado, na linguagem poética, por exem­
plo. Nesta, como na troca simbólica os termos respon­
dem-se para além do código. Foi esta resposta que
marcámos ao longo do texto como desconstrutiva de
qualquer código, de qualquer controlo, de qualquer poder,
o qual, ao invés, se funda sempre na separação dos
termos e na sua articulação abstracta.
Deste modo, a teoria da significação serve de
modelo nuclear à teoria da comunicação, e o arbitrário Enzensberger, sensível à não-reciprocidade do pro­
do signo (esse esquema teórico da repressão do sentido) cesso actual, pensa atenuá-la exigindo que intervenha
recebe toda a sua envergadura política e ideológica no
arbitrário do esquema teórico da comunicação e da ao nível dos media a mesma revolução que subverteu
informação. O qual se repercute, como vimos, não só as ciências exactas e a relação sujeito/objecto de conhe­
na prática social dominante (caracterizada pelo mono­ cimento, doravante comprometidos numa inter-reacção
pólio virtual do pólo emissor e a irresponsabilidade do «dialéctica» contínua. Os media deviam tomar em conta
pólo receptor, pela discriminação dos termos da troca todas as consequências da inter-reacção, o que teria como
e pelo diktat do código), mas também e sem que disso efeito quebrar o monopólio e permitir a integração de
tenha consciência, através de todas as veleidades de todos num processo aberto. «Os programas da indústria
uma prática revolucionária dos media. É claro, por da consciência devem integrar em si os seus próprios
exemplo, que todas aquelas que visam subverter o seu resultados, as reacções e as correcções que exigem...
conteúdo não fazem mais que reforçar na sua autonomia É necessário concebê-los não como meios de consumo,
a noção separada de mensagem, e portanto a bipolaridade mas como meios da sua própria produção.» Ora, esta
abstracta dos termos da comunicação. perspectiva sedutora:
1. Deixa intacta a instância separada do código
e da mensagem;
2. Tenta, pelo contrário, quebrar a discriminação
dos dois pólos da comunicação, no sentido de uma
estrutura mais maleável de troca dos papéis e de
feed-back («reversibilidade dos circuitos»). «Na sua for­
ma actual, dispositivos como a TV ou o filme não
servem para a comunicação, fazem-lhe barreira. Não
deixam lugar para nenhuma acção recíproca entre emis­
sor e receptor. Do ponto de vista técnico, reduzem o
feed-back à taxa mínima compatível com o sistema.»
Ainda aqui, não se ultrapassam as categorias de «emissor»
e de «receptor», qualquer que seja o esforço para os
mobilizar por «turno». A reversibilidade nada tem a ver
com a reciprocidade. É, sem dúvida, por esta razão
profunda, que os sistemas cibernéticos concordam perfei­

230 231
tamente em pôr em acção esta regulação complexa, este solução revolucionária que cada um se torne mani­
feed-back, sem mudar nada à abstracção do processo pulador, no sentido de operador activo, de montador, etc.,
de conjunto nem deixar passar nada de «responsabi­ em suma, passe do estatuto de receptor para o de
lidade» real na troca. Para o sistema é mesmo o melhor produtor/emissor. Trata-se, de certo modo, de um desvio
meio de evitar, pois que assim integra previamente a crítico do conceito ideológico de manipulação. Mas tam­
eventualidade duma tal resposta. bém aqui, pelo facto de tal «revolução» conservar no
Com efeito, já se não pode conceber, como o mostra fundo a categoria de «emissor», contentando-se em gene-
Enzensberger na sua crítica do mito de Orwell, um ralizá-la enquanto separada e fazendo de cada um o
megassistema de controlo centralizado (um sistema de seu próprio emissor, ela não põe em cheque o sistema
controlo do sistema telefónico actual deveria ultrapassá- mass-mediático. Que cada um possua o seu talkie-walkie
-lo n vezes em complexidade, portanto está praticamente ou a sua Kodak e faça o seu próprio cinema, sabe-se
excluído). Mas é um pouco ingénuo pensar que a censura o que daí resulta: o amadorismo personalizado, o equi­
é assim liquidada devido à extensão dos media. Mesmo valente dos pequenos trabalhos dominicais na periferia
a longo prazo, a impossibilidade dos megassistemas do sistema (2).
policiais significa simplesmente que os sistemas actuais Não é isso, evidentemente, que Enzensberger quer.
integram em si, pelo feed-back e a auto-regulação, esses Aquilo em que ele pensa é uma imprensa redigida,
metassistemas de controlo, a partir de agora inúteis. distribuída, trabalhada pelos próprios leitores (como o
Sabem introduzir aquilo que os nega como variável é, em parte, a imprensa Underground), em canais de
suplementar. São a censura na sua própria operação: video para uso dos grupos políticos, etc.
não há necessidade de metassistema. Não deixam, pois, Seria o único meio de descongelar uma situação
de ser totalitários: realizam, de certo modo, o que pode bloqueada: «Nos movimentos socialistas, a dialéctica da
chamar-se um totalitarismo descentralizado. espontaneidade, do centralismo e da descentralização,
A nível mais prático, os media sabem muito bem, do leadership autoritário e da desintegração antiautori-
também eles, organizar uma «reversibilidade» formal tária atingiu desde há muito o ponto morto. Só os
dos circuitos (correio dos leitores, intervenção telefónica modelos de canais de comunicação fundados no princípio
dos ouvintes, sondagens, etc.), sem deixar lugar a qual­ da reversibilidade dos circuitos poderiam permitir ultra­
quer resposta, sem mudar nada na discriminação dos passar esta situação.» Trata-se, portanto, de restituir
papéis (‘). É a forma social e política do feed-back. uma prática dialéctica. Mas pode o problema continuar
Enzensberger continua, pois, na sua «dialectização» da a ser posto em termos dialécticos? Não será a própria
comunicação tão estranhamente próxima da regulação dialéctica que está no ponto morto?
cibernética, a ser vítima, embora de modo mais subtil, Os exemplos que dá são interessantes no aspecto
do modelo ideológico de que falávamos. em que ultrapassam a «dialéctica» do emissor e do
Na mesma perspectiva — quebrar a unilateralidade receptor. Com efeito, encontra-se aqui um processo de
da comunicação, que se traduz simultaneamente no mono­ comunicação imediata, não filtrada por modelos buro­
pólio dos especialistas e dos profissionais e no do inimigo cráticos, uma forma de troca original, porque na reali­
de classe sobre os media — Enzensberger dá como dade já não há nem emissores nem receptores, mas
pessoas que se respondem. O problema da espontanei-
C) Também aqui, Enzensberger, que analisa e denuncia
estes circuitos de controlo, retoma contudo com idealismo: «Mas
isto, naturalmente (!), vai contra a estrutura, e as novas forças (2) Enzensberger usa como argumento o facto de a Xerox
produtivas não só permitem, mas exigem (!) a derrota desta conservar o monopólio do duplicador electrostático de papel
tendência». Feed-back e interacção são a própria lógica da ciber­ vulgar (possibilidade de «free press» geral) e de apenas _aceitar
nética, e existe a mesma ilusão em subestimar as possibilidades alugá-lo a preços exorbitantes. Mas mesmo que todos tivessem
do sistema de integrar aquelas inovações «revolucionárias» e o seu Xerox ou até o seu comprimento de onda, o essencial
em subestimar a capacidade do capitalismo de desenvolver as não está aí. O verdadeiro monopólio nunca é o dos meios
forças produtivas. técnicos, mas sim o da palavra.

232 233
dade e da organização não é aqui superado dialectica- Um exemplo pode ilustrar a perspectiva de Eco: o desvio
mente, é transgredido nos seus termos. publicitário pelos graffiti depois de Maio de 68. Trans-
Aqui reside a diferença essencial: as outras hipó­ gressivo, não porque substitua um outro conteúdo, um
teses deixam subsistir as categorias separadas. No pri­ outro discurso, mas sim porque responde ali, no lugar,
meiro caso (a desmultiplicação privada dos media), e quebra a regra fundamental de todos os media. Opõe
emissor e receptor são simplesmente reunidos numa só um código a outro código? Não o penso: quebra muito
pessoa: a manipulação é de algum modo «interiori­ simplesmente o código. Não se dá a decifrar como texto
zada» Q. No outro caso (a «dialéctica dos circuitos»), concorrente do discurso publicitário, dá-se a ver como
emissor e receptor estão simultaneamente dos dois lados: transgressão. O mesmo acontece com o dito espirituoso,
a manipulação tomou-se recíproca (combinação herma­ desvio transgressor do discurso, que não actua sobre
frodita). O sistema pode funcionar sobre estes dois outro código enquanto tal, actua sobre a desconstrução
quadros ao mesmo tempo que sobre o modelo burocrá­ instantânea do código discursivo dominante. Volatiliza
tico clássico. Pode funcionar sobre todas as combinações a categoria do código, bem como a da mensagem.
possíveis das duas categorias. O essencial é que estas Aqui se encontra a chave do problema: a querer
categorias ideológicas sejam salvas e, com elas, a estru­ conservar (mesmo «ultrapassando-a dialecticamente»)
tura fundamental da economia política da comunicação. qualquer das instâncias separadas da grelha estrutural
Mais uma vez, na relação simbólica de troca, existe da comunicação, fica-se impedido de mudar fundamen­
resposta simultânea, não há emissor e receptor de um talmente alguma coisa, e fica-se condenado a práticas
lado e do outro da mensagem, e também não há «men­ manipulatórias frágeis, que seria perigoso tomar como
sagem», quer dizer, um corpus de informação a decifrar «estratégia revolucionária». Neste sentido, só é estraté­
de maneira unívoca sob a égide de um código. O simbó­ gico aquilo que põe radicalmente em cheque a forma
lico consiste precisamente em quebrar esta univocidade dominante.
da «mensagem», em restituir a ambivalência do sentido,
e em liquidar no mesmo acto a instância do código.
Isto pode ajudar a hipótese de Umberto Eco (2).
Em resumo: de nada serve mudar os conteúdos da
mensagem, é preciso modificar os códigos de leitura,
impor outros códigos de leitura. O receptor (que, na
realidade, já o não é) intervém aqui sobre o essencial,
opõe o seu próprio código ao do emissor, inventa uma
verdadeira resposta escapando à armadilha da comuni­
cação dirigida. Mas em que consiste esta leitura «subver­
siva»? Trata-se ainda de uma leitura, quer dizer, uma
decifração, a libertação de um sentido unívoco? E que
código é esse que ele opõe? Trata-se de vim minicódigo
singular (idiolectal, mas então sem interesse), ou trata-se,
de novo, de um esquema director de leitura? Nesse caso
estamos apenas perante uma simples variação textual.

0) Por isso é que o cameraman amador individual perma­


nece na abstracção separada da comunicação de massa. Por
esta dissociação interna entre as duas instâncias, todo o código
e os modelos dominantes se infiltram e voltam a assumir a
sua prática.
(2) In La Struttura assente, Bompiani, 1968.

234 235
Décima Parte

«DESIGN» E AMBIENTE
OU A ESCALADA DA ECONOMIA POLÍTICA
Nem toda a cultura produz objectos: o conceito
é próprio da nossa cultura, nascida da revolução indus­
trial. Contudo, mesmo a sociedade industrial conhece
ainda apenas o produto, e não o objecto. O objecto só
começa verdadeiramente a existir com a sua libertação
formal enquanto função/signo, e esta libertação só apa­
rece com a mutação dessa sociedade propriamente indus­
trial para aquilo a que se poderia chamar a nossa
tecno-cultura Q, com a passagem de uma sociedade
metalúrgica a uma sociedade semiúrgica — isto é, quando
começa a pôr-se, para além do estatuto de produto e de
mercadoria (para além do modo de produção, de circula­
ção e de troca económica), o problema da finalidade
de sentido do objecto, de seu estatuto de mensagem
e de signo (do seu modo de significação, de comunicação
e de troca/signo). Esta mutação esboça-se no decorrer
do século XIX, mas é o Bauhaus que a consagra teori­
camente. É, portanto, a partir dele que se pode datar,
logicamente, a «Revolução do Objecto».
Não se trata da simples extensão e diferenciação,
embora prodigiosa, do campo dos produtos, ligada ao
desenvolvimento industrial. Trata-se de uma mutação
de estatuto. Antes do Bauhaus, não há objectos, propria­
mente falando; — depois, e segundo uma lógica irrever­
sível, tudo entra virtualmente na categoria de objecto

0) Em eco à «tecno-estrutura» de Galbraith. Neocapita-


lista, neo-industrial, pós-industrial: muitos termos podem marcar
esta passagem duma economia política industrial a uma transe*
conomia política (ou metaeconomia política).

239
e será produzido como tal. Por isso, qualquer classifi­ Revolução ou utopia? Nem uma nem outra. Do mes­
cação empírica (Abrahan Moles, etc.) é irrisória. Pergun­ mo modo que a revolução industrial tinha marcado o
tar-se se a casa, o vestuário são «objectos» ou não, onde nascimento de um campo da economia política, teoria
começa o objecto, onde termina para se tornar edifício, sistemática e racional da produção material, assim o
por exemplo — toda esta tipologia descrita é vã. Porque Bauhaus marca a extensão teórica do campo dessa eco­
o objecto não é uma coisa nem mesmo uma categoria, nomia política e a extensão prática do sistema do valor
é um estatuto de sentido e uma forma. Antes do advento de troca a todo o domínio dos signos, das formas e
lógico desta forma/objecto, nada o é, nem sequer o dos objectos. Ao nível do modo de significação e sob
utensílio quotidiano; depois, tudo o é, tanto o prédio o signo do design, é uma mutação análoga à que teve
como a colher de chá, como a cidade inteira. É o Bauhaus lugar a partir do século XVI, ao nível do modo de
que edifica esta universal semantização do meio ambi­ produção material e sob o signo da economia política.
ente, em que tudo se torna objecto de cálculo de função O Bauhaus marca o ponto de partida de uma verdadeira
e de significação. Funcionalidade total, semiurgia total. economia política do signo.
«Revolução» em relação ao modo industrial, em que os Mesmo esquema geral: por um lado, a natureza
«objectos» (chamemos-lhe assim, à falta de melhor), e o trabalho humano são retirados às suas imposições
ligados e não «libertos», não têm estatuto próprio e arcaicas, libertos enquanto forças produtivas, e objecto
não formam sistema entre si na base de uma finalidade de um cálculo racional de produção. Por outro lado:
racional (a funcionalidade). todo o ambiente se torna significante, objectivado en­
Esta funcionalidade inaugurada pelo Bauhaus defi­ quanto elemento de significação. «Funcionalizado» e
ne-se como um duplo movimento de análise e de síntese liberto de qualquer implicação tradicional (religiosa, má­
racional das formas (não só industriais, mas ambientais gica, simbólica), torna-se objecto de um cálculo racional
e sociais em geral). Síntese de forma e da função, de significação.
síntese do «belo» e do «útil», síntese da arte e da tecno­
logia. Para além do «estilo» («style») e da sua versão
caricatural no «estlilizante» (styling), o kitsch comercial
do século XIX e o Modem Style, o Bauhaus lança
pela primeira vez as bases de uma concepção global do
ambiente, racional. Para além dos géneros (arquitectura,
pintura, mobiliário, etc.), para além da «arte» e do seu
privilégio académico, é o alargamento da estética a
toda a quotidianidade, é simultaneamente toda a técnica
ao serviço da vida quotidiana. Com a abolição da separa­
ção entre o belo e o útil, nasce efectivamente a possibili­
dade de uma «semiótica universal da experiência tec­
nológica» Schapiro, One dimencionality ('))■ Ou ainda, sob
outro ângulo: o Bauhaus procura reconciliar a infra-
-estrutura técnica e social organizada pela revolução
industrial com a superestrutura das formas e do sentido.
Querendo realizar a técnica na finalidade do sentido
(o «estético»), o Bauhaus apresenta-se como uma segunda
revolução que aperfeiçoa a revolução industrial e resolve
todas as contradições que esta havia deixado atrás de si.

O In: Paul Breines, Criticai Interruptions, Herder and


Herder, 1970.

240 241
I
A OPERAÇÃO DO SIGNO

Por detrás da transparência do objecto à sua função,


por detrás desta lei moral universal que lhe é imposta
sob o signo do design, por detrás desta equação fun­
cional, esta «economia» do objecto que toma imediata­
mente valor «estético», por detrás do esquema geral de
síntese (arte/técnica, forma/função), o que se efectua
é, na realidade, um trabalho completo de dissociação e
de reestruturação abstracta:
1. Dissociação de toda a relação complexa
sujei to/objecto em elementos simples, racionais, analí­
ticos, recombináveis em conjuntos funcionais que
tomam doravante estatuto de ambiente. Porque é somente
a partir daqui que o homem é separado de algo que se
chama o «ambiente», e confrontado com a tarefa de o
controlar. Desde o século XVIII que tinha sido desco­
berto o conceito de «natureza» como força produtiva a
dominar. O de ambiente mais não faz que prolongá-lo
e aprofundá-lo no sentido de um domínio dos signos.
2. Divisão generalizada do trabalho ao nível dos
objectos. Fragmentação analítica em 14 ou 97 funções,
uma mesma resposta técnica que reúne várias funções
de um mesmo objecto, ou a mesma função em vários
objectos, etc. — em suma, toda a quadrícula analí­
tica que permite desmontar e voltar a montar um
conjunto.
3. Mais fundamental ainda é a (des)articulação
semiológica do objecto, por onde ele ganha força de
signo. E quando dizemos que ele se toma signo, é segundo
a definição mais estrita; articula-se num significante e
num significado, torna-se significante de um significado
243
UNIVERSIDADE UBERLÂNDIA
objectivável, racional, que é a sua função. Não é de modo comunicação e à troca/signo. É uma semiologia ideali­
nenhum assim na relação simbólica tradicional, em que zada, ou um idealismo semiológico (').
Na ordem simbólica do estilo está em jogo uma
as coisas têm sentido, mas que lhes não vem de um signi­ ambivalência nunca resolvida — mas a ordem semio-
ficado objectivo com o qual estariam relacionadas enquan­ -estética é a de uma resolução operacional, dum jogo
to significante. Tal é, pelo contrário, o estatuto do objecto/ de remissões, de equivalências e de dissonâncias contro­
/signo, que nisso obedece ao esquema linguístico: «fun- ladas. Um conjunto «estético» é uma mecânica sem
cionalizado», o que quer também dizer «estruturalizado», lapsos, sem falha, onde nada vem comprometer a inter-
isto é, desdobrado em dois termos — surgindo, no mesmo conexão dos elementos e a transparência do processo: a
acto, o design como projecto da sua articulação ideal, famosa legibilidade absoluta dos signos e das mensagens
a resolução «estética» da sua equação. Porque o «esté­ — ideal comum de todos os manipuladores de código,
tico» não é senão o que vem selar, como por acréscimo, quer sejam cibemeticistas ou designers. Esta ordem
esta semiologia operacional. estética é um a ordem fria. A perfeição funcional exerce
O estético, com efeito, no sentido moderno do ter­ uma sedução fria, a satisfação funcional de uma demons­
mo, já nada tem a ver com as categorias do belo e do tração ou de uma álgebra. Nada a ver com o prazer,
feio. Críticos, público, designers misturam ainda indi­ com a beleza (ou o horror), cuja característica própria
ferentemente os dois termos de «beleza» e de «valor é, inversamente, desagarrar-nos das exigências racionais
e mergulhar-nos numa infância absoluta (não numa trans­
estético», mas eles são logicamente icompatíveis (a sua parência ideal, mas na ambivalência ilegível do desejo).
confusão é estratégica: permite a um sistema dominado Esta operação do signo, esta dissociação analítica
pela moda, isto é, pelo valor de troca/signo, conservar num par funcional significante/significado, desde sempre
a aura de um valor pré-industrial que era o do estilo). presa num esquema ideológico de síntese — esta opera­
Do belo e do estilo são possíveis milhares de defi­ ção que está no fundo de todos os sistemas de signifi­
nições. Mas uma coisa é certa: é que ele nunca é cálculo cação actuais (media, política, etc.) como o desdobra­
de signos. Ele acaba com o sistema da estética funcional, mento operacional valor de uso/valor de troca, está no
tal como os modos de trocas económicas anteriores fundamento da forma/mercadoria e de toda a economia
(troca, troca/dom) acabam, na linha do capitalismo, política O, reaparece até nos conceitos chave do design.
com a instituição de um cálculo racional de produção e Todas as valências possíveis de um objecto, toda a sua
de troca. A categoria do estético sucede (liquidando-a) ambivalência irredutível a qualquer modelo que seja,
à da beleza, tal como a ordem do semiológico à ordem redu-las o design a duas componentes racionais, dois
modelos gerais: o útil e o estético, que isola e opõe arti­
do simbólico. Outrora teoria das formas do belo, a esté­ ficialmente um ao outro. Inútil insistir na forçagem do
tica actual tomou-se a teoria da compatibilidade gene­ sentido, no arbitrário que há no facto de o cingir por meio
ralizada entre os signos, da sua coerência interna (signi- destas duas finalidades restritas. Na realidade, elas são
ficante/significado) e da sua sintaxe. O valor «estético» uma só: são duas formas desdobradas da mesma racio­
conota a funcionalidade interna de um conjunto, quali­ nalidade, seladas pelo mesmo sistema de valores. Mas
fica o equilíbrio (eventualmente móvel) de um sistema de este desdobramento artificial permite em seguida e v o ca r
signos. Traduz muito simplesmente o facto de que os seus a sua reunificação como esquema ideal. Separa-se o útil
elementos comunicam entre si segundo a economia de do estético, nomeiam-se separadamente (porque tanto
um modelo, com integração máxima e perda m ínim a de
informação (o interior harmonizado na tonalidade azul,
ou «jogando» nos azuis e nos verdes — a estrutura cris­ (1) Desde 1902, B. Croce escrevia uma «Estétic* como
talóide de um conjunto residencial — a «naturalidade» ciência da expressão e linguística geral».
de um espaço verde, etc.). O estético já não é, portanto, (2) Mas esta operação fudamental da forma i O $M i num
um valor de estilo ou de conteúdo, já só se refere à caso como noutro, nunca é dito. ’...........

244 245
um como outro não têm outra realidade senão a de serem começam a ser pensados e escritos numa mesma língua,
nomeados separadamente), depois juntam-se idealmente, o esperanto racional do design (*). Uma vez «libertados»
e todas as contradições são resolvidas por esta operação funcionalmente, começam a fazer-se signo (a fazer-se
mágica! Ora, as duas instâncias, igualmente arbitrárias, sinal), no duplo sentido da palavra (e sem jogo de
estão aqui apenas para iludir. O verdadeiro problema, as palavras): quer dizer, simultaneamente a tornar-se signo,
verdadeiras contradições situam-se ao nível da forma, do e a comunicar entre si. A sua unidade já não é a de
valor de troca/signo, mas essas precisamente são dissi­ um estilo, ou de uma prática, é a de um sistema.
muladas na operação. Tal é a função ideológica do Ainda por outras palavras: desde que o objecto é tomado
design: com o conceito de «estética funcional», propõe numa racionalidade estrutural de signo (é fendido num
um modelo de reconciliação, de superação formal da significante e num significado), é simultaneamente tomado
especialização (a divisão do trabalho ao nível dos numa sintaxe funcional (como o morfema no sintagma),
objectos) pelo envolvimento de um valor universal. Impõe e adstrito ao mesmo código geral (como o morfema
assim um esquema social de integração por apagamento na língua): é toda a racionalidade do sistema linguístico
das estruturas reais. Deste modo, a estética funcional, que o assume. E aliás, se se fala sobretudo da linguística
que conjuga duas abstracções, não é ela própria mais «estrutural» e do «funcionalismo» do design, é preciso
que uma superabstracção que consagra o sistema do valor ver bem que:
de troca/signo desenhando a utopia sob a qual este se 1. Se a visão estrutural (significante/significado,
dissimula. A operação do signo, a separação dos signos, língua/palavra, etc.) se impôs em linguística, foi porque,
é algo de tão fundamental, de tão profundamente polí­ e ao mesmo tempo que, se descobriu uma visão pura­
tico como a divisão do trabalho. A teoria do Bauhaus, mente funcionalista da linguagem (estritamente finali­
como a semiologia, confirmam esta operação e a divisão zada como meio de comunicação). As duas são uma
do trabalho do sentido daí resultante, como a economia e mesma coisa;
política confirma a separação do económico enquanto
tal e a divisão do trabalho que daí decorre. 2. Com o design, também os objectos nascem
É necessário dar ao termo design toda a sua enver­ simultaneamente para a funcionalidade e para o estatuto
gadura etimológica. Pode desdobrar-se em três sentidos: de signo. Esta finalidade racional e restrita adscreve-os
desenho, desígnio, design. Nos três casos, encontra-se pelo mesmo facto à racionalidade estrutural. Função e
um esquema de abstracção racional: gráfico para o dese­ estrutura: a mesma «revolução». Quer isto dizer que
nho, reflexo e psicológico para o desígnio (projecção a «libertação» funcional nunca é outra coisa senão a
consciente de um objectivo) e, mais geralmente, para adscrição a um código e a um sistema. Ainda aqui, é
o design passagem ao estatuto de signo, operação/signo, imediata a homologia com a «libertação» do trabalho
redução e racionalização em elementos/signos, transfe­ (ou dos tempos livres, ou do corpo, etc.), que nunca é
rência para a função/signo. mais que a sua adscrição ao sistema do valor de troca.
Este processo de significação é imediatamente siste­
mático: o signo nunca existe fora de um código e de uma (‘) Schapiro (op. cit.), a seu modo e em termos marcusia-
língua. A revolução semiótica (como, no seu tempo, a nos, fornece numa análise próxima, mas sob uma iluminação
revolução industrial) interfere assim, virtualmente, com maquinista, tecnológica: «A evolução do design é uma compo­
todas as práticas possíveis. Artes e artesanatos, formas nente essencial do processo de unidimensionalidade... na medida
e técnicas plásticas, gráficas (para não ir além deste domí­ em que deduz do processo da máquina a forma matriz de
um ambiente total (totalitário) no qual a experiência tecnoló­
nio afim do design, mas mais uma vez o termo excede de gica define e circunscreve ao mesmo tempo o universo estético
longe o domínio plástico e arquitectural), até então singu­ e experiencial.» Abstracção totalizante, homogeneidade unidi­
lares e diferentes, são sincronizados, homogeneizados se­ mensional, sim; mas a máquina ou a_ técnica não são causas
gundo um mesmo modelo. Objectos, formas, materiais que ou modelos deste processo. A mutação técnica e a mutação
semio-linguística (a passagem à abstracção do código) são dois
até então falavam o seu dialético de grupo, procediam ape­ aspectos concorrentes de uma mesma passagem à racionalidade
nas de uma prática dialectal ou de um «estilo» original, funcional/estrutural.

246 247
Resumamos os traços essenciais da homologia (do Não é por acidente que esta homologia se reflecte
mesmo processo tógico, ainda que a cronologia os separe) até ao nível dos costumes. Tal como a revolução do
entre a emergência de uma economia política do signo capitalismo, a que estabelece, desde o século XVI, o
e a da economia política (da produção material): «espírito de empresa» e as bases da economia política,
1. Economia política: é, a coberto da utilidade a revolução do Bauhaus é puritana. O funcionalismo
(as necessidades, o valor de uso, etc., referência antro­ é ascético. Isso é legível no despojamento, no traçado
pológica de toda a racionalidade económica), a edifica­ geométrico dos seus modelos, na sua fobia da decoração
ção de um sistema lógico, coerente, de um cálculo de e dos artifícios, em suma, na «economia» do seu discurso.
produtividade em que toda a produção se dissolve em Mas isto é apenas o efeito de «escrita», poderia dizer-se
elementos simples, em que todos os produtos se equi­ (que, aliás, se tomou uma retórica como qualquer outra),
valem na abstracção: é a lógica da mercadoria e o da doutrina fundamental: a da racionalidade, em que
sistema do valor de troca. a libertação funcional do objecto tem como consequên­
2. Economia política do signo: é, a coberto da cia fundar uma ética dos objectos, tal como a emanci­
funcionalidade (finalidade «objectiva» homóloga da utili­ pação do trabalho como força produtiva tem como
dade), a edificação de um certo modo de significação, consequência fundar uma ética do trabalho. A uma
em que todos os signos circundantes actuam como ele­ mesma lógica corresponde, a três séculos de distância
mentos simples num cálculo lógico e remetem uns para (*), uma mesma moral (e uma mesma psicologia). E os
os outros no quadro do sistema do valor de troca/signo. termos em que Weber (A Ética protestante e o espírito
Nos dois casos, o valor de uso (a utilidade) e a do capitalismo) analisa o cálculo económico racional
funcionalidade, dados como referência final, quer da como «ascese intramundana» são inteiramente válidas,
economia política, quer do design, servem efectivamente mutatis mutandis, para o cálculo racional dos signos.
apenas de alibi «concreto» ao mesmo processo de
abstracção. Sob a aparência de produzir uma utilidade
máxima, o processo da economia política generaliza o
sistema do valor de troca. Sob a aparência de maximizar
a funcionalidade dos objectos (a sua legibilidade como
sentido e mensagem, quer dizer, no fundo, o seu «valor
de uso/signo»), o design e o Bauhaus generalizam o
sistema do valor de troca/signo.
E tal como a utilidade de um produto, inapreen-
sível visto que nenhuma teoria coerente das necessidades
é capaz de a fundar, se revela ser muito simplesmente
a sua utilidade para o sistema do valor de troca
— assim a funcionalidade de um objecto, ilegível como
valor concreto, qualifica apenas a coerência deste
objecto/signo com todos os outros, a sua comunica-
bilidade, e, portanto, a sua adaptação funcional ao sistema
do valor de troca/signo. Assim, a funcionalidade de
um objecto (de uma linha, de uma forma) numa arqui­
tectura oblíqua não é ser útil ou equilibrado, é ser
oblíquo (ou vertical por contraste). É a coerência do sis­
tema que define o valor estético-funcional. dos elementos, (‘) Trata-se, antes do mais, de referências lógicas para
marcar o que de facto foi um processo histórico contínuo.
e este valor é um valor de troca, na medida em que ele se No entanto, o momento da teorização formal (o que é o
refere sempre ao modelo como equivalente geral (a mesma Bauhaus para a economia política do signo) marca sempre
abstracção que para o valor de troca económico). um ponto crucial no próprio processo histórico.

248 249
II
A CRISE DO FUNCIONALISMO

Antes de analisarmos como é actualmente vivida


pelos designers, importa ver que ela vem de nascença,
que os seus elementos sempre estiveram presentes.
Essa crise deduz-se da vontade do funcionalismo de se
impor na sua ordem (como a economia política na
sua) como racionalidade dominante, susceptível de dar
conta de tudo e de ordenar todos os processos. Esta
racionalidade forçosamente cega perante o seu próprio
arbitrário suscita imediatamente um contra-discurso
fantástico ou «irracional», que circula entre os dois pólos
do surrealismo e do kitsch (um directamente antagónico,
o outro subtilmente cúmplice, sem que um e outro se
excluam: o surrealismo joga muito no escárnio do kitsch,
e o kitsch toma muitas vezes valor surrealista).
O objecto surrealista surge na mesma época que
o objecto funcional, como sua ridicularização, sua trans­
gressão. Contudo, esses objectos/fantasmas abertamente
dis- ou parafuncionais supõem, também eles, contra­
ditoriamente, o advento da funcionalidade como lei
moral universal do objecto, e o advento desse mesmo
objecto como separado, autónomo e votado à transpa­
rência da sua função. Quando se pensa a sério nisso,
há no facto de reduzir um objecto à sua função, algo
de irreal e de potencialmente surrealista ('): basta, aliás,
levar até ao fundo este princípio da funcionalidade para
fazer surgir o seu absurdo. Isso é evidente no caso da

(') Do mesmo modo, existe na redução do homem à sua


função (burocrática) alguma coisa de imediatamente kafkiano.

251
torradeira/ferro-de-engomar ou no dos «objectos impos­ mas ainda não absorveu o homem na sua irrealidade
síveis de encontrar» de Carelman, mas o cálculo das funcional. Exprimindo em imagem, até ao extremo, a
«aspirações» humanas no grande conjunto é também sua contaminação, o surrealismo ilustra e denuncia o
assombroso e vale bem a conjunção, sobre a mesa de esquartejamento do sujeito e do objecto. É uma revolta
dissecação, da máquina de coser e do guarda-chuva, de contra o novo princípio de realidade do objecto. Ao cál­
Lautréamont. culo racional que «liberta» o objecto na sua função,
Portanto, o surrealismo nasce, também ele, a con­ opõe-se o surrealismo libertando o objecto da sua função
trário, do advento do objecto e da extensão do cálculo para o reverter em associações livres, onde ressurge não o
semântico e funcional a todo o campo da quotidianidade. simbólico (em que a cristalização respectiva do sujeito
Neste sentido, Bauhaus e surrealismo são inseparáveis, e do objecto não teve lugar), mas a própria subjecti­
tal como o discurso de objectos crítico, anómico, mons­ vidade «liberta» no fantasma.
truoso relativamente ao discurso de objectos racional Deste modo, o surrealismo, poesia subjectiva e
(aliás, pouco a pouco, este discurso subversivo entrará em que os processos primários e a combinatória do
docemente nos costumes e virá integrar-se no universo sonho vêm perturbar a combinatória funcional, ilumina
funcionalizado como uma variante anómala: na sua brevemente e contraditoriamente a crise de crescimento
versão banalizada, entra actualmente em doses homeo­ do objecto, da abstracção generalizada da vida sob o
páticas em todo o ambiente). signo do objecto funcional. Toda a poesia do não-sentido,
O sapato-pé de Magritte, a sua mulher em vestido festa de agonia de uma subjectividade desesperada (cf.
de pele (ou o seu vestido nu) suspenso no cabide, os Lewis Carrol, precursor surrealista) ilustra negativa­
homens com gavetas ou as máquinas antropomorfas: mente, na revolta e na paródia, a instituição irrever­
por toda a parte o surrealismo joga na distância que o sível de uma economia política do sentido, de uma
cálculo funcionalista instaura entre o objecto e o sujeito, forma/signo e de uma forma/objecto estruturalmente
ou entre o objecto e ele próprio, ou entre o homem ligada à forma/mercadoria (os Românticos foram, no
e o seu corpo, na distância entre qualquer termo e a seu tempo, uma reacção do mesmo tipo contra a revo­
finalidade abstracta que se lhe impõe, nessa clivagem lução industrial e contra a primeira fase do desenvolvi­
que faz com que os homens e as coisas se encontrem mento da economia política).
de repente fendidos como signos e confrontados com Mas a transgressão surrealista é ainda à medida
um significado transcendental: a sua função. Fusão da de uma extensão relativa da economia política do signo.
pele dos seios e das dobras do vestido, dos tornozelos Ela joga objectos formais, figurativos, em conteúdos
e do couro do calçado: o fabrico de imagens surrealistas e significados de representação. Actualmente, quando
joga neste corte negando-o, mas na base dos termos sepa­ a funcionalidade passou do objecto isolado para a do
rados e legível separadamente na colagem ou na sobrepo­ sistema (hiper-racionalidade tão «kafkiana» como a outra),
sição. Quer dizer que não restitui uma relação simbólica, quando o funcionalismo ainda quase artesanal do Bau­
onde nem sequer há lugar para o conceito de separação, haus foi ultrapassado no design matemático e na ciber­
pois que a relação está integrada na reciprocidade e nética do ambiente, o surrealismo só pode sobreviver
na troca. No surrealismo, a relação simbólica já só a si próprio como folclore. Situamo-nos a partir de
transparece como fantasma da adequação do sujeito e agora para além do objecto e da sua função. A este
do objecto. Curto-circuito entre as duas ordens — a da «para além» do objecto corresponde já nos actuais siste­
funcionalidade (aqui transgredida e ridicularizada) e a mas de relações e de informação um «para além» do
do simbólico (aqui distorcida e fantasiada) — a metáfora sujeito. O jogo híbrido dos surrealistas, justamente
surrealista define-se como uma formação de compro­ entre a figura do objecto e a do homem, entre a função
misso. Ela aproveita o momento em que o objecto está e o desejo — as duas instâncias, separadas na realidade,
ainda imerso no antropomórfico e ainda não foi, por ainda a festejar no surreal a sua impossível con­
assim dizer, dado à luz na sua pura funcionalidade, ou junção—, esse misto subtil de um logos funcional e
ainda o momento em que o objecto está em vias de, de uma lógica do simbólico desunida, desmembrada,
252 253
e que o assombra, tendo como resultado o ilógico de delo da racionalidade foi originalmente e permanece
uma representação fantasma — tudo isto, perante a fundamentalmente o do económico — é normal que seja
ordem cibernética, se dissolve, e nada mais nele faz a funcionalidade do sistema económico que se imponha.
as vezes do discurso crítico, regressivo/transgressivo, O design puro e duro nada pode contra isso, porque
de Dada e do surrealismo. essa racionalidade fundada no cálculo, é a mesma em
A uma sistematização da ordem racional cada vez que ele se inspira. Ele assenta à partida nas mesmas
mais avançada, correspondeu, após o surrealismo, a bases de abstracção racional que o sistema económico.
explosão da abstracção (onírica, geométrica ou expres- Que essa racionalidade seja virtualmente absurda, não
sionista — Klee, Kandinski, Mondrian ou Pollock) — há dúvida; mas é-o para ambos ao mesmo título. A sua
últimas luzes críticas da arte; pois onde estamos actual­ contradição visível é apenas o termo lógico da sua
mente? Na manipulação cinética ou dinâmico-luminosa, cumplicidade profunda. Os designers queixam-se de
ou na encenação psicadélica de um surrealismo aviltado serem mal compreendidos e de o seu ideal ser desfi­
em suma, numa combinatória que é à própria imagem gurado pelo sistema? Todos os puritanos são hipócritas.
da dos sistemas reais, numa operacionalidade estética Esta crise an alisa-se, na realidade, a um nível
(de que o «Novo Espírito Artístico» de Schoeffer é o completamente diferente, o nível semiológico cujos ele­
espécimen bíblico) que em nada se distingue da dos mentos expusemos anteriormente. A fórmula do Bauhaus
programas cibernéticos. A hiper-realidade dos sistemas é, em resumo: para cada forma e para cada objecto
absorveu a surrealidade crítica do fantasma. A arte existe um significado objectivo determinável — a sua
tornou-se, ou está em vias de se tornar, design total, função. Aquilo a que em linguística se chama o nível
METADESIGN. de denotação. O Bauhaus pretende isolar rigorosamente
O inimigo mortal do design é o kitsch. Rachado este núcleo, este nível de denotação — tudo o resto,
ao meio pelo Bauhaus, renasce sempre das suas cinzas. é a ganga, é o inferno da conotação: o residual, o
É que por trás dele existe todo o «sistema económico», supérfluo, o excedente, o excêntrico, o decorativo, o
dizem os designers, não tendo estes mais que a sua inútil. O kitsch. O denotado (funcional) é belo, o cono­
virtude. Assim, num artigo da Esthétique industrielle tado (parasita) é feio. Melhor ainda: o denotado (objec­
de 1967, Abraham Moles analisa a crise do funcionalismo tivo) é verdadeiro, o conotado é falso (ideológico). Por
como a invasão da racionalidade despojada do design, detrás do conceito de objectividade, com efeito, todo
do seu ethos rigoroso da função, por parte da irracio­ o argumento moral e rnetafísico da verdade está em
nalidade proliferante dos bens de consumo. A «menta­ jogo (*).
lidade consumatória absoluta promovida pela máquina Ora, é este postulado da denotação que actualmente
económica» enterra cada vez mais o traçado funciona- está em vias de desabar. Começa-se finalmente a per­
lista sob um neo-kitsch. O funcionalismo sofre e morre ceber (em semiologia também) que este postulado é
desta contradição. arbitrário, não só um artefacto de método, mas também
Na realidade, esta análise absolve o design de uma fábula metafísica. Não existe verdade do objecto,
toda a contradição interna: a culpa é da «obsessão do e a denotação é sempre apenas a mais perfeita das
standing» e da «estratégia do desejo». Mas A. Moles conotações. Isto não é apenas teórico: os designers
(e muitos outros) esquecem que este sistema (e todo urbanistas e programadores do ambiente são confron­
o processo de consumo que ele implica) é também tados diariamente com e ste definhamento da objectivi-
ele racional e perfeitamente coerente consigo próprio.
A palavra de ordem da funcionalidade, é ele que a
realiza triunfalmente todos os dias. Precisamente nesta 0) A hereditariedade kántiana e platónica do funciona­
«produção anárquica» que os nossos virtuosos acadé­ lismo é evidente: a moral, 0- estética e a verdade confundem-se
micos do funcionalismo denunciam, ele é adequado aí mim mesmo ideal. O funcional é a síntese da razão pura e da
razão prática. Ou ainda: o funcional é o belo mais útil. Até o
ao seu fim, que é a sua própria sobrevivência e repro­ útil é simultaneamente o cjue é moral e o que é verdadeiro.
dução alargada. Portanto, nenhuma contradição: o mo­ Voltem a baralhar o conjixnto: é a santa trindade platónica.

254 255
dade. A função (funcionalidade) das formas, dos objectos lidade sistemática total, de que o funcionalismo, fundado
torna-se cada vez mais inapreensível, ilegível, incalculá­ na metafísica da denotação, não exprime mais que um
vel. Onde está hoje a centralidade do objecto, a sua caso particular, arbitrariamente privilegiado segundo
equação funcional? Onde está a sua função directriz, uma ética universal. Desde que se instaure um cálculo
onde estão as suas funções parasitas? Quem pode dizê-lo de signos, nada pode opor-se à sua generalização, e já
ainda, quando o económico, o social, o psico-e o não há racional ou irracional. O Bauhaus e o design
metapsicológico se misturam inextricavelmente? Desafio pretendem controlar o processo através do domínio
quem quer que seja a demonstrar que tal forma «supér­ dos significados (a avaliação «objectiva» das funções),
flua», tal traço «irracional» não corresponde algures, mas, na realidade, é o jogo dos significantes (o jogo
a mais longo prazo, no inconsciente, que sei eu, a algum do valor de troca/signo) quem vence: ora este é ilimitado
equilíbrio mais subtil, e portanto não se justifica de algum e escapa a todo o controlo (a mesma coisa em economia
modo funcionalmente Q. Nesta lógica sistemática (por­ política para o sistema do valor de troca: ele invade
que a funcionalidade é um sistema de interpretação, todas as esferas, a favor e contra as almas piedosas e
e nada mais) tudo é virtualmente funcional, e nada o é. liberais que crêem poder circunscrevê-lo).
Esta utopia directriz volta-se contra si própria. E não Aqui se situa a verdadeira crise do funcionalismo.
é de espantar que esta finalidade objectiva, à medida Nada pode opor-se a que qualquer forma entre numa
que vem faltando nas coisas, seja transferida para o combinatória ilimitada de moda — tendo então como
próprio sistema, o qual, no seu processo de reprodução, única função a sua função/signo. Até as formas «criadas»
finaliza tudo o mais em seu proveito e se encontra no pelo design não escapam a isto. E se o styling, que o
fundo como único detentor da funcionalidade em acto, Bauhaus julgou desqualificar, ressurge através do design,
que em seguida distribui pelos seus elementos. Só ele, sem que este possa alguma vez desmarcar-se dele ou
no fundo, é admiravelmente «designado», e a sua própria assumir-se no seu «rigor», é porque aquilo que lhe
finalidade envolve-o como um ovo (2). aparece como sendo patológico está na lógica do seu
Se já não há utilidade absoluta do objecto, acabou- próprio «desígnio». Se a nossa época, apesar da revo­
-se também o supérfluo, e todo o edifício teórico do lução do Bauhaus, recupera com nostalgia todo o
funcionalismo se desmorona. Em proveito da moda, kitsch do século XIX, é porque, na realidade, já lhe
que, pelo seu lado, sem se embaraçar com a denotação pertence. O motivo floral sobre a máquina de costura
objectiva (embora o pretenda), joga inteiramente na ou na boca do metropolitano é um compromisso regres­
conotação, e, na sua retórica movediça, «irracional», sivo, mas toma actualmente, por ressurgência, valor
unicamente sob o privilégio da actualidade dos signos, surrealista de moda, e é lógico: o surrealismo, de certo
assume todo o sistema. E se o funcionamento se defende modo, apenas formaliza como transgressão artística a
tão mal contra a moda, é porque esta exprime a virtua- produção híbrida do kitsch comercial. Actualmente, o
design «puro» condena o motivo floral, mas leva a
(‘) Uma outra coisa, de qualquer modo, escapa radical­ ideologia «naturista» a uma profundidade muito maior:
mente a todo o cálculo de função: a ambivalência, que faz com é a estrutura estrelada dos corpos orgânicos que vai
que toda a função positiva seja anulada e desconstruída no
próprio movimento; anulada segundo uma lógica do desejo servir de modelo a uma cidade inteira. Não há diferença
para o qual nunca existe finalidade unilateral. Este nível está radical entre as duas coisas. A natureza, quer seja tomada
ainda para além da complexidade funcional. Ainda que se como decoração ou como modelo estrutural, permanece
chegasse a uma perfeita computação das funções, mesmo contra­ por toda a parte, desde que o conceito existe, a pro­
ditórias, esta ambivalência permaneceria para sempre insolúvel,
irredutível. jecção de um modelo social. E a estrutura estrelada é
(2) Sabe-se que o ovo é uma das tendências ideais do sempre apenas a do capital.
design — estereótipo formal tão «kitsch» como qualquer outro. Mas se o design está imerso na moda, não há que
Isto quer dizer que a «finalidade» do sistema é muito simples­ lastimá-lo: é a marca do seu triunfo. Ê a marca da
mente tautológica. Mas o estádio acabado da função é certa­
mente a tautologia — redundância perfeita do significado sob envergadura tomada pela economia política do signo,
o círculo vicioso do significante — ovo. de que ele foi, juntamente com o Bauhaus, a primeira
256 257
teorização racional. Tudo o que actualmente se pretende III
marginal, irracional, revoltado, «anti-arte», anti-design, AMBIENTE E CIBERNÉTICA:
etc., desde o pop ao psicadélico e à arte na rua, tudo ESTÁDIO ACABADO DA ECONOMIA POLÍTICA
isso obedece, quer queira quer não, à mesma economia
do signo. Tudo isso é design. Nada escapa ao design:
eis a sua fatalidade.
Trata-se, portanto, de muito mais que de uma
crise. E de nada serve deplorar, como o faz Abraham
Moles, a fatalidade consumatória, e apelar para um
neofuncionalismo que ponha em jogo «a estimulação
da fantasia e da imaginação através de um esforço sis­
temático» (!). Este neo-funcionalismo só pode ser o da
re-semantização (a ressurreição dos significados (*)), e
portanto o da reciclagem das mesmas contradições. Mais
verosimilmente, o neofuncionalismo será à imagem do Esta revolução do signo inaugurada pelo Bauhaus
neocapitalismo, quer dizer, uma intensificação do jogo foi pelo menos pressentida por ele e relativamente acla­
dos significantes, matematização e cibernetização pelo rada depois pelos analistas do design. Van Lier, em
código. O neofuncionalismo «humanista» não tem qual­ Critique (Novembro 1967), vê bem que «estas formas
quer possibilidade frente ao meta- design operacional. novas e sua operação... remetem gradualmente para as
A era do significado e da função passou; é a era do extremidades do sistema» e que a funcionalidade não é a
significante e do código que começa. utilidade, mas sim «pôr as coisas em informação recí­
proca, permitir-lhes fazer-se signo, criar significações»,
e acrescenta, como se fosse óbvio, «alimentos de toda
a cultura e de toda a humanidade». A eterna metáfora
humanista: quanto mais signos há, quanto mais mensa­
gens e informação há, quanto mais isto comunica —
melhor. Tendo descoberto o advento do valor/signo e
a sua extensão indefinida na base de uma produtividade
racional, vê nisso, sem hesitações, um progresso absoluto
para a humanidade. Reacção análoga àquela que vê
no desenvolvimento industrial a certeza, a mais ou me­
nos longo prazo, da abundância e da felicidade para
todos. Esta foi a ilusão do século XIX quanto à produ­
ção material; ela relança-se cada vez mais no século XX
com a produtividade/signo. Idealismo cibernético, fé cega
na irradiação da informação, mística da informática e
dos media.
Num caso como noutro, o erro fundamental é o
mesmo: consiste em reter apenas do produto ou do
signo o aspecto do valor de uso, e em considerar a muta­
(') Tornar-se-á a fazer design «social», com conteúdos ção industrial (ou semiúrgica) apenas sob o aspecto da
humanos, ou será reintroduzido o jogo, o lúdico, a combinatória multiplicação infinita dos valores de uso (os signos como
«livre», etc. Mas não nos iludamos: é ainda a função «jogo»
que é levada em conta, o jogo como função particular, variante mensagens). Profusão de bens, profusão de signos —
liberal-modernista do mesmo código. consumo máximo, informação máxima. Sem nunca levar
258 259
em conta que aquilo que em primeiro lugar e sobretudo já o universo da comunicação (*)• É nisso que ele se
estabelece esta mutação é um sistema do valor de troca, distingue radicalmente dos conceitos de «natureza» ou
uma forma social abstracta generalizada que não é de de «meio» do século XIX. Ao passo que estes se refe­
modo nenhum «o alimento de toda a cultura e de riam a leis físicas, biológicas (determinismo da subs­
toda a humanidade». Este idealismo do conteúdo (de tância, da hereditariedade e da espécie), ou ao socio­
produção ou de significação) nunca leva em conta a cultural (o «meio»), o ambiente é imediatamente rede
forma. Este idealismo da mensagem esquece que aquilo de mensagens e de signos, e as suas leis são as da comu­
que se instala atrás da sua circulação acelerada é a nicação.
hegemonia de um código. De facto, ambos esquecem O ambiente é a autonomização do universo inteiro
muito simplesmente a economia política e a sua das práticas e das formas, do quotidiano ao arquitec­
dimensão social, estratégica e política para se situarem tural, do discursivo ao gestual e ao político, como
imediatamente numa esfera transparente do valor. Este sector operacional e de cálculo, como emissão/recepção
optimismo pode parecer de boa-fé, pode tomar o aspecto de mensagens, como espaço/tempo da comunicação.
benigno do designer que pensa contribuir, pela sua A este conceito teórico de «ambiente» corresponde o con­
fraca parte, por meio da sua criatividade, para que haja ceito prático de design — que se analisa em última
mais informação e portanto para mais «liberdade»; instância como produção da comunicacão (do homem
aqui, a atitude profética de Mac Luhan exaltando a comu­ para com os signos, dos signos entre si, dos homens
nicação planetária já à vista — esta ideologia da comu­ entre si). É necessário fazer comunicar, isto é, participar,
nicação de massa torna-se dominadora por toda a parte aqui não pela compra de bens materiais, mas sobre o
—, transforma-se em mito; através do qual a cibernética modo informático, pela circulação de signos e de men­
se dá como neo-humanismo, tendo a profusão das men­ sagens. É por isso que o ambiente, tal como o mercado
sagens substituído de algum modo a profusão dos bens (que é o seu equivalente em economia) é um conceito
(o mito da abundância) no imaginário da espécie. virtualmente universal- Ele resume concretamente toda
Por toda a parte, os ideólogos do valor de uso são a economia política do signo. O design, que é a prática
cúmplices e suportes da extensão política do sistema correspondente desta economia política, generaliza-se
do valor de troca. É assim que na ordem dos bens ma­ à mesma dimensão e, se começou por aplicar-se apenas
teriais, o consumo, não de modo nenhum como apo­ aos produtos industriais, abraça hoje, e deve abraçar
teose do valor de uso, mas como imposição cega de logicamente, todos os sectores. Nada de mais falso que
satisfação, veio actuar como função de relançamento do os limites que um design «humanista» quer fixar-se;
sistema de produção. Graças ao consumo, o sistema na realidade, tudo pertence ao design, tudo é do seu
consegue não só explorar as pessoas à força, mas fazê- pelouro, quer ele o diga ou não: o corpo é designado,
-las participar na sua sobrevivência multiplicada. É um é-o a sexualidade, as relações humanas, sociais, políti­
progresso considerável. Mas esta participação só ganha cas são designadas, do mesmo modo que as necessi­
toda a sua envergadura fantástica ao nível dos signos. dades e as aspirações, etc. É este universo «designado»
É aí que se articula toda a estratégia do «neocapita- que constitui propriamente o ambiente. Este, como o
lismo» no que esta tem de mais original: numa semiurgia mercado, não é, de certo modo, mais que uma lógica:
e numa semiologia operacional, que não são mais que a do valor de troca (signo). O design é a imposição, a
a forma desenvolvida da participação dirigida. todos os níveis, dos modelos e práticas operacionais
Nesta perspectiva, em que a produção dos signos, deste valor de troca signo. Uma vez mais, é o triunfo
vista como sistema do valor de troca, ganha um sen­ prático da economia política do signo, e o triunfo teó­
tido completamente diferente do da utopia ingénua do rico do Bauhaus.
seu valor de uso, o design e as disciplinas do ambiente
podem ser considerados um dos ramos da comunicação O Paradoxalmente (e sintomaticamente sem dúvida) o
de massa, uma ramificação gigantesca do human and Ministério do Ambiente britânico agrupa quase todos os sectores,
social engineering. O nosso verdadeiro ambiente é desde salvo os media.

260 261
Tal como as public relations, human relations e na direcção do que poderia chamar-se um metadesign,
psicossociologia da empresa, como a concertação e a uma metaeconomia política que é para o neocapitalismo
participação, o marketing e o merchandizing se esforçam o que a economia liberal clássica foi para o capitalismo.
por produzir relação, por restituir esta onde as relações Se se fala de ambiente é porque ele já não existe.
sociais de produção a tornam problemática — assim Falar de ecologia é verificar a morte e a abstracção
o design tem como tarefa, como função estratégica no total da «natureza». Por toda a parte, «o direito a»
sistema actual, produzir comunicação entre os homens (à natureza, ao ambiente) subscreve o definhamento de.
e um ambiente que existe apenas precisamente como Esta perda da natureza (como referência vital e como
instância estrangeira (sempre como o mercado). Como referência ideal) está estritamente ligada ao que chamá­
muitos conceitos ideológicos, o «ambiente» designa por mos, na análise do signo contemporâneo, o definhamento
antífrase aquilo de que se está separado, o fim do do significado (do referente real, objectivo, da função
mundo próximo, seres e coisas nos confins uns das denotada, da «verdade», do mundo como caução real
outras. Ê a mística do ambiente está à altura do fosso do signo — um pouco a sua cobertura/ouro — ; o ouro
que o sistema aprofunda cada vez mais entre o homem do significado/referente desapareceu, já não há Gold
e a «natureza». É este corte, esta relação fundamental­ Exchange Standard — já não há convertibilidade do signo
mente quebrada e dissociada, à imagem das relações no seu valor de referência; já só há, como se vê na
sociais, entre o homem e o seu ambiente que — não o tendência internacional actual, inter-relação livre das
leve a mal — constitui a razão de ser e o lugar do moedas flutuantes). O grande Significado, o grande
design. Aí onde ele tenta desesperadamente restituir Referente Natureza morreu, e o que o substitui é o
sentido, transparência, à força de informação, «com­ ambiente que designa, ao mesmo tempo que a sua
preensão» à força de mensagens. Se se reflectir bem morte, a restituição da natureza como modelo de simu­
nisto, a filosofia do design, repercutida por toda a teoria lação (a sua reconstituição, como se diz do bife pre­
do ambiente, é no fundo a doutrina da participação e viamente picado). E aquilo que dissémos da «Natureza»,
das «public relations» estendida a toda a natureza. É pre­ que ela foi sempre a projecção de um modelo social,
ciso fazer participar a natureza (que parece tornar-se vale também, evidentemente, para o ambiente. A passa­
hostil e querer, por meio da «poluição», vingar-se da gem de um conceito de natureza, ainda objectivável
sua exploração). É preciso recriar com ela, ao mesmo como referência, ao conceito de ambiente em que o
tempo que com o universo urbano, a comunicação à sistema de circulação de signos (de valor de troca/signo)
força de signos (como é preciso recriá-la entre patrões abole qualquer referência, ou então se torna ele próprio
e assalariados, entre governantes e governados, à força o seu referente, desenha a passagem de uma sociedade
de media e de concertação). É preciso, em resumo, pro* ainda contraditória, não homogénea, não saturada pela
por-lhe um contacto de empresa: protecção e segurança economia política, em que existem modelos refractários
— sindicalizar essas energias naturais que se tomam de transcendência, de conflito, de superação, uma natu­
perigosas, para melhor as controlar! Porque, evidente- reza do homem, rasgada, mas presente (cf. a afinidade
mente, tudo isto visa apenas fazer alinhar cada vez me­ do próprio marxismo com uma antropologia substancial
lhor esta natureza participante, contratualizada e reci­ das necessidades e da natureza), uma história com a
clada por um design inteligente, pelas normas de uma sua teoria revolucionária, etc. — a passagem desta socie­
hiperprodutividade racional. dade «histórica» conflitual a uma sociedade ciberneti-
Tal é a ideologia política do design, que actualmente zada, a um ambiente social de síntese, em que uma
ganha no discurso do ambiente a sua envergadura pla­ combinação abstracta total e uma manipulação imanente
netária. De Gropius à Universitas ('), a fieira é contínua não deixe mais nenhum ponto exterior ao sistema—,
fim da economia política tradicional, e ao mesmo tempo
(') Projecto de fundação internacional «para uma socie­
dade pós-tecnológica», inaugurado pelo Museum of Modern Art O É o que Mac Luhan esboça no seu modo exaltado.
de Nova Iorque.
263
262
metaeconomia política de uma sociedade transformada
no seu próprio e puro ambiente (*). «Na medida em
que triunfa a manipulação do ambiente, triunfa ao mesmo
tempo uma manipulação do homem que se toma ele
próprio objecto de manipulação, isto é, simples ambi­
ente» (Mitscherlich).
O controlo social do ar, da água, etc., sob o signo
da protecção do ambiente; e são, evidentemente, os
homens que entram um pouco mais profundamente no
campo do controlo social. Que a natureza, o ar, a água,
depois de terem sido simples forças produtivas, se tor­
nem bens raros e entrem no campo do valor: e são os
homens que entram um pouco mais profundamente no
campo da economia política. No termo desta evolução,
poderá haver, após os parques naturais, uma «Fundação Décima Primeira Parte
Internacional do Homem», tal como há no Brasil uma
«Fundação Nacional do índio»: «A Fundação Nacional
do índio destina-se a assegurar, nas melhores condições, SOBRE A REALIZAÇÃO DE DESEJO
a salvaguarda das populações indígenas bem como (sic) NO VALOR DE TROCA
a sobrevivência das espécies vegetais e animais que
desde há milénios vivem na sua vizinhança» (é, eviden­
temente, o etnocídio e o massacre que esta instituição
sanciona e cobre: liquida-se e reconstitui-se — é o mesmo
esquema). O homem já nem sequer existe frente ao seu
ambiente: ele próprio faz parte virtualmente do ambi­
ente a proteger.

264
Sobre o carácter sublime da mercadoria, sobre a falha *
e o não ganhar **, sobre a baixa tendencial da taxa de
gozo, sobre o fantasma do valor.

Intervenção numa grande loja nos Estados Unidos


há alguns anos: um grupo ocupa e neutraliza de sur­
presa a loja e convida depois, por altifalantes, a multidão
a servir-se livremente. Acção simbólica. Resultado: as
pessoas não sabem em que pegar, ou então pegam em
algumas miudezas (aquilo que teriam podido roubar
em situação normal).
Se você tivesse cinquenta milhões, que faria com
eles? — Perturbação.
O mesmo pânico, imediato, perante a disposição
de tempo livre à vontade. Como desembaraçar-se dele?
A aproximar de outros episódios, tal como aquele
atleta francês dos 400 m dos campeonatos da Europa,
que, a 100 m da linha de chegada, quando vai em primeiro
lugar à vontade, falha no seu esforço e termina em
terceiro. «Quando senti que ia ganhar, qualquer coisa
se quebrou em mim.»
Tal como aquele jogador de ténis francês nos
jogos de Espanha — com duas séries de avanço e o
jogo na mão perante um adversário ferido — deixa
recuperar a bola e deixa-se vencer «irresistivelmente»,
poderia dizer-se, perante a estupefacção geral.
Para já não falar em Poulidor, o eterno segundo,
cuja lenda se liga precisamente a esta incapacidade
crónica de «incorrer» na vitória.

* Défaillance, no original (N. R.)


** Manque à, no orginal (N. R.)

267
— esta hipótese entende-se igualmente para o valor
( se diz de alguém que ele «esteve quase» de troca/signo. Aquilo que não é mediado pela compe­
u a ganhar, que «não chegou» (a «manqui») tição social estatutária, pela troca de signos diferenciais,
ganhar o que e que faltou? Não teria a vitória por modelos, isso não tem valor. Em matéria de signos
sido um fracasso? Não dirão os termos claramente que a distinção valor de uso/valor de troca apaga-se vir­
era o pior que lhe podia acontecer?
j Trata-se apenas de lapsos da vontade, de lapsos tualmente. Se se definir o «valor de uso/signo» como
da pulsão de apropriação e de satisfação, de sucesso a satisfação diferencial, a mais-valia qualitativa esperada
e de supremacia que se julga serem a motivação mais através duma escolha, uma preferência, um cálculo de
profunda do homem. A partir destes pequenos factos, signos, e o valor de troca como a forma geral (o código)
Freud foi muito longe na exploração psicológica. Mas que rege o jogo dos modelos, vê-se como o valor de
uso resulta directamente do funcionamento do código
as perspectivas fantásticas que eles abrem nem sequer e do sistema do valor de troca. Na realidade, acontece
afloraram ainda a antropologia geral, a «ciência» eco- o mesmo na chamada ordem «económica». Donde a
nomica ou as «ciências humanas». Estas anomalias, abstracção do valor de uso, que não aparece em parte
circunscritas na psicologia «das profundidades» («cada nenhuma sem ser já mediatizado simultaneamente pelo
um tem o seu inconsciente, o problema é seu»), em sistema do valor de troca (a forma/mercadoria) e pelos
que a própria psicanálise contribuiu para as manter, modelos e pelo código (a forma/signo).
não têm, como que por milagre, equivalente na prática
social ou política, onde, no essencial, reina uma racio­ Assim, actualmente valor de troca e valor de troca/
nalidade «indefectível». É esta indefectibilidade dos pos­ /signo estão inextricavelmente misturados O- Para que
tulados gerais sobre o homem em matéria económica, exista sistema completo (no fundo, o do «consumo»
social e política, que devemos interrogar sob o signo como estádio acabado da economia política), é neces­
da falha. sária não só a liberdade ao nível da produção (vender
O que mostra a situação limite e quase experimental e comprar a força de trabalho), mas também, num
da grande loja, é que, uma vez neutralizado o valor de segundo tempo actualmente simultâneo, a liberdade ao
troca, o valor de uso desaparece também por sua vez. nível do consumo (liberdade de escolha). É necessário
A exigência de cada vez mais utilidade e satisfação des­ que se acrescente à abstracção do sistema de produção
faz-se estranhamente logo que confrontada com a possi­ e de troca económica (capital, moeda, valor de troca)
bilidade de realização imediata. Todo este pacote de moti­ a abstracção do sistema de troca/signo (os modelos
vações, este feixe de necessidades e de racionalidade que e seu investimento no cálculo dos signos).
se pretende ser o homem, se desune. Fora da esfera trans­ O signo é o apogeu da mercadoria. Moda e merca­
parente do económico, onde tudo é claro, porque basta doria são uma única e mesma forma. É nesta forma
«desejar à medida do seu dinheiro», o homem, muito do valor de troca/signo que se inscreve à partida a
simplesmente, já não sabe o que quer. diferenciação da mercadoria (e não numa lógica quanti­
Hipóteses: tativa do lucro). O estádio acabado da mercadoria e
— os objectos e as necessidades que eles sugerem aquele em que ela se impõe como código, isto é, como
estão lá precisamente para resolver a angústia de se lugar geométrico de circulação dos modelos, e portanto
não saber o que se quer.
— o que não é mediatizado pelo valor de troca
também não existe como valor «espontâneo» e «co»- (') O efeito Veblen (compro isto porque é mais caro)
creto» que seria o de uso. Pela razão de que este nível é um caso limite significativo em que o económico (quantitativo)
se transforma em diferença/signo, e em que se pode apreender
é de uma abstracção igual ao primeiro e que ambos a emergência da «necessidade» a partir do puro encarecimento
estão ligados. Não há valor de uso sem valor de troca. do valor de troca (cf. igualmente o leilão da obra de arte como
Uma vez este neutralizado num processo de dom, de lugar de transição das esferas de valor). Em matéria de signos,
gratuidade, de prodigalidade, de gasto, o próprio valor o efeito Veblen torna-se a regra absoluta: a moda só conhece
de uso torna-se inapreensível. a diferenciação pura e ascendente .
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como médium total de uma cultura (e não apenas de vai e vem, é um pouco como o ar que se inspira e expira,
uma economia). é o metabolismo da troca, da prodigalidade e da festa —
O valor de troca realiza-se no valor de troca/signo. da destruição igualmente (por onde é restituído ao não-
Valor de troca e valor de troca/signo completam-se -valor o que foi erigido em valor na produção). Em tudo
definitivamente no valor de uso. isto, o valor não tem curso. O desejo não se realiza
Este trinómio (valor de troca, valor de troca/signo, aí, no fantasma do valor.
valor de uso) descreve um universo coerente e total do O que transparece naquela inaptidão em apoderar-se
valor, em que se supõe que o homem se realiza (pela satis­ dos bens de consumo, tal como na falha do atleta, é que
fação final das suas «necessidades»). Neste triângulo má- a exigência oficial, orquestrada como «necessidade» do
gico do valor, supõe-se, segundo um cálculo racional, que indivíduo (necessidade de ganhar, etc.), está aí em
ele eleva continuamente a sua taxa de «fazer-valer». vez de outra coisa — e muito precisamente da exi­
E, remetido duma ponta para a outra deste triângulo, gência inversa: não ganhar, perder, despojar-se — ,
ele não pode efectivamente querer outra coisa senão e isto não por qualquer reviragem masoquista de
transcender-se, positivar-se no valor: ele descreve o mundo uma economia fundamental que continuaria a ser
do valor, que se confunde, através dos séculos, com a a do desígnio do valor, do sucesso e da realização
definição do humanismo. (achievement) — mas sim segundo a exigência inversa
Esta triangulação do valor define um mundo pleno, e radical da falta (manque). Qualquer realização de
positivo, finalizado sem descanso pelo sinal mais, por desejo no valor remete para esta extremidade inversa,
uma lógica da mais-valia (a mais-valia é inseparável porque só ela, no termo da satisfação, preserva a inter­
do valor), e onde o homem não poderia faltar-se a si rogação do sujeito sobre o seu próprio desejo. Tal é
próprio. O processo do valor equivale, pois, a uma o fundamento da ambivalência.
organização fantasmática — lugar de realização do desejo Nunca o tomar bastou para o gozo. É preciso
e de resolução da falta, lugar de acabamento e de poder receber, dar, restituir, destruir — se possível tudo
«performance» do desejo (performare), de abolição da em conjunto. O processo de realização do valor dissolve
diferença e da dimensão simbólica. O valor é totalitário. tudo isso numa modalidade pobre, unilateral e positiva,
Exclui a ambivalência e toda a relação em que o homem desapossando o sujeito da sua exigência simbólica que
deixasse de se finalizar no valor, de se indexar sobre se define simultaneamente por:
a lei da equivalência e da mais-valia. Mas esta ambiva­ — a exigência de não realizar o desejo: a FALTA;
lência assombra por toda a parte a esfera do valor. — a exigência duma relação não mediatizada pela
É ela que ressurge (ainda que em filigrana) na falha lógica sistemática do valor : a TROCA SIMBÓLICA.
(défaillance). Esta exigência radical é sublimada no valor. Porque
Falha daquela multidão em reagir positivamente o valor é sublime, mas o gozo é radical. Na ordem
(isto é, pela apropriação espontânea) à situação de económica, é a mercadoria que incarna este carácter
disponibilidade absoluta da mercadoria, em obedecer sublime: a exigência radical do sujeito é aí subli­
ao imperativo categórico da necessidade, em saber o mada na positividade incessantemente renovada da
que quer e em tomar o que se oferece. Na realidade, sua procura de objectos. Mas por detrás desta rea­
a gratuitidade elimina a oferta no sentido económico lização sublime do valor, outra coisa está presente,
do termo, e ao mesmo tempo, a procura é também outra coisa fala, algo de irredutível que pode to­
abolida. É portanto, porque ela se não funda em parte mar a forma de destruição violenta, mas o mais
alguma senão na lógica do valor. Fora desta lógica, o das vezes toma a forma larvar do défice, da falha e
homem não tem «necessidade» de nada. Aquilo de que da recusa de investimento, da resistência e da recusa
se tem necessidade é o que se compra e se vende, de realização — e que, em toda a extensão do actual
o que se calcula e se escolhe. Do que não se vende nem | sistema económico, toma a forma do que poderia
se toma, do que se dá e se restitui, ninguém tem chamar-se a baixa tendencial da taxa de gozo. Segundo
«necessidade»: o olhar que se troca, o presente qup uma contra-economia misteriosa do não-ganhar, o que
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assegura em última instância o sujeito no seu ser é segundo a lei da equivalência. Poderia assim dizer-se
esta denegação vivaz e fundamental do valor, esta vio­ que o que mantém a virtualidade da troca, de uma
lência latente contra o princípio de identidade e de reciprocidade em que os sujeitos sèjam verdadeiramente
equivalência, esta oscilação para além da satisfação. postos em jogo na sua diferença e na sua falta, é
E isto não é metapsicologia. É por ter rejeitado tudo Eros — sendo, inversamente, a pulsão de morte aquilo
isto em bloco como «meta» psicologia que a economia que tende para a abolição do simbólico no ciclo repe­
e as ciências humanas actuais vêem afundar-se o seu titivo do valor. Pode muito bem considerar-se, nesta
edifício racional, sem sequer poderem dar-se conta do perspectiva, o universo sublime e repetitivo da merca­
seu falhanço Q. doria como o campo de realização da pulsão de morte.
Dificuldade em gozar, não ganhar: é a pulsão de Mas pouco importa, no fundo, procurar a etiqueta
morte que fala aqui? — preservando sempre e por toda desta ou daquela instância. O essencial é apreender
a parte a diferença radical contra o fantasma unitário que aquilo que fala sob o processo «objectivo» do valor
do valor? Talvez. Mas o discurso em termos de pulsão não fala «contraditoriamente» (no sentido de uma contra­
de morte, demasiado próximo da metapsicologia do dição «dialéctica»). A ambivalência não é a negação dia­
sujeito, esquece que o que é preservado neste esquar- léctica do valor: é a virtualidade incessante da sua anula­
tejamento, nesta falha do sujeito em realizar o seu ção, da destruição do fantasma do valor. Ao discurso do
desejo é, juntamente com o reconhecimento da castração, valor, a ambivalência e o simbólico não opõem um
a virtualidade simbólica da troca. A falta é sempre outro código. A transcendência positiva do valor, o
aquilo por que faltamos aos outros, e por que os outros simbólico opõe a sua radicalidade. A lógica da sublimação
nos faltam. No processo do valor (quer o investimento e da generalidade (da abstracção), opõe-se a radicalidade
seja mercantil ou fantasmático), ninguém falta a ninguém, da não-realização de desejo e da troca simbólica.
nada é nada, uma vez que tudo equivale a alguma coisa, e Falta analisar a ilusão «revolucionária» dos res­
que cada qual está certo de equivaler pelo menos a si pró­ ponsáveis da operação «Grande Loja». A sua hipótese
prio. Só o valor se troca, isto é, se troca em si próprio, foi evidentemente esta: «Vamos neutralizar o valor de
bem como os indivíduos e as coisas como termos de valor, troca, a regra do jogo capitalista. Vamos restituir as
mercadorias ao seu puro valor de uso, e pelo mesmo
0) Um excelente exemplo social e político desta cóntra- facto desmistificar as consciências, portanto restituir a
-economia operante por toda a parte, era dado no filme «A Solidão
do Corredor de Fundo», em que o herói, um adolescente metido transparência da relação dos homens com as suas «pró­
numa casa de correcção, renuncia deliberadamente a uma vitória prias» necessidades. Revolução hic et nunc. Lógica
desportiva brilhante para não levar ao triunfo, pelo mesmo inspirada no marxismo filosófico mais puro: distinção
facto, as cores dos seus opressores. Perdendo, salva a sua radical do valor de uso e do valor de troca (em bene­
verdade: a falha é aqui redobrada por uma revolta de classe.
Esta falha é aqui deliberada, mas podemos admitir que os fício filosófico e humanista do valor de uso), teoria
lapsos «acidentais», os actos falhados, etc., têm a mesma signi­ racionalista da consciência mistificada. Conclusão: se as
ficação virtual da denegação e da resistência. O atleta dos pessoas não encontram espontaneamente um livre valor
400 m contesta também à sua maneira todo o sistema do valor de uso, é porque estão treinadas na auto-repressão e na
de troca — cujas formas não se limitam ao salariato e ao con­
sumo: ao correr para ganhar, cada atleta reactiva o sistema conformação capitalista, é porque interiorizaram tão
concorrencial de valores, trabalha para o reproduzir, e isso profundamente a lei do valor de troca que já nem sequer
em «troca» de satisfações individuais de prestígio. A exploração sabem desejar uma coisa quando ela lhes é oferecida.
não é menor a este nível que ao da venda da força de trabalho. É esquecer que o desejo não tem de modo algum
É esta mecânica dissimulada da troca que inconscientemente
a sua falha vem desarranjar. Neste sentido, qualquer «disfunção» vocação para se realizar na «liberdade», mas na regra,
«psicológica» relativamente à normalidade (que não é mais de modo algum na transparência de um conteúdo de
que a lei do meio capitalista) é susceptível de uma leitura valor, mas na opacidade do código do valor. É o desejo
política. Actualmente, o político já não tem «esfera» nem defi­
nição. Ê tempo de lhe descobrir as formas latentes, os deslo­ do código, e este desejo, para se realizar, tem «neces­
camentos e as condensações, numa palavra, o «trabalho» do sidade» de salvar a regra do jogo. É com este investi­
político. mento da regra pelo desejo com vista à sua realização
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que a ordem social se encontra ligada, é ele que ela faz convergir todas as ilusões sobre o valor dt U»o,
explora com vista à sua reprodução. É aqui que o porque é mais simples, para fazer a revoluçfio, apoiar-se
fantasma e a instituição se reúnem, a ordem política apesar de tudo no valor. Porque também eles sublimam,
do poder e a ordem enfeitiçada da perversão (a reali­ e subestimam, a realidade da lei do valor, e portanto
zação do desejo). O fantasma do valor é também o a radicalidade da sua transgressão. Reformistas que
fantasma da ordem e da lei. geram o valor e não o contestam mais que a um nível
Esta regra do jogo, na nossa sociedade, é a lei do superficial ficam espantados perante a ausência de reac­
valor de troca. Se já não há regra do jogo, já não interessa. ção das «massas» à sua iniciativa. Evidentemente, atri­
Já nem sequer se pode fazer batota, nem roubar (prática buirão isso ao facto de a sua acção ser demasiado
contra-dependente da regra do jogo económico). Se consu­ revolucionária, e porão as suas esperanças na matura­
mir só é possível dentro das regras, se o desejo se não ção da «tomada de consciência». Nem sequer por um
realiza a não ser enfeitiçadamente, o levantamento dessa momento porão a hipótese de que essa passividade pro­
regra, em vez de abrir caminho a um gozo selvagem, pelo vém do facto de a sua acção ter sido demasiado refor­
contrário, proíbe-o. O preço das coisas toma-se então mista — e de que em vez de a interpretar como
essencial, já não só quantitativamente como valor de passividade revolucionária, talvez fizessem melhor em
troca, nem só diferencialmente como no efeito Veblen, interpretá-la como resistência ao reformismo.
mas como lei, como forma enfeitiçada— ponto crucial Por outras palavras, a reacção «negativa» dos
da economia mercantil e da economia psíquica do valor. «utentes» «libertados» talvez não venha da sua sub­
O preço das coisas torna-se então garante da economia missão ao sistema do valor de troca, mas da sua resis­
psíquica do valor. Pode preferir-se este equilíbrio à tência ao valor de uso, na medida em que este não é
consumpção gratuita e selvagem. Mas o preço pago é mais, no fundo, que uma astúcia do valor de troca.
também o do gozo, cuja taxa baixa tendencialmente Ao recusar jogar o jogo do valor de uso, tudo se passa
segundo o ciclo de reprodução alargada da satisfação. como se as pessoas farejassem essa mistificação mais
Do mesmo modo, o atleta ou o jogador que «não subtil ainda.
pode impedir-se» de perder fá-lo também para preservar Que é, como efeito, este valor de uso que lhes
a própria possibilidade de se bater, a regra do jogo chega inteiramente nu? De onde vem esta oferta, quem
ao abrigo da qual somente se pode (con)correr (*)• dá? Que é esta gratuidade do conteúdo (dos produtos), e
Ainda aqui, salvar a regra do jogo é um imperativo bastará ela para fundar a transparência e a gratuitidade
mais fundamental do que ganhar. Cada parceiro obedece da relação social? De modo nenhum. O dom unilateral
implicitamente a esta estrutura da troca, a esta função é apenas caridade: dispensado e suportado, permanece
colectiva e inconsciente 0 . na lógica profunda do sistema, e a acção simbólica
Vemos que se não trata aqui de modo algum de revolucionária não lhe escapa mais que o zelo das
«consciência mistificada» e que ilusões têm os revolu­ senhoras benfeitoras. Não viram, iluminadas como esta­
cionários sobre a supressão «libertadora» do valor de vam pelo valor de uso, que para abolir a forma merca­
troca. Não viram que não há contradição entre a reali­ doria, não basta a gratuitidade: isso ainda é apenas a
zação do desejo e o valor de troca — muito pelo con­ abolição do modo de aparecimento da mercadoria. Para
trário. É o idealismo que dita esta contradição e assim subverter radicalmente a lógica do valor de troca, não
basta restituir a autonomia ou a gratuidade do valor
de uso; é preciso restituir a possibilidade de dar, isto
0) A ideologia do desporto é um misto entre esta «lei» é, mudar a forma da relação social. Se não há contra-
implícita e a lei do mais forte. -dom possível, troca recíproca possível, continua-se numa
(2) Um jogador, um corredor que ganhasse a cada passo, estrutura de poder e de abstracção (’). Assim acontece
sem excepção — seria uma infracção grave à lei da troca, algo
como o incesto ou o sacrilégio, e a colectividade, no limite,
teria o dever de o suprimir. — Da mesma ordem, a colecção (’) O dom unilateral é o inverso da troca/dom. Este
acabada, em que não falta nenhum termo, é a morte. funda a reciprocidade, o outro funda a superioridade. Só os

274 275
no caso presente. Ao preservar, à falta de uma análise
radical, um certo nível do valor (o valor de uso) e ao
jogar a este nível, os «libertadores» preservaram pelo
mesmo facto um certo nível de poder e de manipulação.
Ao manipular o valor, extraíram logicamente a sua
mais-valia (de dominação).
Daí a reacção negativa a essa profusão repentina
concedida, reacção de defesa à forma da relação insti­
tuída, à não-reciprocidade da situação — reacção de
defesa daqueles que «preferem pagar e não dever nada ÍNDICE
a ninguém» — reacção de classe no fundo mais lúcida
que a dos «libertadores», farejando, a justo título, na
forma do dom unilateral e no seu conteúdo (o valor
de uso pretensamente «libertado») uma das múltiplas
Pág.
metamorfoses do sistema.
Para quebrar o valor de troca, não há que restituir Primeira Parte
o valor (ainda que seja o de uso), mas sim a troca. O valor FUNÇAO — SIGNO E LÓGICA DE CLASSE....................... 9
de uso implica a rotura da troca ao mesmo título que o
valor de troca, porque implica ao mesmo título o objecto I. A função social do objecto-signo............................... 11
finalizado como valor e o indivíduo objectivado na sua II. Perspectivas so c io ló g ic a s.................................... ........17
relação com esse valor. Na troca simbólica, o objecto, III. A prática diferencial dos ob jectos............................... 25
IV. Uma lógica da segregação.................................... ........ 43
de valor pleno que era, torna-se novamente esse «nada»
(a res latina, ambivalência do termo), esse qualquer Segunda Parte
coisa que, porque é dado e restituído, é anulado enquanto A GÉNESE IDEOLÓGICA DAS NECESSIDADES . . . . 57
tal, e marca, pela sua presença/ausência, a distância
da relação. Esse objecto, essa res nulla, não tem valor I. O consumo como lógica das significações . . . 59
de uso, não serve propriamente para nada. Assim, só II. O consumo como estrutura de troca e de
d iferenciação........................................................... 67
escapa ao valor de troca aquilo que ganha sentido na III. O sistema das necessidades e de consumo
troca recíproca contínua, no dom e no contra-dom, numa como sistema de forças produtivas.................. 81
relação aberta de ambivalência, e nunca numa relação
final de valor. Terceira Parte
No caso presente, a «reacção negativa» interpreta-se FEITICISMO E IDEOLOGIA: A REDUÇÃO SEMIOLÓGICA 91
como a posição de uma exigência radical, de uma revo­ Quarta Parte
lução que libertasse não os objectos e o seu valor, mas
a própria relação de troca, a reciprocidade de uma O GESTUAL E A ASSINATURA............................................. 109
palavra que actualmente por toda a parte é esmagada Quinta Parte
pelo terrorismo do valor. O LEILAO DA OBRA DE ARTE............................................. 123
I. O outro lado da economia política........................ 127
II. Diferença com a troca económ ica........................ 133
III. Poder económico e dom inação........................... 137
IV. Valor simbólico e função estética....................... 141
V. C o n c lu sã o ................................................................ 145
privilegiados, o suserano na sociedade feudal, podem permitir-se Sexta Parte
receber sem retribuir, sem contra-dom, porque a sua categoria
o garante contra o desafio e contra o défice de prestígio. PARA UMA TEORIA GERAL.................................................. 147

276 277

\
Pág.
Sétima Parte
PARA ALÉM DO VALOR DE U S O ............................... 159

Oitava Parte
PARA UMA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DO SIGNO 177
I. O pensamento mágico da ideologia.............. 179
II. A metafísica do signo............................... 185
III. A miragem do referente............................ 189
IV. Denotação e conotação............................... 197
V. Para além do signo: o simbólico................. 201
Nona Parte
REQUIEM PELOS M E D IA .......................................... 207
In tró ito ........................................................... 209
Enzensberger: uma estratégia socialista . . . . . . 213
A palavra sem resposta...................................... 217
Estratégia subversiva e «acção simbólica».............. 221
O modelo teórico da comunicação..................... 227
A ilusão cibernética ................................ 231
Décima Parte
DESIGN E AMBIENTE OU A ESCALADA DA ECONOMIA
POLÍTICA ........................................................... 237
A operação do signo.......................................... 243
A crise do funcionalismo................................... 251
Ambiente e cibernética: estádio acabado da econo­
mia p o lít ic a ................................................ 259
Décima Primeira Parte
SOBRE A REALIZAÇAO DE DESEJO NO VALOR DE
TROCA........................................................ ... 265

Composto e impresso na
Organização Gráfica Maia Lopes, Lda. — Porto

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