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DOSSIÊ | MARÇO 2018

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Este dossiê temático é pautado pelo
compromisso de promoção da
solidariedade entre os povos em luta
pela paz, a justiça e a liberdade. O
texto aborda a situação no Saara
Ocidental e pode ser usado como
material de consulta ou didático.

Autora
Moara Crivelente
Saaráuis protestam diante da ONU em Genebra, Suíça, em março de 2018.
Edição
Centro Brasileiro de Solidariedade
SAARA OCIDENTAL: aos Povos e Luta pela Paz
www.cebrapaz.org.br

DÉCADAS DE LUTA
POR LIBERTAÇÃO
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INTRODUÇÃO
O Saara Ocidental é um território no noroeste da África, com saída para o Oceano
Atlântico e que se estende geograficamente da região do deserto até o Sahel – uma
faixa de transição até a savana africana, que atravessa o continente horizontalmente.
Faz fronteira com o Marrocos, a Mauritânia e a Argélia. Os seus habitantes, o povo
saaráui, têm origem beduína – nômades que habitam o deserto e transitam, em geral,
de acordo com as estações do ano. Seu idioma é o árabe – em uma variação regional
denominada hassanía – e o espanhol, principalmente. A região foi colonizada pelo
Reino da Espanha, entre 1884 e 1975.

Em 1975, a Espanha atravessava um período turbulento de transição política, com o


desgaste da ditadura estabelecida na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Com a
morte do general Francisco Franco, em 1973, o desmoronamento do regime
precipitou a retirada espanhola de sua colônia de forma contraditória ao
compromisso de descolonização – que suporia a transmissão da administração do
território ao seu povo originário. Em 1976, o governo espanhol comunicou à
Organização das Nações Unidas (ONU) que não mais exercia o controle sobre o Saara
Ocidental.

A ONU já havia incluído em 1963 o Saara Ocidental em sua lista de Territórios Não-
Autônomos que deveriam passar pelo processo de descolonização, monitorado,
como em outros casos, pelo Comitê Especial sobre a Situação Relativa à
Implementação da Declaração sobre a Concessão da Independência a Países e Povos
Coloniais, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1960.1 O contexto era de

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A Assembleia Geral é o principal órgão deliberativo e representativo, composto pelos 193 países membros
da ONU, onde se discute e busca elaborar soluções para diversos temas mundiais, em reuniões anuais amplas
ou reuniões sobre temas específicos, em outras ocasiões. Países não-membros e outras entidades
internacionais também podem participar como observadores. Veja mais, na página da ONU:
https://nacoesunidas.org/tema/unga/
2
grandes lutas por libertação nacional lideradas pelos movimentos anticoloniais em
diversas regiões. O mundo assumia o seu compromisso de encerrar este capítulo da
história da humanidade, deixando de reconhecer como válidos os sistemas de
dominação estrangeira no formato da colonização. Naquela década e na seguinte,
lutavam pela descolonização, na África, os povos da Argélia, Angola, Moçambique,
Quênia, Saara Ocidental, entre outros. Alguns já haviam alcançado a independência
nas décadas anteriores: a Líbia, em 1951, o Sudão, a Tunísia e o Marrocos, em 1956,
o Gana, em 1957, e a Guiné, em 1958, entre outros, ainda antes destas datas.

O movimento saaráui de libertação nacional organizou sua luta contra a colonização


espanhola no final da década de 1960. Em 1973, nasceu oficialmente a Frente Popular
para a Libertação de Saguía El Hamra e Río de Oro – conhecida como Frente
POLISARIO – em referência aos marcos, a norte, Saguía El Hamra, e a sul, Río de Oro,
do território do Saara Ocidental. O cofundador da Frente, El-Ouali Mustafa Sayed,
tornou-se uma referência no movimento nacionalista saaráui. Em fevereiro de 1976,
a Frente POLISARIO proclamou a República Árabe Saaráui Democrática (RASD). Sayed
foi o primeiro Presidente, até que morreu em combate, em junho do mesmo ano.

Entretanto, em 1975, o Acordo Tripartite de Madri havia sido assinado secretamente


entre a Espanha, a Mauritânia e o Reino do Marrocos, que reivindicava o território
saaráui, uma parte do território argelino e o território da própria vizinha Mauritânia.
Com a retirada espanhola, o Saara Ocidental seria ocupado pelo Marrocos e pela
Mauritânia, a despeito da vontade do povo saaráui e do processo de descolonização
promovido pela ONU. A luta da Frente POLISARIO continua, então, contra as forças
marroquinas e mauritanas – no caso das últimas, apenas até 1978-1979, quando a
Mauritânia se retirou do território.
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DESCOLONIZAÇÃO E REFERENDO
Diante das intenções dos países vizinhos, em 1974, a Assembleia Geral da ONU havia
pedido ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) sua opinião sobre a situação do Saara
Ocidental.2 Na consulta, a Assembleia Geral questionava, principalmente, se o Saara
Ocidental pertencia a qualquer outro território quando foi colonizado pela Espanha,
ou se havia indícios, mais especificamente, de ligações legais anteriores entre o Saara
Ocidental e o que seriam o Reino do Marrocos e a Mauritânia. Em outubro de 1975,
a conclusão do TIJ foi negativa: não havia indícios de que o território do Saara
Ocidental já tivesse pertencido a qualquer dos dois antes da colonização espanhola,
o que significava que as reivindicações de ambos não tinham fundamento.

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O Tribunal Internacional de Justiça é o principal órgão judicial da ONU, estabelecido em 1945 pela Carta
das Nações Unidas, com sede em Haia, na Holanda. Seu papel é “solucionar, em acordo com o direito
internacional, as disputas jurídicas encaminhadas ao Tribunal pelos Estados e dar opiniões consultivas sobre
questões legais encaminhadas por órgãos autorizados das Nações Unidas e por agências especializadas.” Para
mais informações, consulte: https://www.unric.org/pt/informacao-sobre-a-onu/26496?start=5
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Mesmo assim, em 1975, logo após a assinatura do acordo com a Espanha, o Marrocos
promoveu um grande êxodo para o território do Saara Ocidental, conhecido na
história marroquina como a “Marcha Verde”, vinda do norte, enquanto a Mauritânia
invadia pelo sul. As forças armadas marroquinas lançavam bombas de napalm – um
composto inflamável à base de gasolina – e invadiam o território militarmente.
Milhares de saaráuis foram obrigados a fugir para a vizinha Argélia, onde
estabeleceram campos de refugiados, e outros tantos foram mortos ou continuam
desaparecidos. Aqueles que permaneceram passaram a viver sob a ocupação militar
marroquina,3 que já dura quatro décadas.

Um longo conflito armado prosseguiu diante da resistência da Frente POLISARIO à


ocupação marroquina. Aos poucos, a Frente logrou libertar uma porção do território
que, na década de 1980, foi completamente separado por uma longa barreira
construída pelo Reino do Marrocos, que pode chegar a 2.700 quilômetros de extensão
– a segunda maior do mundo, após a Muralha da China. A barreira é composta por
trechos de um muro de terra, cercas e milhões de minas terrestres. É também
guardada por milhares de soldados marroquinos, posicionados em vários pontos ao
longo da sua extensão.

Em 1985, o Secretário Geral da ONU e a então Organização da Unidade Africana –


hoje, União Africana – iniciaram esforços por encontrar uma solução para a questão.
A Frente POLISARIO e o Marrocos aceitaram as propostas para negociações, adotadas
em 1990 pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.4 O plano estabelecia um

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Ocupação militar é um termo descrito no direito internacional humanitário, que regula a condução dos
conflitos armados e as obrigações dos atores envolvidos, por exemplo, na proteção dos civis ou no
tratamento a prisioneiros de guerra. Uma ocupação militar só é considerada justificada caso se explique por
uma necessidade e seja temporária, e caso a potência ocupante cumpra seus deveres de proteger a
população. Ainda que a sua manutenção seja permitida, seus efeitos violentos e seu prolongamento têm sido
denunciados em diversos casos, como o do Saara Ocidental, pelo Marrocos, e o da Palestina, por Israel.
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O Conselho de Segurança é um órgão de tomada de decisão da ONU composto por cinco membros
permanentes (Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Rússia) e 15 membros rotativos. Os membros
permanentes têm o poder de impedir a adoção de qualquer resolução através do seu veto sobre as matérias
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período de transição para a organização de um referendo, através do qual os saaráuis
poderiam lançar seu voto para escolher entre a independência ou a integração ao
Marrocos. Ademais, como parte dos esforços, em 1991 se iniciaria o cessar-fogo entre
as forças marroquinas e a POLISARIO.

O Conselho de Segurança aprovou também em 1991 uma resolução que criava a


Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental (MINURSO),
responsável pela preparação prática da consulta e composta por uma equipe de civis
de 800 a mil pessoas, por cerca de 1.700 militares e por um componente policial de
cerca de 300 funcionários. Estava prevista a repatriação dos milhares de refugiados
saaráuis vivendo desde a década de 1970 no sul da Argélia a tempo para o referendo,
que se realizaria em 1992. A consulta até hoje segue em suspenso; os refugiados, os
exilados e aqueles que vivem sob a ocupação marroquina continuam demandando o
cumprimento deste compromisso. A principal questão sobre a mesa é a realização de
um censo populacional para a definição do eleitorado e alguns dos problemas e
táticas que determinam o prolongamento do impasse são a dispersão da população
saaráui e a transferência massiva de população marroquina para o território, na
política de colonização da região. Entretanto, o Marrocos segue alegando que o
território saaráui é uma de suas províncias ou que está sob disputa, embora nenhum
país reconheça o seu controle do Saara Ocidental como legítimo.

Cerca de 80 países já reconhecem a RASD – todos os africanos,


à exceção do Marrocos, e a maioria dos latino-americanos. O
Brasil ainda não está na lista.

em votação. A conformação e funções do órgão têm sido amplamente discutidas pela falta de
representatividade – sobretudo relativa à população mundial – e, por tanto, de legitimidade das suas
decisões, frequentemente sujeitas mais a interesses econômicos e políticos do que à preocupação com a paz.
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DIREITOS HUMANOS E AUTODETERMINAÇÃO
Um princípio fundamental da ONU e dos compromissos de cooperação internacional
por um mundo de paz justa é o direito dos povos à autodeterminação – o direito de
decidir livremente sobre o seu futuro, principalmente na esfera política e civil, mas
também na cultural e social. Este é um direito coletivo que se relaciona diretamente
com os direitos humanos fundamentais, baseado no compromisso mundial com o fim
do colonialismo e outras formas de dominação estrangeira.

Os povos de várias partes do mundo seguem lutando contra o colonialismo e outras


formas de dominação ou a intromissão, pelas potências internacionais, nos assuntos
internos de outras nações, como forma de influenciar e até manipular seu sistema e
rumos políticos, direta ou indiretamente.5 A suspensão do processo de
descolonização do Saara Ocidental hoje significa a continuidade do exílio, da vida em
campos de refugiados ou sob a ocupação militar marroquina, em que diversas e
graves violações dos direitos humanos são práticas sistemáticas e cotidianas. No
refúgio, no deserto argelino, vivem de 170 a 200 mil pessoas, em condições de
extrema vulnerabilidade. Mas é ali também a sede do governo da RASD e da Frente
POLISARIO; é nos campos de refugiados que se constrói a organização política e social
do povo saaráui, em meio a grandes necessidades, mas também a formas importantes
de resiliência às adversidades e de resistência à imposição desta situação ou à
negligência internacional.

Sob ocupação marroquina, o povo saaráui denuncia a repressão violenta e a censura


das manifestações e das atividades de associações ou meios de comunicação que
revelam a situação no território ocupado ou demandam o cumprimento da promessa
de autodeterminação através do referendo. Ademais, detenções sistemáticas,

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O compromisso estende-se ainda ao princípio de não ingerência nos assuntos internos das nações.
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execuções, torturas e outras formas cruéis de tratamento são cotidianas. Estas
violações dos direitos humanos dos saaráuis somam-se a outras formas de privação
ou limitação do direito à movimentação ou à expressão cultural – como o próprio uso
do hassanía ou da bandeira da RASD – denunciadas pelos saaráuis e pelos
observadores internacionais que logram visitar o território, algo persistentemente
dificultado pelas autoridades marroquinas.

Enquanto tarda o cumprimento da promessa de autodeterminação, cresce um forte


movimento de solidariedade internacional ao povo saaráui em defesa dos seus
direitos. Uma das campanhas promovidas denuncia a comercialização dos recursos
naturais locais pelo Marrocos com países diversos, inclusive membros da União
Europeia. Em fevereiro de 2018, o Tribunal Europeu de Justiça decidiu que um acordo
comercial de pesca entre o bloco e o Marrocos não pode incluir recursos saaráuis –
cerca de 80% da pesca realizada por embarcações europeias acontece nas águas
saaráuis – já que o território não pertence ao Reino. Este e outros casos evidenciam
que todos e todas temos um papel a desempenhar neste processo.

União da Juventude Saaráui desfila durante comemorações do aniversário da RASD em fevereiro de 2017, nos campos de refugiados.

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