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MARCAS DO VISÍVEL
FREDRIC JAMESON
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© Fredric Jameson
Coordenação Editorial: Maria Elisa Cevasco
Preparação e revisão: Plural Assessoria
Produção gráfica: Katia Halbe
Diagramação: Plural Assessoria
Capa: Ettore Botini
Jameson, Fredric
Marcas do visível / Fredric Jameson; [tradução: Ana Lúcia de AlmeidaGazolla,
João Roberto Martins Filho, Klauss Brandini Gerhardt, Marcos Soares, Neide
Aparecida Silva, Regina Thompson, Roneide Venancio MajerJ.
Rio de Janeiro: Graal, 1995.
95-2754 CDD-791.43
1995
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
7
Sobre o realismo mágico no cinema
por isso, esse terceiro filme parece ter pouco em comum tanto com o
lirismo de La Casa de Agua quanto com a brutalidade atormentada,
sádica mas indiferente de Condores.
Apesar dessas diferenças estilísticas, entretanto, mantenho a im-
pressão de características comuns, das quais isolarei três para discus-
são. Trata-se de filmes históricos; a própria coloração diferenciada de
cada um deles constitui um suplemento singular e a fonte em si mes-
ma de um peculiar prazer, ou fascínio, ou jouissance; em cada um
deles, finalmente, a dinâmica da narrativa foi de algum modo reduzi-
da, concentrada e simplificada, pelo foco na violência e, em menor
grau, na sexualidade. Gostaria de explicar o motivo pelo qual, em
contraste com a concepção latino-americana mais tradicional delineada
acima, essas três características me parecem ser constitutivas de um
certo tipo de realismo mágico. Com efeito, todas elas, de maneiras
diferentes, impõem um encantamento visual, uma fascinação pela ima-
gem em seu presente temporal. Isso se distingue bastante tanto do
desdobramento subordinado ou secundário do olhar em outros siste-
mas narrativos quanto da concepção ontológica de Bazin sobre a to-
mada, considerada por ele um desvendamento do Ser (o que eu tendo
a achar mais pertinente no caso de certos sistemas de fotografia em
preto-e-branco) .
I
Já sugeri que, como obras no gênero histórico, esses filmes podem
ser claramente distinguidos de seus análogos no pós-modernismo, que
acabamos por chamar de cinema nostalgia, bem como da estética e da
concepção de história que caracterizavamuma representação mais antiga
de história associada ao romance histórico mais antigo, no sentido
clássico de Lukács. Em outro trabalho, descrevi o cinema nostalgia
como um substitutivo daquele sistema anterior de representação histó-
rica, e até mesmo como uma virtual formação de um sintoma, uma
compensação formal pelo enfraquecimento da historicidade em nossa
época, como se fosse um fetiche cintilante a serviço daquele desejo
insatisfeitos. No cinema nostalgia, a imagem - o brilho superficial da
realidade de moda de uma época - é consumida, tendo sido transfor-
mada em uma mercadoria visual. Apesar do prazer intensamente visual
do que eu chamaria agora de filmes do realismo mágico, não é exata-
mente dessa forma, acredito, que o sujeito espectador os toma.
O que é tomado é certamente a História, mas nesse caso trata-se
de uma história com brechas, perfurada, o que inclui vazios não visí-
veis de imediato para nós, devido à proximidade de nosso olhar a seus
objetos de percepção. Essas brechas podem ser inicialmente caracteri-
zadas como vazios de informação, mas em uma sucessão de situações
134 / Sobre o realismo mágico no cinema
11
III
o espaço não é, no entanto, a característica mais notável de
Condores, cuja originalidade pode ser melhor percebida através de sua
dinâmica narrativa. Já destaquei o parentesco desse filme com o gêne-
ro de filmes de gângster e Máfia, do qual ele constitui mais uma per-
mutação formal decisiva do que um pastiche pós-moderno. Ele inclui
um diagnóstico especificamente psicológico em sua insistência no pu-
ritanismo do protagonista: seu horror ante a nudez de sua mulher, sua
própria nudez quando ele se banha de pé em um pátio interno jogan-
do-se baldes de água fria. Tal diagnóstico já se tornou convencional há
bastante tempo (e assim está sujeito, espera-se, a um certo ceticismo
saudável) e é reminiscente, com efeito, das várias elucidaçães pop-
psicanalíticasdo militarismoou do fascismo,desde o conceito de Adorno
da "personalidade autoritária" até O Pecado de Todos Nós (Ro/lections
in a Golden Eye, 1967), de John Huston, ou O Conformista, que situam
as "origens" da brutalidade reacionária na homossexualidade reprimi-
da ou em traumas de infância. A novidade de Condores, entretanto
(pelo menos do ponto de vista do Primeiro Mundo), reside no fato de
que o protagonista já é político, vivendo a vida de afiliaçães e antago-
nismos (que precedem sua própria existência, na forma de uma eterna
rivalidade entre liberais e conservadores, azuis e vermelhos, ou algo
do gênero) em um ressentimento tumultuado. Os norte-americanos
também conhecem essa permanência da política no sentido estrito, de
lealdades e hostilidades partidárias que são vivenciadas como um dado
da vida diária com a intensidade de disputas de clãs, em vários lugares
e momentos (Massachusetts, Louisiana, o sistema dos grandes cartéis
na virada do século, que Max Weber tanto admirava), mas nossa litera-
tura, de modo geral, traduziu tais realidades em dramas familiares e
sagas dinásticas, mesmo antes de sua mais recente figuração, elabora-
da no próprio ciclo da Máfia. Em inglês, só o Nostromo,. de Conrad,
vem à mente como sendo uma tentativa de apresentar as realidades
mediterrâneas do fato político nesse sentido, mas até mesmo em Conrad
isso é apresentado como pano de fundo e não como a matéria da vida
diária. Em Condores, entretanto, a paixão política está desde o início
associada ao ressentimento social do futuro protagonista, preso a sua
150 / Sobre o realismo mágico no cinema
6. La Casa de Agua, escrito por Tomás Eloy Martínez e dirigido pelo pintor e
crítico de cinema venezuelano Jacobo Penzo em 1984 (para maiores deta-
lhes, ver Variety, Nova York, 29 ago. 1984); Condores no se Entierran Todos
los Días, dirigido por Francisco Norden, baseado em um romance de Gustavo
Alvarez Gardearzabel, 1984 (para maiores detalhes, ver Variety, Nova York,
16 maio 1984). Tive a sorte de ver esses filmes no Sexto Festival Anual de
Cinema Latino-Americano em Havana, em dezembro de 1984. Que o pre-
sente ensaio seja um símbolo modesto de minha gratidão a meus anfitriões;
dedico-o ã Revolução Cubana.
8. Ver nota 4.
10. "Existe uma palavra latina para designar esse ferimento, essa picada, essa
marca deixada por um instrumento pontudo: a palavra me serve
perfeitamernte porque ela se refere também ã noção de pontuação, e por-
que as fotografias ãs quais estou me referindo são efetivamente pontuadas,
algumas vezes até mesmo salpicadas com esses pontos sensíveis; precisa-
mente, essas marcas, essas feridas são pontos. A esse segundo elemento que
vem perturbar o studium eu chamarei portanto de punctum ... Um punctum
é aquele acidente que me pica (mas também me machuca, que é lancinante
para mim)". (Roland Barthes, Camera Lucida. Trad. para o inglês por Richard
242/ Notas
Howard. Nova York, Hill and Wang, 1981, p. 26-7). O conceito analítico de
Barthes constitui um ponto de partida necessário, mas nada mais do que
isso; ele está para a investigação da imagem fotográfica mais ou menos
no nível do conceito de "paradoxo" do New Criticism para o da linguagem
poética há uns trinta anos.
11. Ver Jean-Paul Sartre, Tbe Flies (Les Moucbes) and In Camera (Huis Cios).
Trad. para o inglês por Stuart Gilbert (Nova York, Vintage Books, 1949,
p. 71).
16. O emblema alegórico de tal estética pode então ser visto - em seus limites,
bem como em seu poder - na cena do assassinato em O Conformista, na
janela levantada do carro trancado atrás da qual o protagonista presencia o
apelo desesperado e ultrajado de sua amante, enquanto ela golpeia o vidro.
18. Pablo Armando Fernández, Ios ninos se despiden (Havana, Casa de Ias Amé-
ricas, 1968, p. 118).
21. Stanley Cave]], Tbe World Viewed: Reflections on tbe Ontology of Film
(Cambridge, Harvard University Press, 1979, p. 89, 91). Ele conclui assim o
argumento:
23. Ver a versão ampliada de meu ensaio "Ideology of the Text" em 1be Ideologies
of1beory (Minnesota, University of Minnesota Pfess, 1988, v. 1, p. 17-71).
24. Ver, em especial, Julio García Espinosa, Una imagen recorre el mundo (Ha-
vana, Editorial Letras Cubanas, 1982); e Tomás Gutiérrez Alea, Dialéctica
dei espectador (Havana, Unión de Escritores y Artistas de Cuba, 1982).
26. "Espacialidade", no sentido utilizado por Joseph Frank em seu famoso en-
saio, se aproxima mais de um arranjo sincrônico com objetivos mnemônicos
(o que é comparável ao igualmente conhecido Art of Memory, de Frances
Yates) do que das considerações fenomenológicas, estruturais ou dialéticas
do espaço, de Gaston Bachelard a Henri Lefebvre.