Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Literatura Como Geradora de Experiências - Adrianne Ogêda
A Literatura Como Geradora de Experiências - Adrianne Ogêda
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência no campo da linguagem, com
crianças de 4 a 6 anos de uma instituição de Educação Infantil na cidade do Rio de Janeiro. Através da
abordagem do gênero poesia, a leitura e a escrita foram vividas como práticas expressivas, atravessadas
pelas experiências sócio-culturais do grupo. Assim, o contato com a poesia desdobrou-se em
possibilidades estéticas: objetos transformaram-se em palavras, palavras geraram movimentos, etc. Ao
mesmo tempo que mergulharam no acervo poético brasileiro, as crianças foram sendo mobilizadas por
diferentes estilos e modos de produção que passaram a compor seus trabalhos e suas próprias poesias.
Enfim, percorrendo caminhos da linguagem plástica à poesia ou do gesto à palavra, experimentamos a
linguagem como concretização do pensamento e a produção de significados atravessada pelo afeto e
pelas interações sociais.
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência no campo da linguagem
desenvolvida com um grupo de 13 crianças de 4 a 6 anos numa instituição de Educação Infantil do Rio de
Janeiro, a Casa Monte Alegre. Trata-se de compreender implicações da dimensão expressiva da
linguagem para a prática pedagógica.
Alguns aspectos relativos a forma de organização do trabalho com as crianças, tais como as
divisões dos grupos e a coordenação dos mesmos, serão aqui explicitadas, possibilitando a
contextualização desta experiência. Estaremos também situando o leitor quanto aos princípios teóricos
que subsidiam as práticas desenvolvidas na Casa Monte Alegre, dando destaque às idéias sobre a
função da Educação Infantil, as práticas de leitura e escrita nesse segmento e as relações de linguagem.
Esses aspectos possuem especificidades, mas também estão imbricados, à medida que só podemos
pensar nas práticas de leitura e escrita e na relação com diferentes linguagens, por exemplo, a partir do
que pensamos ser a função da Educação infantil.
Procuramos abrigar, na forma como organizamos os grupos de crianças, a presença da
diferença como mola fundamental para potencializar as trocas de experiências. Sendo assim, os grupos
são compostos por crianças de idades variadas, tendo em vista uma faixa de aproximadamente três anos
1
Diretora da Casa Monte Alegre - Educação Infantil, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, professora da UNESA.
2
Diretora da Casa Monte Alegre - Educação Infantil, Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, professora do Curso de Especialização em Educação Infantil da PUC – RJ.
3
Professora da Casa Monte Alegre - Educação Infantil, Psicomotricista pelo IBMR e especialista em Educação
Infantil pela PUC – RJ.
4
Professora da Casa Monte Alegre - Educação Infantil, Pedagoga pela UERJ e especialista em Educação Infantil
pela PUC – RJ.
de diferença. O grupo com o qual desenvolvemos a proposta aqui apresentada, possui crianças de 4
anos completos até 6 anos. Essa heterogeneidade marcada pela idade implica, para a prática
pedagógica, em levar em conta movimentos, interesses, possibilidades que se diferenciam.
De toda forma, acreditamos que a diferença não é marcada só pela idade. Na verdade, nenhum
grupo é homogêneo. Ao olhar a criança sob esta perspectiva, dispomo-nos a acolher respostas variadas
para mesmas perguntas, expressões distintas, movimentos diversos. Portanto, o ponto de partida de
nosso trabalho sustenta-se no olhar que lançamos à criança, que acolhe a diferença, que não busca a
homogeneização, que está aberto às expressões singulares, próprias dos sujeitos envolvidos.
No dia a dia da Casa Monte Alegre, os grupos são identificados por um nome que é escolhido
pelas crianças ao longo do primeiro bimestre de atividades. Assim, o nome ganha sentido de identidade,
e é escolhido a partir dos interesses infantis, conferindo significado a esse nome. O grupo em questão se
chama “Grupo Gelo” e foi criado no início do ano de 2003, quando as curiosidades acerca desse tema
estavam avivadas.
Dois educadores assumem a coordenação deste grupo, conjuntamente. O desafio da parceria e
da troca entre adultos é também vivido com intensidade nessa disposição. Pensar o trabalho juntos,
organizar as ações, desejos e idéias coletivas, fazer-se presente considerando a presença do outro são
desafios que deslocam o professor do lugar de centralidade que habitualmente assume. Nessa
perspectiva, o professor tem lugar de mediador sim, mas partilha com outro esse lugar, buscando sempre
a parceria do grupo na organização do cotidiano. A perspectiva é a da construção da unidade na
diversidade.
É importante acrescentar que o diálogo com a experiência italiana (Edwards, Forman e Gandini,
1999) leva-nos a apontar a importância de valorizarmos as cem linguagens da criança na formulação do
cotidiano e na perspectiva da construção de uma Pedagogia da Educação Infantil.
Juntamente com Rocha(1999), afirmamos que é fundamental focalizar a especificidade
educativa no trabalho com as crianças de 0 a 6 anos, diferenciando-o do ensino fundamental, à medida
que neste segmento há lugar privilegiado para o domínio dos conhecimentos básicos. A Educação Infantil
define-se pela complementariedade em relação à famíla e, portanto, "tem como objeto as relações
educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança de 0 a 6 anos"
(p.62). Isso não significa que os conhecimentos sistematizados e a aprendizagem não pertençam ao
universo da Educação Infantil, muito pelo contrário!
"a dimensão que os conhecimentos assumem na educação das crianças pequenas coloca-se
numa relação extremamente vinculada aos processos gerais de constituição da criança: a expressão, o
afeto, a sexualidade, a socialização, o brincar, a linguagem, o movimento, a fantasia, o imaginário,... as
suas cem linguagens" (Rocha, 1999, p.62)
De acordo com Vygotsky (1991), nas crianças pequenas, a fala apresenta-se paralela à ação.
As crianças falam enquanto fazem, nomeiam objetos enquanto os exploram, acompanhando de palavras
os movimentos. É no mergulho nas interações, participando de conversas e contextos povoados pelas
palavras em seus usos sociais diversos, que vai acontecendo e fortalecendo-se a diferenciação entre fala
para si (organizadora da experiência, geradora do pensamento) e fala para o outro (comunicativa).
Ao mesmo tempo, o mundo dos significados fixados na cultura vai sendo internalizado e cada
palavra cola-se a um conjunto específico de eventos ou objetos. Uma única palavra quer dizer muito para
a criança pequena. Uma palavra condensa um mundo de possibilidades. Pouco a pouco, no mergulho
nas interações sociais, o acervo de palavras diversifica-se e as possibilidades de significar o mundo
especializam-se, multiplicando-se. Novos sentidos vão sendo descobertos, novas possibilidades de
expressão, à medida que espaços vão sendo abertos para o confronto com o outro, e consequentemente,
a criação, a contraposição entre o antigo e o novo, a realidade e a fantasia.
O significado une pensamento e palavra no desenvolvimento da criança, materializando a
comunicação e as possibilidades de interação social. A palavra é concretização do pensamento que nela
ganha vida e expressão. Nesta corrente viva da linguagem, a fala e a troca social possibilitam a expansão
da criança, ou seja, ir além dos significados convencionais, criando novos sentidos para objetos e
eventos cotidianos.
" a criança está sempre pronta para criar outros sentidos para os objetos que possuem
significados fixados pela cultura dominante, ultrapassando o sentido único que as coisas novas tendem a
adquirir (...) sonhando a vida na ação e na linguagem, descontextualizando espaço e tempo, subvertendo
a ordem e desarticulando conexões, a infância problematiza as relações do homem com a cultura e com
a sociedade" (Jobim e Souza, 1994, p.160)
"o menino que cavalga sobre um pau e imagina que monta um cavalo, a
menina que joga com sua boneca e se crê mãe, as crianças que brincam
de ladrões, soldados, marinheiros, todas elas mostram em suas
brincadeiras exemplos da mais autêntica e verdadeira criação. Verdade é
que seus jogos reproduzem muito do que vêem (...) mas tais elementos
de experiência alheia nunca são levados pela criança nas suas
brincadeiras como eram na realidade. Não se limitam em suas
brincadeiras a recordar situações vividas, mas sim as elaboram
criativamente, combinando-as entre si e edificando com elas novas
realidades de acordo com suas afeições e necessidades" (Vygotsky,
1987, p.12)
"o brinquedo de faz-de-conta, o desenho e a escrita devem ser vistos como momentos
diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento da linguagem escrita"
(Vygotsky, 1989,p.129)
De acordo com o autor, analisando as particularidades da escrita, pode-se afirmar que ela
desloca-se do desenho de coisas para o desenho de palavras, ou seja, de um simbolismo de primeira
ordem (a denotação de objetos) para um simbolismo de segunda ordem (a denotação da fala). No
entanto, a experiência dessa transição não pode ser vista como algo linear e mais evoluído ou bem
formado no futuro, ou seja, tendo como campo de performance ideal da criança a representação do som,
desligada do objeto. Percebemos que ao desenhar, a criança fala e é como se estivesse organizando no
papel o movimento, o fluxo do corpo e do pensamento. Por outro lado, as crianças que usam a escrita
como representação da fala, "precisam" do desenho, complementando o que querem dizer com a
representação do objeto. A relação íntima entre movimento, objeto e desenho, ou ainda, objeto, desenho
e escrita compõe a linguagem da criança.
Ainda, no diálogo com Vygotsky (1989), podemos afirmar que assim como a fala e o brinquedo,
a linguagem escrita e a leitura devem ser necessárias à criança, operando no campo da significação do
mundo. Portanto, "é necessário que as letras se tornem elementos da vida das crianças, da mesma
maneira como, por exemplo, a fala (...) o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita e
não apenas a escrita de letras"(p.134).
Benjamin (1993) abre outra perspectiva sobre a linguagem que contribui no entendimento da
priorização de sua dimensão expressiva. Nesta perspectiva, a linguagem promove a emergência da
capacidade mimética humana, entendida não como ilusão ou engano, para além da cópia ou
representação fidedigna do objeto, mas como possibilidade de produzir semelhanças entre o humano e
os objetos ou a natureza.. A "aprendizagem mimética" se dá no prazer em desnudar a relação entre
objeto e imagem. Ou seja, há prazer, crescimento e deslocamento no movimento de dar sentido que é
gerado na brincadeira de transformar-se nas coisas e misturar-se com elas.
" a mímeses designa um processo de aprendizagem específico do homem (e, em particular, das
crianças). A aquisição de conhecimento é favorecida pelos aspectos prazerosos do processo(...) o
impulso mimético está na raiz do lúdico e do artístico" (Gagnebin, 1987,p.86)
De acordo com Benjamin (1993), a capacidade somente humana de produzir semelhanças foi
sendo transformada com a evolução do homem e as mudanças nas formas de comunicação. Assim, a
leitura/escrita através das vísceras, dos astros, dos acasos, onde se presentificavam produções de
semelhanças no homem primitivo foram sendo substituídas pela linguagem e pela escrita, produzindo um
arquivo de semelhanças extra-sensíveis, onde "o contexto significativo contido nos sons da frase é o
fundo do qual emerge o semelhante, num instante, com a velocidade do relâmpago". (p.132)
Na verdade, a brincadeira da criança, o desenho, a expressão plástica e a escrita são formas
de atualização da produção de semelhanças, à medida que destas elaborações brotam possibilidades
diversas de significar a realidade vivida.
" pelo movimento de seu corpo inteiro, a criança brinca, representa o nome e assim aprende a
falar. O movimento da língua só é um caso particular dessa brincadeira, desse jogo. Para as crianças, as
palavras não são signos fixados pela convenção, mas primeiramente, sons a serem explorados.
Benjamin diz que a criança entra nas palavras como entra em cavernas entre as quais ela cria caminhos
estranhos." (Gagnebin, 1987, p.99)
Percebemos uma grande identidade entre nossa compreensão do brincar, falar, desenhar e
escrever da criança com o trabalho do poeta, à medida que ambos comprometem-se acima de tudo com
o plano do sentido, a relação entre palavra e imagens, palavra e movimento.
Mais do que a rima, a poesia destaca-se pela repetição de sons semelhantes em palavras
próximas, pelo ritmo dos versos, comparações e oposições de sentido, ou seja, recursos que dão
vivacidade, sugestividade e poder de sedução à linguagem. Mais do que aproximar-se do cotidiano da
criança, promovendo relações com a experiência vivida (o que faz a prosa/narrativa), a poesia tende a
chamar a atenção da criança para as surpresas que podem estar escondidas na língua.
Trata-se de descobrir novas possibilidades para palavras já conhecidas, explorar caminhos
inusitados entre as cavernas-palavras, tal como sugeria Benjamin. Na poesia, é possível dizer algo ao
contrário do que é na realidade, criar efeitos novos para elementos já conhecidos, realizar a produção do
"novo" como re-criação do "velho", tal como propõe Vygotsky.
Desta forma, podemos perceber a conexão estreita entre as poesias e a dança, à medida que a
leitura de algumas sugere movimentos, e ritmos. Ou, a conexão com produção plástica, à medida que
alguns objetos e pinturas sugerem poesias e estas mobilizam produção de imagens.
Enfim,
"quando a criança se apropria da linguagem, revelando seu potencial expressivo e criativo, ela
rompe com as formas fossilizadas e cristalizadas de seu uso cotidiano, iniciando um diálogo mais
profundo entre os limites do conhecimento e da verdade na compreensão do real" (Jobim e Souza, 1994,
p.159)
O diálogo da criança com a poesia possibilita essa aventura estética e criativa, pois provoca
uma aproximação do belo e das emoções que ele suscita, à medida que as coisas e acontecimentos
comuns aparecem de maneira nova e palavras também comuns associam-se de modo imprevisto para
gerar efeitos de surpresa, de beleza e de humor.
No intuito de circunscrever uma possível compreensão da poesia, Morin (2002) surge como
interlocutor importante, quando afirma a existência de pelo menos duas linguagens em qualquer cultura:
uma racional, prática, técnica e outra, simbólica, mítica, mágica. A primeira constrói definições, precisão,
apoiando-se sobre a lógica e a objetivação. A segunda, é caracterizada pela metáfora, analogia,
conotação, como aberturas às possíveis significações que circundam cada palavra, cada enunciado,
revelando a subjetividade. De acordo com o autor, o segundo estado pode ser denominado, estado
poético: "o estado poético pode ser produzido pela dança, pelo canto, (...) e, evidentemente, pelo poema"
(p. 36).
É fundamental organizar a experiência da criança nesses dois planos, no sentido de que haja
circulação e diálogo entre eles. Nesta perspectiva, trazer a poesia para o primeiro plano no cotidiano
implica em valorizar a dimensão subjetiva, expressiva e metafórica da linguagem.
“Para mudá-la [a sociedade] são necessários homens criativos que saibam usar sua
imaginação... desenvolvam .... a criatividade de todos para mudar o mundo.” (Gianni Rodari, 1920)
Rodari, nesta citação, faz-nos lembrar que a criatividade é algo inerente aos homens e está
sempre presente no desenvolvimento humano e social. Homem e mundo são infinitamente grandes,
complexos. Como desbravá-los?! Os mundos que estão próximos a nós, aqueles que a nossa
imaginação e ação habilitam-se a criar, estes sim, possuem tamanhos e formas que podemos habitar.
Estão ao alcance de nossas mãos, sonhos, nossa existência.
No início de 2003, após as folias carnavalescas, investigamos que tipo de texto se aproximava
mais das necessidades do Grupo Gelo.
Percebíamos que o movimento do grupo apontava para padronizações. Crianças de quatro a
seis anos descobrindo-se meninos e meninas. Pareciam necessitar marcar igualdades e diferenças.
Nesse sentido, o ser igual, o fazer igual, o estar igual marcava a identidade de cada um e muitas
possibilidades de estarem juntos, de serem reconhecidos. Desejavam ter os mesmos brinquedos, contar
histórias parecidas, vestir-se de modo semelhante. O fazer sempre igual ganhava presença nos
desenhos das crianças, com muitas bonecas compridas, sol, cores, robôs; também nas falas, onde
bastava uma criança responder para que todas as demais dessem a mesma resposta. Verificamos a
presença do sentimento de pertencimento, chave mestre das e nas relações sociais , sendo
experienciado pelas crianças.
O sentimento de pertencimento funciona como um mecanismo utilizado por pessoas e
instituições (máquina social) para referenciarem-se socialmente. Pertencer sugere a possibilidade de ser
nomeado – fazer parte. É um movimento presente no processo do desenvolvimento humano e social.
Porém, fazer da identificação a única forma para estar no grupo, deslocando-a para uma repetição
contínua, favorecia um empobrecer das potencialidades de cada um.
"a questão fundamental é como evitar que as crianças se prendam às semióticas dominantes a
ponto de perder, muito cedo, toda e qualquer liberdade de expressão." (Jobim e Souza, 1994, p.22)
O desafio, neste momento, era poder viver as igualdades abrindo espaços para que as crianças
pudessem se encontrar nas diferentes possibilidades de expressão de cada uma, visto que vivemos
numa sociedade que facilita o processo de massificação e identificação, à medida que “está implicada
com o ideário de uma igualdade, empobrecida nas próprias possibilidades de SER e encantada pela
riqueza do TER.” (VIEIRA, 2001, p.30).
Compartilhamos com Deleuze e Guatarri (apud Jobim e Souza, 2000) quando apontam a
existência de processos heterogêneos no seio do assujeitamento da subjetividade: processos criativos
que produzem desvio, diferença na mesquinharia do “sempre igual”.
A partir da necessidade de instigar o grupo a buscar movimentos de diferenciação,
abrindo espaço para que a singularidade de cada um fosse fomentada, pensamos na poesia como
geradora de possibilidades. Por que a poesia? Pela multiplicidade de imagens que evoca, pelo seu
tangenciamento com o universo da sensibilidade, da emoção, tão particulares a cada um, e tão
subjetivos! Seria com certeza um convite a que a diferença entrasse em nosso cotidiano.
A poesia é um texto por si, sem explicação. Atua na nossa sensação e emoção. Ela nos leva
para outros mundos novos e desconhecidos, encantando-nos. Traz para o primeiro plano a metáfora, a
subjetividade, a criação.
Assim, esse gênero parecia garantir, pela sua forma, sonoridade, imagens a possibilidade de
um encontro único, com cada corpo, cada criança. Um encontro com os desenhos, com as palavras, com
os sons produzidos e sentidos por cada um. Ao ouvirmos uma poesia, compartilhamos risos, sustos,
contentamento, movimento, palavras, sonhos, expressões singulares de nossa história de vida.
Desta forma, a diferença ia sendo encontrada na emoção, nos afetos que nos marcavam:
Eu gosto da do cavalo!
Um momento mágico! Meninas entregues aos encantos e leveza de serem bailarinas. Meninos
envolvidos pela sutileza dos movimentos das meninas – bailarinas.
Um dia, uma menina que acabara de ser bailarina comenta:
- Lembra? Minha mãe veio aqui na escola de bailarina!?
É verdade. Isso aconteceu há uns dois anos atrás, quando sua mãe tinha presenteado o grupo
com uma apresentação de bailarina. Deste encontro tínhamos as nossas lembranças, emoções que
ficaram, fotos e um CD ( gravação de uma música instrumental editada especialmente para a
apresentação).
Colocamos a música ao fundo baixinho e recitamos mais uma vez a poesia de “Cecília”. Esse
encontro da poesia com a música levou todas as meninas ao centro. E como num desejo latente....
surgiram dançantes bailarinas. Os meninos não conseguiram impedir seus corpos pulsantes (cheios de
regras e saberes masculinizados) de entregarem-se ao encontro.
Música, poesia. Adultos e crianças experimentavam suas sensações e criavam na liberdade e
singularidade dos corpos, expressões únicas, inigualáveis, bailando pela sala afora.
Trazer a mãe bailarina que esteve na CMA para o presente, junto com a bailarina da Cecília
Meirelles era levar em conta as histórias que tecemos, que nos constituem e potencializar as relações
que estabelecemos como geradoras de saberes.
Uma poesia tão querida e experimentada precisou ganhar um novo corpo, um corpo coletivo.
Assim, num movimento de registrarmos algo significativo para o grupo, o educador escreveu-a em
conjunto com as crianças. Desse modo, as crianças estavam vivendo uma das funções vitais da escrita:
registrar e guardar nossas lembranças. Nesse sentido, acreditamos que as funções da escrita não devem
ser didatizadas, mas sim, vivenciadas em situações reais de uso, que possam favorecer a que a criança
compreenda seu sentido.
Esta escrita coletiva contou com a participação do grupo na reflexão sobre as letras
necessárias para escrever a poesia. Assim, todos juntos num mesão, deram início à discussão:
- Qual é o título? (educador)
- A bailarina. (crianças)
A escrita coletiva abrange os diferentes saberes das crianças sobre a mesma. Neste momento,
estávamos mais atentas ao reconhecimento das letras e das relações entre sons e letras. Por isso, as
perguntas ficavam em torno de: com qual letra começa, termina? Já escrevemos essa palavra, onde ela
está? No decorrer do texto algumas palavras, como “bailarina, pé, menina, sorrir”... foram sendo
escolhidas pelas crianças para que fizessem desenhos relativos a elas.
Cecília Meireles encanta as crianças com muitas poesias. Uma outra que sobressaiu-se no
grupo foi, “Ou isto ou Aquilo”. Ao lermos a poesia, partimos para a experiência de criar o nosso próprio
Isto ou Aquilo. Esta poesia nos fazia sonhar, viajar pelos caminhos da imaginação num universo de
possibilidades (ou se tem chuva, ou se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva....).
A primeira proposta era brincar com as crianças com esta idéia do Ou isso ou Aquilo. Muitas
composições foram surgindo e observamos que, num primeiro momento o "aquilo" surgia como a
negação do que fora dito antes (ou como carne ou não como carne, ou vou no parquinho ou não vou no
parquinho...). Relemos a poesia outras vezes e cada vez que fazíamos esta releitura, abria-se um
espaço para brincarmos de ou isto ou aquilo, que acabou se tornando uma brincadeira no cotidiano das
crianças (ou vamos brincar na casinha ou vamos brincar no terraço, ou vamos desenhar ou vamos
pintar...).
Propomos então a criação da nossa própria poesia. Tendo o professor como intermediador,
fomos pensando em diferentes possibilidades: -Se você não vai ao parquinho, onde você pode ir? Se
você não come carne, o que você pode comer? Assim, foi-se construindo a compreensão de uma nova
lógica, de uma nova estrutura lingüística que permitia brincar com a idéia da contradição, da
possibilidade. Neste momento o professor assume o papel de escriba do grupo, registrando a idéia que
cada criança imaginou. Neste instante a poesia ganha um corpo, uma forma.
A articulação da criação poética com outras formas de produção se fazia presente em cada
construção do novo. Nesta perspectiva, durante o processo de criação do nosso Ou Isto ou Aquilo, as
idéias foram ganhando formas com desenhos que vinham não só dar vida à poesia, mas serviam também
como suporte para compreensão desta nova lógica que se estabelecia.
Nos encontramos também com Carlos Drumond de Andrade, que fez todo mundo “tropeçar,
cair, pular”, com “Uma pedra no meio do caminho”.
O brincar das palavras desta poesia levou-nos para muitos caminhos. Com ela e seus jogos de
palavras, experimentamos o efeito das palavras sobre o imaginário de cada um. Assim, os registros
individuais nos cadernos tiveram muita inventividade inspirados na pedra e no caminho.
- Meu caminho é de casas.
- Um caminho de pedras.
Uma pedra preciosa surge no meio de um dos caminhos, cujo nome recebido foi o mesmo de
uma das mães das crianças:
- É a Rubi!
- Então Rubi, sua mãe, é pedra preciosa.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1993.
________________. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1994
EDWARDS C., FORMAN G. & GANDINI L. (orgs) As cem linguagens da criança. Porto Alegre: Editora
Artes Médicas, 1999.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago Ed.,
1997.
JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e linguagem, Bakhtin, Vygotsky e Benjamim. Campinas, SP: Papirus,
1994.
JOBIM E SOUZA, Solange e (org.). Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2000.
MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
PAES, J.P. Poesia para crianças. São Paulo: Editora Giordano, 1996.
ROCHA, Eloisa A.C. A pesquisa em educação infantil no brasil. Florianópolis: UFSC, Centro de Ciências
da Educação, Núcleo de Publicações, 1999.
RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus, 1982.
VIEIRA, Nuelna. Espaços de relação e produção de subjetividade na Educação Infantil. Rio de janeiro,
2001. 65p. Monografia (Especialista em Educação Infantil) Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
_______________. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes,1989.
_______________. Imaginacion y el arte en la infancia. México, Ediciones Hispanicas, 1987.