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Tania Mara Antonietti lopes

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MARCAS DO VISÍVEL

FREDRIC JAMESON

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© Fredric Jameson
Coordenação Editorial: Maria Elisa Cevasco
Preparação e revisão: Plural Assessoria
Produção gráfica: Katia Halbe
Diagramação: Plural Assessoria
Capa: Ettore Botini

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jameson, Fredric
Marcas do visível / Fredric Jameson; [tradução: Ana Lúcia de AlmeidaGazolla,
João Roberto Martins Filho, Klauss Brandini Gerhardt, Marcos Soares, Neide
Aparecida Silva, Regina Thompson, Roneide Venancio MajerJ.
Rio de Janeiro: Graal, 1995.

Título original: Signatures of the visible.


Bibliografia.

1. Filmes cinematográficos L Título.

95-2754 CDD-791.43

Índices para catálogo sistemático:

1. Filmes cinematográficos 791.43

EDIÇÕES GRAAL LTDA


Rua Hermenegildo de Barros, 31A
CEP 20241-040
Rio de Janeiro - RJ
Te!.: (021) 252-8582

1995
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
7
Sobre o realismo mágico no cinema

o conceito de realismo mágico provoca uma série de problemas,


tanto teóricos quanto históricos. Deparei-me com ele pela primeira vez
no contexto da pintura norte-americana em meados da década de 50.
Mais ou menos na mesma época, Angel Flores publicou, em inglês, um
artigo bastante influente no qual o termo era aplicado à obra de Borges1.
Mas a concepção de Alejo Carpentier do real maravilloso parecia, de
imediato, oferecer uma visão análoga ou alternativa, ao passo que sua
própria obra e a de Miguel Angel Asturias pareciam requerer que se
ampliasse sua aplicaçã02• Finalmente, com os romances de Gabriel
García Márquez nos anos 60, abriu-se um domínio inteiramente novo
do "realismo mágico", cujas exatas relações com a teoria e a prática
romanescas anteriores continuavam indefinidas. Esses problemas
conceituais surgem com maior clareza quando a noção de "realismo
mágico" é justaposta a termos concorrentes ou que se lhe sobrepõem.
No início, por exemplo, não estava claro de que forma ele se distingui-
ria da categoria mais abrangente que era em geral chamada simples-
mente de literatura fantástica: aqui, o que está presumivelmente em
questão é um certo tipo de narrativa ou representação que deve ser
distinguido do "realismo". Carpentier, entretanto, explicitamente apre-
sentou sua versão em uma realização latino-americana mais autêntica
do que, no contexto europeu mais reificado, assumiu a forma do
surrealismo. Sua ênfase parece ter sido em uma certa transfiguração
poética do próprio mundo objetivo: não exatamente uma narrativa
fantástica, mas sim uma metamorfose na percepção e nos próprios
objetos percebidos. Meu próprio enfoque manterá algumas relações
com essa acepção. Em García Márquez, finalmente, essas duas tendên-
cias pareciam ter chegado a um novo tipo de síntese - u'm mundo
objetivo transfigurado no qual os acontecimentos fantásticos são tam~
bém narrados. Mas, nesse ponto, o foco da concepção de "realismo
mágico" parece ter se deslocado em direção ao que se poderia consi-
derar uma perspectiva antropológica. O realismo mágico passa então a
ser entendido como um tipo de matéria-prima narrativa derivado es-
131
132 / Sobre o realismo mágico no cinema

sencialmente da sociedade camponesa e valendo-se, de forma sofisti-


cada, do mundo mítico camponês ou mesmo tribal. Nesse aspecto, as
associações mais claras desse modo se dariam com textos como os de
Tutuola, na Nigéria, ou Macunaíma, do escritor brasileiro Mário de
Andrade (928).
Debates recentes complicaram mais ainda a questão ao levantar
um outro tipo de problema: o do valor político ou mistificador,respecti-
vamente no caso dos exemplos acima, de tais tipos de textos, muitos
dos quais devemos a escritores abertamente esquerdistas ou revolucio-
nários (Asturias, Carpentier, García Márquez)3.Apesar dessas comple-
xidades terminológicas - que poderiam nos levar a deixar o conceito
totalmente de lado -, ele mantém uma estranha sedução, que tra-
tarei de continuar explorando. Aumentarei a confusão ao incluir pon-
tos de referência derivados da obra de ]acques Lacan e da noção
freudiana do "estranho familiar", e articulando-os à alegação de que o
"realismo mágico", agora deslocado ao domínio do cinema, deve ser
visto como uma alternativa possível à lógica narrativa do pós-moder-
nismo contemporâne04.
Na verdade, um importante filme polonês - Fever, 1981, de
Agnuszka Holland -, colocou-me na pista, se não do próprio "realis-
mo mágico", ao menos do sentido privado ou pessoal que devo estar
conferindo a esse termos. A Polónia em geral, e mais especialmente os
movimentos revolucionários poloneses de 1905 (o assunto do filme),
parecia ser um ponto de referência bastante inesperado e peculiar, até
que suas afinidades com certos filmes latino-americanos ficaram mais
evidentes para mim. Estou pensando em particular em uma recente
produção venezuelana chamada Ia Casa de Agua, sobre uma figura
histórica, Cruz Elías León, um poeta venezuelano do século XIX que
contraiu lepra. E, ainda, em um filme colombiano chamado Condores
No Se Entierran Todos los Días6, sobre um gângster e assassino político
do final do século passad07. Ambos os filmes apresentam violência
política - prisões, tortura, execuções e assassinatos - mas são extre-
mamente diferentes no tom. O primeiro oferece uma realidade visual
estranha e poética e, o segundo, uma interminável e até mesmo impla-
cável série de atos de violência ininterruptos, filmados em tecnicolor
rico mas convencional. Fever, por outro lado, fixa-se de maneira até
mais obsessiva na violência e em particular no assassinato como arma
política, na tradição anarquista do "terrorismo" ou da propaganda
pelas ações, no espírito das tentativas de assassinato dos czares, da
bande à Bonnot ou do Haymarket, do Secret Agent de Conrad, ou do
IRAjá bem em nossa época. O filme é de fato a história de uma bom-
ba, cujo complicado itinerário e destino podemos acompanhar desde
sua construção por um químico revolucionário até sua detonação fi-
nal, em um lago, por especialistas czaristas em explosivos. A não ser
Sobre o realismo mágico no cinema / 133

por isso, esse terceiro filme parece ter pouco em comum tanto com o
lirismo de La Casa de Agua quanto com a brutalidade atormentada,
sádica mas indiferente de Condores.
Apesar dessas diferenças estilísticas, entretanto, mantenho a im-
pressão de características comuns, das quais isolarei três para discus-
são. Trata-se de filmes históricos; a própria coloração diferenciada de
cada um deles constitui um suplemento singular e a fonte em si mes-
ma de um peculiar prazer, ou fascínio, ou jouissance; em cada um
deles, finalmente, a dinâmica da narrativa foi de algum modo reduzi-
da, concentrada e simplificada, pelo foco na violência e, em menor
grau, na sexualidade. Gostaria de explicar o motivo pelo qual, em
contraste com a concepção latino-americana mais tradicional delineada
acima, essas três características me parecem ser constitutivas de um
certo tipo de realismo mágico. Com efeito, todas elas, de maneiras
diferentes, impõem um encantamento visual, uma fascinação pela ima-
gem em seu presente temporal. Isso se distingue bastante tanto do
desdobramento subordinado ou secundário do olhar em outros siste-
mas narrativos quanto da concepção ontológica de Bazin sobre a to-
mada, considerada por ele um desvendamento do Ser (o que eu tendo
a achar mais pertinente no caso de certos sistemas de fotografia em
preto-e-branco) .
I
Já sugeri que, como obras no gênero histórico, esses filmes podem
ser claramente distinguidos de seus análogos no pós-modernismo, que
acabamos por chamar de cinema nostalgia, bem como da estética e da
concepção de história que caracterizavamuma representação mais antiga
de história associada ao romance histórico mais antigo, no sentido
clássico de Lukács. Em outro trabalho, descrevi o cinema nostalgia
como um substitutivo daquele sistema anterior de representação histó-
rica, e até mesmo como uma virtual formação de um sintoma, uma
compensação formal pelo enfraquecimento da historicidade em nossa
época, como se fosse um fetiche cintilante a serviço daquele desejo
insatisfeitos. No cinema nostalgia, a imagem - o brilho superficial da
realidade de moda de uma época - é consumida, tendo sido transfor-
mada em uma mercadoria visual. Apesar do prazer intensamente visual
do que eu chamaria agora de filmes do realismo mágico, não é exata-
mente dessa forma, acredito, que o sujeito espectador os toma.
O que é tomado é certamente a História, mas nesse caso trata-se
de uma história com brechas, perfurada, o que inclui vazios não visí-
veis de imediato para nós, devido à proximidade de nosso olhar a seus
objetos de percepção. Essas brechas podem ser inicialmente caracteri-
zadas como vazios de informação, mas em uma sucessão de situações
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espaClals percebidas de forma demasiado intensa para que a mente


tenha tempo de colocar suas outras questões. De fato, por qualquer
razão, os três filmes em questão parecem pressupor um extenso co-
nhecimento prévio de sua moldura histórica, de tal modo a abster-se
de toda exposição, e também para apropriar-se antecipadamente do
gesto tradicional do início:
Por volta do crepúsculo de um dia de novembro do ano de 1812,
tomando a rua Campostela em direção ao norte da cidade, dirigia-
se uma carruagem de duas rodas puxada por duas mulas, uma das
quais montada, como se usava naquela época, por um cocheiro
negro.

Prefiro sugerir, ao contrário, que esses filmes mais recentes pres-


supõem alguma familiaridade já existente com os lugares e pessoas
desfilando ante nossos olhos, se eu não quisesse reservar esse termo
carregado para algo bem diferente. Isso tampouco se compara ao in
medias res épico, que é marcado, ainda mais claramente que o início
clássico de romances, como um conjunto de dados cujas origens e
significados pode-se esperar calmamente que venham a ser divulga-
dos no momento convencionalmente adequado ..
E, em geral, parece-me que devemos aguçar nossa consciência
com respeito ao choque da entrada na narrativa, que se parece com
freqüência à imersão experimental do corpo em um elemento não
familiar,com todas as ansiedades subliminares relacionadas a tal imersão:
o medo semi-articulado do que está escondido atrás da superfície do
líquido, uma sensação de vulnerabilidade ao lado de um horror arcaico
do contato impuro com a sujeira. E, ainda, a antecipação do cansaço,
do esforço intelectual exigido pela lenta aprendizagem sobre persona-
gens desconhecidos e suas situações complicadas, como se, sob a
excitação superficial da aventura prometida, persistisse uma profunda
ambivalência com relação ao anunciado sacrifício do Eu em prol do
texto narrativo. Necessitaríamos de uma fenomenologia histórica com
tais pontos de entrada, um inventário das cortinas que se abrem com
galhardia ou dos vários batentes e aberturas através dos quais se solicita
que introduzamos nossas cabeças, ou dos graus de ângulos ao longo
dos quais espreitamos, e do teto, ou visibilidade rebaixada, desse es-
paço narrativo que estamos a ponto de habitar. Uma das características
mais surpreendentes da poética naturalista de Zola, por exemplo, é
encontrada nos espaços terríveis, escurecidos, agourentos e ainda mal
definidos das páginas iniciais de seus melhores romances: a chocante
escuridão pré-alvorada na chegada a Paris das carroças de verduras
em Le Ventre de Paris; ou ainda, o quarto com uma vista do terminal
ferroviário na Gare Saint-Lazare em La Bête humaine, um espaço cla-
ro e arejado, bem alto, e a ponto de ser galvanizado por uma cena de
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indizível desespero. No entanto, o que é um presságio em Zola é ainda


uma função da perspectiva narrativa, e um reflexo antecipatório, atra-
vés do qual o romancista confirma com antecedência a unidade fatal
da cadeia de acontecimentos que está a ponto de se desenrolar.
a ponto de entrada dos filmes do realismo mágico é bem dife-
rente disso, embora eles incluam especificamente antecipações de acon-
tecimentos posteriores ou até mesmo ligados ao clímax. Por exemplo,
em Fever, uma onda vertical de água projetada pela detonação final da
bomba é inserida na seqüência inicial de sua construção pelo químico.
Já em La Casa de Agua, o confinamento do poeta em um poço profun-
do fica empalidecido e menos real pelas tomadas das planícies de sal
nas quais, perante o olhar de camponeses trabalhadores, alguns revo-
lucionários em fuga mas cheios de heroísmo desesperado são abatidos
a tiros pela milícia do ditador. Em seqüências posteriores na vila de
pescadores são também inseridos flashes de um cortejo funerário no
meio da lama e da chuva - o destino final do poeta. No entanto, tais
antecipações têm pouco valor como indícios narrativos em uma situa-
ção na qual não há nenhuma promessa de unidade narrativa. Mesmo
assim, essas tomadas entram em combinações químicas peculiares com
as seqüências de imagens às quais foram interpoladas, como se esti-
vessem oferecendo uma amostra brutal de uma série de exposições
visuais: o laboratório preto brilhante do químico ao lado da paisagem
cinza líquida do lago em erupção, a opacidade verde embolorada da
pedra bem ao lado da ofuscante brancura de uma extensão de sal. No
entanto, por razões que serão sugeridas posteriormente, tais permuta-
ções do olhar, que o estimulam e o intensificam, não se valem disso
para, como ocorre no pós-modernismo e no cinema nostalgia, trans-
formar seus objetos em imagens no sentido mais forte do term09.
Entretanto, tais rupturas e descontinuidades iniciais se distinguem
também claramente dos mistérios da exposição do modernismo ante-
rior, cujos enigmas tinham menos a ver com as complexidades de seu
assunto do que com as decisões peremptórias e supremamente arbi-
trárias do demiurgo modernista clássico. A abertura de Sanctuary é,
nesse sentido, canõnica: suas personagens surgem ante nós em uma
estranha familiaridade "sempre-já" (always-already) como se já tivés-
semos de saber quem eram Templé, Popeye e o senhor da Virgínia -
e no entanto a familiaridade aqui é a de Faulkner, e não, ainda, a do
leitor. Foi o próprio autor que optou por omitir os fatos, bem como a
explicação (não muito complicada) da confluência coincidente e pre-
maturamente climática de suas duas linhas narrativas. a mistério, aqui,
reforça o prestígio do auteur e exige o tributo mais pessoal de uma
certa preocupação e desconcerto a respeito do que ele devia ter em
mente (sua intenção). Essa estrutura é reproduzida estilisticamente pelo
ponto de vista narrativo do notório pronome "catafórico", no qual uma
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terceira pessoa inicial ou um "ele" ou "ela" neutros garante nossa iden-


tificação na leitura, mas nos obriga a esperar pelo nome próprio e pelo
estado civil.
Embora tais categorias tenham sido desenvolvidas na teoria cine-
matográfica, particularmente para a análise de narrativas tradicionais
ou hollywoodianas, a estrutura mais profunda do meio as exclui, por
razões que a evolução do cinema contemporâneo esclarece. O sujeito
unificado, rapidamente gerado por textos verbais, pode ser posto em
questão no cinema, apesar de seu florescimento final na unificação
estilística dos trabalhos dos grandes auteurs modernistas clássicos: a
câmera, a aparelhagem, a máquina, substitui o sujeito da enunciação,
da mesma forma que o imediatismo da visão desloca o sujeito da
recepção. Nossa segurança e confiança iniciais em uma narrativa
unificada que estaria por vir foi destruída sem retorno pelas interven-
ções do cinema experimental: já não nos encontramos mais em mãos
confiáveis, pode ser que as coisas nunca se articulem. E mesmo se elas
se articularem, um outro ritmo, bem diferente, foi conferido ao proces-
so narrativo. Em Fever, por exemplo, é somente lá pela segunda hora
de filme que percebemos repentinamente a forma como eu a expus
nua e falaciosamente acima - a bomba como um "artifíciounificador",
os acontecimentos como um tipo de La Ronde de assassinatos políti-
cos no qual, em vez do falo lacaniano, é o instrumento de morte que
atravessa e assim liga uma série de destinos não relacionados (voltarei
mais adiante a essa disjunção particular). No entanto, essa descoberta
retardada e retroativa do fio narrativo - cuja engenhosidade formal
pode ser admirada na fantasia coleridgiana - permanece desvinculada
da experiência vivida do próprio filme e definitivamente distanciada
estruturalmente dele, de tal maneira que duas visões diferentes de
Fever ficam registradas.
Outra coisa, com efeito, é a própria bomba como objeto de per-
cepção, e é realmente com isso que se inicia o filme: um enorme close-
up surpreendente do metal áspero entremeado com pontas de dedos
humanos, grosseiros e desajeitados nesse grau de ampliação, ou até
mesmo sempre desajeitados devido ao medo, e levemente trêmulos,
diante das vicissitudes do contato com um objeto tão delicado e tão
mortífero. A coisa em si, ainda não identificada, é bastante peculiar:
um cilindro, mas com desenhos sombreados com linhas cruzadas, como
as farpas de uma flecha, ou os caules nus horizontais de uma árvore
estranha. Esses dois conjuntos interseccionais de varetas constituem
supostamente os eixos, quatro e mais quatro, que deverão rodar uns
sobre os outros para selar ou abrir o dispositivo, trancado pelo tubo
de um parafuso enfiado como em um torpedo. Mas o que é realmente
surpreendente - o que constitui o punctum da fotografia, no sentido
de Barthes10 - não é sua atração para nenhum sentido tátil, nem mes-
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mo a questão da cor (da qual tratarei mais tarde, conforme prometi):


mas sim a novidade total desse objeto metálico brilhante; nem mesmo
isso, em si e por si mesmo, mas sim a contradição entre essa limpeza
lustrosa do metal novo e o mundo antigo, o mundo historicamente tão
antigo no qual o filme parece acontecer. É como se, naquele mundo
periclitante da Europa Central pré-revolucionária, não pudesse haver
objetos novos, e certamente não se pudesse ter "tecnologia" em um
sentido contemporâneo de ciência-e-indústria! Esse pensamento con-
fuso - a tentativa de pensar uma percepção, realmente - encena e
intensifica o paradoxo estrutural do romance histórico em geral: ler o
passado através de um presente temporal, viver em um presente mar-
cado como um tempo passado e velho, morto e enterrado. Assim, o
filme nos traz de volta uma novidade impossível para fazer com que
nos confrontemos, em estado de confusão, com a conjunção impensável
entre nosso presente no tempo e essa história antiga: momento em
que, inexplicavelmente, gotas grossas de sangue fresco caem lenta-
mente sobre o cilindro, e a câmera sobe vagarosamente até mostrar o
inventor chupando o dedo cortado - não o grande perigo da
autodestruição, mas sim um perigo menor que tem simplesmente a
prioridade ontológica de ser real. As gotas de sangue conjuram algo
para além do tátil dentro da enorme imagem bidimensional, transfor-
mando o espiralado e atarracado dos dedos manchados nesse novo
reino visual. O que resulta disso não é uma Imagem, no sentido técni-
co de "desrealização", mas sim uma outra coisa, que nos falta explicar,
e que desvia a lógica narrativa convencional da história em desenvol-
vimento em uma nova direção vertical, ao mesmo tempo em que atua
em seus elementos através da mediação do próprio corpo.
O significado do título Ia Casa de Agua é também designado na
tomada inicial, cuja clausura o transforma, no entanto, em um emble-
ma alegórico com valor próprio: um jovem, nu, lutando em uma escu-
ra piscina rasa de água contida por paredes de pedra, como o fundo
de um velho poço, seus esforços desesperados de inventar uma posi-
ção confortável (de pé, deitado, boiando, inclinando-se), conseguindo
apenas, no final, uma máscara de angústia jogada para trás, em um
grito mudo. Isso se revelará, mais tarde, como mais uma antecipação,
já que o episódio do confinamento solitário na água ocorre na narrati-
va subseqüente no momento em que o poeta é encarcerado por ra-
zões políticas, um confinamento durante o qual ele contrai lepra. A
imagem alegórica inicial revela-se assim um [oeus de transição sêmica
e, de fato, o quiasmo crucial ou a contradição sêmica dentro dessa
obra, cujo mistério e horror estão nos dois destinos superimpostos,
mas injustificáveis e insuportáveis, que afligem o protagonista inocen-
te. Primeiro, a perseguição política e a tortura pela polícia do ditador
(uma espécie caricatural de homens-suínos, vivendo dentro do
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campesinato de mineiros de sal e pescadores como uma raça alienígena


e grotesca), destino ao qual o outro é gratuitamente acrescentado,
como para expandir aquele sofrimento histórico no sentido da cruel-
dade metafísica da própria Natureza. Trata-se, então, da segunda per-
dição da doença natural, que gradualmente talha o corpo do protago-
nista de acordo com sua própria lógica, reesculpindo suas feições clás-
sicas em uma nova máscara de vergões e excrescências, como um
monstro do espaço sideral.
Em um certo extremo da literatura burguesa contemporânea, mais
claramente no existencialismo, a confusão ideológica entre Natureza e
História chega à superfície da consciência, na forma de uma contra-
dição ainda não articulada reflexivamente entre política e metafísica,
entre o "pesadelo da história" - ainda atribuível à crueldade dos ou-
tros - e uma visão mais ontológica de uma Natureza implacável na
qual "Deus é o primeiro criminoso, já que nos fez mortais"ll. A peste,
de Camus, oferece a expressão mais concentrada dessa derrapagem,
que emerge como uma ideologia plenamente desenvolvida quando o
projeto histórico nazista é representado através do conteúdo daquela
coisa bem diferente, uma epidemia bacteriológica convulsiva que in-
terfere na teia de destinos humanos privados para destruí-los em uma
extinção injustificada e propriamente absurda. De fato, essa derrapa-
gem articula duas perspectivas distintas: uma propõe uma análise política
e histórica capaz de energizar seus espectadores no sentido da mudan-
ça e da práxis mesmo nas circunstâncias históricas mais desesperadoras,
ao passo que a outra perpetua uma visão metafísica, em última análise
complacente, da falta de sentido da vida orgânica, para a qual a res-
posta seria, na melhor das hipóteses, um estoicismo ético privado como
no "mito de Sísifo". Note-se que a contaminação de duas linguagens
incompatíveis tem sido cada vez mais, em nossa época, identificada
como uma fonte poderosa de despolitização. Em La Casa de Agua,
entretanto, essa mesma incompatibilidade é destacada como o assunto
da própria obra, que a dramatiza e articula como uma contradição
irresolvível de tal maneira que as inferências e ressonâncias ideológi-
cas da identificação mais antiga ficam estruturalmente bloqueadas.
Voltaremos mais tarde a essa estrutura inesperada e sua função
narrativa. Da mesma forma, formularemos algumas questões básicas
sobre a relação entre o tema ideológico e as superfícies visuais assus-
tadoras desse filme do realismo mágico. Enfim, a água é claramente o
loeus de transformação no qual a maldade humana é trocada pela
força irresistivel da doença orgânica e natural: um significante (água
parada, lodosa e estagnada) desenvolvido e articulado, construído,
através de oposições aos pólos significantes da aridez deslumbrante
da planície de sal, por um lado, e, por outro, a limpeza do mar no qual
a família do poeta executa seu ofício imemorial.
Sobre o realismo mágico no cinema I 139

Condores No Se Entierran é, aparentemente, uma obra mais con-


vencional, cujas lições e pontos de interesse para nós podem ser desta-
cados mais facilmente. Os filmes latino-americanos (juntamente com
seu pastiche europeu, como em alguns filmes de Werner Herzog)
freqüentemente se identificam através de um logotipo que pretende
significar a irnensidão do próprio continente: uma tomada aberta e pano-
râmica de uma enorme extensão de vegetação da floresta que surge e
se põe em um horizonte ilimitado. Mas, em Condores, essa abertura já
virtualmente convencional é remotivada pelo ponto de vista, pois per-
cebemos que a tomada se origina no olhar panorâmico do predador
eponímico em pleno võo. A paisagem fica então reduzida à domesticação
mágica da fazenda coberta pela neblina leve, e também à própria sede
da fazenda, com duas crianças brincando na escada da frente em uma
cena pastoral idílica não muito diferente dos filmes populistas norte-
americanos contemporâneos ambientados no Meio-Oeste do passado.
Nessa paz rural ocorre uma intrusão que também tem um análogo
norte-americano: um veículo cheio de brutamontes cuja semelhança
com os filmes norte-americanos de gângsteres é óbvia. O que segue,
então, de maneira previsível, é o massacre da família, incluindo as
crianças, a tiros de revólver: o punctum desse horror gratuito sendo o
próprio desajeitamento da operação, a rigidez e o jeito canhestro dos
pistoleiros que vão subindo com dificuldade e escorregando pelo ter-
reno úmido da fazenda. Gostaria de dizer que se trata de algo na linha
de uma falta de jeito constitutiva e não simplesmente o resultado da
inaptidão ou estupidez individuais ou hesitação caracterológica, como
na cena terrível em Fever na qual um traidor é executado sem perícia
por um militante que nunca tinha usado uma pistola, e que fica dando
tiros seguidos em várias partes do corpo do traidor, no chão empoeirado
e ao redor dele, e no corpo 'agora encolhido mas tenso pelo esforço
também desajeitado de subir uma pequena colina.
Em Condores aproximamo-nos da fenda estilística ou genérica
que separa o realismo mágico do cinema nostalgia (há mesmo, como
veremos a seguir, uma longínqua associação ideológica com O Confor-
mista [Il Conformista, 1970] de Bertolucci, o protótipo mesmo da alter-
nativa pós-moderna). A antigüidade novíssima e reluzente da limusine
dos gângsteres, por exemplo, funciona claramente como um signo
duplo e já convencional do cinema nostalgia de período histórico (ou,
mais propriamente, relativo a uma geração) específico e um paradigma
específico de gênero (nesse caso, o filme de gângster ou Máfia) com
relação aos quais a versão pós-moderna se colocará como um pastiche.
Essa dinâmica inicial do cinema nostalgia, entretanto, passará a ser
subvertida de várias formas à medida que o filme se desenrola: esse
elemento específico é, em particular, totalmente transformado através
de sua recorrência no final do filme, no qual (contrariamente a todas
140 / Sobre o realismo mágico no cinema

as expectativas) o Condor é finalmente morto - a rua deserta de uma


cidade pequena, à noite, um veículo agourento parado, sem motivo,
ao lado dos muros mais arcaicos e portas duplas de madeira, fechadas,
o Condor assassinado quando está caminhando no escuro sem guar-
da-costas como gostava de fazer (por razões de psicologia bem como
de prestígio). Mas essa seqüência final apresenta um linguagem de
concretudes totalmente alheia às superfícies brilhantes do cinema nos-
talgia: o veículo ocupando um volume distinto escultural no fundo da
tomada, enquanto o corpo do Condor está esticado em dimensão re-
duzida nas pedras com a protuberância inerte de uma pietà de Mantegna.
Aqui, entretanto, o paradoxo se torna fiel à injustificada facilida-
de com a qual o monstro é destruído: o título já havia indicado sua
invencibilidade - "não se enterram condores todos os dias" -, anun-
ciando, assim, o episódio central, no qual frutas envenenadas são leva-
das à casa do Condor mas terminam por ser comidas pelo assassino e
por sua esposa-empregada. Segue-se uma inspeção calma e interminá-
vel de sua agonia, os dois corpos se contorcendo e esticados lado a
lado na cama de casal, seus espasmos cegos e silenciosos justapostos
como um comentário irônico sobre a coabitação desses dois solitários
indivíduos mudos e sem amor. Um médico de classe média presencia
a longa noite de agonia, ele mesmo desconfiado e cauteloso, clara-
mente perturbado pela dubiedade de sua própria situação, já que sua
profissão demanda que ele salve a vida do indivíduo poderoso, temi-
do e odiado, mas que ele seguramente preferiria, como todo mundo
na vila, deixar morrer. Enquanto isso, à medida que a notícia do enve-
nenamento chega ao povo, uma festa popular improvisada irrompe de
noite na rua lá fora - foguetes, violões, muita bebida, a euforia pura
da libertação da existência opressiva nas mãos do já lendário assassi-
no, cuja força física sobre-humana, entretanto, faz com que ele sobre-
viva à prova. O silêncio da manhã seguinte é marcado pela tomada de
um fosso ao lado de uma estrada rural no qual foram jogados de
qualquer jeito os cadáveres dos músicos da noite anterior (que corteja-
vam e faziam serenatas para a filha do Condor). Nesse episódio, tam-
bém, o volume é construído pelas cólicas estomacais e agonia intesti-
nal dentro dos corpos das vítimas envenenadas, e o sofrimento interno
confere a essas formas humanas um vulto e dimensão que subvertem
a lógica superficial e estritamente visual da imagem nostálgica.
Como colocado até aqui, esse argumento continua sendo um
argumento formal, que trata de diferenciar dois modos cinematográfi-
cos distintos pelos quais um certo conteúdo ou matéria-prima históri-
cos podem chegar a uma representação (embora eu prefira a palavra
"figuração"). O cinema nostalgia, em geral de maneira consistente com
suas tendências pós-modernas, procura gerar imagens e simulacros do
passado, para produzir assim, em uma situação social na qual a
Sobre o realismo mágico no cinema / 141

historicidade ou as tradições de classe genuínas se enfraqueceram,


algo como um pseudopassado para consumo como compensação e
substitutivo. Ocorre também um deslocamento do tipo diferente de
passado que era, juntamente com visões ativas do futuro, um compo-
nente necessário para grupos de pessoas em outras situações no sen-
tido da projeção de sua práxis e da energização de seu projeto coletivo.
Mas o relato de uma alternativa formal diferente dessa descrita
aqui ainda está incompleto e será desenvolvido a partir de agora. Mas
é importante nesse momento que se complete essa descrição essenci-
almente formalista com a perspectiva mais difícil da relação de tais
linguagens formais com a própria estrutura da matéria-prima da qual
elas se apropriam, com o que chamo, em outro trabalho, de sua "lógica
de conteúdo" (a concepção de "substância" de Hjelmslev), ou, em
outras palavras, com algum tipo de inflexão dialética de um código
formal pela própria estrutura da matéria-prima sobre a qual ele acre-
dita exercer um poder soberano ou mestria de formar12. Realmente, já
sugeri anteriormente que a matéria-prima privilegiada pelo cinema nos-
talgia parece ser tirada de um passado social mais recente, indo da era
de Eisenhower e a década de 50 nos Estados Unidos e recuando até os
anos 30 ou 2013. A categoria organizacional invisível de tais escolhas e
afinidades é, portanto, essencialmente de geração, e o ressurgimento,
nos anos 60, do conceito ou categoria de "geração" como uma manei-
ra de narrativizar a experiência vivida e as visões mais amplas da histó-
ria recente constitui sem dúvida um sintoma muito significativo.
As matérias-primas do que venho chamando de cinema realista
mágico parecem-me ser bastante diferentes dessas do cinema nostal-
gia, embora esteja claro que meu exemplo aqui é estatisticamente ina-
dequado e depende muito dos acidentes da visão pessoal. A questão
é, entretanto, que os períodos históricos mais remotos nos quais esses
filmes são localizados - embora eles de nenhuma maneira excluam
paralelos e analogias com o presente - resistem a uma assimilação ao
pensamento e à reescrita de gerações14. A atividade revolucionária na
Polônia de 1905, a pré-história da guerra civil colombiana ou a Venezuela
ainda mais arcaica do século XIX - tais conteúdos também resistem a
uma apropriação em nome de uma representação mais estática de
períodos estáveis e de suas modas. Voltaremos posteriormente à ques-
tão de sua violência inigualável em um outro contexto. Aqui, o essen-
cial é que se destaque que a violência funciona de modo a tornar
inevitável uma leitura descontínua ou sobrecarregada do momento
histórico respectivo. Tratarei assim de propor a hipótese bastante pro-
visória de que a possibilidade do realismo mágico como um modo
formal é constitutivamente dependente de um tipo de matéria-prima
histórica no qual a disjunção está estruturalmente presente. Ou, para
generalizar a hipótese com mais clareza, ela depende de um conteúdo
142 I Sobre o realismo mágico no cinema

que revele a sobreposição ou coexistência de característicastecnológicas


pré-capitalistas ou de um capitalismo nascente. De acordo com isso,
então, a categoria organizacional do cinema realista mágico não é o
conceito de geração (como no cinema nostalgia), mas sim a categoria
bastante diferente dos modos de produção, e em particular de um
modo de produção ainda em conflito com traços de um modo mais
antigo (se não com as antecipações do surgimento de um modo fu-
turo). Essa é, acredito, a maneira mais viável de se teorizar o "momen-
to da verdade" na visão antropológica do realismo mágico literário que
foi delineada acima, e de se levar em conta a reformulação estratégica
do termo feita por Carpentier em sua concepção de um "real maravi-
lhoso": não um realismo a ser transfigurado pelo "suplemento" de uma
perspectiva mágica, mas sim uma realidade que já é, em si mesma e
por si mesma, mágica ou fantástica. Daí a insistência, tanto de Carpentier
como de García Márquez, em que, na realidade social da América
Latina, o "realismo" é necessariamente um "realismo mágico"; "o que é
toda a historia da América senão uma crônica do real maravilhoso?"IS
Dessa forma, a precondição formal para o surgimento desse novo es-
tilo narrativo não é o "objeto perdido do desejo" dos anos 50 norte-
americanos, mas sim a superposição articulada de camadas inteiras do
passado dentro do presente (realidades indígenas ou pré-colombia-
nas, a era colonial, as guerras de independência, o caudilhismo, o
período do domínio norte-americano - como em Weekend in
Guatemala, de Asturias, sobre o golpe de 1954).

11

Torna-se necessário, porém, interromper temporariamente a dis-


cussão da questão da história para retomar à função peculiar e
constitutiva da cor nesses filmes. Nossos comentários anteriores sobre
esse assunto deixam claro de que forma, nesse sentido técnico novo e
intensificado, a "cor" é radicalmente incompatível com a lógica da ima-
gem ou do simulacro visual que associamos ao pós-modernismo -
lógica essa para a qual a experiência de imagens cromáticas não pare-
ceria estranha. Gostaria de tentar enfocar essa distinção fundamental
através da diferenciação de cor e brilho, que realmente me parece ser
a categoria mais relevante para o cinema nostalgia.
Da maneira como entendemos a cor neste caso, ela distingue os
objetos uns dos outros em um certo êxtase hipnótico de cores sólidas
diferentes cujos matizes individuais separados se dirigem a diferentes
zonas de vibração no olho, assim destacando cada objeto como o
locus de uma gratificação visual singular e incomparável. O brilho, por
outro lado, caracteriza a estampa como um todo, cobrindo seus vários
conteúdos conjuntamente, como em uma exibição unificada, e transfe-
Sobre o realismo mágico no cinema / 143

rindo, por assim dizer, a aparência elegante do vidro limpo ao conjun-


to de objetos amontoados - flores luminosas, interiores suntuosos,
enfeites caros, modas de época - que estão agrupados pelas lentes
da câmera como um só objeto de consumo16.
Um comentário notável de Lacan é procedente nesse ponto, em-
bora tenha sido tirado de um contexto totalmente diferente de sua
reflexão sobre a "pulsão escópica" no Seminário 11. O exemplo é
usado para ilustrar o que constitui para ele uma distinção crucial entre
o olho e o olhar (te regard):

Na clássica história de Zêuxis e Parrhasius, Zêuxis tem a vantagem


de ter feito uvas que atraem os pássaros. A ênfase é colocada não
no fato de que essas uvas eram de qualquer modo uvas perfeitas,
mas no fato de que até mesmo o olho dos pássaros foi atraído por
elas. Isso está provado pelo fato de que seu amigo Parrhasius o
derrota por ter pintado na parede um véu, um véu tão verossímil
que Zêuxis, voltando-se para ele, disse: Bem, mostre-nos agora o
que você pintou atrás desse véu. Assim, ele mostrou que o que
estava em questão era enganar o olho trompe-l'oeif). Um triunfo
C

do olhar sobre o olho. [...J


Teria de haver algo mais reduzido, algo mais próximo do signo,
algo que represente uvas para os pássaros. Mas o exemplo oposto
de Parrhasius deixa claro que, se se quiser enganar um homem,
deve-se apresentar a ele a pintura de um véu, isto é, algo que o
leve a perguntar o que se encontra atrás dele.
É aqui que essa historieta se torna útil para nos mostrar porque
Platão protesta contra a ilusão da pintura. A questão não é que a
pintura proporciona uma equivalência ilusória ao objeto, mesmo
que Platão pareça estar dizendo isso. A questão é que o trompe-
l'oeil da pintura finge ser algo diferente do que realmente é [...J.
Ela aparece, naquele momento, como algo diferente do que parecia
ser, ou então ela parece agora ser aquela outra coisa. O quadro
não compete com a aparência, ele compete com o que Platão
designou como aparência atrás da Idéia. Piatão ataca a pintura
porque ela é a aparência que diz ser aquilo que dá a aparência,
como se fosse uma atividade competindo com o que lhe é próprio.
Essa outra coisa é o petit a, ao redor do qual se dá um combate do
qual o trompe-l'oeil é a alma17.

O excurso de Lacan (retirado de seu contexto, que é o do esforço


de definir o conceito freudiano de pulsão "instintual") pode ser um
ponto de partida útil e sugestivo para perceber a imagem pós-moder-
na como um fenômeno no qual o consumo escópico do véu tornou-se
ele próprio objeto do desejo: uma superfície final que foi bem-sucedi-
da no desenho daquela "outra coisa", aquele "algo mais", os objetos
atrás dele, em um plano unificado de tal forma que abandonam sua
solidez e profundidade anteriores e se tornam imagens de si mesmos,
144 / Sobre o realismo mágico no cinema

para serem consumidas agora por si mesmas, como imagens e não


como representações de uma outra coisa.
Lacan oferece menor ajuda no movimento alternativo de sua fá-
bula, o status das uvas lendárias de Zêuxis (em nossa releitura, o loeus
da cor realista mágica e de seus objetos). Vamos então tentar propor
um começo novo, ligeiramente diferente:

Sabanas era considerada a região mais culta e ilustre do país. Seus


campos tinham sido planejados de acordo com as estações, de
intempestiva regularidade, e segundo as cores do solo, de ampla e
variada gama, passando do branco mais puro ao preto carvão.
Entre esses extremos podiam ser encontrados inúmeros tons e
matizes de marron, rosa, púrpura, amarelo, verde, cinza, vermelho
e azul. As pessoas se referiam ao cinza "fraco" ou "morto", ao
cinza "lânguido" ou "rico", ao vermelho-brilhante, vermelho-tijolo,
vermelho-carne, vermelho-púrpura, vermelho-amarelado,
vermelho-pardo, vermelho-açafrão, vermelho-fogo, vermelho-
carmim, vermelho-carmesim, vermelho-escarlate, vermelho-
queimado, vermelho-sangue e vermelho-crepúsculo, e
diferenciavam entre cores "salpicadas" e cores "jaspeadas", entre
"manchadas" e "marmóreas", e a cada uma delas atribuíam
específicas qualidades para certos tipos de colheita18.

Esse trecho, extraído do grande romance do realismo maglCo


cubano Ios ninos se despiden, de Pablo Armando Fernández, constitui
o núcleo do momento em que LHa, um novo demiurgo, recria o mun-
do a partir do nada (um ato de criação que também terminará com a
visão do nada absoluto). Tal texto verbal demonstra mais intensamen-
te do que qualquer texto visual como a invenção passo a passo de
cada cor diferente (e de seu nome) corresponde não somente a um
despertar geral do próprio olho com relação à gama diferenciada do
espectro visível, mas também como se fosse a chamada à vida de
inúmeros e diferentes sentidos desvinculados, cada um dos quais é
estimulado e despertado pelo matiz específico de "vermelho" em ques-
tão. A categoria genérica "vermelho" é, assim, virtualmente explodida
enquanto unidade, junto com a "vista" e o próprio olho como um
suposto loeus central para enxergar: nessa nova heterogeneidade, en-
xergar o "vermelho-tijolo" envolve agora um órgão sensorial tão dife-
rente da capacidade de registrar o "vermelho-queimado" quanto o
sentido geral de visão mais antigo se distinguia da audição ou tato.
Enquanto isso, alguma coisa dessa multiplicidade nova e imperfeita-
mente explorada de poderes perceptuais volta-se agora para as pró-
prias palavras, conferindo a cada uma delas um poder mágico incomum,
no isolamento enfeitiçante de cada ato distinto de fala.
A teoria lingüística moderna, com certeza, tem lutado incessante-
mente para livrar-se do mito antigo e renitente de alguma nomeação
Sobre o realismo mágico no cinema / 145

adâmica - a identificacão de seres e objetos, criaturas criadas, flora e


fauna individuais, pelo poder isolado e não-sintático do substantivo
individual. A partir da perspectiva saussuriana, tais mitos reforçam a
noção incorreta e mistificadora de que o sentido ocorre primeiro na
base de um a um, na relação de palavra e coisa e de significante
individual e significado individual (em vez de dar-se, como proposto
em geral pela lingüística mais recente, sintaticamente, na relação entre
os próprios significantes e através de seu jogo sintático e oposições
semânticas). Mas talvez uma verdade mais profunda do mito adâmico
surja no nível "molecular" (Deleuze), no nível das qualidades indivi-
duais, em uma dimensão com a qual já não tenham mais nada a ver as
categorias estigmatizadas, unificadoras e ideológicas de "substância",
"objeto" e "substantivo":

Fogo, fogo, fogo! Bayamo em chamas! O resplendor que emanava


dos corpos apagou seus rostos, suas formas. Gritou, enlouquecida:
que venha o primeiro. Uma nuvem de fumaça vermelha lhe golpeou
o rosto, e ela, frenética, tornou a gritar: que venha o segundo.
Uma nuvem amarela passou em frente a ela sem sequer tocá-Ia, e
uma terceira alaranjada, e uma quarta, verde, e uma quinta, azul, e
uma sexta, azul-escura, e uma sétima, violeta. Triunfante, seus olhos
se iluminaram animando-lhe a voz, alegre, fina, muito doce19.

Aqui, o despertar de uma nova visão (e voz) resulta da conflagra-


ção total das coisas mais arcaicas; a pequena alegoria de Pablo Arman-
do nos convida a repensar as uvas de Zêuxis em termos de cores tão
hipnóticas que esquecemos, gradualmente, os objetos dos quais elas
são supostamente as propriedades, ao passo que, embora possamos
imaginar o apetite dos pássaros, nenhuma identificação à ta Gombrich
poderia ser atribuída a eles. Os efeitos prodigiosos desses textos ver-
bais são consistentes com o que é projetado pelo realismo mágico em
seu modo cinematográfico ou visual. Lembro-me em especial do mo-
mento, em Fever, de um detalhe fugidio de um extraordinário avental
violeta: uma experiência pontual de rara intensidade, comparável so-
mente "ao verde tão delicioso que dói" de Baudelaire20. Tais momen-
tos sugerem que a cor não funciona, nesses filmes, como um meio
homogêneo, mas sim como um "aparato libidinal" mais generalizado,
o qual, uma vez colocado em seu lugar, é capaz de registrar a pulsação
de tais intensidades descontínuas. Se é esse o caso, sinto-me tentado a
sugerir que ela mantém uma função antitética no cinema nostalgia
onde, na forma do "olhar" de Lacan, ela controla um campo homogê-
neo do qual tais golpes pontuais de energia estão excluídos.
Quando se pensa no status privilegiado, na tradição saussuriana
e estruturalista clássica, do exemplo de sistemas de cor em várias lín-
guas (o próprio protótipo do campo semântico de oposições), não
146 / Sobre o realismo mágico no cinema

parece forçado sugerir que essas experiências aparentemente visuais


mantêm alguma articulação mais profunda com uma dimensão pré-
consciente da própria língua, da mesma forma que, como Freud e Lacan
mostraram, fenômenos aparentemente existenciais, como desejos sexuais
e relatos de sonhos, podem ser considerados como efeitos da causa
ausente de variações lingüísticas ou sintáticas. A referência teórica mais
imediata, entretanto, continua sendo a notável reflexão de Stanley Cavell
sobre a natureza e o significado da cor no cinema - uma dimensão
inteiramente utópica de futuro, como ele a denomina, envolvendo
uma "despsicologização" e uma "desteatralização" de seus sujeitos:

Não se trata apenas de que cores cinematográficas não sejam


transcrições exatas das cores naturais, nem de que as histórias
filmadas em cores sejam explicitamente não realistas. O fato era
que a cor cinematográfica mascarava o eixo preto-e-branco do
brilho, e o drama de personagens e contextos apoiado por ele, ao
longo do qual ficava assegurada nossa inteligibilidade de
personalidade e aconteciment021.

Essa interseção constitutiva entre a experiência da coloração ci-


nematográfica e a abertura ou exclusão de certas possibilidades nar-
rativas será mais elaborada na próxima seção do presente ensaio. É
importante, entretanto, destacar que, até mesmo em uma situação em
que, após a publicação do livro de Cavell, o uso de cores no cinema
tornou-se a regra geral mais que a exceção, sua hipótese mantém um
poder quase escandaloso, sugerindo que é um erro imaginar o mundo
de nossa experiência comum como um mundo colorido, e que seria
mais correto pensar que o mundo real, no qual nos movemos, agimos
e olhamos, seria mais corretamente caracterizado como sendo "preto-
e-branco". Com a generalização do filme colorido o destaque dado a
essa característica passa a depender não da oposição ao filme em pre-
to-e-branco, mas sim das oposições entre os vários sistemas de cores
(daí a possibilidade de se distinguir entre um desdobramento realista
mágico e um pós-moderno).
Uma outra referência teórica que deve ser discutida nesse mo-
mento é, evidentemente, o conceito freudiano do "estranho familiar",

no qual um acontecimento representado se torna intrinsecamente


marcado como a repetição de uma fantasia mais antiga e arcaica
da qual nenhum traço independente permanece no texto. Esse
"retorno do reprimido" se faz notar na representação espalhafatosa
e tecnicolor do que é dado como uma realidade essencialmente
branca e preta, imagens tão borradas e maquiadas como na pintura
fotorrealista, objetos desrealizados pela própria plenitude de seu
ser sensorial, através do qual o simplesmente conceitual é
desmascarado como sendo uma obsessão22,
Sobre o realismo mágico no cinema / 147

o ensaio de Freud revela-se mais firmemente restringido por seu


objeto de estudo (o conto "Der Sandmann", de Hoffmann) do que
geralmente se percebe: e em particular, por uma moldura narrativa da
qual foi excluído o passado do sujeito (de forma a possibilitar sua
erupção com uma força aparentemente gratuita), e por aquele
distanciamento estranho e não-irônico da psique que será finalmente
dramatizado no ideologema do "frenesi"23.Esses aspectos, que carac-
terizam o desenvolvimento original do conceito no próprio Freud, são
menos relevantes no caso dos filmes que estão em discussão aqui,
embora o papel da violência e da despersonalização do sujeito pelo
próprio aparato cinematográfico apresente analogias vagas. o que deve,
no entanto, ser registrado da demonstração canônica de Freud é a
maneira como os elementos narrativos podem ser intensificados e
marcados a partir do interior por uma causa ausente indetectável
empiricamente mas decifrável em suas propriedades formais mais puras.
Assim, essas várias possibilidades teóricas têm de ser confronta-
das com um tipo diferente de alternativa materialista, no qual os vários
sintomas de um uso cinematográfico novo e peculiar de cores são
explicados simplesmente pela própria tecnologia, e em particular pe-
las aberrações no filme virgem e em seu processamento, que podem
ser mais claramente atribuídas à situação econômica da indústria nos
países do Terceiro Mundo do que a uma dinâmica mais propriamente
estética. De fato, de maneira bem mais dramática do que na sociologia
da literatura, o estudo do cinema parece postular uma incompatibilida-
de total entre as análises intrínseca e extrínseca, entre os códigos infra-
estruturais e superestruturais, entre as leituras formais e tais considera-
ções dos determinantes econômicos e tecnológicos desses artefatos
culturais - uma situação na qual o apelo fácil à "sobredeterminação"
não parece ser totalmente satisfatório do ponto de vista intelectual. No
entanto, um certo modelo de sobredeterminação é de fato proposto
pelos teóricos do cinema terceiro-mundista, mais claramente em Cuba.
Aí, a perfeição técnica da imagem (que se tem a tentação de identificar
ao pós-modernismo do Primeiro Mundo) é vista explicitamente como
um conotador de economias capitalistas avançadas, sugerindo que uma
política estética terceiro-mundista alternativa tratará de transformar seu
próprio "cinema .imperfeito" em uma força e uma opção, um sinal de
sua origem e conteúdo diferentes24.A tecnologia, ou seu subdesenvol-
vimento, é aqui explicitamente levada para dentro da mensagem esté-
tica, de modo a funcionar a partir daí como um significado intrínseco,
mais do que um acidente ou determinante causal extrínseco.
Entretanto, essa avaliação da questão das cores (que já associa-
mos aos fenômenos do corpo e às novas manifestações de volume)
deve ser complementada por uma caracterização mais geral de suas
conseqüências para o próprio espaço cinematográfico. A coloração
148 / Sobre o realismo mágico no cinema

estranhamente escurecida de Feverparece, por exemplo, difícil de ava-


liar em seus próprios termos, sem que se considerem os espaços fe-
chados e escuros em que a ação ocorre: até os exteriores ficam abafa-
dos, seja por seqüências noturnas ou pela onipresença da chuva caindo
e da visibilidade diminuída. Talvez esteja ocorrendo aqui um estímulo
dos bastonetes e cones dentro do olho (os quais, como se sabe, modi-
ficam sua relação ao entardecer), de tal forma que percepções mais
incomuns (o avental violeta!) passam a ser consideradas, no campo da
visão noturna, conquistas preciosas.
Em Ia Casa de Agua, ao contrário, o que predomina é o ar livre
e o espaço aberto. Daí a sensação da virtual transparência de cores
dessas tomadas alternativas: tonalidades sólidas enfraquecidas pelo
branco puro das planícies de sal até o ponto da euforia. Até o acampa-
mento-prisão-colônia de leprosos é aberto, e mesmo se a tortura apa-
rece como o cerco mais concentrado, as únicas tomadas genuinamen-
te internas ocorrem no breve relato da época de estudante do poeta,
no luxo dos salões e bordéis de alta classe aos quais é conferido retroa-
tivamente parte do valor de uma utopia perdida da memória - ima-
gens ricas e próprias do tipo de cinema nostalgia das quais o resto do
filme irá dolorosamente excluí-Io.
No entanto, o título tem outro sentido além do que lhe atribuí-
mos antes, designando igualmente a aldeia de pescadores de sua ju-
ventude e seu destino final: a natureza provisória desses barracões de
madeira, sem excluir o quartel-general da própria polícia do ditador,
sugere nada menos que um acampamento colonial à beira-mar, confe-
rindo um caráter nômade à pobreza dos pescadores e o valor de uma
ocupação militar às casernas da polícia. Esse mesmo caráter provisório
marca a última habitação do protagonista - o barracão no qual ele
esconde sua vergonha e espalha as folhas de seus poemas - e ancora
a efemeridade heideggeriana do ser-para-a-morte-no-mundo na situa-
ção histórica mais concreta do colonialismo (mesmo que o ditador-
suíno ausente seja, tecnicamente, um simples chefe de bando local).
Contrastando com essas duas geografias problemáticas - a
periclitante impermanência de um acampamento camponês à beira-
mar, ou a cidade do Leste europeu com seu governador geral russo e
sua disposição tradicional de hospitais e mercados, depósitos e aparta-
mentos em vários estados de miséria (através dos quais a câmera se
move com uma insistência imediata que exclui qualquer perspectiva
mais longa) -, Condores parece situar-se na estabilidade mais tradici-
onal da cidadezinha latino-americana - sem dúvida, ao menos par-
cialmente, para sublinhar o paradoxo e o horror de uma situação na
qual (como atualmente em El Salvador) a população de uma ordem
urbana estabelecida é assassinada dia após dia, deixando para trás as
casas vazias. Sons fora da cena - tiros a distâncias variadas, cascos de
Sobre o realismo mágico no cinema / 149

cavalos - têm provavelmente um papel mais importante na constru-


ção do espaço visual nesse filme: como na seqüência do café - uma
sala escura da taverna vazia - na qual o protagonista manda matar os
cachorros do vizinho ao exasperar-se com seus latidos fora de cena;
ou repetidamente e sempre, no fatídico som premonitório de carros
chegando e saindo.

III
o espaço não é, no entanto, a característica mais notável de
Condores, cuja originalidade pode ser melhor percebida através de sua
dinâmica narrativa. Já destaquei o parentesco desse filme com o gêne-
ro de filmes de gângster e Máfia, do qual ele constitui mais uma per-
mutação formal decisiva do que um pastiche pós-moderno. Ele inclui
um diagnóstico especificamente psicológico em sua insistência no pu-
ritanismo do protagonista: seu horror ante a nudez de sua mulher, sua
própria nudez quando ele se banha de pé em um pátio interno jogan-
do-se baldes de água fria. Tal diagnóstico já se tornou convencional há
bastante tempo (e assim está sujeito, espera-se, a um certo ceticismo
saudável) e é reminiscente, com efeito, das várias elucidaçães pop-
psicanalíticasdo militarismoou do fascismo,desde o conceito de Adorno
da "personalidade autoritária" até O Pecado de Todos Nós (Ro/lections
in a Golden Eye, 1967), de John Huston, ou O Conformista, que situam
as "origens" da brutalidade reacionária na homossexualidade reprimi-
da ou em traumas de infância. A novidade de Condores, entretanto
(pelo menos do ponto de vista do Primeiro Mundo), reside no fato de
que o protagonista já é político, vivendo a vida de afiliaçães e antago-
nismos (que precedem sua própria existência, na forma de uma eterna
rivalidade entre liberais e conservadores, azuis e vermelhos, ou algo
do gênero) em um ressentimento tumultuado. Os norte-americanos
também conhecem essa permanência da política no sentido estrito, de
lealdades e hostilidades partidárias que são vivenciadas como um dado
da vida diária com a intensidade de disputas de clãs, em vários lugares
e momentos (Massachusetts, Louisiana, o sistema dos grandes cartéis
na virada do século, que Max Weber tanto admirava), mas nossa litera-
tura, de modo geral, traduziu tais realidades em dramas familiares e
sagas dinásticas, mesmo antes de sua mais recente figuração, elabora-
da no próprio ciclo da Máfia. Em inglês, só o Nostromo,. de Conrad,
vem à mente como sendo uma tentativa de apresentar as realidades
mediterrâneas do fato político nesse sentido, mas até mesmo em Conrad
isso é apresentado como pano de fundo e não como a matéria da vida
diária. Em Condores, entretanto, a paixão política está desde o início
associada ao ressentimento social do futuro protagonista, preso a sua
150 / Sobre o realismo mágico no cinema

humilde posição de escriturário pobre e objeto das zombarias e escár-


nios dos ricos da cidade, que pertencem, em sua esmagadora maioria,
à outra facção política. O filme documenta, então, uma extraordinária
transformação do partidário militar pequeno-burguês em uma energia
feroz e mortífera, uma força de violência e desforra além do natural,
oferecendo assim uma representação sinistra do nascimento do mons-
tro (descrição feita por Racine de sua própria dramatização de Nero na
juventude) que constitui algo mais do que a passagem do privado ao
público, da injúria psicológica à vocação política (Hitler constitui o
objeto convencional ou privilegiado desse tipo de "psicobiografia" no
mundo ocidental), já que trata de projetar níveis de intensidade no
interior da própria esfera política.
A originalidade mais interessante desse filme, entretanto, e que o
distingue com mais clareza de seus filmes análogos de gângsteres ou
Máfia, pode ser detectada no silêncio, na ausência radical de uma
moldura coletiva. O filme de Máfia era constitutivamente organizado
em torno da solidariedade entre o chefe individual e a gangue, família
ou grupo étnico do qual ele emerge. O glamour secreto de tais obras
pode ser explicado pelas maneiras em que elas desvelam fantasias
inconscientes de comunidade e utilizam a trajetória individual do
gângster como um pretexto para vivenciar a representação de uma
intensa vida coletiva em grupo que está faltando nas experiências
privatizadas dos próprios espectadores25. Condores, entretanto, dissipa
esse glamour espúrio e recusa tais expectativas genéricas já conven-
cionais. Com a exceção de uns poucos rufiões vagueando em seu
rasto e aquecendo-se em seu prestígio, essa figura maligna se move
em total isolamento, sem nenhuma sugestão de desvio ou anti-sociabi-
lidade (uma ideologia ingenuamente psicologizante desenvolvida nos
primeiros filmes de gângster como Scarface - A Vergonha de uma
Nação [Scarface, 1931], de Howard Hawks, ou Little Caesar [1931], de
Mervyn LeRoy). A evolução ou transformação do herói de Condores é,
ao contrário, observada sem comentários, e com um certo realismo
gélido como o de Mann ist Mann, de Brecht, cuja moral era que é
possível transformar pessoas em qualquer coisa.
Ainda assim, nenhuma dessas observações atinge o ponto em
que o problema da relação peculiar da dinâmica narrativa visual (e
também com uma certa presença nova da História) se torna visível. O
estudo de Cavell sobre o cinema era baseado em uma intuição extraor-
dinária de alguma tendência ou ruptura histórica mais profunda no
cinema contemporâneo, que ele chama de "desteatralização". Mas, seja
pela inexistência de simpatia pessoal por essa mudança histórica, seja
porque ele ainda quer pensá-Ia em analogia com a história da pintura,
Cavell não' parece estar procurando na direção correta. Prefiro chamar
essa tendência de "desnarrativização", e passarei a discuti-Ia em ter-
Sobre o realismo mágico no cinema / 151

mos de uma redução ao corpo e uma concomitante mobilização dos


recursos e potenciais ainda inexplorados da pornografia e da violên-
cia. Tais termos estão sendo empregados de forma estritamente descri-
tiva e sem nenhuma intenção moralista. Entretanto, torna-se inevitável
a analogia com certas formas notoriamente problemáticas da literatura
culta contemporânea. Estou pensando, por exemplo, no conhecido e
bastante atacado conteúdo de formalismo em Alain Robbe-Grillet, cujo
sadismo e violência contra os corpos femininos mal podem ser justifi-
cados pela sugestão insincera do próprio romancista de que suas obras
devem ser lidas como "críticas", precisamente, da violência e porno-
grafia onipresentes na cultura contemporânea. Os romances de Robbe-
Grillet, entretanto, sugerem a operação de uma dinâmica ou lei do
modernismo em geral: quanto mais complexo o conteúdo, mais sim-
ples e simplificável deve ser a forma. Os extraordinários arabescos
espaciais de Proust - as duas "formas" das caminhadas matutinas
diárias, a de Swann e a de Guermantes, ou as estações do trenzinho-
são paradigmáticos de tais modos de organização de conteúdos com-
plexos, que ]oseph Frank chamou de "forma espacial" (em um sentido
bem diferente do que é dado ao termo espacial na presente discus-
são)26.Do mesmo modo, se o desejável é a complexidade da forma,
como nas próprias fragmentações e recombinações engenhosas de
Robbe-Grillet, então o conteúdo deve ser tão rudimentar e fácil de
voltar a identificar quanto possível, como se ele fosse reificado e pré-
empacotado antecipadamente. Assim, a violência física e a pornografia
se tornam formas privilegiadas e finais dessa matéria-prima abreviada
e reduzida, embora imediata.
Tal redução ao corpo é, claramente, uma função do cinema como
meio. Sinto-me tentado a sugerir que, nas formas literárias mais autên-
ticas do modernismo clássico, o lugar do corpo tangível é ocupado
pela própria frase, reificada em uma certa materialidade mas ainda não
transformada, como no pós-modernismo, em sua própria imagem. Todo
o texto de Ulysses testemunha que essa autonomia tendencial da sen-
tença esforça-se por desviar as energias de uma leitura ou atenção
narrativa mais antigas. No entanto, os novos atos artificiais complexos
de intelecção assim produzidos são evidentemente muito diferentes
dos efeitos de uma redução análoga no cinema, em que a visão se
acomoda de maneira totalmente confortável e passiva às novas de-
mandas microscópicas ou moleculares que lhe são impostas.
Esse novo relevo, no cinema, de um interesse propriamente cor-
poral - as agonias da seqüência do envenenamento em Condores ou
os vários assassinatos, explosões, execuções, bem como os atos sexu-
ais - soluciona o problema da narrativa de uma outra maneira, já que
todas essas coisas permanecem como acontecimentos, ainda que mí-
nimos (por outro lado, qualquer coisa que tenha princípio, meio e fim
152 / Sobre o realismo mágico no cinema

- como a relação sexual - seria o mesmo que uma história?). É


necessário que consideremos esse desenvolvimento em sua própria
história, como um momento na evolução da vocação filosófica da nar-
rativa (antes disso, geralmente era o romance), que pode ser descrito
como o relevo, exploração, subversão ou modificação da categoria do
Acontecimento em geral. Com certeza, o realismo tem sido entendido
como um tipo de obra representacional dentro de categorias
preestabelecidas ou mesmo estereotipadas de acontecimentos e ações
(e assim, mais metafisicamente, da própria realidade). Pelo menos, fica
claro que a riqueza do modernismo está de acordo com a crise de tais
categorias tradicionais e com um questionamento inteiramente novo
- através da poiesis - com relação à natureza dos próprios aconteci-
mentos, partindo novamente da dissociação aristotélica entre a biogra-
fia e uma ação completa (por que elas não são iguais? ou será que elas
coincidem em vidas que constituem "destinos"? ou será que o próprio
destino não passa de uma ideologia e uma ilusão?). Uma pergunta
relacionada, mas antitética, nos leva na direção das miudezas da vida
cotidiana: quando é que tais segmentos temporais breves e inconse-
qüentes se tornam acontecimentos? A carga metafísica ou ideológica
em tais práticas narrativas aparece no momento em que se exige que a
pergunta sobre o acontecimento forneça uma resposta suplementar
sobre o que é, de fato, a realidade, ou o que é a realidade em primeira
(ou última) análise. Henry James continua a ser, certamente, o mais
nobre apologista da vocação do romance para construir acontecimen-
tos "experimentalmente" ou para desmontá-Ios de tal maneira que sur-
ja, mais além desses acontecimentos empíricos, a pergunta metafísica
mais geral sobre o próprio Acontecimento.
O que deveria ficar claro é que uma estética da redução ao corpo
no cinema, em vez de formular tais questões e levantar o problema
dessas categorias abstratas, procura, de maneira radical, abandoná-Ias
tanto quanto possível, afastando-as e descartando-as de nossa expe-
riência visual, chegando às formas mais elementares de experiência
corporal como seus elementos de construção, sobre os quais tais ques-
tões não precisam ou não podem ser formuladas. Toda uma série de
formas sutis ou complicadas de atenção narrativa, laboriosamente adqui-
rida e adaptada pelo cinema clássico (ou, melhor ainda, pelo filme
sonoro) a partir de desenvolvimentos mais antigos do romance, é agora
sucateada e substituída pelos lembretes mais simples e mínimos de um
enredo que passa a focalizar a violência imediata. A narrativa não foi,
aqui, subvertida ou abandonada, como na'iconoclastia do cinema experi-
mental, mas sim efetivamente neutralizada, em prol de um ver ou olhar
no presente cinematográfico. Mas esse desenvolvimento, que tem como
pré-condição histórica e sociológica a fragmentação radical da vida moder-
na e a destruição de comunidades e coletividades mais antigas, não cons-
Sobre o realismo mágico no cinema / 153

titui necessariamente uma perda ou empobrecimento absolutos, mes-


mo ao marcar a perda da rica cultura de um modernismo mais antigo.
Esse desenvolvimento pode também ser visto como a conquista
de novos tipos de relação com a história e com o ser, como já demons-
trei nas páginas anteriores. Uma história-com-vazios, por exemplo, é
bem precisamente uma história de baixo-relevo na qual somente as
manifestações corporais são mantidas, de tal modo que nós mesmos
somos inseridos nela sem qualquer distanciamento. O declínio de pers-
pectivas e narrativas históricas mais abrangentes e a neutralização de
um complexo mais antigo de interesses e enfoques narrativos (ou for-
mas de consciência temporal) nos liberam agora para um presente de
intensidades não codificadas, mais ou menos como o efeito químico
de drogas serve para afrouxar nossas pró-tensões e re-tensões tempo-
rais na contemplação hipnótica do que agora nos é apresentado "alu-
cinogenamente". Mas os filmes que estamos discutindo aqui não ten-
tam, como em alguns pós-modernismos, simplesmente imitar a expe-
riência de drogas, mas sim reconquistar aquela experiência através de
outros meios construídos internamente (mais ou menos da forma como
Freud foi levado a abandonar as técnicas externas da hipnose). A me-
diação do aparato da câmera, a inserção de sua tecnologia em nossa
experiência, não é externa no mesmo sentido; ou melhor, o mistério
de uma externalidade tecnológica que é agora interna e intrínseca
encontra-se no âmago do problema da estética no cinema, lá onde
nossa experiência histórica do descentramento do sujeito psíquico (em
Freud e Lacan) o encontra e lhe empresta uma significação nova e não
mais acidental. Mas só podemos evocar, em conexão com esses filmes,
a exploração psicanalítica de distâncias psíquicas internas e estrutu-
rais, junto com o conceito heideggeriano de uma aproximação ao Ser,
se incluirmos também um novo historicismo em nossa apresentação,
uma relação privilegiada e constitutiva com a história percebida e en-
tendida de uma nova maneira, radicalmente diferente das cronologias
do romance histórico bem como dos instantâneos ilustrativos da moda
do cinema nostalgia.
Tal redução narrativa tem, por exemplo, conseqüências muito
práticas e reais para a ideologia e a análise ideológica. Não é suficiente
mostrar uma diminuição sistemática na geração e projeção de sentidos
narrativos, como se isso fosse apenas uma questão de opção estética;
devemos, sim, buscar entender que tais erradicações têm, também,
uma função política. Já observamos, por exemplo, que a mensagem
ideológica de Condores (se é que se pode chamá-Ia assim) é construída
especificamente através da redução narrativa, nesse caso pela elimina-
ção deliberada da coletividade mafiosa que havia constituído, até en-
tão, um aspecto estrutural necessário do gênero. A fealdade completa
e vívida do ressentimento mortal de Condor é projetada através do
154 / Sobre o realismo mágico no cinema

mascaramento das atrações libidinais do contexto familiar, permane-


cendo apenas o corpo do protagonista em isolamento total.
Também o filme Fever se mantém consistente com essa descri-
ção, embora as circunstâncias de sua produção e recepção confundam
inicialmente a questão e pareçam conferir-lhe uma mensagem ideoló-
gica anterior bem diferente. Lançado imediatamente antes da imposi-
ção da lei marcial na Polônia, ele foi recolhido em seguida,
presumivelmente devido ao caráter delicado de sua representação,
naquelas circunstâncias, de um exército russo de ocupação. (Em con-
seqüência, há apenas uma cópia do filme nos Estados Unidos). Mas
seria leviano concluir que se trata, por alguma razão, de um filme pró-
Solidariedade. Os jovens patriotas fanáticos de Fever são anarquistas e
"esquerdistas infantis" da melhor cepa: a moldura de um maior partido
socialista de massas underground é invocada, mas nunca representa-
da; e o filme indica explicitamente que as iniciativas terroristas são
radicalmente desvinculadas de tal movimento político de massas, que
o espectador imagina que exista nas partes iniciais do filme, mas so-
mente para se desintegrar nos estágios posteriores. O primeiro prota-
gonista (sendo mais uma peculiaridade do filme a sua organização em
torno de dois heróis, cujas histórias se sucedem) faz a defesa conven-
cional de suas atividades como expressão de uma "solidariedade" (um
uso bem diferente e irônico da palavra) com as massas, apenas para
mostrar-Ihes que não se encontram sozinhas na luta e que os esforços
políticos continuam em outros lugares, mais do que para indicar a
maneira de atingir qualquer objetivo político específico.
Isso não significa que Fever apresente algum conforto para os do
outro lado ou para os não-alinhados, que são representados exclusi-
vamente como espiões policiais, agentes duplos, colaboradores e la-
caios, ou então como membros corruptos da burguesia que se acomo-
daram ao sistema e que se aterrorizam ante a possibilidade de resistên-
cia. Entretanto, os revolucionários contam com nossa simpatia apenas
"por definição", distribuindo-se em termos de caráter do ingênuo ou
demasiado humano até as patologias peculiares aos próprios heróis, a
que nos referiremos agora. Eles constituem algo como os dioscuri do
desejo de morte - um moreno, o outro louro; um frio e sombrio, o
outro alegre até o nível da mania -, técnicos da morte cujos caminhos
se cruzam apenas uma vez no decorrer da narrativa. O assassino mo-
reno, intensificado por possuir um espesso bigode eslávico, cuja au-
sência posterior é ainda mais notável, encontra-se rodeado por mili-
tantes de vários graus de incompetência e é dotado do que se hesitaria
em chamar de relação amorosa. Seu sucessor louro, ao contrário, tra-
balha em um isolamento total de companheirismo ou sexo, emergindo
não do mundo da militância política, mas do submundo de espiões
policiais e agentes duplos, sendo seu último ato o de tentar se explodir
Sobre o realismo mágico no cinema / 155

junto com o quartel central da polícia e seus repulsivos ocupantes


(mas a bomba, infelizmente, não detona).
Nesse filme feito por uma mulher, entretanto, claramente a figura
central da primeira narrativa é a simpatizante, cujo peculiar anseio por
martírio (ela quer se matar junto com o governador geral em uma
suntuosa recepção de gala, mas ele acaba não comparecendo) serve
igualmente para sublinhar a despersonalização da vocação terrorista,
na qual a fantasia privada e a fria estratégia política estão ao mesmo
tempo patologicamente dissociadas e inextricavelmente interligadas.
Duas cenas de sexo brutais ressaltam dramaticamente esse aspecto:
quando, após escapar da prisão, o primeiro protagonista a possui como
um animal, por razões "higiênicas", seu próprio êxtase constitui um
comentário suficiente sobre a natureza fantasmática de sua paixão por
uma figura que, consideravelmente mais neutra como personagem do
que o Condor, é pouco mais do que uma ausência dirigida e possuída.
Na segunda seqüência, ela se entrega em dépit amoureux a um outro
militante que está desesperadamente apaixonado por ela e cujas vigo-
rosas investidas sexuais são recebidas como um estupro e literalmente
a deixam em um estado de catatonia total. Portanto, apesar de sua
relevância para a política polonesa contemporânea, Fever apresenta
uma autópsia implacável da vocação dos militantes anarquistas, cuja
grandeur dramática só lhes é conferi da pela desesperança completa
de sua situação histórica. Essa demonstração ideológica também opera,
como em Condores, por omissão estratégica - a ausência das massas
- e pela disjunção de seus elementos constitutivos - fantasia e estra-
tégia, motivação privada delirante e calculismo político ostensivo -,
que se opõem uns aos outros em contradição suspensa. Já discutimos
uma estrutura análoga em Ia Casa de Agua, na qual os ideologemas
da História e da Natureza são estranhamente mantidos à distância um
do outro pela própria narrativa, que associa seus poderes aterrorizantes
no corpo de uma vítima comum.
Isso tudo deve parecer bastante distante da concepção de realis-
mo mágico com a qual iniciamos a discussão, até que se perceba a
relação constitutiva e necessária entre as intensidades de cores e cor-
pos nessas obras e seu processo de desnarrativização que, em última
análise, se revela um processo de análise e desconstrução ideológicas.
Na realidade, essas duas características - a omissão estratégica ou a
recombinação estratégica de perspectivas e elementos ideológicos e
conceituais, e uma proximidade quase sensorial.aos corpos e objetos
sólidos da mesma história - não passam de faces gêmeas, ausência e
presença, da mesma operação estética que, de maneira libidinosa, in-
tensifica os resíduos, no presente, do que foi cirurgicamente extirpado
de suas outras temporalidades narrativas.
(1986)
Capítulo 7

1. Ver Angel Flores, "Magical Realism in Spanish American Fiction", em Hispania,


Stanford, n. 38, p. 187-92, maio 1955.

2. Ver o "Prólogo" de Alejo Carpentier a seu romance El reino de este mundo


(Barcelona, Seix Barral, 1981). A melhor resenha desse debate ainda é
Notas / 241

"Carpentier y el realismo mágico", de Roberto González Echeverría, em


Otros mundos, otros fuegos: fan.tasía y realismo mágico en Iberoamérica
(Memoria deI XVI Congreso Internacional de Literatura Iberoamericana. Ed.
Donald Yates. East Lansing, Michigan, Michigan State University/Latin
American Studies Center, 1975, p. 221-31).

3. Ver Angel Rama, La novela en América Latina (Bogotá, Instituto Colombia-


no de Cultura, 1982); e especialmente Carlos Blanco Aguinaga, De mitólogos
y novelistas (Madri, Ediciones Turner, 1975), em patticular as discussões
sobre García Márquez e Alejo Carpentier.

4. Meu quadro de referência geral sobre o "pós-modernismo" está delineado


em Postmodernism; or, the Cultural Logic of Late Capitalism, cito

5. Para maiores detalhes, ver Variety, Nova York, 25 fev. 1981.

6. La Casa de Agua, escrito por Tomás Eloy Martínez e dirigido pelo pintor e
crítico de cinema venezuelano Jacobo Penzo em 1984 (para maiores deta-
lhes, ver Variety, Nova York, 29 ago. 1984); Condores no se Entierran Todos
los Días, dirigido por Francisco Norden, baseado em um romance de Gustavo
Alvarez Gardearzabel, 1984 (para maiores detalhes, ver Variety, Nova York,
16 maio 1984). Tive a sorte de ver esses filmes no Sexto Festival Anual de
Cinema Latino-Americano em Havana, em dezembro de 1984. Que o pre-
sente ensaio seja um símbolo modesto de minha gratidão a meus anfitriões;
dedico-o ã Revolução Cubana.

7. Estou deixando essa formulação intacta por se tratar de um reflexo fiel de


minhas reações e impressões; de fato, a ação ocorre em 1948. Agradeço a
Ambrosio Fornet a interessante sugestão de que o subtexto ausente dos
acontecimentos nesse filme pode ser o chamado Bogotazo de 9 de abril de
1948, em que o líder populista Jorge Eliécer Gaitán foi assassinado pelos
fanáticos de direita do tipo de Condor (ver Arturo Alape, El Bogotazo:
memorias dei olvido, Havana, Editorial Pluma, 1983).

8. Ver nota 4.

9. Ver, para uma teoria da imagem como "desrealização" do mundo, Jean-paul


Sartre, Imagination. Trad. para o inglês por Forrest Williams (Ann Arbor,
Michigan, University of Michigan Press, 1962) e Saint Genêt. Trad. para o
inglês por Bernard Frechtman (Nova York, Braziller, 1983).

10. "Existe uma palavra latina para designar esse ferimento, essa picada, essa
marca deixada por um instrumento pontudo: a palavra me serve
perfeitamernte porque ela se refere também ã noção de pontuação, e por-
que as fotografias ãs quais estou me referindo são efetivamente pontuadas,
algumas vezes até mesmo salpicadas com esses pontos sensíveis; precisa-
mente, essas marcas, essas feridas são pontos. A esse segundo elemento que
vem perturbar o studium eu chamarei portanto de punctum ... Um punctum
é aquele acidente que me pica (mas também me machuca, que é lancinante
para mim)". (Roland Barthes, Camera Lucida. Trad. para o inglês por Richard
242/ Notas

Howard. Nova York, Hill and Wang, 1981, p. 26-7). O conceito analítico de
Barthes constitui um ponto de partida necessário, mas nada mais do que
isso; ele está para a investigação da imagem fotográfica mais ou menos
no nível do conceito de "paradoxo" do New Criticism para o da linguagem
poética há uns trinta anos.

11. Ver Jean-Paul Sartre, Tbe Flies (Les Moucbes) and In Camera (Huis Cios).
Trad. para o inglês por Stuart Gilbert (Nova York, Vintage Books, 1949,
p. 71).

12. A referência é a Political Unconscious. Ver a edição em português, OIncons-


ciente Político, p. 146 (N. T.).

13. Ver "A Existência da Itália" neste volume (N. T.).

14. Ainda assim, é sempre bom retomar a idéia de Theodor Fontane


(freqüentemente mencionada por Lukács) de que não poderíamos encenar
com sucesso um romance histórico muito aquém do período cronológico
ao qual pertenciam nossos próprios avós.

15. Carpentier, "Prólogo" a EI reino de este mundo, cit., p. 16.

16. O emblema alegórico de tal estética pode então ser visto - em seus limites,
bem como em seu poder - na cena do assassinato em O Conformista, na
janela levantada do carro trancado atrás da qual o protagonista presencia o
apelo desesperado e ultrajado de sua amante, enquanto ela golpeia o vidro.

17. Jacques Lacan, Tbe Four Fundamental Concepts of Psycboanalysis. Trad.


para o inglês por Alan Sheridan (Nova York, Norton, 1978, p. 103, 111-2).

18. Pablo Armando Fernández, Ios ninos se despiden (Havana, Casa de Ias Amé-
ricas, 1968, p. 118).

19. Fernández, op. cit., p. 160-1.

20. "]'ai eu longtemps devant ma fenêtre un cabaret mi-parti de vert et de muge


crus, qui étaient pour mes yeux une douleur délicieuse". ["Tive por muito
tempo, diante de minha janela, um cabaré, metade verde, metade verme-
lho, cores cruas, que constituíam para meus olhos uma dor deliciosa"].
(Charles Baudelaire, "On couleur", em Salons 1846: oeuvres completes, Pa-
ris, Gallimard, 1976, p. 425. Série Biblioteque de La Pléiade).

21. Stanley Cave]], Tbe World Viewed: Reflections on tbe Ontology of Film
(Cambridge, Harvard University Press, 1979, p. 89, 91). Ele conclui assim o
argumento:

Quando explicações dramáticas deixam de ser nosso modo natural


de compreender o comportamento uns dos outros - seja porque
nos dizemos que o comportamento humano é inexplicável, ou que
só uma redenção (agora, política) poderá nos salvar, ou que a per-
Notas / 243

sonalidade humana deve ser buscada de maneira mais profunda do


que estão preparadas para fazer as religiões dramáticas ou sociolo-
gias ou psicologias ou histórias ou ideologias - o preto e o branco
deixam de constituir o modo pelo qual nossas vidas são retratadas
convincentemente. Mas já que essa modelação dramática até recen-
temente era o modo através do qual o humano aparecia, e suas
tensões e resoluções eram aquelas em cujos termos nosso entendi-
mento humano de humanidade se satisfazia por completo, sua ces-
sação parece ser o desaparecimento do humano como tal. A pintura
e a escultura encontraram maneiras de renunciar ao retrato humano
em prol do insaciável desejo humano de presença e de beleza -
como, por exemplo, pelo contraste de matizes de pinturas sem va-
lor. Mas os filmes não podem renunciar à referência ou figuração
humana (embora possam fragmentá-Ia ou animar alguma outra coi-
sa). Os filmes coloridos renunciam à nossa compreensão recente-
mente natural (dramática) dessas figuras, não tanto por negar mas
sim por neutralizar nossa conexão com o mundo filmado dessa
maneira. Mas já que se trata, afinal, de que é o nosso mundo que
nos é apresentado, e já que essas figuras que nos são apresentadas
afinal de contas se parecem conosco, mas já que, apesar de tudo,
elas não estão mais psiquicamente presentes para nós, nós as per-
cebemos como despsicologizadas, o que quer dizer, para nós,
desteatralizadas. E, a partir disso, torna-se mais que lógico projetá-
Ias como habitando um futuro, uma mutação distanciada do passa-
do que conhecemos (da forma como o conhecemos). (p. 94)

Para uma excelente discussão sobre a utilização de cores, em geral, na


nouvelle vague européia, ver Marie-Claire Ropars-Wuilleumier, 'ta Couleur
dans le cinéma contemporain", em L'Ecran de la mémoire (Paris, Éditions
du Seuil, 1970, p. 160-73). Sua retomada das colocações de Sergei Eisenstein
sobre a questão das cores pode servir de mote a esta parte do presente
ensaio:

o sentido da cor como um processo, desenvolvendo-se tão inde-


pendentemente como na música e de maneira bem similar acompa-
nhando todo o movimento da obra [...J. Assim como o ruído do
couro estalando deve ser distinguido da bota que o provoca de
forma a constituir um elemento de expressão por si mesmo, tam-
bém o conceito de vermelho-alaranjado deve ser destacado do ma-
tiz tangerina de modo que a coloração seja inserida em um sistema
de expressão e ação conscientemente dirigido. (Eisenstein, apud
Ropars-Wuilleumier, op. cit., p. 173).

Finalmente, tem-se a tentação de voltar ao sugestivo capítulo "Color and


Meaning", em Eisenstein, 1be Film Sense. Trad. para o inglês e ed. por Jay
Leyda (Nova York, Harcourt, Brace, and World, 1957, p. 113-53).

22. Fredric Jameson, Fables of Aggression: Wyndbam Lewis, tbe Modernist as


Fascist (Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1979,
p. 57-8).
244/ Notas

23. Ver a versão ampliada de meu ensaio "Ideology of the Text" em 1be Ideologies
of1beory (Minnesota, University of Minnesota Pfess, 1988, v. 1, p. 17-71).

24. Ver, em especial, Julio García Espinosa, Una imagen recorre el mundo (Ha-
vana, Editorial Letras Cubanas, 1982); e Tomás Gutiérrez Alea, Dialéctica
dei espectador (Havana, Unión de Escritores y Artistas de Cuba, 1982).

25. Ver o ensaio "Reificação e utopia na cultura de massa", neste volume.

26. "Espacialidade", no sentido utilizado por Joseph Frank em seu famoso en-
saio, se aproxima mais de um arranjo sincrônico com objetivos mnemônicos
(o que é comparável ao igualmente conhecido Art of Memory, de Frances
Yates) do que das considerações fenomenológicas, estruturais ou dialéticas
do espaço, de Gaston Bachelard a Henri Lefebvre.

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