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Nota

Em comemoração ao 23º aniversário do


Geledés Instituto da Mulher Negra
Relançamos a coleção esgotada dos Cadernos Geledés.
O conteúdo original foi preservado conforme publicado em
1993.
Não à Pena de Morte
Geledés – Instituto da Mulher Negra Programa de Direitos Humanos/SOS
Deise Benedito
Edna Roland
Racismo
Sueli Carneiro – Coordenadora
Elmodad Azevedo
Adriana Gragnani – Pesquisadora
Eufrosina (Lola) Tereza de Oliveira
Deise Benedito – Assistente Técnica
Maria Aparecida Silva
Irani Soares – Assistente Técnica
Maria Cecília Marques do Nascimento
Maria Isabel S. Bonfim – Assistente Técnica
Maria Isabel Bonfim
Miriam de Fátima Alvarenga – Secretária
Maria Lúcia da Silva
Solimar Carneiro – Assistente Técnica
Nilza Iraci Silva
Sonia Maria P. Nascimento – Assistente Técnica
Silvia de Souza
Solimar Carneiro Advogados
Sonia Nascimento Antonio Carlos Arruda
Sueli Carneiro Sérgio Moreira da Costa
Vanderli Salatiel Maria Aparecida de Alvarenga
Leila M. Vieira de Paula
Norma Kyriakos – Consultora
Angélica M. Mello de Almeida – Consultora

Edição Geral
Nilza Iraci Silva
Composição/Arte Final
Antonicelmo Horácio
Desenho de Capa
Jackson Rios
Impressão e Acabamento:
Pródica Gráfica e Editora Ltda.

Cadernos Geledés é uma publicação de Geledés – Instituto da Mulher Negra


Praça Carlos Gomes, 67 – 5º andar – Cj. M – Cep: 01501 – Liberdade – São Paulo
Fone (011) 35.3869 – Fax (011) 36.9901.
Cadernos Geledés n. 3 foi editado com o apoio da Fundação Samuel. É permitida a reprodução
total ou em parte, desde que citada a fonte.

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Não à Pena de Morte
“... as pessoas que acabam
condenadas à morte são sempre
pobres e freqüentemente negras”.
Bryan Stevenson

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Indice

Debate: Não à Pena de Morte*............................................... 7

Com a palavra, o Dr. Bryan Stevenson*..................................... 9

Como alguém pode fazer outra coisa?*.................................... 25

Quem é Bryan Stevenson..................................................... 33

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Apresentação

Este Caderno é mais um dos instrumentos da Campanha Contra a Pena de Morte, desencadeada
em 23 de abril de 1991 pelo Programa de Direitos Humanos do Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Na mesma ocasião foi lançado o serviço de Assessoria Jurídica em Casos de Discriminação Racial
– SOS Racismo.

Ele é resultado do debate realizado com o advogado norte-americano Bryan Stevenson, que atua na
defesa dos presos condenados à morte nos Estados do Alabama e Geórgia, sul dos EUA.

Com este Caderno pretendemos sensibilizar a comunidade negra em particular e a sociedade em


geral para outras questões que estão presentes no debate sobre a implantação da Pena de Morte,
para além do fato de sua inconstitucionalidade, posto que viola o primeiro dos direitos fundamentais
do ser humano, que é o direito à vida. Cabe-nos portanto recortar na discussão sobre a implantação
da Pena de Morte, o impacto que tal medida terá especificamente sobre a população negra.

Por último, é importante salientar que a Pena de Morte é apresentada à população, no momento
em que o país vive uma de suas piores crises: econômica, política e social, como um remédio
para a resolução da violência advinda principalmente dessa situação. Como bem definiu o jurista
Walter Ceneviva, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, de 15.04.91: “Se a sociedade
brasileira tiver absoluta certeza na fase policial e em juízo, de que os inocentes serão absolvidos, e
os culpados serão punidos, na exata proporção de cada delito anunciado, a pena de morte pode
ser objetivamente admitida. Se faltar ao leitor o grau definitivo de confiança na seriedade da polícia,
na imparcialidade do promotor, na firmeza do juiz, cuidado. Não defenda a pena de morte. A vítima
pode ser você”.

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Debate: Não à Pena de Morte*

Sueli Carneiro – É com imenso prazer que o Programa de Direitos Humanos e Igualdade Racial
do Geledés – Instituto da Mulher Negra lança o Serviço de Assessoria Jurídica em Casos de
Discriminação Racial – SOS Racismo.

O SOS Racismo nasce de uma necessidade social determinada pelas diversas formas de
discriminação impostas ao negro, em todas as esferas da vida social.

Nasce também de uma exigência democrática e do reconhecimento de que nenhuma sociedade


pode ser efetivamente justa mantendo cerca de 50% de sua população submetida a mecanismos de
exclusão social. Isto porque o racismo e a discriminação atuam no sentido de perpetuar a condição
de inferioridade social do negro.

Com o SOS Racismo temos a intenção de questionar os mecanismos de exclusão da cidadania da


população negra acionando, principalmente, os instrumentos legais que regulamentam os direitos e
garantias individuais e punem a prática do racismo.

Deste ponto de vista, o SOS Racismo – Serviço de Assessoria Jurídica em Casos de Discriminação
Racial tem os seguintes objetivos específicos:

- Receber denúncias de discriminação racial sofridas por qualquer pessoa.

- Representar a vítima de discriminação racial junto ao poder judiciário e instâncias administrativas

- Orientar a vítima para obtenção de provas e testemunhas que possam caracterizar a


ocorrência do crime.

- Contribuir para a formulação de legislação específica, que proteja os direitos humanos e civis
dos grupos discriminados sexual e racialmente.

- Introduzir no processo judicial a discussão político-jurídica da questão racial no Brasil porque


a imagem social do negro identificada à marginalidade interfere negativamente no julgamento e na
fixação da pena.

- Estimular a criação de serviços semelhantes em todo o país.

Para o cumprimento destes objetivos, o SOS Racismo conta com uma equipe multidisciplinar,
composta pelas seguintes pessoas, que eu gostaria de apresentar: Dr. Sérgio Moreira da Costa,
Dra. Sonia Maria Pereira Nascimento, Dra. Isabel Bonfim, a socióloga Adriana Gragnani, Dra.
Norma Kyriakos, Dra. Angélica de Maria Mello de Almeida e o Dr. Antonio Carlos Arruda, advogado
responsável pelo Serviço e que eu chamo para compor a mesa representando a equipe.

Finalmente, quero me referir ao tema que foi colocado na ordem do dia para a sociedade brasileira.

* Debate realizado na Câmara Municipal de São Paulo no dia 25 de abril de 1991, por ocasião do lançamento do
SOS Racismo, do Geledés – Instituto da Mulher Negra.

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Um tema imposto como prioridade política, deslocando o foco da atenção da sociedade do caos
social em que a crise política e econômica sem precedentes colocou o país.

Um tema imposto numa realidade em que crimes violentos são cometidos, crianças são assassinadas
impunemente por grupos de extermínio, linchamentos são praticados diante da descrença na ação
da justiça e dos órgãos de segurança.

Neste sentido, a instituição da pena de morte é apresentada para uma população desesperada
como a panacéia capaz de curar todos os males resultantes da violência gerada pela crise social.

Não queremos crianças assassinadas. Não queremos linchamentos. Não queremos impunidade.
Não queremos as condições de vida que empurram os setores oprimidos da sociedade em direção
à marginalidade. Não queremos plebiscito. Não queremos pena de morte. Por isso decidimos lançar
o SOS Racismo com um debate sobre esse tema, porque estamos convencidos de que lutar contra
a pena de morte é reiterar a defesa intransigente dos valores humanos fundamentais.

Para nós negros, esta luta assume ainda o caráter de luta anti-racista.

Por isso nós do SOS Racismo convidamos o Dr. Bryan Stevenson, para quem a pena de morte não
é uma questão abstrata, não é apenas uma questão filosófica ou teológica, menos ainda um recurso
demagógico para escamotear as reais causas da criminalidade social.

O Dr. Bryan Stevenson é um advogado negro que atua no corredor da morte defendendo presos
condenados à pena capital e que a partir de sua experiência afirma: “as pessoas que acabam
condenadas à morte são sempre pobres, frequentemente negras”.

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Com a palavra, o Dr. Bryan Stevenson*

Dr. Bryan A. Stevenson – Inicialmente é uma honra estar presente aqui num evento patrocinado
por Geledés. Tive a oportunidade de passar algumas horas com as integrantes do Geledés, na
semana passada e foi, realmente, uma experiência importante para mim. Vim para o Brasil, e descobri
que aqui tenho irmãos e irmãs. Vocês parecem irmãs e irmãos meus. E mesmo que eu só tenha
estado aqui por uma semana, sinto que vocês lutam como meus irmãos e irmãs. Por isso, meus
irmãos e minhas irmãs, me deixem falar agora sobre o que eu sei, a respeito da pena de morte.

Nos últimos sete anos tenho representado pessoas que foram condenadas à morte na parte do
Sul dos Estados Unidos, e o que tenho observado nesse trabalho de defender pessoas que foram
condenadas à morte é muito triste e muito trágico. A pena de morte nos Estados Unidos é uma pena
apenas para os pobres, para os negros, e para aquelas pessoas que não tem recursos para dispor
de uma boa defesa, um bom trabalho de advogado.

Nos Estados Unidos isso significa também os muitos jovens. Muitos dos meus clientes são
adolescentes. No momento estou representando um rapaz que tem apenas 15 anos de idade, e que
foi condenado à pena de morte. Entre os atingidos pela pena de morte frequentemente se incluem
também pessoas que têm deficiência mental. Uma porcentagem chocante dos meus clientes é
composta por pessoas que têm problemas de deficiência mental.

E, finalmente, e não é surpreendente, a pena de morte atinge as pessoas negras. Eu trabalho


principalmente em dois Estados do chamado extremo Sul dos Estados Unidos, Alabama e Geórgia.
E deve ser registrado que a população negra nesses dois Estados corresponde a cerca de 25% do
total. E apesar de a população negra se constituir em 25% nesses dois Estados, 75% das pessoas
condenadas à pena de morte são negras. Sessenta por cento das pessoas que estão no momento
aguardando a execução no Estado de Alabama são negras. Não é incomum que as pessoas negras
sejam excluídas do sorteio dos jurados. Frequentemente os negros são excluídos e não fazem parte
do corpo de jurados. A exclusão racial é uma característica fundamental na aplicação da pena de
morte.

No Estado do Alabama, menos de 0.5% dos defensores são negros. Há cerca de 155 juizes que
atuam nos casos de pena de morte e, desses, apenas dois juizes são negros. Alguns anos atrás
defendi um homem que voltou da guerra do Vietnã, extremamente traumatizado com a guerra. Ele
foi condenado à pena de morte, após ter colocado um bomba no portão da casa da sua namorada,
com quem ele estava discutindo. O fato dele ser um veterano da Guerra do Vietnã, e o fato de estar
brigando, discutindo, com uma pessoa que morava do lado, a razão pela qual ele foi condenado,
é que no momento em que ele estava discutindo com namorada, uma criança pegou esta bomba,
que explodiu, e a criança morreu. E esta foi a razão pela qual ele foi condenado.

E essa criança era uma criança de quem este veterano de guerra gostava muito. Ele dava o café
da manhã a ela, todos os dias; dava roupas, enfim, cuidava dela. Era um tipo de segundo pai para
esta criança. Mas tragicamente toda a informação sobre a relação que ele tinha com essa criança,
não foi apresentada para as pessoas que o julgaram, e que determinaram que ele fosse condenado

* O debate foi mantido na sua forma original, sem revisão ou alteração do autor, mantendo-se a forma discursiva.

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à morte. E o único argumento apresentado pelo promotor é que ele deveria ser condenado à morte
porque anteriormente ele pertencera ao grupo de muçulmanos negros, uma corrente do movimento
negro norte-americano na época em que morava em Nova Iorque.

Representei outras pessoas que também sofreram viés racial na sua condenação.

Defendi um outro homem negro no Estado do Alabama e o juiz que presidiu o julgamento dele era
um membro da Klu Klux Klan. Defendi, ainda, outras pessoas negras que foram julgadas por juizes
que fora do espaço do julgamento se referiam com expressões racistas em relação às pessoas
que estavam sendo julgadas. E é interessante notar que este homem que foi julgado por este juiz
racista, que era quem estava presidindo o julgamento, foi condenado à morte num prazo menor
que dois dias. Foi o tempo de duração do julgamento. E nós tivemos a sorte de conseguir com que
ele fosse submetido a um novo julgamento porque conseguimos identificar um erro constitucional
que ocorreu no processo. E no segundo julgamento, que foi presidido por um outro juiz, nós fomos
capazes de demonstrar que aquele homem era completamente inocente do crime de que estava
sendo acusado.

Tragicamente as questões que envolvem a pena de morte não se referem apenas aos problemas
relacionados à questão racial. Há no momento 2.400 pessoas aguardando execução nos Estados
Unidos. Elas são todas pessoas pobres. Os pobres têm enormes dificuldades para conseguir um
bom advogado, mesmo quando condenados à morte. Os advogados que frequentemente são
indicados nesses casos, são advogados que estão pessimamente preparados para isso. São
advogados muito ruins dentro do sistema judiciário dos Estados Unidos.

Por exemplo, no momento eu estou defendendo uma mulher cujo julgamento foi suspenso porque o
advogado que a defendia apareceu bêbado no dia do julgamento. No segundo dia do julgamento
ele estava tão bêbado que caiu em cima da mesa. O juiz decidiu interromper o julgamento e ordenou
que ele fosse preso, para que voltasse à sobriedade. Apenas dois dias depois é que o julgamento
pode continuar, quando o defensor daquela mulher tinha se curado da bebedeira. O juiz levou
o advogado para uma cela e a mulher que estava sendo julgada para uma outra cela, e os dois
permaneceram na cadeia durante 24 horas. Após essas 24 horas eles tiraram a mulher da cela,
levaram-na de volta ao julgamento, e indicaram o mesmo advogado para continuar a defendê-la.
Não foi nenhuma surpresa que em menos de 12 horas, aquela mulher foi condenada à morte. O
que é particularmente chocante neste caso é que esta sentença foi confirmada por uma Corte de
Apelação no Estado do Alabama.

Os problemas de injustiça, de desigualdade, na aplicação da pena de morte é um dos principais


aspectos desta pena. Um outro aspecto que é importante destacar na discussão da pena de morte
nos Estados Unidos, é que ela não teve nenhum impacto na redução da criminalidade na sociedade
americana. Os dois Estados que realizam maior número de execuções, que são a Flórida e o Texas,
são também os Estados que apresentam alto índice de homicídios durante todo o tempo que a
pena de morte tem sido utilizada. De fato, em três condados (municípios) do Estado da Geórgica,
em que a pena de morte é utilizada, as taxas de homicídio duplicaram durante o período em que
a pena de morte tem sido utilizada. Mesmo que se executassem todas as 2.400 pessoas que
estão aguardando a execução neste momento, não se teria nenhum impacto sobre os índices de
criminalidade e sobre os assassinatos que são cometidos nos Estados Unidos.

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Na minha opinião a pena de morte não apenas não consegue parar, não consegue impedir os
índices de criminalidade e de homicídios, mas de certa forma até legitima a realização dos crimes.

Quando uma execução acontece nos Estados Unidos é comum que estudantes das universidades
próximas sejam liberados das aulas, e eles se embebedam para comemorar as execuções que
estão acontecendo.

E é comum também no Estado da Geórgia, que a Klu Klux Klan organize manifestações ao lado do
local onde a execução está acontecendo. E eles aplaudem quando o corpo da pessoa executada
está saindo do local. Nesses momentos você vê de maneira trágica porque a pena de morte
funciona como uma distração, tira a atenção das pessoas dos problemas reais da criminalidade e
da vitimização na sociedade americana. E isso é extremamente preocupante, particularmente para
a comunidade negra. Reafirmando, embora a população negra no Estado do Alabama constitua
apenas 25% da população, 66% dos homicídios são cometidos contra negros. Todavia, crimes que
são cometidos contra vítimas negras nunca são julgados com a pena de morte.

Numa pesquisa realizada no Estado da Geórgia durante sete anos, fez-se um levantamento a respeito
de todos os casos em que a pena de morte foi aplicada e se levantou as seguintes estatísticas:
quando a vítima de um homicídio é branca, o acusado da morte de uma vítima branca tem 11 vezes
mai chances de ser condenado à morte do que quando a vítima é negra. Quando o acusado é
negro, ele tem 22 vezes mais chances de ser condenado à pena de morte do que quando o acusado
é branco. Essas estatísticas refletem práticas que já estão sendo estabelecidas, que são antigas
na sociedade americana. Durante 150 anos nos Estados Unidos, se aplicam diferentes penas e
diferentes punições de acordo com a raça. Por exemplo: se um homem negro comete estupro
contra uma mulher branca, este é um caso para pena de morte. Contudo, se um homem branco
comete estupro contra uma mulher negra, a probabilidade é que ele não terá mais do que um ano
de prisão. No caso de ser negro atacando um branco, ele é automaticamente condenado à morte.
Contudo, se é uma pessoa branca que comete um crime contra uma pessoa negra, frequentemente
o que acontece é que ela vai sofrer uma multa. Embora essas leis tenham sido abolidas no início do
século nos Estados Unidos, a mentalidade e a prática continuam.

Dessa forma, a aplicação da pena de morte nos Estados Unidos tem um profundo valor simbólico
para a sociedade como um todo. E o que ela diz para as pessoas pobres e para os negros é que
a vida deles não vale nada, que eles são subordinados e marginalizados. O sistema criminal não
foi feito para defendê-los. O que a pena de morte diz para a outra parte da sociedade é que é mais
fácil executar um pobre e um negro do que fazer alguma coisa que realmente tenha sentido, que
realmente tenha significado em relação ao problema da criminalidade. Assim, enquanto se discute
a questão da pena de morte, os índices de homicídio aumentam, a qualidade da Justiça cai, e a
noção de que uma vida negra não tem o mesmo valor que uma vida branca se espalha.

Eu tenho ouvido que é inevitável que a pena de morte passe no Brasil, e já ouvi também que não
há mais nada que possa salvar o Brasil da criminalidade. Eu sou uma pessoa que acredita que é
necessário acreditar em coisas que a gente não pode ver, e é com essa idéia em mente que eu
acredito que vocês serão capazes de derrotar a pena de morte, e derrotar o racismo no Brasil. E
eu espero poder voltar brevemente ao Brasil e poder ver o avanço de vocês nesses dois campos.

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Maria Lúcia – Antes de abrir o debate para a platéia, gostaria de passar a palavra para o Dr.
Arruda para que ele faça o lançamento do “Livro Negro Contra a Pena de Morte”.

Dr. Arruda – Neste ato de lançamento do SOS Racismo estamos também nos inserindo na luta que
hoje diferentes setores da sociedade brasileira desenvolvem contra a pena de morte, mascarada
sob a emenda constitucional que objetiva a realização de um plebiscito para decidir sobre a sua
implantação.

O “Livro Negro Contra a Pena de Morte” pretende transformar-se na materialização dos mais variados
setores da população negra e dos demais segmentos da sociedade contrários a pena de morte. O
“Livro Negro Contra a Pena de Morte”, a partir deste ato, deverá transformar-se num grande abaixo-
assinado pela não aprovação da emenda constitucional que prevê a realização de um plebiscito
para a implantação da pena de morte. A entidade, associação, sindicato, comunidade que estiver de
sua posse, deverá promover um debate sobre o tema, fazer uma ata e abri-lo para que somente os
que forem contra a pena de morte aponham a sua assinatura. A entrega do livro será no Congresso
Nacional, em Brasília, no momento politicamente oportuno, em ato público, a fim de pressionar o
parlamento para votar contra. Vou passar à leitura do manifesto de abertura do livro: O Programa de
Direitos Humanos e Igualdade Racial do Geledés – Instituto da Mulher Negra vem a público alinhar-se
aos setores democráticos da sociedade civil contra a realização de um plebiscito para a instalação
da pena de morte no Brasil. Nesse sentido, lança a partir deste momento o “Livro Negro Contra
a Pena de Morte” que, juntando-se a outras tantas formas de manifestação, possa transformar-
se num instrumento capaz de demonstrar aos senhores congressistas o repúdio do conjunto da
população a essa forma de punição irreparável e irreversível. Este livro estará percorrendo, de forma
itinerante, os mais diferentes setores da sociedade, numa evidente demonstração de que o fim das
desigualdades é o meio mais eficaz para a construção de uma sociedade justa e solidária, onde
não haverá espaços para atrocidades e vinganças. Nós do Geledés – Instituto da Mulher Negra
haveremos sempre de repudiar qualquer atentado ao bem supremo da pessoa humana, que é a
vida, e temos consciência de que no contexto de uma sociedade onde há profundas desigualdades
econômicas, sociais, culturais e raciais, a instalação da pena de morte se dará em moldes ainda
mais injustos, recaindo de forma inquestionável sob as populações marginalizadas e discriminadas
socialmente.

São Paulo, 23 de abril de 1991.

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Aos vinte e três dias do mês de abril de 1991, na Câmara Municipal de São
Paulo, no Viaduto Jacareí, número 100, em ato de lançamento do Serviço
de Assessoria Jurídica em Casos de Discriminação Racial – SOS Racismo,
iniciou-se a coleta de assinatura daqueles que se posicionam contra a
aprovação da Emenda Constitucional para a realização de um plebiscito
sobre a pena de morte. A ela, nós abaixo-assinados, dizemos NÃO!.
Eu gostaria que o Dr. Bryan Stevenson fosse o primeiro signatário do livro. Em seguida, após a
assinatura das pessoas que compõem a mesa, o Livro estará circulando para os presentes, e como
foi dito anteriormente, somente aqueles que se posicionam contra a pena de morte deverão assiná-
lo. Eu espero que tenhamos a unanimidade dos presentes.

Dr. Militão – Dr. Stevenson, a mesa, companheiros. É muito significativo que o Dr. Stevenson,
um advogado negro, esteja hoje no Brasil. Considero que a questão da pena de morte no Brasil
deve ser especialmente observada pela população negra como mais um dos instrumentos que
historicamente as elites do poder dominante vêm desenvolvendo através dos séculos, em impingir
legislações que no fundo visam excluir a população negra da integração social. Nós não devemos
esquecer, companheiros, a Lei do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário, a Lei de Terras, e todas as
Constituições da República que sempre excluíram o cidadão negro do íntimo do seu ser. Cabe
exclusivamente a gente esse compromisso com o registro, com o depoimento do companheiro
norte-americano que aqui vem dar o seu testemunho de vida. Ele, um jovem advogado, com oito
anos de experiência na vida criminal, tem sofrido no seu íntimo a violência da pena de morte nos
Estados Unidos. E cabe a nós, brasileiros, advogados ou não, cidadãos, esse compromisso de
levar à nossa população, aos nossos amigos, à nossa sociedade, um grito de alerta. Não à pena
de morte, até o fim.

Representante do C.A. XI de Agosto – Estou aqui representando o Centro Acadêmico XI


de Agosto da Faculdade de Direito da USP. Nós, no XI de Agosto, iniciamos uma discussão para
ver o que faríamos em relação a este problema da pena de morte. E duas discussões surgiram:
primeiro, se deveríamos separar a questão da pena de morte da questão do plebiscito. E segundo,
se deveríamos fazer a campanha contra a pena de morte separada, só nós, ou em conjunto com
outros setores da sociedade civil. A primeira conclusão que chegamos é que separar a questão
do plebiscito é fazer o jogo daqueles que querem implantar a pena de morte no Brasil, pois eles
nunca gostaram do voto popular, sempre foram pessoas que gostavam do povo dentro de casa,
e dos militares na rua. E agora, porque acham que vão vencer, estão querendo que o povo vote.
Estão apostando na ingenuidade dos setores progressistas, que vão cair no truque dizer que a
democracia é a vontade da maioria. Portanto que haja plebiscito. Só que temos que lembrar que a
democracia não é a vontade da maioria, simplesmente. É evitar que a maioria esmague a minoria.
Portanto, a luta que temos que levar é de evitar que ocorra esse plebiscito. O segundo aspecto que
nos preocupa, é que vemos em eventos como este a reação da sociedade civil contra a pena de
morte. Só que está cada um atirando para um lado. E essa divisão é muito perigosa. Eu acho que
temos que nos unir, a partir de agora, e realizar uma grande campanha nacional para evitar que o
plebiscito ocorra. Para terminar, eu só queria saber do Dr. Stevenson quantos estados nos Estados
Unidos tinham a pena de morte e voltaram atrás?

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Dr. Stevenson – Dos 50 estados americanos, 39 têm a pena de morte. É verdade, é importante
referir que um grande número de países se opõem à pena de morte como um tipo de punição
legítima e aceitável. Embora os Estados Unidos se considerem um país liberal, em relação a esta
questão da pena de morte, os aliados, os países ao lado dos quais os Estados Unidos estão, são
bastante embaraçosos, é uma proximidade embaraçosa para os Estados Unidos. O meu cliente,
que tem 15 anos e está condenado à pena de morte, não seria condenado na Líbia, no Iraque, na
União Soviética. Pressões internacionais são extremamente importantes e devem ser consideradas
na nossa luta aqui no Brasil.

Amelinha – Eu sou da União de Mulheres de São Paulo e da Comissão de Familiares de Mortos e


Desaparecidos Políticos durante o regime militar. Eu quero parabenizar o Instituto da Mulher Negra,
o Geledés, pela realização do encontro desta noite por pelo menos três razões: a primeira é pela
coragem de trazer esse tema a público, uma vez que nós sabemos o quanto é importante a defesa
contra a pena de morte hoje aqui no Brasil. E nós da União de Mulheres tivemos uma experiência
recente, que foi fazer painéis na rua, onde nós colocamos “Pena de Morte Não”. E nós sentimos o
repúdio da população, inclusive da população negra.

A segunda razão pela qual eu cumprimento o Geledés esta noite é por ter trazido um representante
do trabalho de direitos humanos dos Estados Unidos, porque eu penso que a experiência do povo
americano em relação a pena de morte hoje deve ser trazida à tona, deve ser muito debatida
entre nós, porque vive-se há muito tempo com a pena de morte nos Estados Unidos, e todos
nós sabemos, vemos na televisão, vemos na imprensa o aumento da criminalidade nos Estados
Unidos, que é uma coisa que nos deixa extremamente preocupados e extremamente chocados,
embora a gente conviva com essa violência aqui no Brasil. Mas eu penso que lá, pelo menos o que
nos chega, é de extrema brutalidade, que nos assusta. E a terceira razão é que este debate está
se dando no Parlamento hoje, no Brasil, e existe uma ameaça concreta de que esta proposta de
plebiscito possa ser aprovada no Congresso Nacional. Quer dizer, o momento urge que nós todos,
que temos como bandeira a defesa dos princípios democráticos, empunhemos essa luta contra o
plebiscito. Então é muito importante que o Geledés lance hoje esse livro com abaixo-assinado, faça
isso chegar o mais imediatamente possível ao Congresso e que todos que estão aqui presentes
multipliquem essa discussão e mobilizem as pessoas, porque realmente a sociedade brasileira tem
que agir, reagir agora, não dá para esperar. E eu queria só por último colocar duas questões. O Dr.
Stevenson coloca, em um momento da sua fala, o quanto essa questão da pena de morte desvia as
questões fundamentais, inclusive as razões pelas quais se comete o crime. Essa questão aqui está
acontecendo também. Hoje se levanta a possibilidade de pena de morte no momento em que nunca
houve tanta violência no campo como está havendo agora. Nós temos uma relação de mais de mil
camponeses, sindicalistas, advogados, padres e políticos, que foram assassinados durante a Nova
República no campo, nas áreas rurais. Ao invés de se estar discutindo hoje no Congresso a emenda
constitucional que garantisse de fato neste país uma reforma agrária, se discute essa questão. O
aumento da criminalidade aqui, sem dúvida, está muito vinculado à questão da desigualdade social
e da injustiça que se faz com o homem e com a mulher no campo, e essa questão não é trazida à
tona dentro do Congresso Nacional.

E a outra questão que eu queria colocar é que nós da União de Mulheres fizemos um Manifesto
das Mulheres Contra a Pena de Morte, levantando principalmente a questão do estuprador, porque
embora nós combatamos o estupro, entendemos que o estupro é muito mais fruto de uma sociedade

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machista em que o homem pode dominar a mulher a ponto de poder fazer do seu corpo e da
sua sexualidade o que ele quer. Ou seja, ele coisifica a mulher. Existe toda uma ideologia nesse
sentido e nós não queremos a pena de morte para ninguém, inclusive para o estuprador. O que nós
queremos é que haja de fato combate decidido contra o machismo e contra a ideologia patriarcal.

Paulo Henrique Ribeiro Floriano – O Brasil, como o pior dos doentes, não reconhece a sua
enorme moléstia, ficando ainda mais difícil a sua cura. A imagem que se passa no Exterior ainda é
a da falsa democracia racial. Aí vem a pergunta: Quais as informações que o senhor tinha do Brasil
sobre o problema racial e das formas do racismo à brasileira, e quais são as informações sobre
esses problemas que nesse curto espaço de tempo em que esteve por aqui, levará para os Estados
Unidos?

Dr. Stevenson – Só estive aqui por uma semana, mas acho que a democracia racial no Brasil soa
melhor do que o que de fato ela é. Eu acho que existem problemas raciais neste país. Eu fiz uma
palestra ontem à noite para os Promotores Públicos e não consegui ver nenhum negro entre eles.
E hoje eu fui para a Universidade de São Paulo, e lá também eu não consegui ver nem professores
nem alunos negros. E amanhã à noite eu vou falar para os juizes, e por alguma razão eu estou
também imaginando que não vou encontrar muitos negros lá. Você pode chamar do que quiser,
mas quando os negros são excluídos das posições de poder é porque existe racismo. E eu de fato
acho que não seria mais fácil para mim, se eu fosse um advogado negro aqui no Brasil, do que nos
Estados Unidos. Então quando eu voltar para os Estados Unidos eu vou dizer para as pessoas que
existem muitas coisas que são diferentes no Brasil, mas têm muitas coisas que são muito parecidas.
E infelizmente acho que a questão da discriminação racial é uma das coisas que é parecida.

Dep. Jamil Murad – Dr. Stevenson, é grande nossa satisfação de ouvir a sua palestra aqui, em
um momento tão importante para o povo brasileiro.

Neste instante, Dr. Stevenson, essa iniciativa do Geledés – Instituto da Mulher Negra joga um papel
muito importante, porque aqui a televisão acaba tendo uma força muito grande na opinião pública,
e a sua presença ajuda a unir partidos políticos, entidades, sindicatos, lideranças democráticas
e o povo em geral, para que nós derrotemos a institucionalização da pena de morte, porque na
verdade os jovens negros, os jovens pobres, estão sendo assassinados nas nossas grandes cidades
diariamente. Então, a pena de morte já existe na prática para os pobres e para os negros, só que
agora eles querem transformar isso em um ato legal. Na Assembléia Legislativa de São Paulo, nós
temos tomado já algumas medidas contra isso. Neste instante em que grande parte do povo brasileiro
não suporta mais o arrocho, o desemprego e que reage contra isso de uma maneira justa e com o
nosso apoio, a pena de morte viria como um instrumento das elites, um instrumento do imperialismo
que tem explorado o nosso povo e o nosso país. Eu odeio o governo americano mas com a sua
presença confirma aquilo que eu pensava que o povo americano é: um povo que pode conviver
conosco fraternalmente e travar lutas que interessam para toda a humanidade. A sua presença, o
seu ponto de vista, a sua militância na defesa dos direitos humanos me reforça muito mais que há
muito de povo americano que está irmanado no sofrimento brasileiro, do povo brasileiro e dos povos
do mundo inteiro. Neste instante nós gostaríamos de parabenizar as companheiras que organizaram
este ato, e de colocar a Assembléia Legislativa, na nossa pessoa e de muitos outros deputados que
certamente se somarão a essa luta justa, nós nos colocaremos junto com todos vocês, junto com
muita gente que ainda vai se somar nesta luta para nós derrotarmos os fascistas, os racistas, os

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nazistas que existem no Brasil, principalmente em certos postos de mando e que estão camuflados,
e que neste momento vêm à tona no apoio a uma causa imunda. Eu quero encerrar dizendo que a
nossa comunidade negra, que os pobres do nosso país já deram muito sangue para construir este
Brasil, e agora é a hora desse povo usufruir da riqueza construída aqui e não dar mais sangue com
essa causa atroz, que é a pena de morte.

Maria Eliete de Souza – Dr. Stevenson, gostaria de saber se no seu país o adolescente não tem
o estatuto que proteja o menor de 18 anos, ou é só o adolescente negro que é condenado à morte?

Dr. Stevenson – Eu diria que há muito poucas restrições que impedem a aplicação da pena
de morte contra os adolescentes. A Suprema Corte dos Estados Unidos deixou para cada Estado
legislar a este respeito. Em alguns Estados o limite de idade é de 18 anos. Em muitos Estados,
inclusive no Estado onde eu trabalho, a idade mínima para a condenação à pena de morte é 14
anos, e consequentemente muitos adolescentes foram condenados à pena de morte.

Vereador Vital Nolasco – Primeiramente eu gostaria de cumprimentar o Instituto da Mulher


Negra, o Geledés, pela realização deste evento e dizer também que na minha pessoa e, quero crer,
no conjunto da Câmara Municipal de São Paulo, nós nos honramos muito com a sua visita nesta
noite, aqui nesta Casa. Em segundo lugar dizer que infelizmente essa luta que nós travamos contra
o racismo, contra a violência praticada, particularmente contra a comunidade negra, é uma luta
muito difícil de ser levada. E isso se reflete também aqui na Câmara Municipal de São Paulo, tanto
é que a maioria dos pares que compõem esta Casa não se fez presente, ou se representam aqui
nesta comunidade. Isso para nós reforça a necessidade de que temos que intensificar os esforços
para que possamos, o conjunto da opinião pública brasileira, inclusive das suas representações,
para que de fato entendam o problema da violência, e essa questão séria que se coloca hoje, que
é a institucionalização da pena de morte aqui em nosso país. Em segundo lugar, gostaria de fazer
um comentário. Eu acho que o seu depoimento vem mostrar muito claramente que a propalada
civilização moderna, patamar superior que a humanidade conseguiu e conquistou e que hoje foi
apregoado pelo Sr. Bush, presidente dos Estados Unidos, o qual justificou uma aliança criminosa
que fez para poder justificar a sua ação guerreira e agressiva contra o povo do Iraque, é posta
por terra pelo próprio tratamento que este presidente dá ao seu povo e que as elites americanas
dão ao próprio povo americano. Então eu só queria complementar e colocar mais este adendo a
tudo isso que foi levantado e gostaria também de deixar aqui uma proposta a todos aqueles que
participam deste evento, de que seria importante que nós marchássemos para a unificação dos
nossos esforços, na luta contra a pena de morte. Neste sentido, quero deixar aqui uma proposta
à mesa e a todos os presentes, de que a gente pudesse criar um comitê de luta contra a pena de
morte aqui em São Paulo.

Repórter do jornal O Estado de São Paulo – Gostaria de saber se há advogados brancos


defendendo a pena de morte, quantos, e se tem advogados brancos trabalhando no Centro dele,
que é contra a pena de morte.

Dr. Stevenson – Tem sete advogados que trabalham no Centro do qual eu participo, e desses,
quatro são brancos.

Repórter – Qual estado norte-americano apresenta maior índice de criminalidade?

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Dr. Stevenson – No momento, os Estados Unidos têm o maior número de presos em comparação
com a população; é o país do mundo que tem o maior número de pessoas na prisão. Eles chegaram
na situação em que a principal causa de morte de homens negros na idade entre 18 e 35 anos de
idade é homicídio. Então o problema é bastante sério.

Matilde e Gláucia da Coordenação das Mulheres da Zona Leste – Nós estamos


preocupadas com a pobreza e o racismo que vemos na periferia das nossas cidades, e a relação
direta entre essas duas injustiças. Nós gostaríamos de convidar o Dr. Stevenson para visitar a Zona
Leste, de tal forma que nós possamos discutir essas questões com as pessoas que são diretamente
afetadas pela pena de morte, e que sofrem já tremendas injustiças.

Dr. Stevenson – Eu gostaria muito de poder visitar a periferia. No final de semana estive em várias
favelas. Ficaria muito honrado de poder discutir essas questões tanto com pessoas que moram em
São Paulo, quanto as pessoas de fora de São Paulo também.

Ailton Franco de Godói – Para muitos de nós brasileiros, que sempre ouvimos o enaltecimento
do respeito às leis pelos norte-americanos como exemplo do que nossa sociedade deveria seguir,
é chocante ouvir o que o senhor relatou. Pergunto: o que a sociedade civil norte-americana tem feito
contra essa perseguição aos negros e deserdados? Qual o progresso alcançado?

Dr. Stevenson – É necessário que se faça hoje nos Estados Unidos muito mais do que atualmente
está sendo feito. Questionar a aplicação da pena de morte é um tema extremamente impopular nos
Estados Unidos. As pessoas que são condenadas à pena de morte são as pessoas mais odiadas e
as mais rejeitadas na sociedade norte-americana. É muito impopular dizer que essas pessoas têm
direitos humanos, dizer que estas pessoas têm um valor, uma vida que vale a pena. E eu tenho a
convicção de que a pena de morte vai ser abolida nos Estados Unidos. Eu não sei como e não sei
quando, mas eu tenho a certeza que isso vai acontecer. Essa é uma daquelas coisas em que eu
acredito, porque é a única coisa em que posso acreditar. Tem algumas coisas que você só pode
alcançar quando tem uma convicção real, e profunda: lutar contra a pena de morte é como lutar
contra o racismo. Não é suficiente você ter na cabeça idéias a respeito do que gostaria de fazer.
É necessário que você tenha convicção em seu coração porque a sua convicção, e não as suas
idéias, é que farão a diferença.

Eu sei, eu tenho certeza, de que matar as pessoas é errado. E esta convicção que eu tenho é que
me dá a certeza que nós vamos vencer. Quando eu era criança, eu não conhecia nenhum advogado
negro. Na verdade eu nunca me encontrei com um advogado negro até que eu entrei na Escola de
Direito. Eu tive que acreditar que isso era possível, mesmo sem nunca ter visto antes um advogado
negro. Eu tenho que acreditar que a pena de morte vai ser abolida da mesma forma que o racismo,
embora até hoje eu ainda não tenha visto isso.

João Lima – Eu sou advogado e não tenho palavras para agradecer, sobretudo a Deus, pela sua
presença aqui. Nós acreditamos em Deus e eu, como advogado há cinco anos aproximadamente,
tenho sentido de perto o problema do negro no Brasil. Lamentavelmente o negro aqui no Brasil
é desunido. É a grande massa de analfabetos e semi-analfabetos que ignora a realidade do
problema. Tenho escrito algumas músicas, compus também, e espero no ano que vem publicá-las.
Rapidamente, a letra de uma diz assim: “ó que doce esperança eu tenho em meu coração. De ver
a negra raça livre da escravidão. A Lei Áurea não pôde liberar o pobre negro da escravidão. Do que

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vale andar daqui e de lá para cá, se nossos filhos não comem pão? Por final eu digo: “ó Deus, por
que te alongas assim do meu país? Quando nos libertares, então serei feliz”.

Minha pergunta: a Klu Klux Klan, nos Estados Unidos, atua livremente?

Dr. Stevenson – A Klu Klux Klan atua nos Estados Unidos de forma bastante livre, e eles
frequentemenete fazem demonstrações na porta do meu escritório, além de reuniões e manifestações.
Embora a Klu Klux Klan não seja mais tão popular quanto era há 50 anos atrás, nos últimos cinco
ou dez anos o número de associados tem novamente aumentado. No Estado de Louisiana tem uma
campanha para governador, e um candidato bastante forte que está concorrendo lá é um membro
da Klu Klux Klan. Será desapontador, mas não surpreendente, se ele ganhar a eleição.

João Lima – No Brasil então temos muito mais paz em relação à Klu Klux Klan...

Sueli Carneiro – Quero aproveitar a colocação feita pelo companheiro João Lima, e mostrar-
lhe como nós “temos muito mais paz aqui no Brasil com a Klu Klux Klan”. Quero ler rapidamente
para vocês três cartas que recebemos no SOS Racismo, recentemente. Uma datada de 29 de
janeiro, diz o seguinte: “Ao SOS Racismo: Poder Branco. Vida longa à Klan. Lá vem ele trajando o
manto branco ao cair da noite. Empunhando tocha ardente, até nos causando um enorme espanto.
Cavalgando em seu cavalo potente, cristão devotos, judaísmo combater. Irmandade branca, todos
juntos para vencer no Ocidente, o clarão da cruz se fez brilhar, pela pureza racial e por sua América
lutar. Klu Klux Klan, longa vida. Essa é a nossa homenagem. Vida longa à Klan, dedicamos nossa
mensagem. Klu Klux Klan, isso significa simplesmente respeito, onde o homem branco impôs o seu
direito. Negros, mestiços e judeus, seu futuro está no laço do cavaleiro branco. O cavaleiro branco
deixará o seu corpo em pedaços. A gota de sangue é o símbolo da Klan, o sangue de Cristo e da
civilização Cristã. A cruz em chama é o clareamento da cruz. Klu Klux Klan, longa vida. Esta é a
nossa mensagem, vida longa à Klan, dedicamos a nossa mensagem”.

Esta outra carta é do dia 10 de abril: “Ao SOS Racismo, forca para vocês, escória do mundo”. Junto
à frase vem uma foto de policiais de Charleston, Carolina do Sul, batendo em homem negro. E a
última carta, de 15 de abril, diz: “Ao SOS Racismo: Aos pedaços de carne preta estragada”. Aí
vem uma foto de um skin head, de nova Ivan, um dos editores e baterista da Banda Poder Branco:
“Aos pedaços de carne preta estragada: exemplos como o deste rapaz limparão a raça branca da
presença imunda e incômoda desta escória que representa a raça negra. Se preparem, o melhor
para nós está por vir. Não será nada agradável para vocês. Nós garantiremos isso pessoalmente.
Forca para os negros”.

Evaldo Lopes Gonçalves da Silva – Em primeiro lugar, quero parabenizar a entidade pelo
convite que fez, e pela esplêndida palestra que tivemos sobre este problema. O que suscita a minha
intervenção é a intervenção do companheiro estudante da USP com relação ao posicionamento
daqueles que, como nós, são contrários à pena de morte, em relação ao projeto plebiscito. Eu quero
me inspirar nas palavras do conferencista de hoje, quando assinala a necessidade da fé para levar
adiante uma causa. Era preciso que ele acreditasse na possibilidade conquanto ele não tivesse
conhecido, não tivesse visto um advogado negro, ele acreditasse realmente com o coração na
possibilidade daquilo. É necessário que o seu coração e a sua mente estejam inteiramente dirigidos
na luta contra pena de morte e ele tenha a crença naquilo para dizer, como ele diz: não sei quando,
não sei em que circunstâncias, a pena de morte será abolida nos Estados Unidos.

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Eu quero me inspirar nessas palavras para dizer que nós devemos ter a fé, a certeza, a convicção
de que seremos capazes de resolver, de modificar e de transformar esta maioria popular favorável
à pena de morte, em pessoas que se oponham a ela. Digo que seria uma situação delicada para
aqueles que se empenharam no nosso país na luta contra a ditadura, contra a censura pública,
os espetáculos, as artes etc., não tomar agora uma posição contra o plebiscito. Eu acho que nós
devemos defender sim, e que exista o prazo, e aí os legisladores democráticos devem influir nisso,
um prazo que permita esta mudança e tratarmos de assegurar meios, recursos necessários para
desenvolver uma campanha em que o posicionamento restrito político não fique a nós mesmos,
mas que possamos levar aos meios de comunicação de massa e os jornais, às revistas, à televisão,
e certamente contaremos com o apoio, como contamos na luta contra a ditadura, na luta pelas
diretas, na imensa maioria dos artistas do teatro, da música popular etc. e tal, contra a pena de
morte, que sem dúvida nenhuma, para as pessoas esclarecidas, significa a pena de morte contra
os pobres, e contra os negros. É essa a nossa posição.

Neusa – Gostaria de saber quantas pessoas o Dr. Stevenson defendeu e não foram condenadas
à pena de morte; quais os principais motivos para uma pessoa ser condenada à morte nos Estados
Unidos; como a população negra americana está organizada contra o poder judiciário, e se ele
poderia esclarecer essa questão de como a pena de morte é uma justificativa para o crime.

Dr. Stevenson – Em resposta à primeira pergunta, nos Estados Unidos você só tem direito ao
advogado durante o processo e a apelação. Então mesmo que tenha novas apelações depois da
primeira, nesse novo período, você não tem mais direito a ter um advogado que vá defendê-lo.
Porque é verdade que a maioria das pessoas condenadas à pena de morte são pessoas pobres,
é verdade que com muita probabilidade você será morta simplesmente porque você não tem os
meios para contratar um advogado para lhe defender.

É por essa razão que as pessoas que eu defendo são pessoas que foram condenadas à morte
e que não dispõem de meios financeiros para contratar um advogado. Com relação à segunda
pergunta, há organizações negras nos Estados Unidos que têm assumido ser contra a pena de
morte como uma de suas bandeiras. Infelizmente eu acho que o ódio tem silenciado muitas pessoas
dentro da comunidade negra e como eu acredito que a luta pela abolição da pena de morte é uma
luta que vai ser encabeçada, que vai ser levada pela comunidade negra, ainda existe muito trabalho
para ser feito. Com relação à última pergunta, eu realmente disse que a pena de morte é um fato
que promove a criminalidade. A pena de morte está sendo usada como a única resposta possível
com relação ao crime. É necessário compreender que muitos dos políticos, que muitas das pessoas
que formulam as política públicas, têm muito poucas idéias a respeito de como combater o crime e
a criminalidade.

Por isso eles podem assumir uma posição de defesa da pena de morte, porque ao fazer isso
parece que eles estão sendo duros e fazendo alguma coisa contra a criminalidade. Nos Estados
Unidos, embora as pessoas reconheçam que a pena de morte não tenha nenhum efeito no sentido
de reduzir a criminalidade, as pessoas continuam falando a favor da pena de morte. E desta forma
muitas pessoas preferem a ilusão à realidade e lidar com a realidade significa lidar com as condições
sócioeconômicas das pessoas que são muito pobre nos Estados Unidos, e lidar com a realidade
significa lidar com a falta de educação, com a falta de serviços públicos de saúde da população
que é pobre nos Estados Unidos. Lidar com a realidade significa também lidar com a proliferação

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da violência, das armas dentro da sociedade americana. Essas são as questões que a maioria dos
políticos não querem pensar, quando estão falando a respeito da questão da criminalidade.

Alberto Mandela – Eu me sinto privilegiado diante deste grande representante norte-americano


que vem falando uma coisa muito séria e muito sólida. É uma satisfação e um prazer encontrar
pessoa de tal personalidade e responsabilidade. Agora, uma coisa que eu acho gozada: como
nós podemos aceitar uma coisa que os Estados Unidos estão recusando? Será que nós somos tão
arcaicos, caóticos e depressivos para aceitar uma coisa dessas? O que é que está acontecendo?
Outra coisa também que eu observo é que lá eles têm a Klu Klux Klan e aqui nós temos a Rotus-
Klan. O que é a Rotus-Klan? Pensem bem. Outra coisa que é importante que eu noto na sociedade
brasileira, dentro da Academia de Polícia, está escrito: “preto correndo é ladrão, e parado é suspeito”.
Eu vejo isso na Academia Brasileira de Polícia. Outra coisa também: se você tem documento vai para
averiguação, se não tem, você vai assinar uma vadiagem, que é o tal do “59”, que é vagabundo, não
trabalha e é vadio. Então aqui o preconceito é muito mais sutil e mais inteligente.

Aqui no Brasil acontece uma coisa muito interessante: todos os políticos, quando querem voto, vão
para a periferia, vão para as escolas de samba, para as praças, as vilas pedir votos. Eu vejo isso
como hipocrisia, falta de dignidade, falta de pudor e falta de mora. Por que não assumem o racismo?
Tem também uma outra coisa: quando eles vêem um negro muito bem vestido, com um objeto de
valor; ouro, prata, brilhante, já o acha suspeito. Quando uma mulher branca ou branco, vêem um
negro na rua, eles escondem a sua bolsa e seu cordão, pensando que todo negro é ladrão. Esse
fato, é uma coisa muito séria.

Antonio (enviou sua manifestação para a mesa) – Sou a favor da pena de morte. Por que?
Ora, porque sou um trabalhador e acompanho o cotidiano dos jornais, e o que mais se destaca é o
noticiário do crime. Sendo assim, se o motivo dessa maioria é contra (essa maioria aqui) até respeito,
mas por que não se pratica a pena para aquele que está mais do que provado que matou, seja rico,
pobre, branco ou negro. O que é preferível?

Dr. Stevenson – Primeiro eu acho que é errado, nesta discussão de pena de morte, pensar que
se trata de uma discussão entre punição ou não punição. Não é esta a questão. O problema não é
se as pessoas que matam devem ser punidas ou não. O problema é como elas devem ser punidas.
Eu simplesmente acho que matar as pessoas para dizer a elas que elas não devem matar, não faz
nenhum sentido. Eu falo como uma pessoa que foi vítima de crimes violentos. Os problemas de
violência nos Estados Unidos não me deixaram ileso, nem a mim nem a minha família. Eu tive um
problema com uma irmã, que sofreu violência e que foi estuprada. Eu tive que consolar a minha avó
depois que o meu avô foi assassinado. Então não é por falta de compreensão, e nem de compaixão
de como uma pessoa se sente quando ela é vítima de violência que eu continuo a afirmar que matar
é errado.

Simone Kiume Suzuki – Dr. Stevenson, caso a pena de morte fosse aplicada com bom senso
e justiça, não diminuiriam os índices de crime no Brasil? Há algum país em que a pena de morte
seja aplicada de forma justa? Sou da opinião que uma pessoa que não respeita a vida de outrem,
homicida, não deve ter a sua respeita.

Dr. Stevenson – Eu sou uma pessoa que acredito que a pena de morte é errada, tanto do ponto
de vista filosófico quanto moral, e politicamente também. Sou uma pessoa que tem a convicção.

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Todavia, eu teria disposição de reconhecer que se existisse um sistema judiciário que não sofresse
discriminação a partir de um ponto de vista racial, de um ponto de vista de gênero, da questão
sexual, eu estive aqui por apenas uma semana, mas eu não acredito que este sistema perfeito exista
aqui no Brasil.

Dra. Angélica – Eu gostaria que o Dr. Stevenson explicasse como se processa esta ideologia, que
faz com que a própria pessoa que vai ser vítima da aplicação da pena de morte passe a defendê-la.

Dr. Stevenson – Esse é um problema complexo, mas tenho observado que um dos resultados
da opressão e da subordinação das pessoas nos Estados Unidos é que uma das únicas maneiras
que essas pessoas que foram oprimidas e subordinadas, contam para poder manter alguma auto-
estima, é poder apontar para algum outro que esteja em pior situação que ele está. De alguma
forma parece que se torna necessário que se encontre um outro que esteja em uma situação pior,
mais desprezível do que aquela em que eu me encontro. Entre alguns setores mais pobres, poder
encontrar esse alguém que está em uma situação pior que eu estou, é o único meio que eles têm de
poder sentir que eles não estão bem no fundo, do fundão mesmo do poço. É uma ideologia terrível
e insidiosa.

É uma ideologia que está enraizada na opressão e na subordinação da pessoas, e que só pode ser
eliminada quando as pessoas forem educadas, puderem acreditar que o que as torna melhor não é
o fato de encontrar alguém que esteja em pior situação que a sua. Até que isto aconteça, até que se
consiga educar todas as pessoas, a gente vai ter que se confrontar com isso, nós vamos encontrar
entre os pobres, pessoas que vão estar numa situação terrível e que vão defender questões que se
voltam exatamente contra o seus próprios interesses.

Elenice – Dr. Stevenson, o Brasil é um país de democracia racial para os brancos. A pena de
morte já existe no Brasil, ela se materializa de várias formas: se materializa com o vergonhoso
extermínio de crianças que ocorre em nosso país, do qual o senhor já teve notícias, e extermina-se
também o contrabando de crianças, com a morte por questões de terra, com a esterilização de 44%
de mulheres brasileiras, com os abortos clandestinos, que ocasionam também a morte de milhares
de mulheres brasileiras.

Materializa-se com a ação impune de justiceiros que dizem que é preciso matar. Materializa-se
também com a falta de oportunidade de trabalho para a nossa subsistência. No funcionalismo
público o negro tem acesso e tem dificuldade de ascensão, porque aqui no Brasil existe o “Q.I.”,
“quem indicou”. Na empresa privada o negro consegue emprego nos trabalhos serviçais. Os
meios de comunicação deste país, Dr. Stevenson, trabalham a favor da pena de morte. Na semana
passada um canal de televisão em uma reportagem especial fez reportagem com seis cidadãos,
dois brancos, quatro negros. Os quatros negros mostraram o seu rosto. Os dois brancos não
mostraram. Isso em um flagrante desrespeito à lei, porque estão aí mostrando para a população
uma imagem falsa da digna e injustiçada raça negra. Dr. Stevenson, o senhor colocou algo que há
muito tempo nós estamos cansados de dizer. A justiça é para todos, só que o delegado é branco,
o promotor é branco, o juiz é branco, o procurador do Estado é branco. Dr. Stevenson, nós sempre
fomos vítimas da violência, só que a criminalidade de um determinado período de tempo para cá,
está atingindo também os abastados deste país, os ricos deste país e eles são o poder neste país,
eles são a justiça neste país.

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Diante da impossibilidade de se resolver o problema no Brasil, eles vêm com a pena de morte. A
população sofrida se sentindo marginalizada também está se apegando neste erro, neste engano,
neste crime e vai ocorrer, se por uma infelicidade, eu acredito muito, eu tenho a convicção que o
senhor mencionou que o senhor mencionou, que não vai passar, porque isso é um crime. E eu
quero crer que se ocorrer vai acontecer a institucionalização do “apartheid” no Brasil.

Lúcia Maria – Eu gostaria de saber do Dr. Stevenson, se a população negra americana tem
consciência que a instituição da pena de morte nos Estados Unidos foi prática e exclusivamente
feita para eles. Seria uma solução cirúrgica, como está na moda agora. Se eles têm consciência
disso, porque aqui no Brasil os negros não têm essa consciência.

Dr. Stevenson – Eu acho que os nossos problemas são muito parecidos. A maioria das pessoas
negras nos Estados Unidos não percebem, não compreendem como elas correm riscos com
instituições como a pena de morte. A tarefa de enfrentar o racismo e enfrentar o viés racial é uma
tarefa difícil porque você não tem que educar somente os brancos, mas você também tem que
educar os negros, os pobres, que se confrontam com o problema do racismo. Esse é um problema
nos Estados Unidos, da mesma forma como eu acredito que seja um problema aqui no Brasil.

Hélio de Melo – Aqui no Brasil a violência do racismo é mais de cor. Nos Estados Unidos o ódio
é de raça. A pessoa pode ter a cútis clara e o cabelo loiro, mas se for descendente de negro é
discriminada como de raça negra?

Dr. Stevenson – Acho que é verdade que há mais diferença entre os negros aqui no Brasil
do que nos Estados Unidos, de acordo com a questão da cor. Nos Estados Unidos não há essa
diferenciação entre menos preto, mais preto. Se você é preto, você é preto nos Estados Unidos.
Nesse sentido, as questões raciais, a consciência da questão racial é muito mais fácil nos Estados
Unidos do que aqui no Brasil.

Todos os pretos têm que lidar com a questão racial em qualquer lugar em que estejam. Eles sabem
que são afetados pelo problema do racismo, não importa qual seja a cor de sua pele. E lutar contra
o racismo é um problema que não deve ser encarado apenas pela comunidade negra. Também
os ricos e brancos são afetados pelo problema do racismo. Portanto, o problema da abolição do
racismo é um problema que interessa a todo mundo porque o racismo é um problema que afeta a
vida de todos.

Ivaldina – Eu queria perguntar ao Dr. Stevenson a opinião dele sobre essa contradição: nós
sabemos que a sociedade estadunidense prega conservar, preservar a vida nos países do terceiro
mundo, e ao mesmo tempo lá nos Estados Unidos, a maior parte dos estados cometem violência
contra a vida, através da pena de morte. Qual a sua opinião a respeito dessa contradição?

Dr. Stevenson – Não tenho resposta para essa contradição porque é completamente irracional
assumir as duas posições. Você deve entender que os Estados Unidos sofrem de uma doença muito
peculiar. Os Estados Unidos considera que ele tem uma perfeita visão, uma perfeita compreensão
quando se trata de compreender os problemas dos países do terceiro mundo. Mas eles são
completamente cegos quando se trata de identificar os problemas e erros do seu próprio país.
Nesse sentido, os americanos preferem tentar resolver os problemas dos outros ao invés de tentar
resolver os problemas que eles têm dentro de casa, e isso é uma tradição imperialista e colonial.

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Maria Lúcia – Eu quero agradecer a presença de todos em nome do Geledés – Instituto da
Mulher Negra, em especial agradecer a presença do Dr. Stevenson e dizer a ele que foi da maior
importância a sua presença neste momento especial da conjuntura brasileira, onde um tema tão
terrível como a pena de morte está colocado e é particularmente importante para nós que um negro,
advogado, que conhece essa realidade da pena de morte, venha nos dar o seu testemunho, e se
posicionar frente a essa questão. Agradeço ao comparecimento da comunidade negra e de todas
as pessoas solidárias que aqui estiveram presentes e quero dar a palavra agora ao Dr. Stevenson
para as suas despedidas.

Dr. Stevenson – Foi um privilégio e uma honra estar aqui hoje com vocês, e eu me sinto mais
forte depois de ter ouvido os seus testemunhos, histórias e opiniões que vocês apresentaram. Para
mim agora o Brasil não é mais um lugar distante como era antes de eu chegar aqui. Eu acho que é
encorajador saber que vocês vão estar aqui lutando, como nós estaremos lutando lá nos Estados
Unidos, e eu quero que nós possamos lutar juntos. Eu sei que se lutarmos juntos, nós venceremos.

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Como alguém pode fazer outra coisa?*

Não sou especialista em religião, longe disso. Mas um dia fiquei sabendo que nas lendas judaicas
antigas conta-se a história dos lamedvovniks, os 36 Homens Virtuosos que foram enviados por
Deus para viver e trabalhar entre nós, sempre pobres, desapercebidos e sem glória, sem saber
da sua própria perfeição. Se um Homem Virtuoso fosse algum dia descoberto, segundo várias
versões da lenda, ele negaria sua identidade, desapareceria e reapareceria, desconhecido e sem
nada saber, num lugar distante. Eu não acredito em lamedvovniks. Nem ao menos acredito em
Deus. Mas com o passar dos anos, às vezes tenho me confrontado com a idéia desses Homens
Virtuosos estarem vivendo secretamente entre nós, tenho sido lembrado de que o que significa ser
verdadeiramente bom era tão misterioso para aqueles que viveram há mil anos como o é para nós,
com toda a nossa moderna sofisticação.

Recentemente, após conhecer Bryan Stevenson, vi-me outra vez confrontando essas questões. Mas
isso frequentemente acontece com as pessoas depois que elas conhecem Bryan Stevenson.

Esta manhã, Bryan – 31 anos, advogado, um homem negro – está viajando de Montgomery, Alabama,
onde mora, para Phoenix City, uma pequena cidade do Alabama onde seu cliente, negro, George
Daniel, está detido na Prisão de Russell Country aguardando sua execução pelo assassinato de um
policial branco. Ainda ontem, um tribunal federal anulou sua condenação e ordenou que ele seja
submetido a um novo julgamento.

É isso que Bryan Stevenson faz. Ele entra com pedidos de recurso. Ele é um desses advogados mal
vistos que supostamente emperram os tribunais com petições frívolas cujo objetivo é apenas adiar o
encontro de homens merecedores de tal com a cadeira elétrica, a câmara de gás ou a agulha. Ele
é uma das razões de o Juiz William H. Rehnquist e inúmeros políticos, entre eles o Presidente Bus,
terem pedido que haja um limite no número de revisões no tribunal para os sentenciados à morte.
Ele é uma das razões pelas quais, com quase 2.400 pessoas condenadas à morte, apenas 143
foram executadas desde que a Corte Suprema declarou a constitucionalidade da pena de morte em
1976. Hoje cerca de 75% dos americanos são a favor da pena capital, comparados com 42% em
1996. Pela primeira vez, até mesmo a maioria dos negros, estão a favor da pena capital. Até agora,
essa nova sede pública de vingança final continua em grande parte sem ser satisfeita.

Bryan Stevenson é uma das razões.

Na Prisão de Russell Country, Bryan é acompanhado a uma sala pequena onde George Daniel está
esperando. Quando Bryan lhe conta que ele terá um novo julgamento – que literalmente poderá
salvar a vida de George – o homem magro de 34 anos sorri sem expressão, aperta o nariz com força,
balança o corpo devagar e movimenta as pernas num ritmo rápido, interno. Ele está vestindo um
uniforme branco da prisão, que está imundo nos fundilhos. Da última vez que Bryan visitou George,
sua cela estava suja da própria urina. Os registros do tribunal mostram que pelo menos uma vez
durante o seu tempo na prisão George Daniel comeu as próprias fezes, e que ele é moderadamente
retardado. “Eu preciso de cigarros”, diz ele, finalmente. Bryan promete conseguir cigarros, e George

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é levado embora. Quando Bryan sai, um guarda o pára no portão da prisão e comenta a respeito
de George Daniel. “Acho que ele é louco. Realmente acho. Essa é a minha opinião. Nós precisamos
forçá-lo a tomar banho e mudar de roupa. Acho que ele é louco. Algumas pessoas aqui fingem. Mas
acho que ele, não”.

Do lado de fora, depois de passar a porta elétrica e a cerca alta de arame, Bryan diz, “George é
um dos homens que os Estados Unidos acredita ser tão mau que ele deve ser amarrado a uma
cadeira elétrica e morto”. Ele não diz isso duramente ou de maneira auto-convencida. Ele diz isso
calmamente, com uma compreensão impressionante. “As pessoas sempre me perguntam como
é que eu posso defender esses ‘animais’. Eu nunca entendo como eles podem perguntar isso. O
sistema da justiça criminal é tão corrupto, tão racista. Eu não gostaria de ver George Daniel solto,
à mercê de si próprio. Ele não tem capacidade. Ele é doente. Mas uma sociedade civilizada não
executa pessoas como ele. Rehnquist pode restringir as opções jurídicas para os condenados,
porque não pode imaginar ele próprio ou alguém que ele ama, jamais, numa situação como a de
George Daniel. Mas como se sentiria Rehnquist se o seu próprio filho estivesse no lugar de George?
No fim, nós somos todos frágeis demais para tomar essas decisões”.

Conheci Bryan Stevenson por acaso quando viajava pelo Sul, que conta com mais da metade de
presos condenados à morte nos Estados Unidos, e onde foram feitas cerca de 85% das execuções
do país desde 1977. Imediatamente Bryan me fascinou. Formado pela Faculdade de Direito de
Harvard e pela Escola de Ciências Governamentais John F. Kennedy, ele é diretor do Centro de
Recursos de Representação em Pena Capital do Alabama, que de alguma forma está envolvido
com a maioria dos 119 presos condenados à morte no Alabama. Ele recebeu uma oferta de 50
a 60 mil dólares por ano para aceitar o cargo de diretor, segundo me contou um dos membros
da diretoria; mas Bryan disse que era dinheiro demais. Ele fez um acordo para 18 mil dólares,
atualmente aumentados para 24 mil dólares. Como advogado de uma firma, ele poderia ganhar 5 a
10 vezes esse salário.

Bryan trabalhava sete dias por semana, e ainda o faz, muitas vezes das 8:30 da manhã às 23:30
da noite. Aos sábados e domingos, ele sai cedo para ir à lavanderia e talvez pegar um cinema.
Atualmente, ele tem pouco tempo para tocar seu piano elétrico, tudo o que costumava fazer
normalmente antes. Há anos ele não tem férias. Antes um leitor voraz, Bryan leu apenas três livros
por recreação no ano passado. Às vezes ele tema que não esteja mais rindo o suficiente.

Falando simplesmente, o homem era difícil de entender. Não seria preciso acreditar que a causa
de Bryan era nobre para ser tocado e fascinado pela sua paixão. Durante toda a década de 1980,
enquanto a maioria de seus colegas de Harvard enriquecia, ele defendeu assassinos sem um tostão.
Seus pais – gente trabalhadora de Milton, Delaware, perto de Rohoboth Beach – certamente não
compreenderam o que o filho estava fazendo. “Vá pelo dinheiro”, disse mais de uma vez o pai de
Bryan. Com todos os seus diplomas, Bryan continua dirigindo um Honda Civic amassado. Sua mãe
tinha um elegante BMW 325 preto. Ela também não conseguia entender o filho. O que o fazia ser tão
diferente – dos pais, dos colegas, realmente de todo o país?.

Eu perguntei a ele como é que ele faz isso entra dia, sai dia, disse William Newman, um advogado de
Massachussetts que estava no Alabama para trabalhar com Bryan num recurso de pena de morte.
“O Bryan é assim. É assim que Bryan é. Bryan é um príncipe. Aposto que você não encontrará uma
pessoa que não diga isso. Eu lhe digo, ele é um santo. Eu sei que não se pode dizer isso, mas

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ele é”. Bryan orienta cerca de 60 advogados particulares que trabalham nos casos de pena de
morte do Alabama gratuitamente. Ele próprio trabalha com mais 24 casos de pena de morte. Ele
supervisiona uma equipe de cinco jovens advogados que lidam com cerca de 30 casos. Ao mesmo
tempo, ele tem de conseguir mais ou menos 200 mil dólares por ano em donativos particulares ou
de fundações para receber os 300 mil que o governo federal dá ao centro.

Portanto, apenas no seu carro, agora um Toyota Corolla cinza, nas estradas do interior do Sul, é que
Bryan tem tempo para si mesmo. E pensa, medita, às vezes reza.

Ele é um homem magro, atlético, com 1,83 m de altura, um astro do futebol no colégio e na faculdade.
Ele usa cabelo curto natural, e barba curta. Veste roupas sem estilo, usa óculos escuros grandes. Ele
fala tão baixo que às vezes é preciso fazer esforço para ouvi-lo. Ele não tem um sotaque identificável,
é estritamente um sotaque americano. Em conversas pelo telefone, promotores e advogados de
defesa que não o conhecem geralmente presumem que ele é branco. Uma vez, quando Bryan
sugeriu que um advogado de defesa tentasse diminuir a pena de seu cliente da sentença de morte
para prisão perpétua sem liberdade condicional, o advogado falou, “Eu não lhe disse? Ele é um
negrão. Não se pode conseguir uma prisão perpétua para um negrão neste distrito”.

Enquanto dirige rumo a Atlanta para visitar outro cliente condenado à morte, Bryan diz, ‘Eu sempre
senti que eu poderia muito bem ter acabado na situação dos homens que estou defendendo. Eu tive
amigos, primos, que tiveram problemas. Poderia ter sido eu”. Bryan diz isso mansa e deliberadamente,
com pouca emoção. Quando fala sobre a pena de morte, ele fala principalmente sobre fatos e
justiça. Ele fala como um advogado.

“Eu poderia percorrer as prisões do Sul e juntar cinco prisões de condenados à morte com homens
não condenados, cujos crimes foram muito piores”, diz Bryan.

•••

“Advogados, apontados para tal defesa, pagos um máximo de mil dólares no Alabama e em
vários outros Estados do Sul, frequentemente não fazem trabalho algum sobre os seus casos. São
necessárias 800 horas de trabalho para um caso de pena capital. A Corte Suprema declarou que
é inconstitucional, mas os promotores no Sul ainda mantém negros fora dos júris de pena capital,
dando razões injustificáveis para eliminá-los. Num distrito rural do Alabama, encontramos membros
potenciais do júri rotulados pelo promotor como ‘fortes”, ‘médios’, ‘fracos’ e ‘negros’. Talvez ajudasse
os membros do Congresso que são tanto a favor da pena de morte se eles pensassem a respeito
dessa forma: imagine que um senador é acusado de roubar verbas de campanha, e é informado de
que ele tem um advogado que é um bêbado, e que está sendo pago mil dólares. Depois o senador
é informado, se ele for democrata, que só republicanos farão parte do seu júri – assim como os
negros ainda são julgador por júris compostos só de brancos. Este é o nosso sistema de justiça
hoje”.

De volta à estrada rumo à cadeia de condenados a morte da Georgia: “Tive a infância mais feliz
possível”, diz Bryan, finalmente relaxado e falando sobre si mesmo para variar. “Eu ia à igreja, duas,
três noites por semana, o dia inteiro aos domingos”, diz ele. “Na escola, eu conhecia todos – os
garotos brancos da classe, os garotos negros dos esportes. Mas nós morávamos no interior, e eu
não fazia parte de nenhum grupo. Meus pais se importavam comigo e eu queria fazer coisas para

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fazer com que se importassem ainda mais. Anos depois, em Harvard, muitos rapazes que conheci
sentiam que, se não tivesse ido para Andover ou Harvard, suas vidas estariam perdidas”. Ele sorri.
“Mas eu sempre achei que mesmo as pessoas com milhões de milhões de dólares não poderiam
ser mais felizes do que eu”.

“Eu tinha brigas com os garotos brancos no ônibus. Eles me chamavam ‘negrão’. No primeiro ano,
eu lembro de levantar a mão e jamais ser chamado. No segundo ano, uma auxiliar de professora
me fez sair das barras de exercícios enquanto os garotos brancos estavam nelas. Quando eles
integraram as escolas todos os garotos negros estavam na classe 3-C. Eu fui o único negro na
classe A até a sexta série. Ano após ano, os conselheiros tentaram me colocar em cursos técnicos
vocacionais. ‘Todo mundo precisa saber como fazer tijolos’, ele diziam”. Finalmente, à medida que
Bryan fala, torna-se claro que o racismo que ele sentiu, moderado segundo os padrões da geração
anterior à sua, ainda está fortemente entrelaçado no seu trabalho contra a pena de morte.

Ele diz: “A razão pela qual sempre digo que jamais encontrei um cliente cuja vida não valia a
pena salvar, é porque eles são como eu – com a exceção que eles não entraram na classe 3-A.
Eles estavam na 3-C. Algumas poucas ocorrências na direção contrária, e eu poderia estar do
outro lado da mesma. Você sabe, quando criança, eu passava os verões na casa da minha tia em
Philadelphia. Era impossível conseguir que a polícia fosse ao bairro dela. Era preciso chamar e
dizer que um oficial da polícia tinha sido baleado. Meu avô foi assassinado, esfaqueado dezenas de
vezes, em sua própria casa. Os assassinos tiveram uma pena pequena. Eu tinha uma amiga negra
que foi estuprada no campus, mas o caso dela jamais foi levado adiante. Ela estava indo embora da
cidade, não tinha família ali para pressionar o promotor. Essa é a nossa justiça: nós processamos
demais os crimes contra brancos, e não processamos suficientemente os crimes contra negros,
porque brancos têm força política, e negros, não. Eu vi isso na minha própria vida muito antes de
estudar a pena de morte.

Mas quando comecei a estudá-la, e descobri que um homem que mata um branco tem uma
chance 4,3 vezes maior de pegar a pena de morte na Georgia, vi isso como um símbolo de todo o
preconceito racial e contra a pobreza na nossa sociedade. Nós ainda não somos capazes de dar
valor à vida de uma mãe de quatro filhos nas favelas da mesma maneira que damos à vida de, por
exemplo, um ex-presidente da Chevron. Nós simplesmente não somos capazes.

Você sabe que em Montgomery, Alabama, há um jornal chamado Bulletin Board que ainda publica
anúncios procurando inquilinos brancos? Eu passei semanas procurando um apartamento. Pelo
telefone, o homem disse ‘você não soa negro, mas eu pergunto a todos’. Eu perdi toda a humildade.
Eu disse a uma funcionária que eu era um advogado com diploma de Harvard. Ela disse que o
apartamento era 250 dólares. Fui até lá vestido de terno, mas quando ela me viu, seu corpo todo
despencou. Ela disse então que o aluguel era 450 dólares. É muito desmoralizante e desgastante.
Nenhum dos meus diplomas de Harvard, meus ternos, significam alguma coisa junto com meu rosto
negro. Todas essas coisas são do mesmo material”.

No Centro de Diagnóstico e Classificação da Georgia, onde ficam os presos condenados à morte


daquele Estado, o cliente de Bryan, Roger Collins, está esperando na sala de visitas, um lugar
comprido e estreito com uma parede de barras e uma longa fila de bancos individuais vazios.
Após lidar com seu caso por quatro anos, Bryan agora considera Roger como um amigo. Roger
levanta para cumprimentá-lo, tira seus óculos escuros e os coloca de novo. Ele é um homem negro

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exatamente da mesma idade de Bryan, 31 anos, bonito, de cabelo curto e barba curta. Ele recebeu
a pena de morte por assassinar brutalmente uma mulher negra há 13 anos. Roger tinha então 18
anos. Seu cúmplice tinha 25 anos. Eles tiveram julgamentos separados. Roger recebeu a pena de
morte. Seu cúmplice não. Roger poderá ter sua data de execução marcada qualquer dia.

Bryan lhe conta sobre o seu recurso e que o Congresso poderá passar uma lei que ajudaria o seu
caso. (No fim, o Congresso acabou não passando a lei). “Eu entendi a diferença entre o certo e
o errado”, diz Roger. “Entendi, sim. Começou numa coisa e acabou noutra. Eu fiz algumas coisas
terríveis no meu passado”. Quando tinha 13 anos, conta Roger, ele, seu pai e seu irmão iam da
Flórida para a Georgia para roubar lugares todos os fins de semana. Na nona série, ele ainda não
sabia ler. Ele acha, mas não tem certeza, que sua mãe e seu irmão estão presos. Seu pai, que
acabou indo para a prisão por assassinato, já está livre, e visitou-o há algumas semanas. “Ele disse
que pediram a sentença de morte”, diz Roger, “e perderam”.

“Está indo tudo bem”, diz Bryan. “Não desanime”. Roger diz quase para si mesmo. “Não marcaram
a data”.

Lá fora, de volta à estrada, Bryan diz, “Eu encontro gente como Roger todo dia. Suas vidas são
uma lástima. Metade dos meus clientes tiveram alguém da família assassinado. Eles estão sempre
tendo sua eletricidade cortada, ou o telefone. Ou então mencionam que a filha está na prisão há
seis meses, e por falar nisso, o que é que deveriam fazer a respeito? Eles vivem à margem da
sociedade, sem nenhum tipo de controle sobre as próprias vidas. Nós desistimos de tentar ajudá-
los. Mencionar isso é ser ridicularizado como ingênuo e fraco. Sabe, quando criança, George Daniel
era pendurado numa árvore por um lençol quando molhava a cama, e espancado com um bastão”.
Bryan permanece calado por um longo tempo.

Depois ele diz, “Acho que eles vão matar o George”.

Alguma coisa acontece com os jovens idealistas na Faculdade de Direito de Harvard. Bryan lembra
que, no primeiro dia perguntaram à sua turma que começava quantos planejavam trabalhar em
Direito de interesse público após a formatura e provavelmente 70% das mãos foram levantadas.
Mas muito pouco entraram nessa área. No ano passado, apenas cerca de 3% dos formandos
de Direito de Harvard foram diretamente para organizações jurídicas ou de serviço público. Na
turma de Bryan, a maioria esmagadora dos formandos aceitou cargos de prestígio na Justiça ou
empregos em grandes firmas de advocacia com salários de mais de 70 mil dólares. “Todos vieram
para a faculdade de Direito querendo ajudar os pobres”, diz Bryan. “Mas quando as grandes firmas
de advocacia ofereceram 1.500 dólares por semana, eles todos aceitaram”.

Foi uma sedução. Naquele primeiro dia, disseram aos alunos que olhassem ao seu redor para os
500 colegas. “Eles lhe dizem que você está sentado com futuros membros do Congresso, sócios
principais de firmas importantes de advocacia. Você é forçado a competir, chegar ‘ao topo’. Não há
nenhuma orientação de valores para encontrar um significado no que você faz”. Os estudantes são
estimulados a sentir que são especiais, diz ele, como se fossem melhores que os outros e portanto
merecedores de riqueza, poder e privilégio.

Pode ser um discurso muito atraente, especialmente para jovens das camadas mais baixas, que
sonham em ser aceitos pela elite, e que estão dispostos a pagar o preço de se distanciar das

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próprias raízes. Bryan não mordeu a isca. Pode parecer um exagero, mas ao invés disso Bryan
parece ter aberto um atalho de bondade nos seus anos em Harvard. Nas observações de seus ex-
colegas, há um tom inconfundível de testemunho.

•••

“Bryan é o tipo de pessoa que, embora eu não mais o veja muito, sempre considerei um amigo
próximo”, diz Frederick Smith, advogado de Nova Jersey, e ex-colega da Faculdade de Direito de
Harvard. “A palavra que define Bryan é ‘criativo’. É difícil ficar perto dele e não ser profundamente
influenciado e mudado. Eu logo me senti influenciado. Bryan era de uma cidade pequena do interior,
e eu tinha cursado uma escola preparatória, a Faculdade Harvard, e passado dois anos em Oxford,
mas eu não tinha o fôlego para alcançar Bryan, literalmente”. Ele ri. “Parece que estou falando de
alguém mais velho, mas eu sou cinco anos mais velho que ele”.

“Sempre achei que o que acontecesse comigo aconteceria com Bryan. ‘Bem, agora está na hora de
crescer. Temos contas a pagar’. Todos os outros na nossa classe, como Hemmings, saltaram sobre
o abismo e foram para grandes firmas de advocacia. Mas Bryan, não. Tenho um outro amigo de
Harvard, e ele e eu ainda falamos sobre o fenômeno de Bryan Stevenson. O que o faz ser como é?
Nós falamos sobre o quanto detestamos o que estamos fazendo. Por que conseguimos tão pouco
e Bryan está ali como um farol? Detesto ter de admitir falhas de caráter, mas talvez Bryan seja o
exemplo mais claro do que significa o verdadeiro caráter”.

Está escuro quando Bryan chega a Monroeville e encontra a irmã, a sobrinha e o sobrinho de
Walter McMillian no vento frio do lado de fora do supermercado IGA em Ollie’s Corner. Ele lhes
conta que o tribunal de recursos ordenou ao tribunal local que considere se o promotor distrital fez
acordos secretos com as duas testemunhas principais contra McMillian, um homem negro de 49
anos que foi acusado de matar uma mulher branca de 18 anos a sangue frio durante um assalto.
Uma testemunha contra McMillian era supostamente seu cúmplice, que se confessou culpado do
assassinato e recebeu uma sentença de prisão perpétua. Em muitos casos de Bryan, está claro
que seus clientes realmente mataram alguém. Mas a evidência contra McMillian é estritamente
circunstancial. Se Bryan conseguir provar os acordos secretos, Walter McMillian terá um novo
julgamento.

“E o resto, está tudo indo bem”, pergunta Bryan.

“Minha filha telefonou para você?”, pergunta a irmã de McMillian.

“Sim, de Mobile. Não tive a chance de ligar de volta”.

“Eles prenderam o filho dela por assassinato”.

“É mesmo?”, diz Bryan, disfarçando seu choque com uma calma estudada. “Diga para ela me
telefonar. Faça com que ela não diga nada à polícia. Ele tem um advogado?”

“Não”.

“Faça com que ela telefone para mim hoje à noite”.

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“Até que hora?”

“Qualquer hora, qualquer hora”.

De volta à estrada, Bryan diz, “Provavelmente é tarde demais”.

Como sempre, Bryan se preocupa primeiro com o homem acusado, mas no momento eu não
consigo deixar de pensar na vítima, para quem já é tarde demais. E eu faço a pergunta que é
inevitável, aquela que tantas pessoas acreditam ser um desafio ao trabalho de Bryan. “Mas, e as
vítimas, as pessoas que os seus homens matam? E os maridos e mulheres, os filhos deles? Esses
assassinos não merecem morrer?”. Bryan permanece calado por um longo momento. “Eu me sinto
pior pelas famílias do que pelos clientes. É a coisa mais difícil”. Ele se cala outra vez. “Mas eu digo
a eles, não me interessa o que você fez, o quanto foi terrível. Estou aqui para tirá-lo da condenação
à morte. Não acredito que você deva ser morto”.

“Não é correto matá-los de volta?”, pergunto eu.

“Não é correto matá-los de volta”, ele responde.

Já é tarde, são quase 23 horas, e no caminho de volta para Montgomery eu fecho meus olhos, muito
cansado, mas Bryan está bem desperto, pronto para voltar ao escritório hoje à noite para trabalhar
em vários relatos e para se reunir com representantes da Anistia Internacional que estão na cidade
visitando o seu centro. A agenda é exaustiva, e Bryan às vezes anseia por um horário normal, uma
mulher, filhos. Mas ele acha o trabalho com os clientes tão absorventes que não pensa muito no que
está perdendo. Além disso, ele considera que ainda é jovem, com tempo de sobra para constituir
uma família mais tarde. Depois de um tempo, já quase chegando em Montgomery, eu pergunto,
“Seus pais nunca entenderam porque você está fazendo isso quando poderia estar ganhando rios
de dinheiro”. Bryan dá risada. “Eles conseguiram me entender recentemente”.

“Quero ser uma testemunha da esperança, da decência e do compromisso”. Bryan havia dito antes
que eu entendesse o que ele queria dizer. “Quero mostrar em mim as qualidades que quero ver nos
outros”.

A motivação de Bryan é “sentir o prazer de Deus”.

Mas seja pela graça do poder de Deus, o poder de uma família forte, decente, ou o poder de algum
entusiasmo psicológico interior, a vida de Bryan é como o espelho do padre: olhando para Bryan,
as pessoas vêem suas próprias falhas e possibilidades. Como os lamedvovniks, Bryan precisa
negar essa força – não porque ele irá desaparecer num lampejo da vontade de Deus, mas porque,
se outros podem chamá-lo “especial”, eles podem desculpar as próprias falhas e evitar o esforço e
a luta para encontrar a bondade em si próprios.

Finalmente, penso em Frederick Smith, amigo de Bryan da Faculdade de Direito de Harvard, o


homem que disse que havia mudado para sempre por ter conhecido Bryan: “Se a religião criou
Bryan Stevenson”, ele disse, “todos nós precisamos de muito mais religi”ao”.

Ah, se fosse fácil assim!

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Quem é Bryan Stevenson

Negro, 31 anos, advogado, PhD Harvard.

- Diretor Executivo do Centro de Recursos de Representação em Pena Capital do Alabama,


Montgomery, Alabama.

- Diretor do programa sem fins lucrativos para recrutar, treinar e orientar advogados encarregados
de casos de pena capital nos tribunais estaduais e federais do Alabama.

- Advogado da Equipe do Comitê de Defesa dos Presos do Sul – Atlanta, Georgia.

- Representação de presos sentenciados à morte e réus condenados à pena capital nos processos.

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