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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Maurício Maia Aguiar

Retratos de Machado de Assis: sabedoria, genialidade e melancolia na


crítica literária fin de siècle

Rio de Janeiro
2012
Maurício Maia Aguiar

Retratos de Machado de Assis: sabedoria, genialidade e melancolia na crítica literária


fin de siècle

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Benzaquen de Araújo

Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA IESP

A282 Aguiar, Maurício Maia.


Retratos de Machado de Assis: sabedoria, genialidade e melancolia
na crítica literária fin de siècle / Maurício Maia Aguiar. – 2012.
191 f.

Orientador : Ricardo Benzaquen de Araujo.


Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Estudos Sociais e Políticos.

1. Assis, Machado de, 1839-1908 - Teses. 2. Sociabilidade – Teses.


3. Crítica literária – Teses. 4. Sociologia – Teses. I. Araujo, Ricardo
Benzaquen de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Estudos Sociais e Políticos. III. Título.

CDU 378.245

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese,
desde que citada a fonte.

_____________________________________________ _____________________
Assinatura Data
Maurício Maia Aguiar

Retratos de Machado de Assis: sabedoria, genialidade e melancolia na crítica literária


fin de siècle

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 9 de abril de 2012.

Banca Examinadora:
Prof. Dr. Ricardo Benzaquen de Araújo (Orientador)
Instituto de Estudos Sociais e Políticos - UERJ

Prof. Dr. Cesar Augusto Coelho Guimarães


Instituto de Estudos Sociais e Políticos - UERJ

Prof. Dr. Ronaldo Oliveira de Castro


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

Prof. Dr. André Botelho


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Antonio Herculano Lopes


Fundação Casa de Rui Barbosa

Rio de Janeiro
2012
DEDICATÓRIA

Às minhas musas Lilice, Tatiana e Mariana. Aos meus demônios Melancolia, Dispersão e
Tédio.
AGRADECIMENTOS

        
        Muitos colaboraram diretamente para tornar possível essa tese. Agradeço ao CNPq,
que financiou os meus estudos durante quase quatro anos, a todos os funcionários do antigo
IUPERJ  e  novo  IESP,  especialmente  a  Valéria,  Lia,  Simone  e  Caroline,  sempre  gentis  e
carinhosas  com  todos  os  estudantes.  Agradeço  aos  professores  que  compõem  o  corpo
docente  e  colaboradores,  pelo  esforço  pela  manutenção  da  instituição  e  por  prezar  pela
qualidade do ensino. Aos funcionários das bibliotecas da ABL, que sempre me atenderam
com zelo e eficiência.
        Sou grato aos professores Ronaldo Castro e André Botelho pelos comentários acerca o
meu projeto de doutorado, e por fornecerem subsídios importantes para o desenvolvimento
desta  tese.  Agradeço  ainda  aos  professores  César  Guimarães  e  Antonio  Herculano  que,
juntamente  com  André  Botelho  e  Ronaldo  Castro,  aceitaram  o  convite  para  ler  e  tecer
considerações sobre a tese. Com certeza o que vier a escrever posteriormente refletirá essas
leituras.
        Compartilhei minhas reflexões e ansiedades com muitos amigos, entre eles Teresa
Vale, Diego Ramiro, Ricardo Nóbrega, Lucas Amaro, Edilene Cruz e Renato Martini, aos
quais eu agradeço a paciência e o esforço sincero pela ajuda.
        Aos meus irmãos e minha mãe, agradeço o incentivo incessante e afeto. À Tatiana e
Mariana,  espero  poder  recompensar  todas  as  distâncias  impostas  por  esse  período  de
formação, e por terem sabido, como ninguém, compreender, perdoar e me estimular.
        Ao meu orientador, Ricardo Benzaquen, fica meu agradecimento especial, por ser o
maior responsável pelo que possa haver de relevante no trabalho, e que, com gentileza e
afeição, soube me ajudar em aspectos que vão muito além desta tese. Serei sempre grato
por sua dignidade intelectual e apreço pelo verdadeiro significado da formação.
RESUMO

AGUIAR, Maurício Maia. Retratos de Machado de Assis: sabedoria, genialidade e


melancolia na crítica literária fin de siècle. 2012. 191 f. Tese (Doutorado em Sociologia) -
Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Ja-
neiro, 2012.

Este ensaio de pensamento social brasileiro tem por objeto de análise as críticas
literárias sobre a obra de Machado de Assis, publicadas em jornais e revistas imediatamente
após o lançamento de cada um de seus livros. Portanto, são publicações de critica literárias
escritas por contemporâneos do próprio Machado de Assis, e que, ao resenharem suas obras
evidenciam o cenário e os modelos de interação vivenciados pelos artistas e intelectuais do
período. Assim como expõem ainda as compreensões de literatura e de artista que fazem parte
de seus repertórios analíticos. Este ensaio busca identificar, através das categorias mobilizadas
para retratar Machado de Assis, as transformações ocorridas nestes modelos de interação
social do período, e como a sociabilidade intelectual e artística, inicialmente vinculada ao
padrão de gosto cortesão estabelecido no Rio de Janeiro, foi cedendo espaço para outros
modelos de interação, e assim permitiu o desenvolvimento de diferentes compreensões de
literatura e do papel da crítica literária, contribuindo diretamente para a alteração nos
discursos retóricos das resenhas literárias. Portanto, este ensaio tenta identificar e entender os
modelos retóricos inscritos na crítica, e como estes discursos estão correlacionados à
transformações de ordem mais profunda, principalmente com o processo de modernização
social e a construção da autonomia do universo intelectual e artístico no fim do século XIX e
na primeira década do século XX.

Palavras-chave: Machado de Assis. Sociabilidade. Crítica literária.


ABSTRACT

The object of this thesis on Brazilian social thought is the literary criticism of the
works of Machado de Assis published in newspapers and magazines immediately after the
release of each of his books. Thus, they are literary criticism written by the contemporaries of
Machado de Assis that stresses the scenario and the interaction patterns experienced by the
artists and intellectuals from that period in their reviews. They also show the comprehension
of literature and of the artist that are part of their analytical repertoire. Recurring to the
categories utilized to interpret Machado de Assis, this essay aims at identifying the
transformation that occurred in those patterns of social interaction from that period and how
intellectual and artistic sociability - initially bonded to the pattern of courtesan taste
established in Rio de Janeiro - lost space to other interaction patterns and thus allowed the
development of different comprehensions of literature and the role of literary criticism,
directly contributing to the change in rhetorical discourses of literary reviews. Thus, this essay
tries to understand the rhetorical models that were present in the criticism and how these
discourses are related to more profound transformations of order, mainly the process of social
modernization and the construction of the autonomy of artistic and intellectual universe of the
late nineteenth century and the first decade of the twentieth century.

Keywords: Machado de Assis. Sociability. Literary criticism.


SUMÁRIO

  INTRODUÇÃO 8
1 VIDA LITERÁRIA E SOCIABILIDADE: A RETÓRICA SOCIÁVEL 22
1.1 A vivacidade literária 24
1.2 Leveza literária e tato cortesão 27
1.3 Literatura como conversa sociável 29
1.4 A modéstia 32
1.5 Sociabilidade, literatura e liberdade 36
1.6 Reconfigurações retóricas 46
2 A CIÊNCIA E A RETÓRICA DA AUTENTICIDADE 58
2.1 A juventude contestadora 63
2.2 Sinceridade e autenticidade 76
3 O CRÍTICO IMPRESSIONISTA: LEITURA COMO EXPERIÊNCIA 82
3.1 José Veríssimo e o impressionismo 92
3.2 Crítica, melancolia e distanciamento 99
4 RETRATOS DE MACHADO DE ASSIS 110
4.1 Mestre cortês: o ideal artístico na retórica cortesã 114
4.2 O artista trabalhador entra em cena 118
4.3 O excêntrico Machado: a retórica cientificista 127
4.4 Variações da impressão: alguns ídolos privados 136
4.5 Deuses em miniatura: sacrifício, recolhimento e humildade 142
4.6 Deuses em miniatura: soberba e indiferença 145
4.7 A experiência do dom 148
4.8 O sábio filósofo 157
4.9 O artista melancólico 166
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 180
  REFERÊNCIAS 186
8

INTRODUÇÃO: MACHADO DE ASSIS COM MEDIDA

Como o céu da teologia católica que se compõe de vários céus superpostos, nossa pessoa, na
aparência que lhe dá nosso corpo, com a cabeça que circunscreve a uma pequena bola nosso
pensamento, nossa pessoa moral compõe-se de muitas pessoas superpostas.

Marcel Proust

Quem foi Machado de Assis? Essa pergunta parece irrelevante devido ao grande
volume de biografias e estudos sobre um dos maiores nomes da literatura brasileira.
Entretanto, a tentativa de respondê-la, o que não constitui diretamente nosso objetivo, não
parece ser simples. Basta comparar essas diversas biografias e estudos para constatarmos a
grande quantidade de imagens distintas de Machado de Assis, como se atribuíssem ao nosso
autor uma série de papéis, muitas vezes opostos. Salta aos olhos, por exemplo, a grande
diferença de apreensão da obra de Machado realizada por importantes nomes do pensamento
brasileiro como Antonio Candido e Gilberto Freyre. Enquanto o primeiro atribui a Machado
uma grande capacidade de conciliar o legado literário1 com uma força individual que impõe
seus próprios padrões estéticos2, Gilberto Freyre, que se baseou constantemente na vida dos
intelectuais e artistas nacionais para identificar o processo de modernização brasileira, afirma
que Machado apelaria para imagens cinzas e imitaria os quadros dos romances europeus,
desprezando, portanto, o colorido de um autor como José de Alencar, este sim, em sua
percepção, mais próximo da tradição nacional3. Dessa forma, enquanto, para Candido,
Machado seria respeitoso da tradição e deteria uma força criativa, Gilberto considera sua
literatura um corte com a lírica nacional devido a seu pendor para imitação de padrões
europeus, e reflexo, em sua concepção, de certos vícios da modernização desenvolvida no Rio
de Janeiro4. Como se pode perceber, características completamente contraditórias desses dois

_______________________________________________
1
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1981. p.
117.
2
Idem. p. 136.
3
FREYRE, Gilberto. Reinterpretando José de Alencar. In: FREYRE, Gilberto. Vida, forma e cor. Record, Rio de Janeiro,
1987. p. 122.
4
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriciado rural e desenvolvimento do urbano. Global, São
Paulo, 2003.
9

intelectuais envolvidos com o modernismo brasileiro e influenciados pelo pensamento de


Sílvio Romero5. Em outra dimensão também nota-se certas distinções entre outros nomes do
pensamento brasileiro quando abordam a obra de Machado, tais como Raymundo Faoro e
Roberto Schwarz. Ambos intelectuais concebem os romances de Machado, principalmente os
romances escritos após Memórias Póstumas de Brás Cubas, como representantes de uma
espécie de realismo, e através da ficção de Machado intentam ilustrar aspectos constitutivos
da sociedade brasileira. Entretanto, apesar de partirem de um mesmo pressuposto da
sociologia literária, a de reconhecer aspectos da realidade transfiguradas no romance, as suas
conclusões são distintas. Vale notar que há diferenças na compreensão do realismo entre estes
dois autores, aliás, muito bem notadas por Lopoldo Waizbort, e, ainda, das distinções
metodológicas do tipo de sociologia da literatura empreendidas6. Ainda assim a suposição da
conexão entre o “realismo” machadiano e “realidade” do Brasil da segunda metade do século
XIX está presente em ambos. Faoro sustenta que a realidade estilizada pela pena de Machado
revelaria as tensões peculiares ao Brasil em transição de uma sociedade aristocrática para a
capitalista, onde a dimensão da aparência e símbolos de status seriam mais importantes para
os personagens burgueses descritos nos romances do que propriamente a existência de um
ethos de classe burguesa; enquanto para Schwarz, o realismo de Machado permitiria
vislumbrar as dissimulações da classe burguesa, sempre a encobrir a dominação de classe.
Dessa forma, a leitura de Faoro da obra de Machado tende a apreendê-la com o intuito de
apontar a fragilidade da classe burguesa, como se essa classe, no Brasil, fosse capaz de
adaptar-se facilmente, e de forma hipócrita, às convenções sociais do universo aristocrático,
abdicando de qualquer sentimento de classe e também de sua tendência à racionalização, e

_______________________________________________
5
Antonio Candido desenvolveu uma tese sobre Silvio Romero, atribuindo-lhe a primazia na formalização teórica e
metodológica de uma história da literatura verdadeiramente brasileira, e destaca a importância da tese da mestiçagem como
elemento primordial para se entender a formação nacional, cuja influência teria se dado em autores ligados ao modernismo,
como Gilberto Freyre. CANDIDO, Antonio. O método crítico de Silvio Romero. EDUSP, São Paulo, 1988.
6
Lopoldo Waizbort chama atenção para a riqueza analítica de Schwarz e Faoro, demonstrando que ambos partem de uma
compreensão estética que não restringe a obra literária a uma descrição da realidade. Há um descolamento entre obra de
arte e realidade, no sentido da literatura se converter em uma espécie de mediação estilizada dos processos sociais. Não é a
realidade de fato retratada pelo texto, e sim uma espécie de “realismo”. Entretanto há divergências entre o “realismo” que
ampara metodologicamente os autores. Em Faoro, este realismo tem bases na mimesis, tal qual definida por Auerbach,
como “verossimilhança comunicativa” e Roberto Schwarz, com influências de Lukács, está mais preocupado com a forma
do romance europeu transfigurada para o Brasil, e como está noção de forma possui influências complexas e indiretas da
realidade. De todo modo, a preocupação de ambos autores se volta à relação entre realidade e literatura, o que o permitem
tratar a ficção de Machado de Assis como uma possibilidade de acessar o contexto histórico brasileiro do final do século
XIX. WAIZBORT, Leopoldo. A Passagem do Três ao Um: crítica literária, sociologia, filologia. Cosac Naify, São
Paulo, 2007.
10

numa acepção oposta Schwarz pretende identificar através da obra de Machado uma classe
burguesa controladora, conectada ao desenvolvimento capitalista mundial. Dois realismos
distintos, e, também, duas realidades contraditórias.7
Seria possível apontar uma série de outras divergências referentes à apreensão da obra
de Machado de Assis entre intelectuais da tradição do pensamento brasileiro, entretanto, esse
não constitui nosso objetivo. É necessário destacar, no entanto, que tais comparações não
desmerecem os trabalhos sobre nosso ilustre escritor, e revelam, pelo contrário, a riqueza da
obra de Machado de Assis, e as múltiplas possibilidades de sua apreensão. Dessa forma, a
questão inicial da abertura desse capítulo, “quem foi Machado de Assis?”, torna-se mais
complexa, pois a obra de Machado parece possuir algumas características que permitem as
mais variadas interpretações. Seria possível argumentar que a variedade de apreensão ocorre
com freqüência devido às distinções de teor metodológico existente entre seus intérpretes, o
que de certo seria um aspecto relevante para a compreensão da diferença nas leituras. Mas,
ainda assim, é necessário reconhecer a flexibilidade com que é dotada a obra, e também a vida
de Machado, capazes de se “adaptarem” com certa facilidade a estas distintas interpretações e
aos respectivos aspectos metodológicos inerentes a elas. Devido a isso, para entender pelo
menos parte do motivo para essa diversidade com que Machado de Assis tem sido
recepcionado ao longo do tempo, desde o início da publicação de sua obra, é necessário, em
um primeiro momento, deslocar o foco dos intelectuais que o estudaram para o próprio
Machado. Dentro do possível, nos manteremos fiéis à intenção de contemplar a recepção
crítica da obra de Machado realizada por seus contemporâneos, e apenas em momentos
pontuais lançaremos luz a alguns aspectos da obra e vida do próprio Machado, com o cuidado
e medida necessários.

A reserva e o sentimento íntimo

_______________________________________________
7
Os textos de Faoro e Schwarz consultados foram respectivamente: FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e
o trapézio. Editora Globo, São Paulo, 2001, e SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado
de Assis. Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1990.
11

Há certas características na obra de Machado e também em seus dados biográficos que


corroboram para interpretações tão distintas. Em grande esforço hermenêutico de
compreensão do famoso texto crítico de Machado, “Instinto de Nacionalidade”, Abel de
Barros Baptista8 nota certo autocontrole retórico em Machado para garantir a defesa da
liberdade da ficção em terras tropicais. Pois em um ambiente social marcado pela vigilância
nacionalista de alguns críticos, Machado teria encontrado um caminho para conseguir se
legitimar como escritor nacional sem reproduzir convenções tanto a respeito de como
descrever a “realidade brasileira”, assim como de modelos ficcionais praticados no período.
Baptista identifica essa estratégia retórica na metáfora “sentimento íntimo”, desenvolvida por
Machado com a finalidade de escapar às críticas e instituir outra forma de se pensar a
nacionalidade do escritor e obra.

A solução da tensão resultante, encontro-a na metáfora do “sentimento íntimo”, e a leitura que


dela faço mostra que, para Machado, não se tratava de defender um nacionalismo interior, ou
essencial, ou despido de superficialidades localistas, mas de, mais uma vez, colocar o seu
nome na disponibilidade para a leitura assente na referência à questão nacional. O
“sentimento íntimo” não é um traço substancial, mas um efeito de leitura, como tal caindo por
inteiro no âmbito da responsabilidade do leitor. No fundo, Machado limita-se a afirmar que,
qualquer que seja o programa literário, qualquer que seja a “feição do livro”, haverá sempre
possibilidade de o ler a partir da relação com a realidade nacional.9

A partir dessa interpretação do texto “instinto de nacionalidade” podemos supor a


existência de uma delicada relação entre a teoria estética e a ideia de realidade,
proporcionando uma abertura do texto à interpretação e, conseqüentemente, a uma atitude
mais ativa do leitor no enquadramento do próprio texto. Dessa maneira, sem apelar para as
aparências na representação da “cor local”, Machado almejou assegurar seu nome entre os
autores brasileiros com a justificativa de que seu modo de escrever e pensar seriam os mais
amplos possíveis, e flexíveis o suficiente para confirmar sua inserção na tradição literária
nacional, ou melhor, nas diversas tradições literárias nacionais. O que explicaria, em parte, a
diversidade da recepção realizada por intelectuais como Roberto Schwarz, Antonio Candido e
Raymundo Faoro10.

_______________________________________________
8
BAPTISTA. Abel de Barros. A formação do nome: Duas interrogações sobre Machado de Assis. Editora da UNICAMP,
Campinas, São Paulo, 2003.
9
Idem. p 17.
10
A recepção de Gilberto Freyre da obra de Machado é muito próxima a interpretação de Silvio Romero, e mais a frente será
abordado de forma mais detida como este último insiste em considerar Machado como um desvio da tradição nacional.
12

Apesar deste estudo de Baptista tratar especificamente dos textos críticos de Machado,
esta acepção pode ser bastante proveitosa para apontar uma característica mais abrangente, e
justificaria a variação nas interpretações sobre o autor, mais especificamente das
interpretações sobre Machado realizadas pelos seus contemporâneos. Tal como salienta
Baptista, há um esforço de Machado para se manter ileso à vigilância nacionalista e desse
modo garantir sua liberdade estética. Podemos acrescentar que este esforço retórico dos textos
críticos de Machado (em destaque “A Nova geração” e “Instinto de Nacionalidade”), parece
estar em conformidade com seu comportamento social, pois a grande maioria das resenhas
publicadas em jornais desde o romance “Reencarnação”, estréia do nosso autor no romance,
até àquelas que se detém no ultimo livro de Machado, “Memorial de Ayres”, é muito comum
encontrar trechos como este de Walfrido Ribeiro ao comentar uma passagem de Esaú e Jacó,
que destacam a “discrição” como uma característica marcante de seu caráter.

No episodio, Machado espraia as subtilezas, o seu dom superior, super fino, de recato, de
timidez, de pudor; a discreção, a medida o contém; e surge vacilante e alegre, o divertido da
11
sua duvida, o mais pittoresco dos seus aspectos litterarios .

Como poderemos constatar mais a frente, a discrição de Machado não colabora na


fixação de uma imagem específica de seu temperamento, pelo contrário, o seu silêncio a
respeito de si passa pela recusa em posicionar-se em certas questões margeadas por
animosidades, e assim abrem espaço para uma variada caracterização a seu respeito. Porém,
sua discrição não significa abandono no controle da própria imagem, pelo contrário, parece
ganhar um significado de polidez, de auto-vigilância constante que lhe permite transitar pelos
mais diversos círculos sociais, minimizando possíveis adversidades. A aparência de
indeterminação do próprio caráter dota-o de liberdade similar àquela conquistada no plano da
sua escrita, defendida retoricamente com sua defesa do sentimento íntimo do escritor. Sobre
esta reserva de Machado de Assis, esse seu pudor em expor-se de forma mais íntima, Lúcia
Miguel Pereira afirma que o próprio Machado parece ter escolhido “os clichês em que se

_______________________________________________
11
Walfrido - primeiro nome de Walfrido Ribeiro. Os Annaes, Rio de Janeiro, na data de 5 de novembro de 1904. In:
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 435.
13

perpetuaria, deformando-se”12, apresentando-se oficialmente através da impessoalidade, pelo


distanciamento.
A atitude de Machado, a partir do contexto apresentado acima, nos permite
caracterizá-la como de “reserva”, pautada em um esforço em calcular a distância tecida em
suas relações, como se a proximidade em demasia prejudicasse a liberdade de sua atuação
como intelectual/artista, colocando-o em uma trama de compromissos e expectativas a
respeito de sua obra que lhe seriam inconvenientes. De fato percebe-se essa distância entre
Machado e seus contemporâneos, até mesmo frente àqueles considerados amigos13, e a
motivação para essa restrição do contato pode ser compreendida a partir do contexto histórico,
pois uma das formas de garantir a independência intelectual frente aos crescentes
constrangimentos gerados pela racionalização, tais como a forte busca por identidade no Rio
de janeiro durante parte do século XIX14, seria a partir da delimitação de um espaço entre a
individualidade e o grupo da qual faz parte15. Uma das formas de evitar essa vigilância em
torno de sua obra, por exemplo, pode ser notada em seu famoso “tédio à controversa”, tão
bem ilustrado em vários de seus personagens16, e característico do seu silêncio na maturidade
diante dos insultos ou críticas ácidas eventualmente lhe atiradas. Entretanto, a distância não
seria bem caracterizada a partir do conceito de “reserva”, pelo menos não na apreensão de

_______________________________________________
12
PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: Estudo crítico e biográfico. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,
1955, p. 19-20.
13
Brito Broca descreve a amizade entre Machado e Joaquim Nabuco a partir desse distanciamento polido em que a reserva
ditava os limites da expansão da afeição de um pelo outro, distanciamento e polidez que lhes permitiram a amizade ainda
que cada um tivesse posturas distintas, principalmente em face às controvérsias. Sendo Nabuco mais afeito à eloqüência
oratória e a intervenção nas questões públicas, enquanto Machado teria seu famoso tédio diante qualquer contenda.
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil: 1900. José Olympio, Rio de Janeiro, 2004. p. 252
14
Lilia Schwarcz demonstra exemplarmente todo esforço social na constituição de uma identidade nacional, inclusive sob
estímulo direto do próprio Dom Pedro II, agindo como um tutor cultural ao estimular pesquisas científicas, promover
concursos monográficos e literários e participar na criação de institutos históricos, entre uma série de outras atuações.
SCHWARCZ, L. M. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, Um Monarca Nos Trópicos. Editora Companhia das
Letras, São Paulo, 1998.
15
Tomo por base a relação entre os conceitos de identidade e racionalidade apresentados por Adorno, em que considera o
processo de constituição de uma identidade como espécie de hipertrofia da razão coletiva em detrimento da subjetividade.
ADORNO, T., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Editora Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 2006. Apesar de não concordar com a pretensão de generalidade nesta correlação, ela parece se aplicar no
contexto específico da segunda metade do século XIX, com a busca um tanto forçada por uma imagem de especificidade
nacional.
16
Alfredo Bosi identifica a obra de Machado, principalmente a da maturidade, a partir de um “amaciamento de todos os
atritos”, perceptível principalmente no narrador Ayres, que prefere se “deter e adensar o seu tempo próprio, fechando-se
ciosamente nas alegrias privadas [...]”. BOSI, Alfredo. Machado de Assis: O enigma do Olhar. Martins Fontes, São
Paulo, 2007. p. 141.
14

Simmel em seu importante estudo sobre as tensões experimentadas pelos indivíduos das
grandes cidades.17 Machado nunca foi descrito como um intelectual frio, áspero na defesa de
sua privacidade e sob um temor inexplicável diante a possibilidade de contato mais íntimo. E
o Rio de Janeiro não favoreceria em grande escala as experiências sociais de cosmopolitismo
tal qual a Londres da segunda metade do século XIX, principal palco do fenômeno social e
psíquico descrito por Simmel. Apesar do forte processo de modernização ocorrido no Rio de
Janeiro no período, o círculo intelectual era fechado, e a maior parcela dos leitores das obras
de ficção e crítica literária, impressas em livros ou nos jornais da corte, eram os próprios
intelectuais. Desse modo, uma atitude de reserva, a imposição fria de distâncias frente a
outros sujeitos, teria por conseqüência um isolamento capaz de inviabilizar a divulgação das
obras e até mesmo sua publicação, exatamente o oposto do que acontece a Machado.
Principalmente no contexto da recepção literária do período romântico, quando Machado
inicia a publicação de suas peças e poemas.
A categoria “reserva”, isoladamente, não é adequada para caracterizar o
comportamento de Machado em sociedade, e as menções a respeito da sua “apurada arte de
conversação” reforçam a necessidade de qualificar melhor o tipo de discrição atribuída à
Machado, por se tratar de um ponto que posteriormente terá conexão conceitual quando
abordarmos algumas resenhas de forma mais detida. Para caracterizar melhor a noção de
“discrição”, e apresentar outra possibilidade de apreender a noção de reserva, nos valeremos
novamente de Simmel, mas a partir de um aspecto muito preciso inserido na sua discussão
sobre sociabilidade18. A discrição é mencionada por Simmel como uma das condições
fundamentais para a manutenção da sociabilidade, para a pretensão em se formar um espaço
democrático, constituído por indivíduos de uma mesma condição social19, onde se reforçam
os vínculos a partir da superação dos individualismos inerentes a vida moderna20. Ou seja, a

_______________________________________________
17
SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana, vol. 11, nº 2. Rio de Janeiro, 2005.
18
SIMMEL, Georg. A Sociabilidade: exemplo de sociologia pura ou formal. In: Questões fundamentais da sociologia.
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006.
19
Idem. P. 69.
20
Simmel, em seu estudo sobre o surgimento de diferentes padrões de subjetividades a partir do século XVIII, demonstra que
durante a segunda metade do século XIX, as modernas sociedades ocidentais seriam palco de um duplo individualismo, um
individualismo quantitativo, espécie de hipertrofia da cultura objetiva no indivíduo e de outro lado, um individualismo
qualitativo, em que o indivíduo exagera suas características peculiares com a finalidade de tornar-se incomparável.
15

única forma de se simular um espaço de igualdade entre os indivíduos em detrimento desse


duplo individualismo (quantitativo e qualitativo), é que o indivíduo se comporte com
discrição no espaço de sociabilidade, e iniba todo impulso por salientar suas características,
sejam elas de cunho extremamente peculiar, como seus talentos, genialidade ou
idiossincrasias, seja, por outro lado, características que o enquadrem socialmente, tais como
riqueza, status, fama e etc21. A discrição, portanto, representa o principal esforço para se
apagar as distinções individuais nos instantes de sociabilidade, e assim, o indivíduo se
portaria de forma estilizada e reservada, evitando tornar-se desagradável, justamente, em um
espaço que pretende aproximar e reforçar os laços entre os indivíduos de determinada classe
social e assim produzir a sensação coletiva de igualdade e ausência de distâncias. O próprio
Machado de Assis é apontado por Araripe Junior como um exímio conversador de salão22,
com apurado talento para manter esse clima sociável em suas conversas.

É possível que se encontre quem exprima-se com mais vivacidade e elegancia, quem
apimente uma anecdota de modo mais dramatico do que elle; todavía, duvido que um
apresente no Brasil artista mais desvelado no aprumo da conversação e que a tome tão a
23
serio.

A “seriedade” com que Machado se aplicaria à conversação não implica um tom sério
e cerimonioso, como pode ser depreendido equivocadamente da afirmativa de Araripe Junior.
E sim que o autor fluminense dedicava-se com afinco para manter a harmonia e naturalidade
na interação, aplicava-se em conduzir a conversa de forma similar à certos princípios de
beleza inerentes à arte, o que justificaria pensá-la como uma forma artística. E tal arte da
conversação, importante fator da sociabilidade, é definida por um signo de leveza, cuja
principal finalidade é proporcionar vivacidade ao outro. A vaidade pessoal ou o interesse
acentuado do conteúdo da conversa seriam fatores perturbadores de tais princípios artísticos
implicados na conversa, pois certamente contrariaria o objetivo principal de entreter os

SIMMEL, Georg. Indivíduo e sociedade nas concepções de vida dos séculos XVIII e XIX: exemplo de sociologia
filosófica. In: Questões fundamentais da sociologia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006.
21
SIMMEL, Georg. A Sociabilidade: exemplo de sociologia pura ou formal. In: Questões fundamentais da sociologia.
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006. p. 66-67.
22
A arte de conversar era um dos principais requisitos aos integrantes dos salões aristocráticos, e vários personagens da vida
literária e política brasileiras eram reconhecidos por possuírem esse talento, tais como Bernardo Guimarães, Porto-Alegre,
cônego Januário da Cunha Barbosa, Pedro Luís e Martim Francisco. MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil
durante o romantismo. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2001. p 139-140.
23
Araripe Júnior. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 de janeiro de 1892. In:GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores
de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 370.
16

interlocutores e proporcionar-lhes satisfação, como podemos verificar nessas duas passagens


seguintes em que Simmel define os perigos aos quais incorrem a conversa sociável:

Para que esse jogo (a conversa) preserve sua suficiência na mera forma, o conteúdo não pode
receber um peso próprio. Logo que a discussão se torna objetiva, não é mais sociável. Ela
muda o eixo de sua diretriz teleológica logo que a fundamentação de uma verdade – que
constitui plenamente seu conteúdo – torna-se seu fim. Com isso ela destrói o seu caráter de
entretenimento sociável da mesma maneira que ocorre quando dela surge uma briga séria.
(...)
Resulta do conjunto desses contextos o fato de que também o ato de contar histórias, piadas,
anedotas – por mais que freqüentemente seja algo que preenche os vazios e dê provas de
pobreza espiritual – possa exibir um tato sutil, no qual soam todos os motivos da
sociabilidade. Porque a conversa, em primeiro lugar, se dá em uma base que está para além de
toda intimidade individual, situando-se além daquele elemento puramente pessoal que não se
24
quer incluir na categoria sociabilidade.

Dessa maneira, podemos intuir que a discrição de Machado não tinha somente a
finalidade de preservar sua liberdade criativa, pois seu esforço para manter sua “arte de
conversação” e ainda sua postura como presidente da ABL ou em suas crônicas, cartas e
textos críticos, constituem instantes de defesa e consolidação de encontros sociais pautados na
sociabilidade. Ao contrário da constituição de uma esfera intelectual fortemente amparada na
ideia de uma identidade nacional coercitiva, impondo tanto uma forma estética como,
também, certos conteúdos às ficções e ensaios, ou seja, uma racionalização do comportamento
no sentido do individualismo quantitativo, a sociabilidade cumpriria justamente um padrão de
consolidação da “sociedade” intelectual sem, no entanto, transgredir o respeito ao indivíduo e
as liberdades estéticas. Dessa forma, a distância que Machado de Assis conseguia manter
frente aos seus contemporâneos, longe de se tratar de um isolamento, pelo contrário, visto que
assumiu a presidência da ABL, e sempre participou ativamente de diversas sociedades
artísticas e clubes25, ou seja, de diversos instantes de sociabilidade do universo intelectual e
artístico da cidade do Rio de Janeiro do período, essa distância fez-se necessária como
tentativa, ainda modesta e frágil, de consolidação desses espaços sociais que aproximassem
intelectuais e artistas. Aspecto que não deixa de gerar tensões e expõe justamente a fragilidade
de tal ambição em terras tropicais, tal como poderemos notar quando tratarmos Sílvio Romero
e a geração de 1870.

_______________________________________________
24
SIMMEL, Georg. A Sociabilidade: exemplo de sociologia pura ou formal. In: Questões fundamentais da sociologia. Jorge
Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006 , p 75-77. Grifo meu.
25
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis. Volume 2, Ascensão. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1981.
17

Categorias intelectuais e sociais na crítica do século XIX

Antes de definirmos com maior precisão os conceitos de sociabilidade e dos


individualismos quantitativo e qualitativo – que serão discutidos dentro do contexto social do
século XIX brasileiro e de seus modelos de crítica literária, objeto do primeiro capítulo,
intitulado “Vida literária e sociabilidade: a retórica sociável” -, é necessário destacar que a
ideia de discrição, aqui compreendida como um traço importante da vida e também da
literatura de Machado de Assis, tem um papel preponderante para a diversidade de
interpretações a seu respeito. Pois esta distância, qualificada como discrição, e que define a
própria postura de Machado em sociedade - e não somente seus textos -, baseia-se em
calculado nível de indeterminação, que ao evitar assumir convicções muito rígidas, abre uma
maior margem para “impressões” diversas aos que lhe observavam. Assim, a indeterminação
e sua plasticidade social, que o dotaram da capacidade de transitar nas mais diversas redes de
relações, levaram seus críticos contemporâneos a comporem várias imagens de nosso autor, e
ao longo dos capítulos serão pontuados alguns desses “retratos”, principalmente no quarto
capítulo – “Os retratos de Machado de Assis” -, em que trataremos especificamente dos vários
perfis criados para identificar Machado, os “temperamentos” que lhe são atribuídos. Portanto,
não faz nenhum sentido se debruçar sobre essas resenhas com a intenção de elaborar a
verdadeira imagem do autor, pois é irrelevante a tentativa de dotar de veracidade ou não esses
perfis.
Parte da explicação da diversidade com que distinguem Machado através dessas
imagens tão distintas provém da própria reserva machadiana, no entanto isto não significa que
estes perfis foram elaborados livremente, à mercê das variações de impressões apenas
pessoais. É necessário agora compreender a complementação dessa explicação sobre a
diversidade de perfis de Machado, e a encontramos, pelo menos como ponto de partida,
justamente na própria característica implicada no trabalho de contemplação da arte literária: o
crítico. Pois há algumas especificidades do trabalho crítico que precisam ser consideradas, e o
faremos a seguir.
Lukács nos oferece uma interessante pista para qualificar o trabalho da crítica, e isto
nos será útil para entendermos a grande diversidade de perfis de Machado. Primeiro é
necessário advertir que, tal como o método empregado pelo jovem Lukács - que analisou
alguns artistas do século XIX, entre eles Thomas Mann -, nos basearemos na possibilidade de
compreender o texto em uma dimensão mais social. Portanto, consideraremos as categorias
18

intelectuais acessíveis nas resenhas e obras sobre Machado como atreladas às “formas de
vida”, em uma clara tentativa de romper com a recorrente dicotomia entre texto e contexto. O
conceito de “forma” é uma possibilidade de entrever nos textos literários ou críticos uma
dinâmica que o extrapola a partir da tentativa de compor uma unidade entre pensamento e
vida, ainda que reconheça a tendência de ambas em constituírem-se autonomamente. Trata-se,
portanto, de uma clara intenção de superar a ambivalência entre consciência e linguagem de
um lado e o mundo empírico de outro, ao apontar que ambos podem ser apreendidos
conjuntamente, mesmo que tomem múltiplas formas. Neste sentido, é possível apreender o
texto, ressaltando seu significado interno, sem que isso signifique um isolamento dele frente à
realidade. Pelo contrário, o sentido interno do texto aponta na direção de certas configurações
históricas, cujo uso de determinados termos e categorias estão implicados com a visão de
mundo tecidas nas relações mesmas de certos grupos diretamente vinculados a produção ou
leitura desses mesmos textos. Esclarecido este primeiro ponto, é possível precisar a
compreensão do jovem Lukács sobre trabalho de crítica literária.
Ao passo que o ensaio de crítica literária busca deixar “transparente” um determinado
autor, esmiuçando peculiaridades e temperamento, ele expõe também o crítico, como se ao
traçar o perfil de outrem, definisse simultaneamente a si próprio, revelando suas categorias, as
bases de seu entendimento do mundo e deixando claro as características que aproximam ou
distanciam crítico e criticado. E não é raro que seja este mesmo o propósito, medir-se com o
outro e definir a si mesmo ao mesmo tempo em que analisa o seu objeto. Dessa maneira, toda
tentativa em tratar sistematicamente a personalidade de Machado, procurando dotá-la de uma
unidade auto-referente, nos revela não apenas o próprio Machado e sim os valores e forma
crítica daquele que o analisa e de seu contexto cultural26. Além disso, percebe-se que a
postura de avaliação da obra se transforma em uma projeção do crítico, como se através da
arte se viabilizasse a sublimação de uma ansiedade diante das próprias representações, o que
nos remete a considerar a atitude do crítico diante da arte baseada na “aspiração” em
constituir modelos de subjetividade e, ainda, confirmar a própria personalidade. As

_______________________________________________
26
Este instigante estudo de Lukács sobre a natureza do ensaio problematiza justamente isso ao apontar que o objetivo do
ensaísta consiste na busca pela “ilusion of truth” que conduz o estudioso a apreensão da “vida” do autor analisado, uma
espécie de verdade mítica onde se fazem presentes os questionamentos da geração do próprio crítico, que possui uma
finalidade prática ao prover seus contemporâneos e a si mesmo de símbolos de vida (life-symbols), guias para a
modelagem de suas próprias personalidades. LUKÁCS, Georg. On the nature and form of the essay. In: LUKÁCS, Georg.
Soul and Form. The Mit Press, Cambridge, Massachusetts, 1980.
19

prescrições do crítico, muitas delas com conteúdo moralista, são símbolos dessa ambição de
tornar efetivo seu mundo imaginado e transformar suas categorias em “rotina”, validada como
forma de ação no mundo. Em linguagem weberiana, poderíamos supor que se trata, de fato,
do “sentido” que orienta a ação27.
A partir disso podemos dar maior relevância aos condicionamentos da interpretação,
as circunstâncias norteadoras do tipo de abordagem desenvolvida pelos estudiosos de
Machado de Assis, pois a sua discrição conduz seus críticos, com ainda mais intensidade, a
compor um retrato que espelha suas próprias expectativas a respeito do ilustre artista, e, com
isso, traz à superfície um conjunto de categorias inerentes ao seu contexto social. Somente
considerando essa peculiar relação entre o escritor e seus críticos, calcada nessa ansiedade por
evidenciar um modelo de subjetividade artística, será possível compreender porque esses
retratos de Machado de Assis parecem compor uma espécie de caleidoscópio singular, em que
ao invés de uma imagem multiplicada infinitamente, tem-se uma infinidade de imagens
específicas, com nuances particulares, dissimuladas na aparente coerência produzida pelas
simetrias.
Se partirmos do pressuposto de que a imagem de determinado autor é condicionada
em grande medida pelas biografias, então tais interpretações crítico/biográficas podem ser
entendidas como formas de mediação entre público e escritor, e seria a partir dos
(des)caminhos dessa atividade mediadora que ocorre a tentativa de fixação da imagem do
próprio autor perante o público. Com base nessa acepção, este tipo de processo de
composição da imagem decorre da negociação/conflito entre as interpretações sobre esse
autor, e desencadeia um processo em que algumas dessas interpretações almejam ganhar
premência frente outras e assim ser conferido a elas certo atributo de verdade, o que não
necessariamente resulta em uma imagem coesa do próprio autor. A partir dessas
considerações o problema passa a merecer um deslocamento e nos permite reformular a
pergunta inicial, devido a própria irrelevância de tal questionamento frente o material
empírico que dispomos. As resenhas não nos ajudam a compor uma imagem acabada de
Machado, e portanto as respostas possíveis diante da pergunta “quem foi Machado de Assis?”,
nos revelará uma multiplicidade de imagens, que apesar de partilharem alguns aspectos que as

_______________________________________________
27
WEBER, Max. A objetividade do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: WEBER, Max. Metodologia
das ciências sociais. Editora Cortez, Campinas, 1992.
20

assemelham, ainda assim, possuem nuances próprias. O principal objetivo na busca pela
identificação e análise das diversas respostas à questão “quem foi Machado de Assis?”, é
justamente identificar as variadas características atribuídas à Machado, e assim investigar
quais referenciais culturais podem estar por trás desses retratos.
Do início da publicação das suas obras até os dias de hoje produziu-se um grande
número de perfis de Machado de Assis, e estes perfis são fruto do diálogo de determinado
crítico, inserido em contextos intelectuais do seu tempo, com a obra e “dados” históricos do
autor retratado. Este suposto, por si só, seria suficiente para entender a variedade de perfis,
pois o diálogo do crítico com a obra e com as fontes históricas do autor estudado poderia
receber contornos bastante diversos em decorrência do grande número de possibilidades da
efetivação desses diálogos. Apontar que a elaboração do perfil de determinado autor se dá na
relação deste com o estudioso de sua vida/obra significa que, para se compreender o próprio
perfil criado, é necessário não só destacar e qualificar quais aspectos foram mobilizados para
a elaboração do contexto reconstituído, como, também, identificar o próprio contexto daquele
que criou este perfil. Sendo, pois, necessário considerar a variedade daquilo que pode se
designar por ambos contextos.
Esta questão ganha contornos bem específicos quando os estudos realizados sobre
Machado são feitos por seus contemporâneos. Porque, neste caso é, aparentemente, mais fácil
delimitar as relações entre o crítico com a obra/vida do autor. As resenhas críticas publicadas
nos jornais logo após a estréia dos poemas, peças teatrais e romances apresentam uma
especificidade na relação do crítico com o autor e também com o público, muito diversa da
pesquisa histórica de fontes praticada em grande distancia temporal. Neste tipo de relação a
“presença” do próprio autor por si só demonstra que o universo ao qual está inserida a resenha
é preenchido por uma teia de relações, que escapam, muitas vezes, de um distanciamento
intelectual para julgar a obra, ou que pelo menos possuem níveis de distanciamento
específicos, como veremos ao longo do trabalho. Ainda, o fato de Machado de Assis também
se constituir como um leitor dessas resenhas abre margem para a própria intervenção do autor
no controle de sua imagem, que o faz ser uma espécie de sombra para a nossa compreensão
das resenhas, um fantasma disforme, sem substância, ao qual não temos condições plenas de
precisar. Portanto, o principal objetivo não é compor uma imagem estável de Machado de
Assis, e sim, investigar como essas variadas imagens são produtos constituintes dos espaços
sociais onde transitam autor, crítica e público leitor, e assim compreender as mudanças no
ambiente intelectual da cidade do Rio de Janeiro na época de Machado.
21

A crítica literária que se debruçou sobre a obra de Machado é bastante diversa, e este
aspecto impõe grande dificuldade para se compreender suas dinâmicas retóricas de uma forma
mais abrangente. Assim, optou-se por selecionar algumas das principais características, ou
grupos de características, que compõem certos modelos retóricos, explicitadas aqui como
tipos ideais. Estes tipos ideais elaborados a partir da identificação das estratégias retóricas
mais gerais apresentadas pelos críticos têm por finalidade descortinar certas “formas de vida”
que são expressas de maneira condensada nestes modelos retóricos. Em cada um destes
modelos foram observadas as expectativas em relação ao comportamento do artista, sua
postura ideal, e, ainda, como parecem definir os significados da leitura e maneira pela qual o
público leitor deve aproveitar-se desta arte. Privilegiou-se, deste modo, as percepções
implícitas na crítica em relação tanto ao artista como, ainda, frente ao público leitor, tendo em
vista que foi necessário não perder de vista esta característica de mediação desempenhada
pela crítica.
Foram identificados três modelos retóricos, e cada um mereceu um tratamento
especifico, contemplados nos capítulos I - “Vida literária e sociabilidade: a retórica sociável”
-, II - “A ciência e a retórica da autenticidade” - e III - “O crítico impressionista: leitura como
experiência”. O primeiro capítulo, onde será abordada a “retórica sociável”, será apresentado
um quadro mais estável da crítica literária, onde as retóricas discursivas pretendem obedecer a
um conjunto de normas e princípios do universo cortesão da cidade do Rio de Janeiro, cujo
lugar da literatura, e principalmente da crítica literária, está relacionada à sociabilidade, a um
padrão de comportamento onde determinados traços da vida cortesã se desdobram na
literatura. A este primeiro modelo mais estável segue-se um quadro de ampliação da
diversidade retórica, constituída a partir da alteração das próprias expectativas do público
leitor e uma maior diferenciação qualitativa deste público, que será marcada por
posicionamentos distintos diante o papel do crítico no período das últimas três décadas do
século XIX e início do século XX. Neste instante pelo menos duas formas retóricas da crítica
literária ganham certa premência, e devido ao peso de suas contribuições neste período,
selecionamos ambas para representar este processo de transformação intelectual desenvolvido
com mais força a partir da década de 1870. Assim, no capítulo II será delineada a crítica
baseada em uma retórica cientificista, constituída a partir de uma noção de método de análise
e, logo após, no capítulo III, a outra forma retórica que se aproxima de um impressionismo
estético, onde se valoriza uma maior liberdade nas interpretações. Finalmente, no capítulo IV,
serão apresentados os principais retratos de Machado, elaborados a partir dos modelos
retóricos indicados.
22

1. VIDA LITERÁRIA E SOCIABILIDADE: A RETÓRICA SOCIÁVEL

Hoje os homens ficam homens, applaudem sem transpirar, muitos com as palmas, alguns com
a ponta dos dedos, mas sentem e basta. A ingenuidade é menor? A expressão comedida? Não
importa, comtanto que vingue a arte. Onde ella principia, cessam as canceiras d’este mundo.
Partidos irreconciliáveis, partidários que se detestam, conciliam-se e amam-se por um
minuto ao menos. Grande minuto, meus caros amigos, um minuto grandíssimo, que vale por
um dia inteiro.

Machado de Assis
Crônica de 8 de julho de 1894

O Rio de Janeiro até a década de 1880 é marcado pela lenta ampliação do público
leitor, mas, ainda assim é considerado muito inexpressivo devido à grande quantidade de
analfabetos ao longo de todo este período28. Entretanto, percebe-se que a atividade literária
deste período, a despeito da inexistência de um público mais amplo, ou, em termos mais
precisos, de um público de fato moderno29, parece ampliar-se consideravelmente, o que pode
ser evidenciado pelo aumento do número de obras publicadas. Como não faz sentido pensar-
se as obras na ausência de um público, é necessário compreender de fato qual a relação entre
estas obras e o reduzido número de leitores, especificamente em relação a produção inicial de

_______________________________________________
28
O recenseamento de 1872, divulgado em 1876, revela que 84% da população brasileira era de analfabetos, correspondendo
a um total de 9.930.478 pessoas. Esse número será um dos principais índices utilizados por Hélio de Seixas Guimarães
para discutir como é possível ler a obra de Machado de Assis como uma postura reflexiva diante esta ausência de leitores.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004, p. 85. A intenção deste trabalho não é identificar as implicações da
recepção literária da obra de Machado em sua própria ficção, ou, ainda, investigar os problemas da ausência de um público
mais amplo em seus romances, contos e poesias. Minha principal intenção é identificar as categorias e retóricas inscritas na
crítica literária da época, e como estes críticos, a partir de seus universos de interpretação, expuseram suas compreensões
em relação a obra de Machado. Portanto, apesar de ser um dado analítico interessante, não é relevante para este trabalho o
número de analfabetos no Brasil daquele período, tendo em vista que buscaremos qualificar este “especial” público leitor
que compõe a crítica literária no contexto histórico abordado.
29
Habermas, tratando especificamente da esfera pública literária, afirma que a passagem de público aristocrata para o publico
burguês, em moldes modernos, se deu de forma gradativa, em uma combinação do padrão de comportamento elegante da
corte e a vanguarda burguesa culta, cujo contato, na cidade, acabou por ganhar autonomia frente à “esfera pessoal do
monarca”, e formou, assim, um público literário em moldes modernos, com implicações na própria reformulação do
discurso, que se amalgama em uma forma crítica e com implicações na vida política. HABERMAS, J. Mudança
estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Editora Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, 1984, p. 44-45. Neste primeiro momento, até a década de 1870, não se pode ainda isolar o
público leitor dos limites da corte, e a participação de membros que não sejam de origem aristocrata são mediados pela
influência “cultural” do padrão de gosto cortesão.
23

Machado de Assis, circunscrita àquilo que convencionou-se chamar de seu período


romântico30.
Partiremos do pressuposto que existe um público leitor, pois concomitantes ao
processo de expansão da literatura formam-se sociedades literárias e salões, e assim são
desencadeados processos de institucionalização de espaços propriamente intelectuais. É de
suma importância a formação de um público leitor para o processo de autonomia da vida
intelectual e literária31, entretanto é necessário contextualizar esse público, não a partir de
expectativas modernas da definição de público, que implica a existência de certas
racionalizações econômicas como parte de todo o processo de publicação e distribuição da
obra. No contexto específico da criação e divulgação da obra de Machado de Assis em seus
primeiros passos como escritor, principalmente até o final da década de 1860, é necessário
salientar a importância da formação destas redes de artistas e literatos, estes também
apreciadores das obras de outros artistas, e, ainda, do desenvolvimento de mecanismos de
mediação entre os leitores e o escritor: o trabalho crítico. Portanto, o público leitor neste
contexto é composto de diversas nuances e distinções internas, e trata-se, assim, de diferentes
tipos de leitores com diferentes “implicações” na criação artística. É importante considerar, no
entanto, que esta rede intelectual/artística, antes da sua autonomia e da fundação de
sociedades voltadas unicamente para a arte ou ciência, teve seus primeiros passos no Brasil
em espaços bem particulares: os salões aristocráticos. Primeiro tentaremos de forma pontual
dar conta desse momento anterior à institucionalização da atividade literária, principalmente
do “tom” desses ambientes, e assim, posteriormente, identificar a autonomia de circuitos
intelectuais e artísticos na cidade do Rio de Janeiro, bem como a forma pela qual a crítica
literária se inseria nesses contextos.

_______________________________________________
30
Lúcia Miguel Pereira indica que Machado de Assis neste período, produz romances enquadrados deliberadamente no
romantismo. PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: Estudo crítico e Biográfico. Livraria José Olympio Editora,
Rio de Janeiro, 1955, p. 133.
31
As condições da recepção da obra literária são tratadas por Jauss (JAUSS, Hans Robert. A literatura como provocação –
história da literatura como provocação literária. Vega, Lisboa, 1993) e Wolfgang Iser (ISER, W. The implied Reader:
Patterns of Communication in prose fiction from Bunyan to Beckett. The John Hopkins University Press, Baltimore
and London, 1974) como aspectos importantes para se compreender a própria criação literária ao indicar que o público
leitor e as expectativas do escritor diante este público fazem parte do processo criativo. No entanto, não é o nosso objetivo
investigar as conseqüências da recepção literária na própria obra de Machado de Assis. Apenas partiremos das resenhas
críticas sobre Machado para buscar compreender as expectativas dos diversos públicos leitores durante toda a fase de
produção do autor fluminense. Iniciaremos com a identificação do perfil do primeiro público relacionado às obras iniciais,
consideradas aqui até a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
24

1.1 A vivacidade literária

Os escritores, principalmente poetas, eram figuras indispensáveis nos grandes salões


aristocráticos comuns na corte após 1850, e Machado de Assis freqüentava assiduamente
vários destes salões a partir do final desta década, quando estréia na poesia32. Comumente
associa-se o início da carreira de Machado à importância da tipografia de Paula Brito, onde se
encontravam diversos outros intelectuais e artistas ligados ao romantismo. Entretanto, apesar
da importância de Paula Brito, o contato com a “boa sociedade” através dos salões é sem
dúvida o instante fundamental para a divulgação da obra e obtenção de certo prestígio como
artista. Portanto, mais importante do que apontar o processo de “aprendizagem” de Machado e
como ele viabilizou a publicação de seus primeiros trabalhos, ambos aspectos associados à
tipografia de Paula Brito, é indispensável indicar os mecanismos de obtenção de
reconhecimento e legitimidade primeiramente como poeta, que passavam irremediavelmente
pelos grandes salões aristocráticos. A vida literária brasileira, diga-se de passagem aquela que
iniciava-se com o romantismo na corte, tinha esse caráter de salão, dos saraus organizados por
ilustres da época, tais como Miguel Calmon Du Pin e Almeida e seu salão ciceroneado pela
sua esposa Maria Carolina, ou ainda a casa de Nabuco de Araújo, cujo filho, Joaquim Nabuco,
a partir de 65 introduz uma nova geração de freqüentadores e artistas, entre eles Machado de
Assis33. Em tais circunstâncias encenavam-se peças, declamava-se poesias, ouvia-se
interpretações musicais, dançava-se a valsa, debatia-se questões da vida pública,
principalmente política, e ocorriam jogos de tabuleiro e cartas entre os homens. Portanto, a
literatura era mais um dos entretenimentos de salão, realizada de forma leve, estritamente
preocupada com o bom gosto e moral, constituindo um divertimento, distante de qualquer
suposta profundidade. Este ambiente dos salões, marcado por essa aparente futilidade
receberá, inclusive, fortes críticas de nomes como Tobias Barreto:

O canto, a dança, a maledicência, o jogo são ainda, por ora, as únicas ou pelo menos as
preocupações preponderantes do salonismo brasileiro. O que entre nós se conversa é somente

_______________________________________________
32
MACHADO, Ubirantan. A vida literária no Brasil durante o romantismo. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2001. p. 133.
33
Idem, p 134-135.
25

por amor da própria conversação que deste modo, como alvo em si mesma, não como meio de
34
um fim superior, torna-se puro ruído e fumaça inútil .

Apresar de crítico à “fumaça inútil” dos salões, Tobias Barreto, nessa passagem, nos dá uma
importante nota sobre estes ambientes aristocráticos. Ele descreve a finalidade da conversa, e
não somente desta, mas de toda a reunião, como algo marcado por uma espécie de
desinteresse, pelo menos um desinteresse pelo assunto tratado, característica passível de ser
estendida diretamente a todas as outras atividades, tais como as peças, poesias e assuntos
literários. Assim como Tobias Barreto salienta, o interesse preponderante era o próprio
instante, a conversação como finalidade em si mesma, em que o assunto é elemento
secundário, inferior mesmo à necessidade de provocar a alegria e vivacidade condizente com
tais espaços. Nada de reflexões profundas ou conversas marcadas por convicções muito
rígidas, pois poria em risco a própria harmonia do salão ao criar indisposições e cansaço entre
os freqüentadores. Os aspectos essencialmente subjetivos ou qualquer tentativa em ressaltar a
si mesmo em detrimento dos demais também ameaçariam a mesma harmonia do salão, pois
isto romperia com a desejada “sensação” de igualdade.
Embora seja alvo de várias críticas como as de Tobias Barreto, esta forma específica
de sociabilidade cumpre um papel muito importante para a sociedade em questão, em meio
aos traços culturais marcantes de pelo menos uma parte da segunda metade do século XIX e
seu crescente individualismo35. A sociabilidade destes salões não é a conseqüência de
exagerada preocupação com a aparência, algum tipo de formalismo excessivo onde o
preponderante é o cálculo do comportamento. Tal cálculo há, mas como certa estilização, que,
pelo contrário, pode mesmo transparecer sensações de vivacidade, e daria até uma falsa
impressão de maior liberação das atitudes, de espontaneidade. Vale notar que a ideia de
futilidade suscitada por Tobias Barreto pode inclusive ser entendida como a associação oposta
à de rigidez formal, pois identifica os salões com a completa dispersão, a ausência de

_______________________________________________
34
Tobias Barreto, in: PINHO, Wanderley. Salões e damas do segundo reinado. São Paulo, Martins, 1970, p 10.
35
A sociabilidade, para Simmel, tem uma importante função durante o século XIX, pois conseguia criar um ambiente de
simulação da igualdade entre seus membros a partir da superação dos dois individualismos que se cristalizam neste
período, um individualismo de ordem quantitativa, marcada por um grande domínio da racionalização do comportamento,
e outro de ordem qualitativa, onde o indivíduo busca a construção de sua subjetividade a partir de uma intensificação da
particularidade. Dessa forma, este espaço da sociabilidade, incluído os salões aristocráticos, criava uma interação marcada
por certos formalismos com o intuito de produzir prazer e certo relaxamento, conciliando formas de autocontrole e
liberação. SIMMEL, Georg. A Sociabilidade: exemplo de sociologia pura ou formal. In: Questões fundamentais da
sociologia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006. Ao longo de todo capítulo faremos referência a outras características
da sociabilidade, aplicadas ao contexto específico de Machado de Assis.
26

disciplina e controle do comportamento, pois o livre fluxo da conversa desinteressada e o


desejo de parecer agradável e divertir subentende, de maneira aparente, a falta de rigor e
aprofundamento das questões. A “arte de conversar” atribuída a Machado é o melhor
exemplo desta aparente “superficialidade”, e é desejável nos salões justamente por ser uma
das formas de proporcionar vivacidade, certo relaxamento estilizado. A vivacidade da
conversa se pauta na capacidade de saber como conduzir o diálogo de maneira a evitar tanto a
preponderância de fatores objetivos, o que torna indesejável um comportamento já pré-
estabelecido e racionalizado, assim como tenta-se evitar também fatores subjetivos, em que o
indivíduo ficaria isento de qualquer formalidade e expressaria apenas seus próprios impulsos.
Portanto, a vivacidade deste tipo de sociabilidade de salão mesmo se contrapondo à
formalidade em sentido mais estrito, não significa liberação plena dos impulsos. Estiliza-se o
comportamento e a própria vivacidade com certa graça e harmonia “artística”, fazendo com
que haja prazer na performance.
Podemos estabelecer ainda uma correspondência mais direta entre a literatura e este
tipo de sociabilidade, e assim insinuar certos vínculos entre a recepção dos textos e a própria
estética literária vigente na época. Tanto o romance como a conversa de salão devem ser
capazes de comunicar de um jeito muito peculiar ao aproximar o narrador do leitor/ouvinte
sem ser por via da intimidade e sem impor uma lógica rígida que produz estranhamento e
cansaço. Assim como a “fumaça” inútil” dos salões, versando sobre tudo sem
aprofundamento, também os romances são marcados por essa amplitude, ao tornar todo
conteúdo matéria narrativa36. Entretanto, essa superficialidade e deslocamento incessante da
matéria da conversa não significam futilidade, “poeira inútil”, pois, tal qual no romance, a
superficialidade deve ser compreendida como a possibilidade de sintetizar todos os assuntos
possíveis, com a distinção de que na conversa sociável tal amplitude comparece sem o peso e
seriedade com que eles assumem na vida social, por se tratar de um ambiente onde a
estilização da vivacidade deve prevalecer.

_______________________________________________
36
Lukács considera o romance como o herdeiro do estilo épico, em que condensa em si todo o universo da vida,
transformando tudo em matéria narrativa. LUKÁCS, G. A teoria do romance. Editora 34, São Paulo, 2000. Desta
maneira, não há necessariamente uma contradição entre o romance e a sociabilidade cortesã, pelo contrário, este gênero se
encaixa no estilo de sociabilidade tratado, por fornecer elementos à conversa sociável, que deve fluir por vários assuntos.
27

1.2 Leveza literária e tato cortesão

Assim, costuma-se amparar o julgamento critico desse período, e Machado também


não escapa a isso37, no ideal de saber conciliar as questões sérias da vida social e a vivacidade,
ou seja, a capacidade de entreter sem apelar para superficialidades de gosto vulgar ou
conteúdo de difícil apreensão, tal como pode ser verificado no trecho da crítica sem assinatura
a respeito do romance Ressurreição:

Não fallam a linguagem dos homens e chamam ao século “utilitario” e outros nomes tão feios
como este, não querendo comprehender que n’este mundo sublunar há bons e maus, virtudes e
vicios e que aos espiritos superiores cabe estudar como philosophos a sociedade em que
convivem, esquecendo-se do seu eu, para concorrer pela lição moral para o aperfeiçoamento
de todos.
38
O romance assim encarado offerece leitura despretenciosa e sempre util [...].

Nem o tom de seriedade ao tratar os assuntos nem a busca por dar relevo à
individualidade, pois também é cobrada certa modéstia, uma anulação do risco de um
indivíduo se sobressair frente os outros, e isto ocorre tanto nos ambientes sociáveis como
também na própria literatura, em que o narrador primordial dos romances e de outros gêneros
ficcionais é elogiado também por sua modéstia, pela narrativa clara, sutil, sempre buscando
omitir justamente juízos que partam de convicções muito rígidas ou com o intuito de destacar-
se através do narrador39. Interessante notar, entretanto, que a própria modéstia parece conferir

_______________________________________________
37
J. Evangelista em sua crônica sobre a peça de Machado O Caminho da Porta, publicada no jornal A saudade em 21 de
setembro de 1862, constata que Machado mesmo “por entre o dito engraçado, a palavra incisiva, a agudeza do espírito,
(revela) o observador atento que não passa desapercebido pelas vaidades e misérias morais da sociedade”. MACHADO,
Ubiratan. Machado de Assis: Roteiro de consagração. Crítica em vida do autor. EDUERJ, Rio de Janeiro. 2003, p. 41-
42. Grifo meu. Neste trecho é notória a tentativa de demonstrar como o tom do diálogo, apesar de regulado pela
vivacidade, representada na citação pela referência ao “dito engraçado”, não impede de levar para a sociabilidade assuntos
graves da vida social. A diferença, e também o aspecto positivo da vivacidade, é retirar o peso de tais assuntos, ao permitir
tratá-los em tom lúdico. Sobre o caráter lúdico da sociabilidade, consultar SIMMEL, G. A Sociabilidade: exemplo de
sociologia pura ou formal. In: Questões Fundamentais de Sociologia. Ed Jorge Jahar, Rio de Janeiro, 2006. p. 63-65. Esta
questão será tratada de forma mais apropriada no tópico Sociabilidade, literatura e liberdade.
38
Sem assinatura. O mosquito, Rio de Janeiro, 4 de maio de 1872. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 298.
39
A primeira resenha em jornal sobre Machado, publicada no Currier Du Brésil, aborda sua estréia em livro, “Desencantos”,
peça teatral publicado por Paula Brito, em que Ad. Hubert elogia a modéstia literária de Machado na seguinte passagem:
“Caminhando sem pretensão em um caminho novo, estreitamente comprimido entre a poesia e o drama, o Sr. Machado de
Assis não procurou, sem dúvida, a glória, pois a sua obra, como a violeta, é o emblema da modéstia; mas ela está
perfumada por um aroma tão suave que as naturezas de elite irão descobri-la no meio das plantas vivazes que a cercam.”
28

uma distinção por si mesma, como se houvesse uma nobreza em “anular-se” como indivíduo
em prol da aproximação tanto do ouvinte como do leitor. O que implica em outra categoria
indispensável a esse tipo de sociabilidade, o tato, pois através dele se percebem os limites para
a expansão da própria personalidade, essa espécie da anulação daquelas características
capazes de ofender e romper com a harmonia do ambiente. E a literatura Machadiana também
é avaliada com base na ideia do tato, ao destacarem justamente esse aspecto positivo do autor
no início de sua “carreira”40. Um escritor com tato, segundo esse padrão de sociabilidade,
condiciona a liberdade de sua escrita ao desejo de agradar sem ser subserviente, e tem como
principal pressuposto evitar elementos agressivos em seus textos, ou mesmo com algum
descuido de linguagem com potencial ofensivo. O próprio tamanho do texto, e a possibilidade
de ser lido, confortavelmente, em poucas horas, sem as descontinuidades de quem precisa
pensar de maneira aprofundada para compreender a narrativa, são atributos de um autor com
tato, que se preocupa com seu leitor. O que fica patente na compreensão de romance do
mesmo crítico anônimo citado acima e assim descreve ironicamente como um romancista não
deve proceder:

Não é raro ler-se um livro com a indiferença com que se passa os olhos pela última pastoral
do ultimo dos bispos; ora se os bispos só escrevem para serem entendidos pelos bispos, os
escriptores sidereos e melífluos deviam ter seus editores na lua, á qual teem por costume
41
dirigir-se .

Assim, a linguagem clara, sem perder a beleza descritiva e narrativa, é um dos principais
indícios de um autor com tato, que se esforça para dar um ar de aparente leveza ao texto, e
assim buscar ser compreendido, fazendo uma difícil equação entre rigor do conteúdo e a
facilidade de sua transmissão. A leveza do texto, portanto, é um compromisso tácito entre o

Ad. Hubert. Currier Du Brésil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1961. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
Roteiro de consagração. Crítica em vida do autor. EDUERJ, Rio de Janeiro. 2003, p. 37. A modéstia reaparece como
uma descrição do temperamento literário de Machado, com base na mesma peça, em uma crítica, sem assinatura, no jornal
A Saudade, no mesmo dia da publicação da resenha de Ad. Hubert, 15 de setembro de 1861, e curiosamente, apelando à
mesma metáfora do jardim, onde estaria a peça de Machado como uma “florinha singela e modesta”. Ibid Idem, p. 38. Há
menções diretas à modéstia de Machado, e não apenas de sua obra, ao longo de várias resenhas, entre elas a de Luiz
Guimarães Júnior escrita no Diário do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1872 (GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 307), e de uma resenha sem Assinatura, em que se presume ser de autoria de José Carlos
Rodrigues. Sem Assinatura. Novo Mundo, Nova York, 23 de dezembro de 1872. Idem p. 319.
40
Na resenha já citada de J. Evangelista, escrita em A saudade, de 21 de setembro de 1862, também há um trecho em que se
chama atenção para a “facilidade, tato e sobriedade no diálogo”, ao comentar a peça “O caminho da porta”. In:
MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: Roteiro de consagração. Crítica em vida do autor. EDUERJ, Rio de
Janeiro, 2003, p. 41.
41
Sem assinatura. O mosquito, Rio de Janeiro, 4 de maio de 1872. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 298.
29

autor e o leitor, uma exigência da sociabilidade para que a relação entre ambos seja permeada
pelo tato, pela conversa cujo único intuito seja ela mesma, assim como podemos verificar no
trecho a seguir, de resenha sem assinatura, a respeito do romance A mão e a luva, em que o
autor adverte sobre os rendimentos da sua publicação em folhetim, ao afirmar que talvez

[...] não teria sahido tão feliz da delicada penna, se não tivesse sido tal motivo de escrever
assim por capitulos os caracteres que nos traçou, e tão bem encadeado o enredo desta historia
amorosa, que nos foi contada com a simplicidade da conversa despretenciosa e em estylo tão
natural que ás vezes faz duvidar que nisto justamente está a graça, a difficuldade e o primor
42
da linguagem.

A discussão sobre a naturalidade do estilo será analisada posteriormente, e o que nos importa,
por hora, é constatar a correspondência entre a leveza da conversa sociável e a expectativa do
leitor do período sobre o romance, tão bem ilustrada nesta passagem. A literatura, dessa
forma, era encarada como mais um dos elementos da sociabilidade. Não qualquer elemento,
pois fornece uma matéria preferencial de conversa e tem, portanto, um papel de destaque,
mas, apesar deste destaque não deixa de obedecer aos ditames do qualitativo “sociável”.
Assim, o literato deve “conversar” com seu leitor, deve apresentar uma série de dilemas éticos
de uma forma leve e oferecer um conteúdo para ser discutido socialmente. Com isso o
romance se desdobra entre seus leitores, que o recriam constantemente à medida que julgam
determinada atitude de um personagem ou o desfecho da história, e assim, com vivacidade e
de forma lúdica, conversam sobre questões sociais importantes, sobre seus valores, recriando
desta maneira os vínculos do próprio círculo social.

1.3 Literatura como conversa sociável

Assim como é possível encontrar correspondências entre a sociabilidade tal como


definida por Simmel e a literatura43 - principalmente o romance -, também é visível a

_______________________________________________
42
Sem Assinatura. Semana Ilustrada, n. 731, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1874. Idem, p. 320.
43
A primeira nota a respeito de uma possível obra de Machado (Não se sabe ao certo se “A ópera das janelas” é de Machado
ou se foi uma peça traduzida, inclusive a própria ópera nunca foi encontrada), ressalta justamente a necessidade de
imprimir mais vivacidade à peça. José Rufino Roiz Vasconcelos. Parecer do Conservatório Dramático, Rio de Janeiro, 24
30

correspondência entre a sociabilidade de salão e essas resenhas sobre Machado, escritas por
seus contemporâneos. A fragilidade conceitual com que costumam apontar essa fase da crítica
literária nacional é em parte decorrente da principal característica destas resenhas em seu
início: extensão da sociabilidade aristocrática do século dezenove. Desde já é importante
destacar que a aparente fragilidade atribuída a esse modelo de crítica literária relaciona-se à
acusação recorrente de ausência de parâmetro metodológico mais consistente, pois a
profissionalização da crítica literária no Brasil costuma apresentar por marco de origem a
ideia da formalização metodológica. Tudo aquilo fora da convenção acerca a ideia de método
crítico é considerado produto da opinião ou subjetivismo, assim como o faz Sílvio Romero.
Não se trata de comparar os parâmetros desses dois modos distintos da crítica literária do
período, nem destacar aspectos relevantes desprezados pela crítica em seu processo de
profissionalização, e sim, apenas indicar o vínculo mais acentuado entre esta crítica incipiente
e a própria sociedade de corte. Assim, as categorias utilizadas por essa crítica não
profissional44 estariam mais próximas ao ambiente social, e se distanciam das terminologias
herméticas, provenientes de um sentido compartilhado internamente por um campo auto-
referente. Ou seja, a crítica literária predominante em quase todo o século XIX não forma, em
um primeiro momento, uma sociedade autônoma, capaz de manter certa estabilidade e
independência frente aos circuitos sociais da corte, e sua linguagem está diluída pela própria
sociedade de corte, condicionada pelos mecanismos do salão aristocrático, onde impera a
leveza, o tato, a graça, escritos em tom de conversa, sempre almejando parâmetros artísticos,
bem distintos da objetividade desejada por uma parcela da crítica que começa a se
desenvolver no final do século XIX, com pretensões profissionalizantes.
A própria linguagem da crítica, seja elogiosa ou mais severa, não é muito precisa. Ao
invés de um rigor conceitual onde cada palavra pretende um sentido específico, devidamente
qualificado, os temos dessa crítica condicionada pela sociabilidade tende a serem abertos à
recepção, são adjetivos soltos. Assim, quando Joaquim Serra ao resenhar algumas poesias de
Falenas, ele apenas afirma que elas “[...] são três modelos de perfeição em três gêneros

de setembro de 1857. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: Roteiro de consagração. Crítica em vida do autor.
EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003, p. 31. Outro crítico, que se apresentou com o pseudônimo S. F. (possivelmente João
Carlos de Sousa Ferreira, segundo Ubiratan Machado) escreve no Correio Mercantil, em 21 de setembro de 1862, sobre a
peça “O caminho da porta”, que nela “há diálogos que são verdadeiros torneios de graça e vivacidade”(Idem p. 41).
44
Os próprios autores das resenhas chamam a atenção reiteradamente para o fato de que não são críticos de profissão, e é
muito comum iniciarem a crítica com um pedido de desculpas: “Em primeiro logar, desculpa... meus senhores. A desculpa,
a pecinha amavel e gasta no uso, ou no realejo dos officiaes deste officio.” Walfrido Ribeiro. Os Annaes, Rio de Janeiro, 5
de novembro de 1904. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o
público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 433.
31

diferentes”45, ou então Luis Guimarães Júnior, ao mencionar os versos alexandrinos do


mesmo livro de poesias: “versos puros, corretos e cheios de pensamento”46. Antes de
pressupormos que o elogio é interessadamente despido de conteúdo mais específico, vamos a
um exemplo com a intenção contrária, portanto a partir de crítica mais severa. Araripe Júnior,
sob o pseudônimo de Oscar Jagoanharo, demonstra um juízo diverso dos dois críticos
anteriores, principalmente em relação à sentença de Guimarães Junior, e afirma

[...] ser necessário reconhecer que em todas as suas composições há um não sei quê de
indefinível na forma que parece antes oprimir e sufocar o pensamento por mais belo que ele
47
seja, do que elevá-lo e traduzi-lo .

Assim, compreender os versos de Machado como modelo de perfeição, de que são


corretos e cheio de pensamento, ou que acabam por sufocar o próprio pensamento, tem por
objetivo insinuar certos sentidos, evitando ser conclusivo, pois estas palavras e frases
comparecem em sua forma mais geral, pouco qualificada, portanto sem definir ao certo seus
significados. São os leitores da crítica que estabelecerão o próprio significado destes termos
ao adequar a expressão utilizada às suas próprias compreensões da ideia de “perfeição”,
“correção” e também de “sufocar” o pensamento a partir desse “não sei quê de indefinível na
forma”. Assim, o crítico evita ser conclusivo ou desenvolver de forma mais detalhada a sua
própria apreensão da obra. Esta aparente superficialidade, porém, tem uma finalidade: discutir
de forma mais solta e geral a obra do autor permite que os significados sejam compartilhados,
pois os diferentes significados da palavra perfeito, por exemplo, são nivelados, tornam-se
mais próximos e permite uma aparência de compreensão mútua mais efetiva. Ou seja,
aproxima mais o leitor tanto do crítico como também da obra, estabelecendo o vínculo
necessário para se constituir efetivamente uma sociabilidade. A condição de igualdade
implícita no modelo cortesão de sociabilidade necessita de um entendimento mais geral e
aparentemente mais superficial, para que todos consigam posicionar-se, de modo
descompromissado, frente a perfeição ou não dos poemas de Falenas, sem no entanto
qualificar minuciosamente o que compreende por perfeição, nem do ponto de vista objetivo

_______________________________________________
45
Sem assinatura (apontado por Ubiratan Machado como de Joaquim Serra). A reforma, Rio de Janeiro, janeiro de 1870.
Idem. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: Roteiro de consagração. Crítica em vida do autor. EDUERJ, Rio de
Janeiro. 2003, p. 72.
46
L. Guimarães Júnior. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 5 de fevereiro, de 1870. Idem, p. 73.
47
Oscar Jagoanharo – pseudônimo de Araripe Júnior. Dezesseis de Julho, Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 1870. Idem p. 77.
32

nem subjetivo. Afinal, a “conversa” não deve ser efetivamente interessada, pois romperia com
o senso de harmonia desejável a esse modelo retórico.

1.4 A modéstia

As resenhas tratadas como desdobramento da sociabilidade da corte versam sobre


Machado de Assis e seus primeiros trabalhos a partir desse (des)interesse da conversa de
salão, tal como o tom descrito nesta outra citação:

Seja, porém, qual for vossa opinião sobre tudo quanto acabo de conversar convosco; seja qual
for vosso juízo sobre o modo por que recomendei o livro e o autor, negai-me embora vosso
assentimento, mas concedei-me dois únicos direitos. O primeiro é o de fazer-vos crer que
estas páginas não são mais do que a dupla e sincera manifestação dos sentimentos do amigo e
do crítico. O segundo é o de asseverar-vos, ainda uma vez, que o livro que ides percorrer é
flor mimosa de nossa literatura e que o poeta a de ser – sem dúvida alguma - uma das glórias
48
literárias deste grande Império .

A grande maioria das resenhas desse período segue esse tom, ressaltando sua modesta
e quase nula contribuição, como se o julgamento crítico fosse um atrevimento, ao qual se
apressa em pedir desculpas. Da mesma forma em que tece elogios à modéstia em Machado de
Assis com a recorrente menção à “flor mimosa”, tanto em relação ao comportamento social
como a respeito de sua obra, utiliza-se dessa modéstia como parâmetro retórico para sua
conduta como crítico. Esta modéstia do crítico que se põe subserviente ao interlocutor, ou,
mais precisamente, subserviente a um parâmetro de conduta sociável, se dava através da
encenação de uma interlocução, como se fosse possível abordar diretamente o leitor numa
conversa. Assim, os autores buscavam antecipar possíveis restrições que este interlocutor
“imaginado” viesse a fazer, e impunham ao próprio eixo discursivo a expectativa da recepção.
E aproveitavam essa “conversa” para produzir a impressão de expandir a própria opinião a
respeito do jovem escritor Machado no mesmo tom com que apresentavam a obra ao público
e discutiam seu estilo. Quando tratavam dos primeiros romances, se debruçavam, quase

_______________________________________________
48
Este trecho é parte do primeiro prefácio às Crisálidas, escrito por Caetano Alves de Sousa Filgueiras, para a edição de
1864, da Garnier. MACHADO DE ASSIS. Crisálidas. B. L. Garnier, Rio de janeiro, 1864. Ibid idem: MACHADO,
Ubiratan. Machado de Assis: Roteiro de consagração. Crítica em vida do autor. EDUERJ, Rio de Janeiro. 2003, p. 54.
33

sempre, nos personagens e suas ações, sutilezas de caráter, e evitavam perder a medida da
crítica e dar peso acentuado às convicções ou realizar uma análise fria, distante e sem
emoção; assim buscavam fugir do risco de afetar o leitor ou o próprio autor, o que nem
sempre conseguiam.
A indicação de que a crítica de Caetano Filgueiras é exemplar para compreendermos o
tom de polidez das resenhas da época restringe-se apenas à sua exaltação à modéstia como
retórica apropriada para o desempenho da crítica e a simulação de interlocução com um leitor
imaginado. Há um aspecto de seu prefácio, implícito neste trecho transcrito acima, desviante
do princípio que costuma prevalecer nas resenhas e se põe como um elemento norteador da
conduta crítica. Há certa falta de medida na forma como Caetano Filgueiras apresenta a poesia
de um jovem autor, e isto fica mais evidente quando atribui a Machado uma ligeira
superioridade frente a Tomás Ribeiro pelo fato do estreante ser “mais inspirado, talvez mais
ardente”49. Principalmente quando tal afirmação é precedida de ressalvas a respeito das falhas
na métrica de algumas poesias; falhas as quais não deveriam pesar à crítica sobre o autor,
pois, foram qualificadas indiretamente por Caetano Filgueiras como espécie de “dormitar de
Homero”, por se tratar de pequeno descuido de um grande e incontestável poeta, que mesmo
onde a inspiração varia, revela ainda o engenho com que a poesia foi elaborada, e, portanto,
não significa ausência de talento50. Dessa maneira, a resenha de Caetano Filgueiras pode ser
interpretada como um exagero benevolente, fruto de um juízo desmedido, e que poderia fazer
o estreante incorrer no risco de perder uma das principais características da sociabilidade: a
modéstia. Diante disso é previsível o surgimento de algumas resenhas críticas com o intuito
de reparar esse exagero contido no prefácio do livro de poesias Crisálidas, tal como
efetivamente ocorre. No mesmo ano de 1864, data da publicação das Crisálidas, surgem duas
resenhas com a intenção de corrigir esses “exageros” cometidos por Caetano Filgueiras, e se
remetem diretamente ao seu prefácio. Machado se converte em um mero objeto de uma
“conversa” sociável, cujo principal ponto é sobre a tendência do “incenso da exageração”51,
da apresentação da obra de um jovem com entusiasmo excessivo, como se fosse um escritor já

_______________________________________________
49
Idem, p. 54.
50
Idem, p. 53.
51
Feliciano Teixeira Leitão assim qualifica os elogios exagerados dirigido aos estreantes. Feliciano Teixeira Leitão.
Imprensa Acadêmica, São Paulo, 14 de agosto de 1864. Idem, p. 57.
34

pronto, um gênio, cujos primeiros equívocos não comprometem o aperfeiçoamento natural de


seu talento. Feliciano Teixeira Leitão escreve a primeira resenha nesse tom dirigida a Caetano
Filgueiras, e aponta o risco em confundir a amizade com a atividade crítica e assim escrever
de forma parcial, tendenciosa aos elogios. O risco seria o de provocar a soberba nos
estreantes, pois quando

[...] não passavam de gaturanos, julgaram e disseram que eram águias! Podiam como o condor
desaparecer nas nuvens; não chegaram, felizmente, a experimentar o vôo, inedível porque se
tal fizessem cairiam como “Ícaro”, em conseqüência de terem asas, porém ajustadas ao corpo
52
com cera e esta derreter-se-ia aos abrasadores raios de sol.

Outro crítico a apontar os males da “amizade cega”53, Luís José Pereira da Silva
também aponta o risco declarado por Feliciano Leitão, acompanhado de ressalvas ao prefácio
escrito por Caetano Filgueiras, e logo em seguida adverte para que Machado

[...] não se deixe levar dos elogios da amizade, e continue na gloriosa senda que começa a
trilhar sem o convencimento do que é, e pedindo ao estudo a glória e os frutos do que há de
54
ser.

Ambos os críticos, Feliciano Leitão e Luís José Pereira da Silva, indicam os riscos da
crítica parcial, do elogio comprometido pelo sentimento. E neste aspecto é necessário
compreender de maneira mais adequada a condição ideal da crítica do período e a justa
medida de distanciamento entre crítico e criticado. A capacidade de compreender a literatura
de forma mais adequada parece derivar do cálculo da distância frente ao texto e ao criticado; a
noção da distância como uma metáfora para se identificar quando o julgamento baseia-se em
um comprometimento afetivo, portanto muito próximo, ou, ao contrário, visto de maneira fria,
acentuadamente distante. Assim, segundo os críticos, Caetano Filgueiras escreveu de forma
comprometida, pois a intimidade portaria o risco de ofuscar o discernimento ao impedir a
distância necessária frente ao texto e a pessoa a qual se buscava compreender. Mas não

_______________________________________________
52
Este trecho se refere à crítica de Feliciano Teixeira Leitão a outra poesia de Machado de Assis, intitulada Ícaro, que
Machado não insere em nenhum volume. Feliciano Leitão chama atenção a falta dessa poesia no livro Crisálidas, e
transcreve esse trecho de outra resenha para mostrar que desde o início de suas análises sobre Machado, evitava que sua
amizade com o escritor comprometesse seu juízo. Aspecto, segundo Feliciano Leitão, esquecido por Caetano Filgueiras.
Idem, p. 57.
53
Luís José Pereira da Silva. Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários, Rio de Janeiro, 1 de novembro de 1864. Idem,
p. 60.
54
Idem, p. 60.
35

devemos confundir esse modelo de distância com a relação sujeito/objeto de determinadas


vertentes da ciência que compuseram a bandeira de críticos com propósitos científicos tais
como Silvio Romero, cujo principal intuito foi colocar em questão a formalização de um
método para a análise literária. Neste instante da crítica ao livro Crisálidas de Machado a
ideia de distância se pauta, como já foi chamado atenção anteriormente, na dinâmica da
conversa de salão, mais precisamente nos ditames da sociabilidade. Esse cuidado em ponderar
a respeito dos malefícios do elogio exagerado deve-se à preocupação de suas possíveis
conseqüências naqueles que recebem esse tipo de elogio, neste caso o jovem Machado. O
prejuízo moral seria a perda da modéstia, mecanismo imprescindível para evitar a soberba
individual e a pretensão do artista em se sobressair ao seu público e à crítica, como se o auto-
aperfeiçoamento ou a modelagem de seu talento passassem por um julgamento meramente
pessoal, do artista, portanto independente do círculo social para o qual escreve.
O artista literário deve fugir, ainda, do perigo oposto ao apresentado acima, evitar o
“esmorecimento” em decorrência da crítica acentuadamente severa. Se o elogio exagerado
pode provocar no artista um excesso de confiança arriscado, o julgamento severo pode
produzir uma sensação de insegurança capaz de por em dúvida o próprio talento. E para evitar
esse abatimento prematuro, é comum as resenhas conterem pequenos estímulos, como as de
Feliciano Leitão e Luís José Pereira da Silva. Além desse cuidado em medir a severidade, o
crítico costuma apontar o aspecto positivo de certa sinceridade de julgamento ao tornar a
honestidade crítica como algo que pode ser útil para que o artista conheça suas falhas e
consiga um amadurecimento estético, tal como pode ser verificado no final da resenha de
Feliciano Leitão:

Todavia, se, no nosso entender, não tem Machado de Assis muito de que ensoberbecer-se com
a exposição dos frutos de seu talento poético, resta-lhe o galardão de haver patenteado ao
público o ramo das flores de maior ou menor perfume do seu imaginar mimoso. Um outro
prêmio, e de mais valor, recolherá o poeta das Crisálidas se não esmorecer no seguir pela
estrada que já conhece, e se em breves anos ofertar-nos provas evidentes de uma melhor
55
colheita, de mais cuidadosa aplicação .

A alusão de que a criação da obra mais bem acabada depende apenas do autor “seguir
pela estrada que já conhece” nos passa a impressão de que o aperfeiçoamento do talento é
inevitável, como se fosse natural essa evolução. Mas somente se torna realmente natural caso

_______________________________________________
55
Feliciano Leitão. Imprensa Acadêmica, São Paulo, 14 de agosto de 1864. Idem p. 59.
36

os erros apontados sejam reparados, ou seja, depende da absorção ou não das lições oferecidas
pelos críticos, o que torna a própria recepção de sua obra em elemento constitutivo do
caminho que já conhece e pode ajudá-lo em sua modelagem artística. Quintino Bocaiúva em
seu prefácio, apresentado em forma de carta dirigida ao autor, contido no livro Teatro, volume
I, é bastante taxativo em sua recomendação, justamente nesse sentido descrito acima, ao qual
aconselha Machado: “Sujeita-te à crítica de todos, para que possas corrigir-te a ti mesmo.
Como te mostras despretensioso, colherás o fruto são da tua modéstia não fingida”.56
Assim novamente retornamos ao tema da modéstia como aspecto fundamental para o
artista. Esta é justamente a “virtude” capaz de operar essa dupla proteção aos excessos, tanto
da autoconfiança exagerada como da sensação de incapacidade, portanto uma proteção às
críticas com intuito elogioso assim como àquelas propositalmente depreciativas. A própria
crítica demonstra o interesse em conduzir o iniciante a ponderar sua formação como artista,
destacando a modéstia como uma possibilidade de superação dos equívocos estéticos, mas o
faz a partir de sua preocupação a respeito da manutenção da atmosfera de sociabilidade, uma
preocupação acerca do risco de se perder a conexão entre a obra e o público. Os conselhos dos
críticos parecem indicar a existência de parâmetros de avaliação da obra externos ao artista,
aos quais ele deve estar atento se quiser se tornar um grande escritor. E seu sucesso é medido
pelo nível de interação entre sua obra e o público, pela capacidade de estabelecer uma relação
que obedeça aos ditames da sociabilidade - ao tato, à vivacidade, polidez, reserva e modéstia
– e assim produza uma sensação de que não há hierarquias entre o autor e seu público, que
ambos estão nivelados pelos mesmos critérios de gosto.

1.5 Sociabilidade, literatura e liberdade

_______________________________________________
56
A publicação do livro com o prefácio em forma de carta de Quintino Bocaiúva data de 1863, e reúne duas peças, O
Caminho da Porta e O Protocolo. MACHADO DE ASSIS. Correspondência de Machado de Assis. ABL/Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, 2008. p 23.
37

Não se pode negar que a crítica literária imbuída desses critérios de gosto
marcadamente cortesãos torna-se, em parte, uma espécie de leitor implícito57, e que Machado
de Assis parece observar atentamente esses critérios em suas obras, mesmo as da maturidade,
escritas a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas. E isso pode ser comprovado pelos
poucos e raros reparos críticos aos seus textos, sejam poesias, contos ou romances publicados
mesmo em sua maturidade, relativos à necessidade de leveza, vivacidade e tato, ou seja, a
observância aos parâmetros do salão aristocrático58. Mesmo após a publicação de Brás Cubas
e sua famosa ameaça de piparotes no leitor, a crítica ainda continua a insistir em enxergar
certas características do modelo de literatura cortesã na obra de Machado, tais como a
possibilidade de elevação moral do romance59, e principalmente a respeito de sua linguagem
simples e vivaz, capaz de permitir uma leitura rápida e sem esforço60, tal como Teófilo
Guimarães, sob o pseudônimo de José Anastácio afirma: o “Quincas Borba lê-se quasi de
uma assentada; é como um calix de licor finissimo que a gente prova e sorve de um trago”61,
ou ainda nessa outra passagem de L.F. sobre Esaú e Jacó a inferir que a leitura deste romance
“[...] não fatiga, só seduz. Os capítulos têm pequenas proporções, passam, succedem-se

_______________________________________________
57
Jauss considera críticos, escritores e historiadores da literatura como leitores também, antes mesmo de tornarem suas
reflexões produtivas. In: JAUSS, Hans Robert. A literatura como provocação: História da literatura como provocação
literária. Editora Passagens, Lisboa, 2003. p. 56. A Concepção de que esses “leitores” são considerados pelo autor para
compor suas obras é definida por Wolfgan Iser através de sue conceito “implied reader”. ISER, W. The implied Reader:
Patterns of Communication in prose fiction from Bunyan to Beckett. The John Hopkins University Press, Baltimore
and London, 1974.
58
Nestor Vitor dos Santos, sob o pseudônimo de Nunes Vidal qualifica como obras de “salão” as duas comédias Não
consultes médico e lição de Botânica, da coletânea de contos Relíquias de casa velha, além de chamar atenção que ambos
contos agradariam perfeitamente as moças. Nunes Vidal - pseudônimo de Nestor Vitor dos Santos. Os Anais, Rio de
Janeiro, 15 de março de 1906. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de
Janeiro, 2003. p. 283.
59
Abdiel. A Estação, Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1881. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de
Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p.
353.
60
Podemos encontrar referências a esse aspecto nas resenhas: Pangoss - pseudônimo de Alcindo Guanabara. A Imprensa, Rio
de Janeiro, 29 de julho de 1908. Idem, p. 448; Mario de Alencar, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 de outubro de
1904. Idem, p. 426; e ainda no trecho a seguir, que ilustra essa ideia da ausência de esforço na leitura dos livros de
Machado: “Suavemente descrevendo aspectos, personagens, caracteres, analisando situações, colorindo as cenas de
algum quadro social e humano, desperta emoções sem que a atenção sinta fadiga ou disperse o mínimo esforço”.
Leopoldo de Freitas. O País, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1900. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 220.
61
José Anastácio - possível pseudônimo de Teófilo Guimarães. O tempo, Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1892. In:
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 373.
38

rapidamente”62. Mesmo após desenvolver maior complexidade narrativa a partir de


Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado continua a ser elogiado pela suavidade de
linguagem e leveza das histórias, passíveis de serem lidas com prazer e aparentemente
compreendidas sem dificuldade, portanto condizente com os padrões corteses do público do
período. Entretanto é necessário pensar algumas questões sob a luz do mencionado controle
retórico exercido por Machado que o permitia esquivar-se de cânones literários, como o
romantismo e, posteriormente, o naturalismo. Não seria contraditório ao autor de Dom
Casmurro, tão cioso de sua liberdade literária ao ponto de evitar aspectos doutrinários de
escolas artísticas e hábil para negar a legitimidade do discurso hegemônico a respeito da
identidade nacional, não seria contraditório este mesmo autor render-se ao “gosto” da época,
à certos padrões de etiqueta que quase transformam a literatura em mero entretenimento de
salão? Ou, ainda, nivelar a escrita de Machado ao padrão sociável da conversa de salão, tal
como feito pelos críticos, não significa diminuir a importância da própria obra e, mesmo, da
literatura como discurso livre? Antes de responder a essas duas perguntas é necessário situar
certas mudanças no tom da recepção crítica após Memórias Póstumas de Brás Cubas.
De fato, é possível encontrar nas resenhas posteriores às Memórias trechos similares
ao de Joaquim de Paula Sousa, que estabelece o vínculo entre a literatura e a conversação, ao
afirmar que o autor de Iaiá Garcia tem

[...] alguns ares afrancesados, quer agradar à gente da rua do Ouvidor; mas é bonito, da moda,
e faz-se apreciar. Tem algumas dessas frases que dão vida a um romance, como um dito
63
espirituoso dá graça à conversação.

A recorrente associação entre a literatura e a conversação fica bastante evidente nesta


passagem e isto se repete mesmo nas resenhas a respeito das obras da maturidade de
Machado. Entretanto, após a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, ao mesmo
tempo em que são reproduzidas afirmações como essa, da literatura como um dito espirituoso
em meio à conversa sociável, começa a aparecer na crítica a suposição da existência de uma
filosofia na obra de Machado64. Pela primeira vez a ideia de uma educação moral transmitida

_______________________________________________
62
L.F - possivelmente Leopoldo de Freitas. Diário Popular, São Paulo, 5 de dezembro de 1904. Idem, p. 443.
63
SOUSA, Joaquim de Paula. Manual de literatura ou estudos sobre a literatura dos principais povos da América e Europa.
Tipografia A Vapor do Diário de Santos, Santos, 1878. ibid MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de
consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 119.
39

espirituosamente, portanto com vivacidade, abre espaço para uma possibilidade de encarar a
obra de Machado em outro nível, principalmente seus romances, pois neste instante
considera-se que a “sua arte deixa que o leitor tambem trabalhe na leitura, e fal-o pensar”65.
No entanto, ao se atribuir à obra de Machado essa nova possibilidade de interação com o
leitor, é necessário notar o cuidado de Walfrido Ribeiro em afirmar que ela deixa o leitor
também trabalhar, o que significa que além das expectativas usuais de entretenimento de
salão é possível a partir de Brás Cubas, caso assim o leitor deseje, tomar a obra de Machado
com maior seriedade. Desta maneira, não significa uma troca de público, da substituição
daqueles em busca de entretenimento por outros cheios de expectativas “filosóficas”; a
afirmativa acima citada, juntamente à continuidade da crítica em preservar as exigências
cortesãs, aponta para uma ampliação do público, pelo menos uma ampliação qualitativa do
público, pois, após Brás Cubas, a obra de Machado parece portar a capacidade de agradar a
essas duas perspectivas, entretenimento e seriedade, dissolvendo a aparente oposição entre
elas.
As implicações dessa negociação artística entre entretenimento e seriedade ressoam
até mesmo no estilo de Machado, em que seus críticos enxergam sua ironia e humour
associados à certas particularidades de sua escrita, e assim assumem uma forma mais amena e
risonha do que outros modelos de ironia e humour mais cáusticos. Essa “habilidade” requer,
portanto, a ponderação da frase, estabelecer limites polidos ao que é dito e, principalmente, a
forma de se dizer, como podemos ver nesse trecho a seguir:

Não deixam por isso de ser animados e indeleveis (os seus caracteres), na penumbra em que
colloca a phrase que lhes envolve a personalidade, lhes surprehende os gestos, lhes define as
attitudes, lhes pinta a evolução – phrase que corre com alacridade, que zumbe sem ferir, que
serpenteia sem assustar, que se enrosca e adhere ao assumpto, de tudo motejando sem
grosseria e colhendo na faculdade de observação e no talento de exposição verdadeiros
66
achados de expressão.

64
Após Brás Cubas começa-se a mencionar com mais freqüência a filosofia contida em seus livros. Abdiel. A Estação, Rio
de Janeiro, 28 de fevereiro de 1881. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance
machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 355; José Anastácio -
possível peseudônimo de Teófilo Guimarães. O tempo, Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1892. Idem, p. 373; A.A - iniciais
de Artur Azevedo. O Paiz, Rio de Janeiro, 18 de março de 1900. Idem, p. 407; Mario de Alencar. Jornal do Commercio,
24 de julho de 1908. idem, p. 482. Gama Rosa. Gazeta da tarde, Rio de Janeiro, 2 de novembro de 1882. MACHADO,
Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 141; Valentin Magalhães. O
Estado de São Paulo, São Paulo, 31 de outubro de 1895. Idem, p. 186; Magalhães de Azeredo, Revista Moderna, Paris, 5
de novembro de 1897. AZEREDO, Magalhães de. Homens e livros. Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1902. ibid idem, p.
194; PESSOA, Frota. Crítica e polêmica. Editora Artur Gurgulino, Rio de Janeiro, 1902. Ibid Idem, p. 258.
65
Walfrido Ribeiro. Os Annaes, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1904. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 436.
40

Vê-se, portanto, a mesma necessidade da justa expressão, dita com “alacridade” - um


sinônimo de vivacidade - e polidez, portanto capazes de “serpentear sem assustar” e “zumbir
sem ferir”, ou seja, levar à reflexão sem cansaço, choque ou despudor. Os achados de
expressão do final do trecho citado é resultado, para Oliveira Lima, da conjunção entre
observação e talento. Nesse ponto de vista, a literatura tem condições de apreender a
realidade e expressá-la artisticamente, em que a “verdade” é dita, mas segundo noções de
beleza e polidez, portanto sem afetar determinados tipos de leitor. Nessa mesma linha de
julgamento da obra de Machado, Alcides Maya afirmou que:

As suas paginas têm em geral um sentido duplo: podem ser lidas com innocencia e
simplicidade ou meditadas com amargura, segundo o temperamento e a faculdade
67
assimiladora de cada um.

Portanto, nenhuma “verdade” tem o direito de desfigurar a polidez, tendo em vista a


exigência da crítica para que o livro possa ser lido por um público diverso do ponto de vista
das expectativas diante o livro e do próprio significado da leitura. De um lado a leitura
associada à formação, contemplação, e de outro a leitura como um momento de
entretenimento que eleva sem aborrecer e quase sem permitir que o aprendizado possa ser
percebido, portanto cioso da simplicidade da linguagem e da temática e, ainda, vigilante dos
preceitos morais. Dessa maneira, as resenhas posteriores às Memórias dão continuidade a
mesma pretensão esboçada por Carlos Ferreira ao resenhar Helena:

Ele escreve debaixo de todos os pontos de vista da moralidade, e tendo sempre diante dos
olhos os severos princípios do bom senso.
As donzelas podem lê-lo sem embaraços inconfessáveis; os filósofos serão capazes de
aplaudi-lo embora possam descobrir-lhe o quer que é de superficial e incompleto no conceito
filosófico, tão a propósito e tão naturalmente sabe ele escrever os seus conceitos de pensador
68
prudente.

É importante notar que mesmo antes de Memórias Póstumas de Brás Cubas alguns poucos
críticos identificavam em Machado a amplitude de sua literatura, com certos alcances
filosóficos. Portanto, as Memórias, apesar de representar uma mudança na recepção literária
em Machado ao tornar recorrente a constatação de uma filosofia em sua obra, não significou

66
Oliveira Lima. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1904. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 439.
67
Alcides Maya. O Paiz, Rio de Janeiro, 8 de outubro de 1904. Idem, p. 431.
68
C. - assinatura de Carlos Ferreira. Gazeta de Campinas, Campinas, 3 de dezembro de 1876. MACHADO, Ubiratan.
Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 111-112.
41

uma completa ruptura com os romances anteriores. Pois, mesmo antes, quando a maioria dos
críticos tratava Machado como herdeiro da literatura romântica, alguns já entreviam em seus
escritos essas qualidades filosóficas, que apenas se tornará a tônica usual das resenhas
posteriores às Memórias. Resta-nos compreender de maneira mais adequada esta suposta
filosofia de Machado, tão simples e natural, apesar de ser capaz até de apontar certas
superficialidades e incompletude dos conceitos filosóficos. E a própria citação acima nos dá a
chave para compreender esta poderosa filosofia transmitida com naturalidade ao atribuir à
Machado a alcunha de “pensador prudente”. Este trecho nos transmite a ideia de prudência
associada à possibilidade de conciliar o entretenimento e a seriedade, proporcionar em um
mesmo livro leitura ciosa dos preceitos morais (para donzelas) e rigorosa do ponto de vista
filosófico. De fato a prudência, no sentido mais amplo do termo, possui esse cuidado em
evitar impor convicções com excessivo rigor, portanto indiferente às conseqüências que
determinada ação pode conter, porém seu alcance pode ser maior do que somente a
conciliação entre seriedade e entretenimento, como pode ser entrevisto na tentativa de
definição de prudência quase na seqüência do trecho de Carlo Ferreira:

Saber usar do meio-termo é uma ciência de que muitos talentos sentem-se baldos, e onde
prima entretanto o judicioso autor das Crisálidas.
A virtude e a honra têm aí um majestoso altar, excelente modelo que a arte nunca poderá
69
dispensar.

Aqui fica melhor definida a pretensão da crítica em conciliar literatura e prudência, o


que nos permite compreender sua correlação com os princípios cortesãos do Rio de Janeiro
do século XIX. Primeiro é necessário destacar quais qualidades especificas são exigidas da
literatura prudente tal como definida na citação acima, e desde já salta aos olhos a “ciência do
meio-termo”, a “virtude” e “honra”. Os qualitativos “virtude” e “honra” parecem se remeter a
certos preceitos de cunho moralista, em conformidade com a literatura para donzelas. Mas,
antecedidos pela “ciência do meio-termo” ou até mesmo pelos “severos princípios do bom
senso” da citação de Carlo Ferreira logo anterior, insinua-se um sentido geral da articulação
de todos esses termos, configurando um elogio à mediania, da justa medida de
comportamento, que não se esgota na conciliação entre seriedade e entretenimento, por tratar-
se de uma tentativa de estabelecer um núcleo comum, um ponto capaz de aproximar as

_______________________________________________
69
Idem. P. 112.
42

diversas particularidades contidas nos leitores, tornando possível um reconhecimento entre


leitor e obra ao mesmo tempo em que se estabelece uma aproximação também dos leitores
entre si. Desse modo, a prudência, de forma diversa à racionalidade moderna, tem como
principal objetivo estabelecer o meio-termo, um conjunto de princípios colados à empiria,
que reconhecem a validade de cada situação específica e conduz a ação em direção à
acomodações conciliadoras70. O mediano, nesse sentido, representa o mesmo cálculo
referente à modéstia como defesa frente à soberba ou à injustiça na relação entre artista e o
público tratado no tópico anterior, entretanto, como representação, na literatura, desse espaço
de sociabilidade. Através dessa noção de mediania os indivíduos contêm suas qualidades
distintivas em prol da simulação de igualdade, e a literatura prudente tem por finalidade
simular esse espaço de aproximação de seus leitores e representar a unidade cultural relativa à
cour et la ville71. Portanto “meio-termo”, bom-senso”, “honra” e “virtude” são partes dos
códigos culturais inerentes à corte e aos intelectuais/artistas da cidade do Rio de Janeiro e que
compõem a esfera de julgamento da maior parte dos críticos ao resenhar as obras de
Machado, do início de sua carreira até seu último livro Memorial de Aires. É curioso notar,

_______________________________________________
70
Sergio Buarque em Raízes do Brasil aponta a prudência como uma das características do “homem cordial”, seu “tipo
ideal” para definir o brasileiro, e chama atenção para a “ética realista” vigente no Brasil desde a colonização portuguesa,
ética definida pela ausência de previdência e códigos rígidos e onde impera certa resignação com a realidade tal como ela
“é”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1978, p 76. A
prudência, nessa definição, se apresenta como uma forma de “adaptação”, categoria Weberiana para definir o cristianismo
católico pré-reforma protestante, e desvia-se da noção de prudência vigente nas cortes aristocráticas, entretanto, a
concepção de uma ética realista, de uma negociação constante com as circunstâncias, identificada por Sérgio Buarque, é o
traço característico da noção de prudência, de um modo geral. A prudência no sentido cortesão e suas implicações
específicas na “conversa” dos salões é melhor descrita por Zulmira Santos em seu estudo sobre o tratado de Manuel
Monteiro de Campos, Academia nos montes, e conversações de homens nobres, voltado para o comportamento cortesão e
escrito em Portugal em 1642. Zulmira Santos, parafraseando o autor analisado, afirma que em sociedade “deve falar-se
com cautela e prudência, preferindo as palavras singelas e sem artifício”, com um cuidado constante em avaliar a
pertinência na escolha dos assuntos e a adequação do tom à conversa entabulada. In: SANTOS, Zulmira C. Lei política, lei
cristã: as formas de conciliação em Academia nos montes, e conversações de homens nobres (1642) de Manuel
Monteiro de Campos. Penísula, Revista de Estudos Ibéricos, nº 1, 2004. P. 315.
71
Auerbach ao tratar a literatura de Molière demonstra como a noção de bom senso é fundamental para demarcar o espaço de
um público cortesão na Paris do século XVII, em que a literatura orbitava em torno da corte e da cidade de Paris,
constituindo-se de ilustres de ambas as camadas, da cidade e da corte, ou seja, de certos extratos da burguesia parisiense e
um conjunto de nobres instalados na corte, ambos segmentos integrados a partir de uma espécie de “unidade cultural”,
construído pela observância do bom senso, decoro (mistura de considerações éticas e estéticas), conveniência, honnêteté (a
ambição burguesa em tornar-se um honnête homme e assim participar como membro ativo da unidade cultural da cour et la
ville, predispunha-o para uma vida sofisticada desvencilhada das ocupações do trabalho assim como a uma aspiração à
universalidade, tudo isso sem perder a dimensão de sua “real” posição na sociedade) , générosité, refinamento e bom gosto
(estes dois últimos são descritos por Auerbach como derivados da cultura humanística através de sua tradução para a
educação do comportamento em sociedade) e assim compor, no sentido moderno do termo, um público. AUERBACH,
Erich. La cour et la ville. In: Ensaios de literatura ocidental. Duas Cidades; Editora 34, São Paulo, 2007. A partir das
resenhas literárias sobre Machado percebe-se uma unidade cultural similar a esta, composta de extratos da corte e de
cidadãos cultos de origem não aristocrática da capital do império, e isso pode ser notado principalmente pela procedência
da grande maioria dos jornais onde essas resenhas são publicadas, do Rio de Janeiro, e demonstra como a cidade se
constitui em um espaço preferencial para o desenvolvimento da literatura brasileira durante o século XIX.
43

entretanto, a persistência desse padrão de gosto mesmo após a decadência da corte brasileira
e a implantação da República, e que somente cederá espaço para um novo padrão de gosto e a
construção de um outro público de leitores e críticos com o modernismo brasileiro, já a partir
dos anos de 192072, período que extrapola nosso objeto.
Mesmo tendo chamado atenção a respeito do papel da prudência como princípio
ético/estético das resenhas sobre Machado, a partir de uma unidade cultural que estabelece de
maneira mais nítida o leitor implícito de parte dos escritores brasileiros do século XIX, ainda
persiste as questões esboçadas no início deste tópico: Nivelar a escrita de Machado ao padrão
sociável da conversa de salão, tal como feito pelos críticos, não significa diminuir a
importância da própria obra e, mesmo, da literatura como discurso livre? Talvez tenhamos
mais elementos agora para respondê-la, ainda que não definitivamente.
A prudência não significa um aprisionamento da realidade, pelo menos não na forma
como suscitada pelo tom da crítica feita à Machado e que nos permite entrever certas
dinâmicas sociais do Rio de Janeiro do século XIX. A vida cortesã orientada pela prudência
permite um espaço para liberdade, apesar desta somente ser possível mediante um
reconhecimento dos seus limites, certo teor de sacrifício individual. Portanto é necessário
divisar esse tênue limite entre liberdade e sacrifício, e o faremos através da ambivalência
entre seriedade e divertimento.
Tendemos a localizar na seriedade um espaço de liberdade do pensamento, no entanto
esta associação não é tão simples, pois a liberação das pulsões quando encarada como um ato
de subversão às regras também pode significar liberdade. A partir desse suposto, a liberdade
poderia transitar por esses dois pólos, onde em um residiria a liberdade e no pólo oposto
prevaleceria o condicionamento às regras como forma de aprisionamento. Entretanto,
estabelecer qualquer tipo de dicotomia deste tipo foge da noção de prudência cortesã e a sua
forma de liberdade “permitida”. A possibilidade de divertir inscrita nesses salões
aristocráticos e também nas resenhas analisadas e em suas apreensões da obra de Machado,
não tem essa conotação de um cumprimento “formal” da etiqueta ou estética cortesã.
Principalmente porque uma das mais importantes características de toda sociabilidade é sua

_______________________________________________
72
Silvio Romero, como veremos mais adiante, representa a nova postura crítica que predominará no período modernista
brasileiro, portanto, dá mostras dos prenúncios desse novo padrão de gosto moderno ainda no século XIX, marcado pela
postura cientificista naturalista e por certa noção de autenticidade. Discrepâncias que justificará seu choque com a
literatura identificada com os princípios cortesãos, principalmente com Machado de Assis.
44

capacidade lúdica de tratar os assuntos da realidade; e, na ausência desta capacidade lúdica, a


relação entre realidade e prudência fica comprometida. Ao abordar anteriormente o aspecto
lúdico da sociabilidade, o fiz a partir da relação entre a leveza e tato, portanto como um
desdobramento necessário do tom da conversa de salão e sua extensão na literatura de
Machado, pelo menos segundo seus críticos do período. Portanto, qualquer tipo de assunto,
mesmo os designados por sérios, devem obedecer à leveza da conversa sociável, e assumir
uma forma de “entretenimento”, deve divertir ainda que pretenda educar. Mas isso não
significa, como já foi dito, que os temas sejam apenas tratados com superficialidade, ou que
seu propósito seja superficial. Sua importância se deve a que, em um momento de leveza,
sejam aparadas as arestas da vida social, crie-se um espaço de distensão das contendas,
tornando possível a reaproximação de indivíduos através da conversa segundo os padrões
cortesãos, como podemos perceber nessa pequena passagem do estudo de Wanderley Pinho
sobre os salões aristocráticos brasileiros do século XIX:

Os salões do Segundo Reinado exerceram esse grande papel de moderadores do canibalismo


das facções, e não poucas vezes favoreceram, dentro dos partidos, as conciliações, prevenindo
rompimentos, cicatrizando dissidências, mantendo a unidade disciplinada dos grandes corpos
73
políticos, sem a qual não era possível o regime representativo parlamentar.

Há, portanto, um sentido mais profundo no aspecto lúdico da sociabilidade quando tratado
como um jogo social e sua necessidade de prevalecer a diversão, pois, implícita a esta
necessidade, e talvez até mesmo como o motivo para tal necessidade, através desses jogos
sociais “joga-se de fato a sociedade”74. A conversa como um jogo, nesses salões, minimiza
as propensões conflituosas de determinados temas, e permite a solução de questões
espinhosas no campo social ou político, de uma maneira amena, e, portanto projeta seus
efeitos para além do próprio salão, ao permitir certo equilíbrio social.
Aqui, entretanto, o aspecto lúdico da sociabilidade é chamado a comparecer a partir
da perspectiva do autor, como uma possibilidade de liberdade criativa. A literatura
machadiana não se apresenta aos seus críticos contemporâneos como uma atitude
transgressora dos padrões morais da realidade social, o que não implica em inexistência de

_______________________________________________
73
PINHO, Wanderley. Salões e damas do segundo reinado. Livraria Martins Editora, São Paulo, 1970, p 12.
74
SIMMEL, Georg. A Sociabilidade: exemplo de sociologia pura ou formal. In: Questões fundamentais da sociologia.
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006, p. 72.
45

liberdade criativa. Tal liberdade, em Machado, pode ser percebida nessa negociação entre
diversão e seriedade inerente à esfera lúdica da sociabilidade, pois essa negociação parece ter
lhe fornecido o tom adequado para tratar as convenções sociais e seus níveis de hipocrisia e
falsidade. E este cálculo da adequação do tom passa pela contenção do peso e seriedade, ao
dissolvê-los na ambigüidade de seu humour e ironia, principalmente pós-Brás Cubas. A
“sátira leve e fugidia”75 de Machado permite-lhe transitar com desenvoltura pelas regras da
etiqueta, com a vivacidade e leveza características da sociabilidade, portanto entretendo o
leitor, ao mesmo tempo em que incute em seus ditos espirituosos, simultaneamente, certa
profundidade analítica. Assim, há espaço para a ironia e o humour em seus romances e
contos, que corresponde a certa liberdade para satirizar convenções sociais e hipocrisias
individuais, desde que moderados pela vivacidade, leveza e simplicidade, ou seja,
amenizando a escrita séria e um possível posicionamento mais ríspido a partir dessa
ambigüidade do caráter lúdico, a ambigüidade necessária para dissimular e polir o dito
mordaz. Segundo Alcides Maya, um dos críticos contemporâneos à Machado mais
celebrados, o próprio humour cumpre esta ambigüidade, ao disfarçar a tristeza com
jovialidade, “[...] uma jovialidade de aparato a encobrir ínsitos desgostos, revoltas naturais,
a par de pendores benevolentes complicados de noções de fatalidade”76 Tal jovialidade é a
responsável por refrear a impolidez potencial da ironia e do dito ácido, e, portanto, todo
pendor trágico desta tristeza pode ser proferido, aos risos, com jovialidade, que como já
vimos é um dos sinônimos de vivacidade, e que garante a possibilidade de entretenimento.
Estamos lidando com uma forma muito específica de liberdade, que implica uma
delicada noção de responsabilidade e auto-disciplina. Normalmente, a partir de princípios de
liberdade individual que predominam contemporaneamente, calcados numa postura de

_______________________________________________
75
L. F. - possivelmente Leopoldo de Freitas. Diário Popular, São Paulo, 5 de dezembro de 1904. GUIMARÃES, Hélio de
Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP,
Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 441-443.
76
MAYA, Alcides. Machado de Assis: algumas notas sobre o humour. Editora UFSM, Porto Alegre, 2007. p. 15.
Estimulado pelo sucesso de algumas resenhas publicadas sobre o humour em Machado de Assis, Alcides Maya decide
lançar este livro mais aprofundado sobre o tema, após a morte de Machado em 1912. É interessante notar que Alcides
Maya desenvolve uma perspectiva específica do humour, delimitando sua própria definição frente a de outros autores
consagrados como Taine e Stapfer, o que já significa uma recepção distinta deste estilo, a partir do próprio contexto
cultural do crítico brasileiro, em que o humour não significa um ato de liberdade plena do artista, e sim uma dissimulação
sofisticada do próprio pensamento. É a partir dessa definição de Alcides Maya que normalmente os críticos relacionam
Machado ao humorismo.
46

autenticidade77, esta dissimulação do pensamento através do riso pode parecer hipocrisia e até
mesmo uma barreira à liberdade criativa do artista. Entretanto, no contexto social da cour et
la ville esta é a única forma de liberdade admitida caso se pretendesse ter receptividade entre
os círculos sociais da corte e da “boa” sociedade fluminense. Desse modo, o riso melancólico
do humour, ao invés de cerceamento é, ao contrário, a possibilidade de expressão criativa,
onde a ambigüidade cumpre seu papel, permitindo tanto ao artista como ao intelectual serem
mordazes sem ferir, e subverter sutilmente certa formalidade, constituindo esse espaço lúdico
na própria literatura.

1.6 Reconfigurações retóricas

Todo o desenvolvimento da discussão a respeito da retórica das resenhas parece


indicar que neste espaço de tempo prevaleceu somente aquilo que designei por “retórica
cortesã”, e de fato suas características são recorrentes na maior parte das resenhas sobre
Machado de Assis, publicadas ao longo de toda sua vida. Se seguíssemos este pressuposto,
seríamos conduzidos a imaginar que a retórica cortesã predominou neste período e foi
sucedida por outro momento da evolução crítica, onde nitidamente as características cortesãs
seriam substituídas por um conjunto harmônico de pressupostos, com uma estética diversa, e,
principalmente, outro modelo retórico. Porém, tal “evolução”, se de fato pode-se falar em
evolução, não ocorre dessa maneira neste período de mais de quarenta anos. Nem há uma
total predominância da retórica cortesã em todo esse tempo, assim como, não podemos
afirmar que algumas de suas características tenham desaparecido completamente da crítica
literária e da vida intelectual. De fato, nos primeiros anos da escrita de Machado de Assis, sua
recepção parece tender predominantemente para este tipo de modelagem do discurso, com
apenas vozes dissonantes pontuais. Entretanto, após Memórias Póstumas de Brás Cubas
surge uma maior diversidade de modelos retóricos, fincados em outros contextos sociais,
como veremos mais a frente. O que não significa, necessariamente, uma supressão das

_______________________________________________
77
TRILLING, Lionel. Sincerity and Authenticity. Oxford University Press, London, 1974.
47

características do comportamento cortesão, pois a criação de novas linhagens críticas não


gerou obrigatoriamente tensão entre modelos retóricos.
Há, portanto, um conjunto de transformações sociais e intelectuais/artísticas nesse
período da década de 1870, que, de certo modo, redefiniu o lugar e os limites dessas
características discursivas, o que significa, também, alterações na própria dinâmica das
relações sociais. Este período histórico foi excessivamente analisado a partir de perspectivas
conjunturais que descrevem o processo político que culminou na proclamação da república.
Entretanto, apesar de ser possível realizar tal conexão causal, seria exagero atribuir essas
transformações da crítica literária apenas a este momento político vivenciado pelo país. Pois,
apesar de em certos contextos surgir em intelectuais engajados com um programa de
julgamento crítico concatenado às pressões pela ampliação da democracia, aqueles
envolvidos com uma crítica artista derivada de pressupostos racionalistas, sejam naturalistas,
evolucionistas ou positivistas, em suma, que utiliza pressupostos científicos em voga para
pensar a arte, apesar deste perfil de intelectual público, surge, quase ao mesmo tempo, outro
grupo de intelectuais e artistas que parecem buscar um isolamento e desenvolver uma postura
estética distinta, mais próxima de certo impressionismo. Trataremos desses dois modelos
retóricos que podem ser percebidos na crítica à Machado, da arte baseada em princípios
racionais e esta outra crítica que se aproxima de uma concepção impressionista,
respectivamente nos capítulos II e III, mas, por enquanto, é necessário compreender o
movimento que conduz a essa maior diversidade crítica.
O contexto social que de certo modo irá desempenhar um papel desagregador da
sociabilidade cortesã pode ser visualizada, em uma primeira instância, a partir da redefinição
das relações sociais mais amplas neste período, constituído pelo processo de modernização
pela qual passa a cidade do Rio de Janeiro. Para podemos intuir o sentido geral dessa
transformação nos remeteremos à discussão de Simmel sobre as grandes cidades, já
mencionada anteriormente, mas que agora comparecerá de forma mais aguda. O primeiro
aspecto da discussão sobre as cidades modernas em Simmel é a simultaneidade entre o
desenvolvimento do comércio e dinheiro na regulamentação das relações sociais e o próprio
crescimento das cidades. Esta correlação indica a constante preponderância da racionalização
promovida pelo comércio, entendida como uma ampliação do universo de equivalência entre
aspectos qualitativos da vida, que, aos poucos são nivelados pela hierarquia padronizada de
valores, portanto, tornam-se quantificáveis. Com isso, o mesmo fenômeno que designa o
dinheiro, como um nivelador de todos os produtos a partir de sua própria hierarquia de
valores, também implica intensificação de relações baseadas na racionalidade e frieza
48

característica das grandes cidades, em que os indivíduos são tipificados e tratados a partir de
suas características externas, sua aparência social. Esta frieza é analisada a partir do lugar do
entendimento nestas grandes cidades, que provoca uma constante supressão da sensibilidade
em prol de uma forma de interação pragmática e distanciada. É desta maneira que as cidades
cosmopolitas são apresentadas nas páginas iniciais de seu estudo, como se fossem matéria
desprovida de alma78.
Apesar de todas as transformações sociais ocorridas no Rio de Janeiro nas últimas três
décadas do século XIX, não se pode compará-la com a experiência urbana de Londres neste
mesmo período, que é o parâmetro de cidade grande do estudo de Simmel. De fato, a corte,
que durante este período se transformará na capital da república, ainda apresenta, pensando
comparativamente, ares provincianos, muito mais próximo da descrição de Simmel das
cidades pequenas, e sua vigilância persistente, do “ciúme do todo diante do singular”79. Mas,
além de algumas transformações que de fato ocorrem na cidade, parece se intensificar uma
nova forma de sentir e compreender a corte, como podemos ver nesse trecho de José
Veríssimo:

A nossa sociedade é formada de elementos heterogeneos, não tem portanto originalidade e a


nossa vida é toda artificial. Esta artificialidade toma no Rio de Janeiro, onde em geral vivem
os nossos escriptores, enormes proporções. Ha ahi um imenso cosmopolitismo, onde a Europa
é largamente representada, que dá a esse grande centro todas as apparencias de uma cidade
européa. E a vida proverbialmente tranqüila do resto do povo brazileiro, toma ali um caracter
80
de agitação inteiramente desconhecido nas nossas cidades da provincia.

O contraste entre a corte e as outras cidades da província é bem evidente na descrição


de José Veríssimo - que escreveu este trecho ainda do Pará -, apesar de certo exagero na
descrição de um “imenso cosmopolitismo” da vida no Rio de Janeiro. E, Olavo Bilac parece
estar atento a esta imagem constatada pelos “provincianos” sobre o Rio de Janeiro, e
confirma esse cosmopolitismo da cidade, que, por isso mesmo, tende a não ter uma feição
própria, como podemos ver no trecho a seguir:

_______________________________________________
78
SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito. In: Revista Mana, nº 11(2), Rio de Janeiro, 2005. p. 577.
79
Idem, p. 584.
80
JOSÉ VERÍSSIMO. A literatura brazileira: Sua formação e destino. In: Estudos Brazileiros: 1877-1885. Laemmert &
Cia. São Paulo. Sem data. p. 7.
49

Em todo o Brasil, no Norte como no Sul, o Rio de Janeiro não é muito amado: na opinião de
todos os provincianos, o Rio de Janeiro não é Brasil: é um ponto de reunião commercial, uma
vasta Bolsa em que todas as raças e todas as nacionalidades se confundem. Uma cidade sem
81
caracter proprio, uma cosmopolis imprecisa e vaga.

Apesar dos exageros com que essas descrições parecem vir acompanhadas, não se
pode negar que em relação ao início do século XIX, e até mesmo da metade do século,
notam-se certas transformações na última metade deste mesmo século que aos poucos
aceleram o cotidiano, antes mais pacato e regular82. Curiosamente, o próprio Machado nos
oferece interessantes imagens dessas transformações em suas crônicas e do significado da
agitação descrita por José Veríssimo e do cosmopolitismo indicado por Olavo Bilac. A
insistência de Machado em apontar o espírito contábil de sua época, e a irônica forma como
relata a indiferença das “incontáveis” mortes ocorridas no trânsito da cidade em decorrência
dos bondes, demonstram uma sensibilidade para indicar o início dos efeitos da modernização
tal qual definido por Simmel, da intensificação do “entendimento” frente o “ânimo”. É
interessante nos remeter rapidamente a pelo menos duas de suas crônicas para identificar este
processo. Sigamos imediatamente a primeira delas:

Mas deixemos a morte. A vida chama-nos. Um amigo meu, que foi ao cemitério, trouxe de lá
a sensação da tranqüilidade, quase da attracção do logar, mas não como logar de mortos,
senão de vivos. Naturalmente achou n’aquelle ajuntamento de casas brancas e socegadas uma
imagem de villa interior. A capital é o contrario. A vida ruidosa chama-nos, leitor amigo, com
83
os seus mil contos de réis da loteria que correu hontem na Bahia .

_______________________________________________
81
Olavo Bilac. A Notícia, Rio de Janeiro, 26 e 27 de novembro de 1904. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 440.
82
Gilberto Freyre foi um dos primeiros autores do pensamento social brasileiro a se referir constantemente à modernização
operada no Rio de Janeiro a partir da vinda da família real, e como esta modernização significou a rearticulação do
equilíbrio de tensões existente anteriormente no Brasil colonial. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Editora
Record, Rio de Janeiro, 1996. Flora Süssekind afirma, ainda, que entre os intelectuais é comum a representação do Rio de
Janeiro nas últimas três décadas do século XIX como uma cidade constituída por locais de passagem, de fluxo contínuo.
SÜSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986. p.
21. A última década do século XIX intensifica ainda mais as transformações operadas na cidade, devido, entre outros
fatores, a crise habitacional na cidade, cujas reformas urbanas tiveram seu ponto máximo com o “bota-abaixo” e a
derrubada de diversos casarões ocupados por famílias de baixa renda. Soma-se a este aspecto o crescimento populacional
da ordem de 33% ( de 522.657 para 691.565 habitantes) e tem-se um quadro em que a busca pela modernização da cidade
foi sentida de maneira intensa pelos moradores do Rio de Janeiro. In: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão.
Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. Editora Brasiliense, São Paulo, 1983. p 52-54.
83
MACHADO DE ASSIS, Cônica de 29 de dezembro de 1895. In: Obras completas, vol. 3. Editora Nova Aguilar, Rio de
Janeiro, 2006. p. 692.
50

Este trecho, no contexto da crônica deste dia, é uma mudança de assunto que se inicia
com o suicídio de Raul Pompéia e que altera bruscamente seu conteúdo para tratar de um
prêmio de loteria concedido na Bahia. Interessante notar, entretanto, a comparação fugidia
entre a capital, a cidade do Rio de Janeiro e as pequenas vilas, descritas como cemitérios que
pode até gerar algum conforto devido à sua calma. A vida ruidosa que convida o leitor a
alterar o assunto não é propriamente associada à Bahia, e sim à capital e toda a sua
multiplicidade de assuntos que acorrem pela cidade, seja por seu conteúdo exótico, irônico ou
como preocupação de gerir questões as mais diversas. Esse universo propenso ao
cosmopolitismo, cujas fronteiras sociais não coincidem com a delimitação do seu espaço
físico84, e que passa a definir o significado da “vida” como ruído provindo de um turbilhão
corriqueiro de fatos e novidades. Turbilhão apontado pelo cronista, com grande dose de
artifício retórico, como o impedimento para que este se detenha e divague em assuntos mais
contemplativos. A sentença “A vida ruidosa chama-nos” indica exatamente a dispersão
imposta pela capital, que deixa a todos em uma espécie de vertigem de “fatos”, cujo papel de
cronista parece tentar controlar.
Esta relação entre a cidade moderna simmeliana e o olhar arguto de Machado sobre o
desenvolvimento do Rio de Janeiro fica ainda mais evidente em suas cônicas sobre os bondes
elétricos na capital da república brasileira85, símbolo dessa alteração do ritmo no fluxo da
cidade, “com sua movimentação elétrica”86. A passagem seguinte da crônica de A Semana, já
bastante conhecida e citada, representa bem essa relação entre a cidade e a racionalização:

_______________________________________________
84
SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito. In: Revista Mana, nº 11(2), Rio de Janeiro, 2005. p. 586.
85
Raimundo Faoro analisou as crônicas de Machado de Assis sobre os bondes a partir de distinto eixo de discussão, e,
também, com base em outra crônica em que Machado enfatiza a dificuldade da emergência de padrões de conduta e regras
entre os passageiros. Isto não significa que não há repercussões do processo de racionalização do Rio de Janeiro, pois a
dificuldade na implantação de tais regras não impede que se desenvolva, por outro lado, este grau de indiferença com que
os indivíduos se evitam e lidam com os perigos cotidianos gerados pelo aumento da velocidade no transito da cidade. Uma
das crônicas de Machado, referência para o estudo de Raimundo Faoro, é: Crônica do dia 23 de outubro de 1892.
MACHADO DE ASSIS. A semana. In: Obras completas, vol. 3. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2006, p. 553. O
estudo em que Faoro trata sobre olhar de Machado a respeito dos bondes pode ser encontrado em: FAORO, Raymundo.
Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio. Editora Globo, São Paulo, 2001. p. 65. A correlação entre as crônicas de
Machado de Assis sobre o bonde e o desenvolvimento da modernidade tal qual descrito por Simmel, foi mencionada por:
RIBEIRO, Adriana Sardinha. Crônica sobre trilhos: o bonde carioca na obra de Machado de Assis e Olavo Bilac. In:
http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a105.htm. Acessado em 27 de março de 2011.
86
SÜSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986. p.
36-37.
51

Todas as cousas têm a sua filosofia. Se os dous anciãos que o bond elétrico atirou para a
eternidade esta semana, houvessem já feito por si mesmos o que o lhes fez o bond, não teriam
entestado com o progresso que os eliminou. É duro dizer; duro e ingênuo, um pouco à La
Palisse; mas é verdade. Quando um grande poeta deste século perdeu a filha, confessou, em
versos doloridos, que a criação era uma roda que não podia andar sem esmagar alguém. Por
87
que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobres veículos?

Neste primor de ironia machadiana percebe-se nitidamente a irrelevância do homem


perante a racionalidade que sustenta tal forma de progresso, tratado como uma espécie de
selvageria, cuja ordem e dinâmica que lhe são próprias não obedecem a nenhum sentido
propriamente humano. Machado, aliás, desenvolve de forma recorrente este aspecto em suas
crônicas, e não é rara a correlação entre indivíduos e números, como se estes, perante o
progresso, passassem a ser tratados através do frio cálculo matemático, que nivela os
indivíduos em grandezas quantificáveis. Como podemos ver através da pena de Machado, o
Rio de Janeiro descrito em suas crônicas, principalmente a cidade nas décadas de 80 e 90,
oferece-nos novos contornos, bem distintos da imagem cortesã ou, ainda, da mesma cidade
provinciana de meados do século XIX. O que não implica necessariamente grandes
transformações da própria cidade, e sim a maneira de compreendê-la e senti-la. A intensa
modificação na percepção da cidade pode ser percebida neste trecho da resenha de Medeiros
e Albuquerque, sob a alcunha de J. dos Santos, em que recrimina o reparo feito por Machado
de Assis no prefácio para a republicação de “A mão e a luva”, em que este chama atenção
para o tempo em que foi publicado, quando ainda era muito jovem.

É uma cautela desnecessaria, porque do proprio entrecho ha alguma coiza que indica bem
claramente a epoca em que os fatos se passam – e essa epoca nos parece nos tempos do
88
Telegrafo e do Telefone sem fios – como prehistorica.

Assim, a cidade do Rio de Janeiro não está isenta aos impactos recorrentes
estimulados por essas novas tecnologias, e, diante delas, esses pouco mais de trinta anos que
separam a data da publicação em folhetins de A mão e a luva e esta reimpressão, dão a
sensação de tratar de um tempo “pré-histórico”, o que caracteriza a segunda metade do
século XIX como um período marcado por rápidas transformações. Dessa forma, parece que

_______________________________________________
87
Crônica do dia 23 de outubro de 1892. MACHADO DE ASSIS. A semana. In: Obras completas, vol. 3. Editora Nova
Aguilar, Rio de Janeiro, 2006, p. 553.
88
J. dos Santos – pseudônimo de Medeiros e Albuquerque. A Notícia, Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1908. In:
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 469.
52

as relações baseadas na pura racionalidade característica das grandes cidades intensificam os


“choques” contínuos nos indivíduos, que abortam a sensibilidade em prol de uma forma de
amortecimento dos impactos e estímulos constantes da cidade89, inclusive através dos
choques acometidos pela evolução técnica, ilustrado acima através do telefone e do telégrafo.
Esta noção desenvolvida por Walter Benjamin está em perfeito acordo com a discussão
simmeliana da “intensificação da vida nervosa” que força o indivíduo a agir mais com o
entendimento do que com a sensibilidade, uma frieza desenvolvida com o excesso de
racionalidade, que, quando observadas de forma distanciada provoca certa repulsa moral, tal
como a descrição de Londres feita por Engels e citada por Benjamin, a qual a massa de
indivíduos que se cruzam constantemente evidencia o aspecto selvagem deste adensamento
populacional na modernidade90.
Se o Rio de janeiro nos apresenta, mesmo que de modo parcial e limitado, sinais de
que está inserida em um contexto mais amplo do desenvolvimento da vida moderna, tal como
a descrição realizada por Machado de Assis do trânsito que obedece este ritmo próprio e
independe daqueles a qual ironicamente deveria ser o seu fim último, se esta cidade pode ser
apresentada com um cosmopolitismo ainda latente, ela é, também, espaço de uma forma de
liberdade nunca antes possível em contextos sociais de uma pequena vila marcada pela
vigilância constante do todo sob as partes. Aquela liberdade ambígua e zelosa do círculo
social cortesão parece conviver com uma nova forma de liberdade, e que redefine o universo
social ao seu modo. E podemos identificar essa mudança da relação entre o indivíduo e o
círculo social através da transformação da própria concepção de “reserva”. Se antes a reserva
significava o cuidado polido de omitir as peculiaridades individuais em prol da sensação de
igualdade frente aos outros, esta nova reserva que deriva de uma sensação de liberdade das
cidades cosmopolitas se apresenta como o distanciamento frio que permite que o indivíduo se
desvencilhe de redes pautadas em obrigações interpessoais. Assim, o sujeito moderno das
grandes cidades possui maior amplitude de decisões, ainda que se veja cada vez mais
submetido aos constrangimentos da cultura objetiva. Entretanto, essa maior amplitude das
escolhas pessoais, obtida a partir dessas novas formas de liberdade e reserva, não significa,

_______________________________________________
89
BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, W. Obras Esolhidas III. Charles Baudelaire: um
lírico no auge do capitalismo. Editora brasiliense, São Paulo, 1989. p. 109.
90
ENGELS, F. Die Lage der arbeitenden Klass ein England. Nach eigner Anschauung und authentischen Quellen. Leipzig,
1848. Ibid Idem, p. 114-115.
53

necessariamente, responsabilidade diante as próprias escolhas, pelo contrário, ela tende a


provocar uma cisão entre indivíduo e sociedade, tendo em vista que reforça a tendência
atomizada do indivíduo, que reinventa a si mesmo a partir dos próprios referenciais, na
ausência de quase toda forma de vínculo com as coisas ou outros indivíduos. Assim, a
discussão simmeliana nos apresenta uma forma mais complexa de vida moderna nas grandes
cidades, pois com a expansão da racionalidade e da técnica, própria da cultura objetiva, tem-
se, também, a ampliação do universo de escolhas individuais, baseadas na compreensão do
indivíduo como unidade particular e dissociada da sociedade. Com isto, temos um quadro de
descrição das grandes cidades no fim do século XIX bastante interessante, baseado em uma
crescente tensão entre a cultura objetiva e a cultura subjetiva, marcado pela separação entre
tendências particularistas e outras de cunho racionalista.
Este processo, ainda que incipiente no Rio de Janeiro nas últimas décadas do século
XIX, pode ser compreendido como uma distensão do universo cortesão, em que a
sociabilidade que provisoriamente se estabeleceu como uma unidade entre os círculos
intelectuais/artísticos, nobreza e ainda as famílias mais abastadas, compondo uma cultura
específica, com uma linguagem e símbolos também próprios, foi, paulatinamente tensionada
pela emergência de novas formas de interação que se desenvolveram com a modernização da
cidade. Ainda assim, é necessário compreender como esta tensão entre cultura objetiva e
subjetiva se reproduziram nos circuitos intelectuais, com conseqüências na própria retórica da
crítica literária. Pois, mesmo que a emergência da grande cidade e sua reconfiguração em
direção ao cosmopolitismo pudesse ser apontada como parte fundamental para explicar essas
transformações no cenário intelectual, inclusive para identificar o declínio do modelo de
sociabilidade da sociedade de corte, ainda assim essa explicação seria incompleta. Talvez
consigamos dar mais densidade a explicação através de outro estudo de Simmel que trata
especificamente de como o impacto das transformações da vida moderna se manifestou em
um dos mais importantes intelectuais do século XIX: Nietzsche. Em um primeiro instante
Simmel trata de uma característica da atividade filosófica, considerada a partir da
particularidade da “vida interior” de todo aquele que a ela se dedica, como pode ser percebido
na passagem seguinte:
54

Mientras que para la mayoría de los hombres la vida interna, el movimiento del alma,
encuentra expresión suficiente en la eleboración espiritual de un trozo o de un aspecto del
mundo, la vida interior de un filósofo necesita para saciarse una imagen de toda la existencia.
Su temperamento sólo se satisface comprendiendo como una totalidad fundamental del ser a
91
partir del cual arrancan todas sus diversidades.

A vida interior do filósofo, que poderíamos, sem prejuízo da definição, estender ao


perfil de intelectual do século XIX, é descrita por essa propensão à totalidade, de somente se
satisfazer com uma imagem de si próprio concatenada a uma dimensão mais abrangente da
vida social, constituído por uma cosmologia que coordena símbolos e significados da vida,
em uma espécie de sistema. O interessante dessa definição do intelectual é ser possível
avaliá-la mediante o próprio contexto da vida moderna, período histórico definido por
Simmel neste estudo específico através do impacto na sociedade do declínio do cristianismo e
a supressão de sua própria totalidade cosmológica92. A ausência de Deus no mundo ocidental
teria provocado uma espécie de ansiedade intelectual, calcada na necessidade de produzir
uma imagem abrangente da vida93. Dessa maneira, parte da vocação intelectual moderna é
prover essa versão mais previsível e estável do mundo, cujo “funcionamento” pode ser
esclarecido, tornando possível até mesmo delinear certa tendência de transformação. Este
conflito permanente da condição intelectual moderna, de deparar-se continuamente com um
mundo a ser construído com novos significados, tem um conjunto de conseqüências muito
diversas do ponto de vista da modelagem de sua subjetividade intelectual. É nesse contexto
que Simmel apresenta uma discussão que vincula determinados modelos de subjetividade
intelectual com a própria imagem de Deus. Se, por um lado, a ansiedade moderna tem o
aspecto negativo de lançar o intelectual em um vazio a ser preenchido, por outro ela
proporciona a possibilidade de elaboração da subjetividade como substituto de Deus, a
formulação da ideia de “gênio” como uma espécie de Deus em miniatura94.

_______________________________________________
91
SIMMEL, G. Schopenhauer y Nietzsche. Prometeo Libros, Buenos Aires, 2005. p. 34
92
idem. p. 22. Weber se apóia na mesma concepção ao conceber a modernidade a partir da ideia do ressurgimento do
“politeísmo”, e ressalta ainda que a busca por um sentido amplo da vida significou uma retomada estranha da pretensão
cristã, feita curiosamente por alguns intelectuais e artistas modernos, devido suas dificuldades em lidar com essa maior
amplitude de sentidos. WEBER, Max. A Ciência como Vocação. In: Ciência e Política: duas vocações. Editora Cultrix,
São Paulo, 2002. p 50-51.
93
“Tal ansia es la herancia del cristianismo, que ha dejado tras sí la necesidad de algo definitivo en los movimentos de la
vida, necesidad que sigue subsistiendo como um impulso vacío hacia un fin que se ha hecho inalcanzable.” SIMMEL, G.
Schopenhauer y Nietzsche. Prometeo Libros, Buenos Aires, 2005. p. 23
55

Curiosamente esta concepção de genialidade tem um desdobramento peculiar para a


interpretação que Simmel faz a respeito de Nietzsche. Ao contrário do que possa imaginar,
essa genialidade descrita como um Deus em miniatura não significa o desenvolvimento de
uma imagem extremamente particular do mundo, como se o intelectual o desenhasse apenas a
partir de suas próprias referências. Especificamente para Nietzsche, a sua visão de mundo,
apesar de partir dessa ansiedade de substituir Deus por outra referência totalizante que
abarque um sentido universal para o humano, somente é possível com o recurso à
objetividade.

El tratar objetivamente la opinión del contrario, el no dejarse arrebatar por una pasión
subjetiva, el no emplear en la discusión más que argumentos objetivos, son cosas del espíritu
95
distinguido .

A objetividade, nesse sentido, não significa somente a supressão de uma perspectiva


particular, ou a superação do próprio indivíduo. Ela pode se tornar instrumento para a
modelagem do próprio indivíduo distinguido, o gênio que recriará a cosmologia ocidental em
bases diversas daquela desenvolvida pelo cristianismo. Estamos de volta, por tanto, à
discussão sobre o lugar do entendimento na cultura intelectual moderna, pois a mesma
objetividade que foi descrita como uma espécie de frieza e indiferença inerente às cidades
grandes no contato social moderno e que pode ser entendida como um agente de declínio de
determinadas formas de sociabilidade, é agora compreendida como um ponto de partida para
descrever certo tipo de genialidade. Um gênio que tem por principal instrumento a própria
objetividade e que se converterá em modelo de subjetividade para parte de artistas e
intelectuais do século XIX. É necessário acrescentar, ainda, que não é arbitrário o uso da
palavra “distinguido” no trecho acima, pois ele se remete a um dos traços da cultura
aristocrática que se recusa a qualquer forma de nivelamento, onde o sentimento de igualdade,
tanto aquele proporcionado por espaços de sociabilidade como pela massificação das cidades
modernas são tidos como empecilhos ao desenvolvimento dessa forma de gênio que, na teoria
Nietzschiana congrega em si todo potencial evolutivo do espírito humano, como podemos
verificar nessa passagem onde Simmel analisa o caráter peculiar do evolucionismo
Nietzschiano:

94
Tomo de empréstimo o termo cunhado por Ricardo Benzaquen de Araújo em seu estudo sobre Gilberto Freyre. ARAÚJO,
Ricardo Benzaquen. Deuses em Miniatura: Notas sobre genialidade e melancolia em Gilberto Freyre. Revista
Travessias, nº 1, 1999. p 97-104.
95
SIMMEL, G. Schopenhauer y Nietzsche. Prometeo Libros, Buenos Aires, 2005. p. 180.
56

El que la humanidad entera marche al mismo paso hacia adelante es un pensamiento utópico y
sin sentido; una evolución hacia arriba sólo puede realizarse estando diferenciados en
distintos valores sus individuos, de manera que uno o pocos pueden lo que los demás no
96
pueden .

Estamos diante de uma forma pouco usual de compreender o pensamento filosófico


amparado na objetividade, e também certas tendências racionalistas da própria ciência
durante o século XIX. Contudo, o potencial desta análise evidencia-se ainda mais ao
percebemos estar diante de uma reconfiguração específica do modelo de intelectual e artista
que surge neste processo. Principalmente quando confrontamos este novo perfil com o
modelo de artista da sociabilidade cortesã. Se antes o artista precisava ponderar sua
linguagem mediante a exigência de vivacidade, polidez, bom senso, sacrifício e cuja
liberdade estava associada ao aspecto lúdico que regulava imediatamente as tensões, agora se
delineia outro perfil, insubordinado a qualquer nivelamento, e que se sente como um deus em
miniatura, capaz de recriar o mundo a partir de sua capacidade superior em mobilizar a
objetividade em proveito próprio. São modelos de subjetividade artística/intelectual
completamente antípodas, que fatalmente prescreviam exigências muito distintas à produção
literária. Dessa maneira, a geração de 1870, imbuída deste espírito racionalista e lutando
contra o cristianismo, contra a imaginação romântica, e, principalmente, com uma busca por
autenticidade nacional inconciliável com o padrão cortesão, possui grandes afinidades com
este novo modelo de intelectual descrito por Simmel em sua análise sobre Nietzsche. E é a
partir desta perspectiva que analisaremos em alguns críticos de Machado essa pretensão
científica.
No entanto, o quadro ainda não está completo, pois, há outra tendência retórica que
pode ser identificada nas resenhas sobre Machado e que também surge com as
transformações acima mencionadas, que, contudo, produzem um perfil bastante peculiar e
diverso deste espírito objetivo e científico: o intelectual/artista impressionista. A mesma
ansiedade provinda da ausência de Deus, decorrente da instabilidade e imprevisibilidade da
vida moderna, parece ter corroborado para uma nova forma de se estabelecer o vínculo entre
si mesmo e o mundo. Como vimos na definição do filósofo por Simmel, que ampliamos para
compreender o intelectual neste período analisado, este sujeito do conhecimento precisa
buscar uma explicação abrangente das coisas, que o conecte em uma rede de significados. O

_______________________________________________
96
Idem, p. 164.
57

modelo racionalista do conhecimento, que provocou uma verdadeira revolução intelectual


durante o século XIX, com impacto mesmo no Brasil, desenvolveu uma forma específica
para buscar a suspensão da cisão entre o objetivismo e o subjetivismo, a partir da ampliação
do sentido objetivo para todas as coisas, portanto, com uma superação sui generis do próprio
indivíduo. A perspectiva impressionista parte de um suposto contrário, pois pretende
valorizar as experiências individuais, ampliando os significados particulares promovidos pela
vida do sujeito, que sente e percebe o mundo de uma maneira específica e que costuma ser
suprimida pela racionalidade excessiva. Com isso, percebemos, de forma ainda esquemática e
superficial, como, no campo intelectual, vê-se reproduzida a mesma tendência operada entre
os indivíduos das grandes cidades cosmopolitas, baseadas na ambivalência entre objetividade
e particularismo, e como, no contexto específico ao qual nos deteremos, as retóricas científica
e impressionista intentam suprimir, cada uma a seu modo, essa ambivalência, e assim
compõem parte do universo da crítica literária das últimas três décadas do século XIX em
meio a readequação da sociabilidade literária.
Os dois capítulos que se seguem visam desdobrar essa rede de tensões e a supressão
do precário equilíbrio desenvolvido com o modelo de arte cortesã, que, aos poucos cede
espaço para novas dinâmicas retóricas. Primeiro veremos como se monta a retórica científica,
para, em seguida a contrapormos com a modelagem do discurso a partir da noção de
experiência literária, desencadeada pela ênfase na “impressão”.
58

2 A CIÊNCIA E A RETÓRICA DA AUTENTICIDADE

Aos homens da sciencia ficam as razões solidas com que afirmam a marcha ascendente para
a perfeição. Os poetas variam; ora crêm no paraíso, ora no inferno, com esta
particularidade que adoptam o peior para expol-o em versos bonitos.

Machado de Assis
Crônica de 1º de janeiro de 1894

A ideia da arte voltada unicamente para si mesma é corrente no século XIX, e esta
concepção é compreendida, inclusive, como parte do processo de autonomia dos artistas e de
sua própria rede. Até mesmo o próprio Machado de Assis parece concordar com isto quando
afirmou que de “todas as cousas humanas, dizia alguém com outro sentido e por diverso
objecto, - a única que tem o seu fim em si mesma é a arte.”97 Esse debate ocorre no Rio de
Janeiro, principalmente no final do século, e percebe-se em certas resenhas críticas a defesa
dessa autonomia. Poderíamos até mesmo confirmar essa pretensão a partir das sucessivas
criações de revistas literárias e, ainda, com a formação da Academia Brasileira e a intensa
participação do próprio Machado nesse empreendimento. Porém, é necessário qualificar esse
processo no Brasil e identificar as nuances desta pretensão pela autonomia da literatura,
relacionada principalmente à tentativa de criar uma sociabilidade entre intelectuais e artistas.
E, para isso, é importante identificar como esses símbolos que compõem a ideia de arte e vida
artística se efetivam ou pretendem se efetivar, neste contexto. Parto do pressuposto de que
essa pretensão de autonomia artística se faz, no Brasil, a partir da reprodução de símbolos
provenientes do universo cortesão, entretanto em novas bases e portanto outros significados.
Assim, pode-se falar, com certo limite, que a sociabilidade cortesã de meados do século XIX
transfere seu legado, ou sobrevive parcialmente, nas interações entre intelectuais e artistas já
no fim do mesmo século. Aquele modelo de literatura e de discurso crítico amparados na
polidez, continua a se fazer presente entre os intelectuais e artistas, que, de certo modo, ainda
reproduzem os moldes do “salonismo” do período romântico, com seus sarais, recitais e
espaços de discussão literária. Assim, as últimas três décadas do século XIX se caracterizam

_______________________________________________
97
Crônica do dia 29 de setembro de 1895. In: MACHADO DE ASSIS. A semana. In: Obras completas, vol. 3. Editora Nova
Aguilar, Rio de Janeiro, 2006. p. 678.
59

pela busca por se criar um espaço de sociabilidade, com tendências a reproduzir, de forma
reduzida, o conjunto de noções criadas pela sociedade cortesã do Rio de Janeiro, tanto como
parâmetros de julgamento estético como, também, formas de vida98.
Dessa maneira, e como já afirmamos no tópico anterior, o desenvolvimento de novas
formas retóricas não significou a supressão do padrão cortesão entre os críticos. Mas, a
permanência de tais princípios da retórica cortesã, amparada na noção de sociabilidade,
parece sobreviver, após a década de 1870, como uma “forma”99 que ganhou autonomia frente
o conjunto de necessidades sociais que amparavam as noções de polidez, tato, vivacidade e
humildade. Estas noções permanecem entre a crítica literária, mas destituídas de seu sentido
eminentemente social, e deixam, assim, de estar implicados com a rede de relações sociais
mais abrangentes atreladas à boa-sociedade da corte brasileira. Este esvaziamento do sentido
social mais abrangente representa uma reconfiguração social que tem implicações para
própria sociabilidade cortesã, e a autonomia da arte é apenas um dos indícios de que outras
dimensões da vida - como a política - também pressionavam por destacar-se das regras
vigentes na vida da corte100. Especificamente no caso da vida literária, a retórica cortesã
ganha um status próprio no universo intelectual, e transforma a rede de intelectuais em uma
micro-sociedade, fundamentada em princípios específicos, com pretensões a transformar-se
em um campo literário101. O declínio contínuo da vida cortesã, portanto, deixa um legado

_______________________________________________
98
Parto da noção de “forma de vida” desenvolvida por Lukács em LUKÁCS, Georg. On the nature and form of the essay. In:
LUKÁCS, Georg. Soul and Form. The Mit Press, Cambridge, Massachusetts, 1980.
99
Baseio-me na apreensão do conceito simmeliano de forma desenvolvida por Norbert Elias em seu estudo sobre as
transformações ocorridas na corte francesa após Luís XIV, que aos poucos perde o sentido inicial da extrema sofisticação
das maneiras, elevadas à uma forma artística, e sobrevive, destituído de seu espírito, transformando-se em um conjunto de
regras de etiqueta que sufocavam as relações cortesãs já sob o período de Luís XVI. O texto base de Simmel sobre o
assunto é uma pequena passagem em: SIMMEL, Georg. A Sociabilidade: exemplo de sociologia pura ou formal. In:
Questões fundamentais da sociologia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006, p. 78-79. O estudo de Norbert Elias que
parece se apoiar nesta passagem de Simmel pode ser encontrado em: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: Investigação
sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001. Leopoldo Waizbort já
havia chamado atenção às semelhanças teóricas e metodológicas entre Simmel e Norbert Elias, demonstrando
aproximações entre o conceito de forma em Simmel e o de “configuração social” de Norbert Elias. WAIZBORT, L. Elias e
Simmel. In: WAIZBORT, L. (org). Dossiê Norbert Elias. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Este
argumento sobre a prisão das boas maneiras da corte francesa e a ideia de caracterizá-la como uma forma decadente, já foi
tratada por Taine, que explica a perda de dinamicidade das relações na corte francesa, devido à forte tendência absolutista
desenvolvida desde Luís XIV. TAINE, Hippolyte. Da natureza e produção da Obra de Arte. Editorial Inquérito, Lisboa,
1940. p. 78.
100
Ângela Alonso vai em direção a esse mesmo argumento ao analisar o conflito produzido pela geração de 1870, que,
através da utilização de ensaios como forma de atuação política visava romper com o modelo social cortesão, baseados em
um conjunto de práticas próximas ao “Antigo Regime”. ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: A geração 1870 na
crise do Brasil-Império. Editora Paz e Terra, São Paulo, 2003. p. 54.
60

para a esfera intelectual, que traz para dentro de si, pelo menos como uma aspiração, estes
princípios que regulavam os salões aristocráticos. Desse modo, poderíamos supor que a
própria constituição deste campo literário seria a reprodução, em proporção reduzida, do
conjunto de regras desenvolvidas pela vida da corte na cidade do Rio de janeiro, o que
implicaria uma sociedade de fato autônoma e que redefine, a seu modo, os princípios de
vivacidade, polidez, tato, reserva, sacrifício e liberdade. Entretanto, não podemos esquecer
que o estabelecimento de uma sociabilidade, nos termos como qualificados pela vida de
corte, sobrevive na vida literária de forma ainda mais precária, e foi recorrente o
aparecimento de diversas instabilidades nas relações entre os intelectuais, o que leva até
mesmo a problematizar a possibilidade de compreender este período como o instante de
surgimento de um campo literário. Na verdade, esta instabilidade se verificará a partir da
própria inserção de novos personagens portadores de uma retórica baseada em outras
características, que acabam por desqualificar a “forma” de convívio sociável legada pela
sociedade de corte.
A crescente autonomia da vida intelectual e artística nas três décadas restantes do
século XIX parece não significar, assim, a elaboração de um conjunto de regras que
produzam harmonia e limites às interações entre intelectuais, ou que consigam regular o
conflito entre estas distintas formas retóricas. E poderíamos supor que, neste período, se
encaminha o desenvolvimento de certa anarquia de tais condutas, tanto do ponto de vista das
produções teóricas que entre os membros da Escola de Recife são criadas na refutação de
qualquer base sólida anterior de onde pudesse ter-se erigido, como, ainda, na dificuldade de
criação de redes intelectuais mais amplas baseadas em algum consenso e sociabilidade. O que
torna costumeiro entre os intelectuais que vivenciam esses tempos instáveis, pensar nossa
própria sociedade como desprovida de tradição102.
Este constante dissenso que instaura a disputa intelectual baseada nas famosas
polêmicas, e que se intensifica neste período, recebeu interessantes interpretações por
estudiosos do século XIX. É recorrente a afirmação de que a tradição intelectual brasileira se
fundamentaria a partir da permanente controvérsia, com um pendor para o conflito, e isto
poderia ser verificado em Silvio Romero, um dos mais renomados críticos da época. Esse
pendor por tornar o conflito preponderante ao debate de ideias partiria da parcialidade da

101
Valho-me do conceito de campo desenvolvido por Bourdieu em BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: Gênese e
estrutura do campo literário. Companhia das Letras, São Paulo, 1996.
102
JOSÉ VERÍSSIMO. A literatura brazileira: Sua formação e destino. In: Estudos Brazileiros: 1877-1885. Laemmert &
Cia. São Paulo. Sem data. p. 1.
61

crítica, que julga determinado autor, no nosso caso específico Machado de Assis, motivada
pelas disputas entre as “panelinhas”, como se o circuito de amizades determinasse o elogio ou
repúdio a alguma obra e autor. Seguindo essa perspectiva, João Cezar de Castro Rocha
denominou o comportamento da intelectualidade brasileira de fim de século XIX a partir do
conceito de “cordialidade”, “[...] cujos argumentos e ideias alimentam-se mais do coração do
que da razão”103. A mobilização do conceito clássico de Sérgio Buarque de Holanda104 para
explicar essas indisposições entre intelectuais, marca tais relações como essencialmente
pessoais, transformando as redes de amizades em uma espécie de organizador da vida
intelectual, preponderante até mesmo diante qualquer tentativa de tratamento mais rigoroso
das ideias que se discutem. Outro autor, Roberto Ventura, identifica a partir das polêmicas
esse mesmo traço da intelectualidade brasileira, o caráter pessoalizado das discussões
literárias, que para ele seria resultado da fusão entre modernização do conhecimento e as
formas tradicionais de vida social. Uma fusão entre modos de vida tradicionais representadas
pela oralidade da poesia popular e pelas “leis” que se constituem sob uma lógica familiar,
portanto carente de princípios gerais que os governem, e, de outro lado, formas modernas de
percepção do mundo, representadas por mecanismos da retórica jurídica de discussão aliados
a uma compreensão evolucionista do embate, proveniente dos postulados científicos em voga,
onde necessariamente a melhor ideia advém da disputa105. Apesar da maior complexidade do
quadro contextual montado por Roberto Ventura, prevalece, em certo sentido, a compreensão
de relações intelectuais marcadas pelo conflito, onde os modos de vida tradicional imperam.
Modos de vida tradicionais também passível de ser compreendido a partir do conceito de
cordialidade, tendo em vista que as relações tradicionais, tal como descritas por Ventura, são
compreendidas como carentes de princípios gerais, portando, marcadas pela autoridade
senhorial que não reconhece limites aos seus impulsos.
Apontar a cordialidade como um traço que perdurou desde a “formação” do país e
que persiste culturalmente como um mal de origem de nossa tradição, não contribui tão
efetivamente para se compreender este instante da vida literária nacional. Pois deixa de

_______________________________________________
103
ROCHA, João Cezar de Castro. O Ruído das festas e a fecundidade dos erros: como e porque reler Sílvio Romero. In: O
exílio do homem cordial: ensaios e revisões. Editora Museu da República, Rio de Janeiro, 2004. p. 253.
104
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1978.
105
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil 1870-1914. Companhia das Letras,
São Paulo, 1991. p. 10.
62

considerar o significado da implantação da corte no Brasil e sua propensão centralizadora,


principalmente na criação de espaços de sociabilidade capazes de conter os impulsos
aristocráticos e sua tendência em desconhecer limites ao próprio poder. Portanto, a dinâmica
das relações na sociedade colonial, caracterizada pela pulverização de núcleos autônomos
constituídos a partir do senhor de engenho, como descrito por Gilberto Freyre106, é bem
distinta do padrão de convivência instituído pela corte. Assim, é necessário indicar que a
sociabilidade cortesã conseguiu criar uma ética de convivência na primeira metade do século
XIX, e conteve os ímpetos da cordialidade durante este período107, e, somente com base no
contexto de desagregação do modelo de corte nas últimas três décadas do século XIX pode-se
compreender como a instabilidade no convívio intelectual parece ganhar certo espaço, que
terá continuidade mesmo após a implementação da República. Portanto, é necessário
qualificar melhor as polêmicas e analisar as dinâmicas dessa própria instabilidade como um
instante de dificuldade de se constituir alguma ética que definisse a forma legítima de
interagir intelectualmente, tanto do ponto de vista da retórica discursiva como na própria
convivência entre os intelectuais. A partir desse contexto pode-se afirmar que parte das
tensões e conflitos entre intelectuais e artistas ocorridos através da crítica publicada nos
jornais foi gerada pela fragilidade da autonomia literária baseada nas noções desenvolvidas
com a sociabilidade cortesã. Instabilidade que de uma forma precisa permitiu a readequação
da cordialidade entre os intelectuais e artistas, dentro do contexto de reconfiguração social
ocorrido após a década de 1870, quando volta a haver espaço a este impulso pela disputa, ou
melhor, quando ocorre um estímulo à polêmica como modelo de interação. Somente é
necessário matizar o argumento da cordialidade e readequá-lo diante a retórica cientificista
que pretende reintroduzir a disputa como modelo de interação, agora já em um cenário de
maior amplitude “pública”. Portanto essa “nova” cordialidade não é um traço absoluto
inerente a todo comportamento intelectual brasileiro nas últimas três décadas do século XIX,

_______________________________________________
106
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e senzala: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. Editora Record, Rio de
Janeiro, 2001.
107
Isto não significa que a cordialidade, no período da implantação da corte no Brasil, não tenha se manifestado entre os
intelectuais, como é possível ver nos vários “duelos” nas letras e as polêmicas anteriores à década de 1870, algumas delas
envolvendo inclusive o próprio D. Pedro II. Este tipo de disputa sempre foi comum em todas as cortes, inclusive com
duelos reais entre os contendores, entretanto fora do âmbito da sociabilidade e repudiado por ela. O período pós 1870
representa um instante diverso, devido ao risco iminente de um retorno da cordialidade no ambiente público, tal como no
Brasil colônia, onde preponderava a ausência de parâmetros de intermediação entre os indivíduos situados em diferentes
redes familiares, portanto um risco no sentido da legitimidade da cordialidade como prática intelectual devido a maneira
como alguns atores buscaram deslegitimar a sociabilidade cortesã como uma instância de integração.
63

apenas se faz presente na retórica cientificista da geração de 1870 que entra em confronto
contínuo com a herança cortesã, como poderemos ver mais a frente em alguns trechos das
resenhas sobre Machado de Assis, publicadas a partir desta época. Assim, não é possível se
falar na existência de um campo intelectual no período, justamente pelo quadro de tensão
entre retóricas distintas, pois de um lado verifica-se a sobrevivência de um modelo de
sociabilidade cortesã como uma “forma” e, de outro, a retórica de ataque da geração de 1870.

2.1 A juventude contestadora

Parte dos intelectuais formados na Escola de Recife, ou sob influência do movimento


intelectual desencadeado em outras províncias108, que se envolveram inicialmente com a
crítica literária, construíram, praticamente, uma agenda programática de rever nossa literatura
a partir de um viés científico, cuja principal referência partia de noções do evolucionismo
darwiniano, naturalismo, positivismo e investigações do folclore109, e que, tal como
identificados pelos próprios intelectuais envolvidos com essa transformação do pensamento
nacional, esse período pode ser definido como o instante de certo modernismo cultural110.
Mesmo José Veríssimo em seu principal livro, História da Literatura Brasileira, já com o seu
desiludido ceticismo crítico de quem passa a percebe este instante como algo superado,
descreve o “alvoroço” da geração de 1870 e sua ampliação da liberdade, como podemos ver
na passagem seguinte:

_______________________________________________
108
BARBOSA, João Alexandre. A tradição do Impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo.
Editora Ática, São Paulo, 1974. p. 77.
109
Essa nova onda cientifizante que marca o decênio de 1868-1878 e que terá braços na poesia, no romance, nos estudos do
direito e até nas ideias políticas são mencionadas por Sílvio Romero na sua introdução a um livro de Tobias Barreto,
coletânea de diversos ensaios, organizado pelo próprio Sílvio e intitulada “Explicações Indispensáveis”. In: BARRETO,
Tobias. Vários Escritos. Rio de Janeiro, Edição do Estado de Sergipe, 1926. p XXVI. Ibid Idem, p. 28.
110
José Veríssimo estuda a década de 1870 como um instante de evolução da literatura nacional caracterizada pelo
modernismo, e dedica um capítulo para analisar de forma abrangente o conjunto de transformações evidenciadas nesse
período, qualificando este modernismo como um “salutar alvoroço”. JOSÉ VERÍSSIMO. História da Literatura
Brasileira: De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Livraria José Olympio, Rio de janeiro, 1954. p. 282-
292.
64

Às ideias, nem sempre coerentes, às vezes mesmo desencontradas daquele movimento,


fautoras também nos acontecimentos sociais e políticos apontados, chamamos aqui de
modernas; expressamente de “pensamento moderno”. A novidade que tinham, ou que lhe
enxergávamos, foi principalíssima parte no alvoroço com que as abraçávamos. Na ordem
mental e, particularmente literária, os seus efeitos se fizeram sentir numa maior liberdade
111
espiritual e num mais vivo espírito crítico.

Liberdade e excesso de entusiasmo caracterizam esse momento de juventude e


rebeldia da evolução crítica, marcada pela dispersão. Porém, essa é uma análise do maduro
José Veríssimo e com reflexões de quem já não se enquadra nem no entusiasmo juvenil e
nem partilha mais totalmente dos pressupostos científicos advogados pela geração de 1870.
Para aqueles, e também para José Veríssimo em sua “juventude”, esse entusiasmo febril era
derivado de uma certeza absoluta na ciência social da época, e, assim como seus princípios
evolucionistas indicavam a superação de uma estética artística atrasada por uma nova e
moderna, a sua própria geração se percebia como agente de ruptura com o passado nacional.
Mas, além do “alvoroço” juvenil desta crítica moderna, tem-se também outro aspecto que é
importante ressaltar. José Veríssimo chama atenção para a falta de “coerência” de parte dos
ensaios dessa geração, e esta falta de coerência pode ser entendida como uma tendência para
a dispersão e inconstância nas ideias. Parece que o mesmo estado febril e de alvoroço, devido
a maior liberdade, provoca, também, uma ausência de parâmetros no julgamento, que se faz e
refaz continuamente a mercê das ideias novas que aportam no Brasil de 1870. Caracterizar a
juventude pela ideia da inconstância e dispersão, parece não ser uma novidade entre estes
representantes da escola de Recife ao revisitarem este período. Joaquim Nabuco em seu
ensaio “Minha Formação” é quem melhor define esta relação, ao traçar seu próprio perfil de
jovem polemista e republicano a partir da noção de veleidade112.
Outro crítico literário importante e que tem seu nome relacionado à geração
contestadora de 1870, Araripe Junior, ilustra muito bem esse instante da evolução crítica, e,
em determinado ponto de vista, se assemelha com a análise de José Veríssimo. Mas, agora

_______________________________________________
111
Idem, p. 283.
112
JOAQUIM NABUCO, Minha Formação. Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional. p. 13.
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000096.pdf. Ricardo Benzaquen de Araújo em seu artigo ressalta
justamente como essa noção de dispersão está presente na narrativa de Joaquim Nabuco sobre sua juventude, e demonstra
como tal veleidade está calcada em certa postura melancólica. In: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Através do Espelho:
Subjetividade em Minha Formação, de Joaquim Nabuco. RBCS, vol 19, nº 56, 2004.
65

em uma releitura da própria forma como afirma ter compreendido, em sua juventude, os
primeiros livros de Machado, e qual tipo de postura crítica estava implicada nesta leitura.

Os primeiros trabalhos de Machado de Assis que folheei foram as Phalenas e os Contos


fluminenses.
Tinha eu então ao meu cargo os folhetins de critica do Dezesseis de julho, jornal político que
se publicava n’esta capital em 1870.
Os dous livros chegavam de pariz, nitidamente editados, se não me falha a memoria, pela casa
Garnier.
Sendo-me entregues, para fins convenientes, atirei-me a elles como gato a bofes, certo de que
alli encontraria onde afiar o gume do meu cutelo de critico incipiente.
N’essa época eu andava preocupado com a idéa do romance nacional; sabia de cor o Brasil de
Ferdinand Denis e lêra pela oitava ou nona vez o Guarany de J. de Alencar. No que respeita á
litteratura, ignorava completamente a existencia de uma cousa chamada proporções; pouco
tinha observado, muito menos comparado, de modo que, segundo pensava, não havia senão
uma craveir: - diante d’uma obra d’arte, ou tudo ou nada.
D’ahi uma conseqüência – as Phalenas seriam toleraveis, mas os Contos mereciam morte
afrontosa e violenta. Escrevi o folhetim indignado e descansei no fim da obra, certo talvez de
ter causado a ruína de um edificio colossal.
113
Como são agradaveis estas illusões e perversidades infantis!

Podemos ver nesse trecho de Araripe Junior a mesma reflexão feita por José
Veríssimo sobre a relação entre a crítica impulsiva daquele instante e certa ideia de
juventude. Entretanto, Araripe Junior parece complementar a noção de juventude
desenvolvida por José Veríssimo, e lhe acrescenta um pequeno aspecto. Além da dispersão
produzida pela falta de coerência, como José Veríssimo descreve, o trecho de Araripe Junior
revela uma atitude crítica marcada pela ausência de “proporções”. Não há medida na
ambição destrutiva do autor, cuja auto-descrição nos conduz a imaginá-lo com a pretensão de
possuir o poder de indicar aquilo que irá ou não perdurar como valor artístico. Sem dúvida é
uma descrição irônica de sua juventude devido à forma pejorativa como descreve sua
pretensão de onipotência. Mas esta descrição é bastante interessante por nos revelar um
jovem crítico marcado pelo impulso e excesso, justamente devido a falta de medida e
equilíbrio. Aqui podemos perceber uma variante da mesma dispersão que provoca a
incoerência nas ideias defendidas, portanto, um mesmo traço retórico governado pela
instabilidade nervosa, pela tendência ao excesso, característico da modernidade, e que se
evidencia também entre os intelectuais, pelo menos tal como eles se descreviam como jovens.

_______________________________________________
113
Araripe Júnior. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1892. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores
de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 364-365.
66

Por caminhos diversos José Veríssimo e Araripe Junior parecem nos conduzir para
uma concepção de juventude muito similar, pois se percebe em ambos os trechos traços de
impulso e falta de moderação. Porém, esta ausência de limites é, na verdade, uma forma
específica de liberdade, e que encontra obstáculos perante a concepção de liberdade cortesã.
Como vimos, a sociabilidade dos salões da alta sociedade do Rio de Janeiro permitia uma
liberdade sutil, de meias palavras, de ironia leve, e tudo isso se reproduzia no julgamento da
crítica, que legitimava esta forma de liberdade devido a seu potencial lúdico de refazer laços
sem comprometer a vivacidade. Aqui, a liberdade é tida como impulso, quase como um
instinto voltado diretamente para ação, portanto, sem respeito a conveniências e com um forte
ímpeto destrutivo. Esta concepção de liberdade parece estar amparada em uma noção,
também específica e re-significada, de juventude. Se no modelo de crítica literária amparado
na sociabilidade cortesã a juventude era associada à vivacidade, leveza e contenção da
seriedade, aqui, esta juventude comparece como uma forma de afronta constante, de
rebeldia114, sem nenhum compromisso com o entretenimento. Juventude e liberdade, nesse
contexto de redefinição semântica, são quase sinônimos, pois ambas são definidas pela
imprudência. Muito distinta da correlação destes termos realizada no ambiente da
sociabilidade de corte, onde a vivacidade comparecia como um elemento de responsabilidade
e única forma pela qual o artista poderia dar vazão à sua criatividade, ou seja, sua liberdade.
Esta liberdade almejada por essa nova geração tem contornos bem distintos e é bem ilustrada
por Araripe Junior, ainda relembrando sua juventude, e assim classificando-a: “O que é certo
n’esses venturosos tempos, apadrinhado com as auctoridades, entre outras, de Marmotel, eu
julgava facílimo soltar as velas no mar alto”.115 Essa bela frase que ironicamente possui
inspiração romântica e suas constantes referências a este “soltar as velas no mar alto”, ilustra
bem a compreensão de liberdade desta nova geração. Trata-se da aventura que marca algumas
atitudes diante a modernidade, e que representam bem este impulso moderno pela supressão

_______________________________________________
114
É comum entre os jovens dessa geração a defesa da rebeldia frente aos princípios considerados antiquados por eles, e
Sílvio Romero faz a defesa literal desse princípio, ao confirmar sua rebeldia principalmente diante às contestações feitas
aos seus posicionamentos: “O crime do author há sido faltar com o respeito a umas ideias franzinas que lhe quizeram
sempre impor como grandezas! Foi e será sempre rebelde ao culto do numes litterarios de nossa terra; [...]”. In: SYLVIO
ROMERO. Cantos do fim do século. Typografia Fluminense, Rio de Janeiro, 1878, p. 236.
115
Araripe Júnior. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1892. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores
de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 365.
67

do compromisso entre passado, presente e futuro116. O lançar-se ao risco como única


expressão da subjetividade possível, significa o desconhecimento dos limites impostos pelas
regras sociais vigentes, ou, ao contrário, a afronta a tais regras. Assim, para afirmar a própria
liberdade é necessário desafiar a tradição, ou, como foi comum no período, afirmar a
inexistência de qualquer tradição. Esta atitude frente o passado tem implicações na própria
imagem do futuro, pois a aventura como prática não cria rotina, ela é incapaz de se acomodar
ao trabalho corriqueiro do dia-a-dia, e somente se volta para os grandes lances, àquilo que se
apresenta como grandioso. A relação como Joaquim Nabuco descreve sua viagem à Europa e
suas visitas aos grandes intelectuais, como Renan, é bastante ilustrativa dessa ânsia pela
grandiosidade e da necessidade de se medir a eles como, no mínimo, interlocutores na mesma
condição de igualdade.
Auxiliados pela memória autocrítica de Araripe Junior e José Veríssimo já maduros,
podemos perceber como a tradição foi entendida como algo a ser efetivamente destruído. E,
devido à visão de mundo inerente a esta juventude, estes intelectuais, tão envolvidos com a
ordem do dia, enxergaram no romantismo parte da tradição nacional a ser demolida e um dos
obstáculos ao espírito livre. Essa estética literária de “ontem”, pois ainda era recente sua
criação no Brasil, foi o alvo dos ataques inflamados de parte destes defensores da verdade.
Entre eles, Sílvio Romero, que faz uma introdução teórica117 ao seu primeiro e único livro de
poesias, Cantos do Fim do Século, querendo nitidamente demarcar seu lugar como
contestador do romantismo, tido por ele como um “cadaver, e pouco respeitado118”. No
prólogo a este livro ele faz afirmações categóricas, em forte tom polemista, ao querer despir a
poesia de um invólucro romântico com pretensões divinas, pois para ele a poesia,

Como a linguagem, como a mythologia, como a religião, ella perdeu todos os ares de
mysterio, depois que a sciencia do dia imparcial e segura penetrou, um pouco amplamente, no
problema das origens. Este resultado foi devido á alta critica histórica e philologica, depois
que o sôpro das sciencias naturaes a rejuveneceu. A metaphysica, com todo o seu histerismo,
119
bem pouco contribuiu para elle.

_______________________________________________
116
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Perspectiva, São Paulo, 1972.
117
O prólogo do seu livro Cantos do fim do século se intitula A poesia de hoje é uma reedição do mesmo texto publicado no
jornal O movimento em 1873.
118
SYLVIO ROMERO. Cantos do fim do século. Typografia Fluminense, Rio de Janeiro, 1878, p. XI.
119
Ibid, p. VI. Os poemas foram escritos entre os anos de 1869 e 1973, e somente reunidos em livro em 1878, quando havia
se mudado para Paraty, onde cumpria magistratura. Ele se mudaria para o Rio de Janeiro no ano seguinte, em 1879,
68

E esta grande mudança, que para Sylvio se operava em todo o ocidente, percebe-se
também na maneira de sentir e pensar da “massa dos leitores”, devido a popularização da
ciência e sua “conquista da expulsão do sobrenatural”. O tom imperioso com que inicia a
atividade crítica se mostra, ainda, em seu terceiro ensaio intitulado A Poesia das Phalenas, de
30 de maio de 1870, publicada no jornal A Crença, quando assinava Silvio Ramos, e neste
texto, um de seus primeiros, já procura demarcar sua posição frente ao romantismo ao
desqualificar o “lirismo subjetivista e humorismo pretensioso”120 de Machado de Assis. Na
perspectiva de Sylvio, assim como de outros intelectuais desta geração, não havia mais lugar
para o “cadáver” romântico, encarado como uma anomalia provinda do excesso de imitação
dos costumes e modas europeus. Assim, a “nova intuição”, auxiliada pela ciência, conseguiria
superar certo traço do romantismo, entendido como um excesso de subjetivismo, tal como
Sylvio identifica na poesia de Machado.
José Veríssimo, antes da intensificação de sua desilusão frente o espírito científico
que governava sua retórica da juventude, também condena o lirismo subjetivista, e prega uma
poesia marcada pela racionalidade:

A poesia é hoje objectiva, isto é, tem um fim, uma missão. O poeta deixou de ser um moço de
fronte pallida, tysico, anemico, a chorar um amor infeliz e maldizendo do mundo que o não
comprehende; não, o poeta tem tambem um papel social a desempenhar: é um individuo, é um
121
cidadão.

Nestes dois trechos de textos da juventude dos mais importantes nomes da crítica
literária do século XIX percebe-se o entusiasmo com as ideias científicas da época e o
repúdio pela expressão individual, por qualquer forma de particularismo. E, José Veríssimo,
assim como Sylvio, compreendeu Machado por um viés similar, tentando definir a

portanto, provavelmente, esse seu livro teve certa divulgação na capital do Império. CANDIDO, A. O método crítico de
Sílvio Romero. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988. p 36-37. Apesar de nesse prólogo não haver
nenhuma menção à Machado de Assis, ele está cheio de referências indiretas ao autor fluminense, tendo em vista que
Sílvio Romero compreendia Machado como parte da escola romântica, principal alvo das suas críticas neste seu ensaio. No
entanto, esse prólogo nos é interessante, também, por outro motivo. Ele é a principal referência de Machado de Assis para
as críticas que tecerá aos jovens escritores em seu ensaio de crítica literária intitulado “A nova Geração”, publicado em
1879. Partes desse prólogo de Sylvio são citadas por Machado com bastante ironia, como veremos mais a frente, e
desencadeia a agressividade de Sílvio Romero por mais de uma década, culminando com seu famoso livro dedicado a
analisar apenas Machado de Assis.
120
Sílvio Romero faz uma longa digressão de todos os seus ensaios críticos publicados em Recife na nota da página XIX de
seu prólogo ao livro de poesias Cantos do fim do século. Nesta listagem ele alude ao artigo mencionado, indicando-o como
o 3º escrito por ele e acrescentando um pequeno resumo do ensaio onde faz as afirmações citadas acima. In: SYLVIO
ROMERO. Cantos do fim do século. Typografia Fluminense, Rio de Janeiro, 1878, p. 242. Sobre a primeira assinatura de
Silvio Romero, como Silvio Ramos, consultar: MAGALHÃES JÚNIOR, R. Vida e obra de Machado de Assis. Volume 2
Ascensão. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981, p. 91.
121
Este ensaio é indicado pelo próprio autor com a data original de publicação de 1877. JOSÉ VERÍSSIMO. A literatura
brazileira: Sua formação e destino. In: Estudos Brazileiros: 1877-1885. Laemmert & Cia. São Paulo. Sem data. p. 4.
69

“patologia” que justifica essa tendência de determinados escritores nacionais a se


expressarem artisticamente segundo essa intensificação do olhar pessoal.
Além dos vícios da poesia subjetivista, José Veríssimo aponta também o excesso de
artificialidade dos romances nacionais que reproduziram os moldes da vida cortesã do Rio de
janeiro, de imitação européia. E, por isso afirma que os romances que se debruçaram nos
temas sertanejos pelo menos indicaram a originalidade da forma contida em nossa formação
nacional, enquanto aqueles que se detiveram na vida da corte, foram superficiais. Assim,
romances como O Guarani e O Sertanejo, ambos de José de Alencar, foram tratados como
superiores aos livros de Macedo, que se limitaram a corte e reproduziram sua artificialidade.
Indiretamente, José Veríssimo parece estender essa opinião ao romance Ressurreição, pois,
antes de afirmar a superioridade dos romances regionais, ele apresenta o romance de
Machado como representante de temas limitados à corte122. No mesmo sentido tem-se a
crítica a poesia que também revela ares de artificialidade, quando escrita através da
preponderância da forma frente ao tema, como podemos ver nessa resenha de Araripe Junior
assinada com o pseudônimo de Oscar Jagoanharo, que depois de iniciar com um brevíssimo
elogio demarca seu posicionamento frente à obra de poesia Falenas de Machado de Assis:

Contudo, é força reconhecer que em todas as suas composições há um não sei quê de
indefinível na forma que parece antes oprimir e sufocar o pensamento por mais belo que ele
seja, do que elevá-lo e traduzi-lo.
Mata-o, afinal, e sepulta-o em um monótono arroio, onde nem ao menos se deixam enxergar
as pedras preciosas que o seu leito povoam.
E do arroio o que nos fica? Nem uma impressão forte e perdurável; apenas a longínqua e triste
toada das águas que correm, o simples deslizar do verbo que passa perfeitamente metrificado
123
e sonoro.

Percebe-se, com isso, as duas frentes da crítica da geração de 1870 em relação a


estética desenvolvida pelo que eles próprios definiam por romantismo. De um lado o excesso
de particularismo e, de outro, uma forma engessada pela imitação, portanto, vazia de
conteúdo. É como se estes novos críticos literários acusassem um duplo excesso da estética
de seus predecessores recentes, uma tendência a recair na preocupação exagerada com a
forma pura ou o desprendimento de qualquer rigor que culminaria com o simples

_______________________________________________
122
Idem, p. 7-8.
123
Oscar Jagoanharo - pseudônimo de Araripe Júnior. Dezesseis de Julho, Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 1870.
MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 77.
70

subjetivismo. Apesar da aparente semelhança, este parâmetro de julgamento é muito distante


da mediania pretendida pela sociabilidade cortesã. Apesar de em um primeiro instante
percebermos a aspiração similar de definir um meio termo à expressão estética, um ponto
entre a forma e conteúdo, ou melhor, entre a criatividade e a formalidade, não é através da
noção de “naturalidade” artística que este novo pressuposto estético buscará a superação
dessa dicotomia. Pois, através das resenhas e textos desses representantes da geração de 1870
não parece haver a preocupação em dissimular o artifício, que é uma das preocupações da
arte produzida na corte. Pelo contrário, a superação da dicotomia entre subjetividade e a
artificialidade se dá através da defesa da objetividade, definida como a nova intuição com
poder de orientar a arte. Portanto, estes críticos apelam à racionalidade moderna para superar
essa dicotomia, convictos que somente uma lógica baseada em pressupostos empíricos seria
capaz de produzir juízos de fato consistentes. Mas, de forma aparentemente paradoxal, o
trecho de Araripe Junior logo acima parece enfatizar outra saída, que refaz a contradição
anterior entre o excesso de individualismo e formalismo criticado a respeito da literatura
romântica brasileira. Ao mesmo tempo em que apostam na objetividade como formar de
superação dessa ambivalência, tem-se uma expectativa de que o artista demonstre em seus
textos um temperamento vigoroso, que faz a forma poética dobrar-se à sua vontade, pois o
“pensamento” sufocado não produz uma “impressão forte” no leitor. E esta contradição
permeia a maior parte dos escritos destes jovens contestadores e, em alguns duram até a
maturidade. Há um culto a personalidade forte, a ideia de um espírito livre, que se choca
continuamente com a defesa de um distanciamento objetivo. Por isso, da mesma maneira que
se pode ver trechos como esse seguinte em que se diz que:

A nova intuição litteraria nada contará de dogmatico; será um resultado do espirito geral da
crítica contemporanea. Acima dos combatentes, sem duvida necessarios, que, obcecados por
uma vista qualquer das idéas, falseam a noção do grande todo, estão os espiritos sem dogma
particular, que se empenham em traçar as grandes linhas do edifício moderno; acima de todas
124
as doutrinas está a intuição generica da crítica.

abundam frases como essa que se seguirá, do mesmo crítico, que defende a perspectiva
aparentemente oposta:

_______________________________________________
124
SYLVIO ROMERO. Cantos do fim do século. Typografia Fluminense, Rio de Janeiro, 1878, p. XII.
71

Não importa isto uma aprovação a certos absenteísmos muito do gosto dos ânimos fracos, que
entendem de salvaguardar a própria pureza, fugindo sistematicamente das tentações. É
proceder que nunca aplaudiremos. A virtude prova-se no meio da luta. A sociedade não é um
convento de monjas. Que grande mérito advém em não se cobrir do pó a quem não sai à liça
do combate e deixa-se tranqüilamente ficar em doce e sossegado aposento? Devemos todos,
125
homens de letras ou não, interessar-nos pelas pugnas e pelas dores da pátria.

Silvio Romero, diferente de José Veríssimo, parece ser um desses intelectuais cujos
textos escritos em diferentes épocas são de grande semelhança, tanto em relação ao tom como
aos argumentos mobilizados. Esses dois trechos, o primeiro escrito em sua juventude e o
segundo em sua maturidade, não apontam para uma transformação de seu perfil. Indicam
apenas uma contradição aparente daquilo que nós apontamos um pouco mais acima, a
contradição entre objetividade e culto da autonomia crítica, e por isso representam uma
modelagem retórica bastante específica. Prevalece uma tensão entre o tom de seriedade, que
busca minimizar os floreios retóricos, e a crítica contumaz, que toma forma no tom ríspido da
polêmica. Embora coloque o distanciamento crítico e a liberdade espiritual como uma
característica indispensável ao intelectual para se por acima “dos combatentes” que não
prezam pela evolução do pensamento, percebe-se, ao mesmo tempo, a defesa do intelectual
engajado na disputa, e, assim, consolida-se a associação entre luta e virilidade ao destacar que
“todos, homens de letras ou não”, devem estar sempre dispostos para o embate pela pátria.
Assim, diferente de José Veríssimo e Araripe Junior que atribuem seus ímpetos combativos
ao tempo superado de rebeldia da juventude, Sylvio parece ter se encaminhado à direção
oposta, inclusive elogiando o exemplo deixado por Tobias Barreto:

Esta minha franqueza tem direito a uma descompostura, que ao certo não se fará esperar por
muito tempo.
Schiller tinha razão de dizer que todas as artes são filhas do pueril e inocente gosto de brincar.
Escrever também é uma arte, a qual para mim, em mais de um ponto, substitui um dos meus
prediletos brinquedos da meninice. Era bulir com as vacas paridas, ou com os carneiros
marradores. E o meu maior prazer consistia justamente em ver o animal atirar-se de corpo e
alma contra mim, mas quando batia com a testa no tronco, já eu estava trepado na copa da
ingazeira.
Continuo no folguedo, sob forma menos perigosa, mas igualmente aprazível: é dar alfinetadas
na vaidade de uma súcia de parvos, para me rir da sua fúria e dos seus insultos, que aliás me
126
deixam ilesos.

_______________________________________________
125
SÍLVIO ROMERO. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira. Editora UNICAMP, Campinas,
1992. p. 31. Livro publicado originalmente em 1897.
126
TOBIAS BARRETO. Estudos Alemães. Ibid Idem, p. 251.
72

Este trecho é apenas uma pequena parte compara às longas citações que Sylvio faz à
Tobias Barreto, especificamente à sua obra Estudos Alemães, e percebe-se que as
brincadeiras infantis continuaram agradando a ambos, mesmo durante a velhice. Assim, o
espírito combativo, ainda que associado a um impulso elementar da juventude, é uma forma
de ação considerada por ele como louvável, por ser gerada pela franqueza, única fonte pura
da ação do homem público, pois não podemos deixar passar desapercebido que apesar do tom
irônico deste trecho, esse prazer em “dar alfinetadas” somente era permitido frente aos
adversários, à “súcia de parvos”.
Essa crítica de Sylvio à Machado, que identifica o tédio à controvérsias como
fraqueza, não foi isolada. Até mesmo críticos que não faziam parte da geração de 1870, pelo
menos não declararam que compartilhavam as mesmas ideias racionalistas, expressaram certo
constrangimento diante o pessimismo dos romances posteriores às Memórias Póstumas de
Brás Cubas, e exprimiram juízos que se aproximam da perspectiva racionalista que projeta na
literatura uma função ativa perante a sociedade em compromisso com a verdade e o otimismo
diante as conseqüências da ilustração, como pode ser visto no trecho seguinte:

Aniquilar a vontade humana, reduzil-a a um catavento que impelle a briza caprichosa, quando
justamente todo drama da vida provém da grande luta empenhada entre a vontade e a
127
fatalidade, entre o homem e o mundo exterior!

Trata-se de uma desconfiança em relação a ambigüidade expressa na ficção da


segunda fase de Machado, uma desconfiança, traduzida por Sylvio, como falta de virilidade,
fraqueza e insegurança, por não afirmar a “vontade” em tom categórico e forte, de dentro
para fora e independente das conseqüências. Mas, antes de avançarmos nessas considerações
recuamos um pouco para evidenciar melhor a contradição expressa pelos dois trechos de
Sylvio que descrevem o intelectual como um indivíduo marcado pela luta e objetividade.
A maneira pela qual os críticos pretenderam suprimir essa contradição entre
objetividade e ânsia pela disputa se dá através da própria compreensão de ciência que se
defendia. É necessário ressaltar que esta noção de objetividade está amparada em um

_______________________________________________
127
Urbano Duarte. Gazetinhas, Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1881. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 351.
73

princípio evolucionista128, levado às últimas conseqüências até mesmo para definir a


dinâmica de transformação da sociedade através do conhecimento, e isto resultou em uma
tensa negociação entre distanciamento e ação, como podemos entrever na tentativa de Sylvio
em descrever o encadeamento entre conhecimento, intelectual e sociedade no trecho a seguir:

Cada escritor é um centro de força, além de uma resultante; como centro de força, age como
causa e fator de diferenciação e progresso; como resultante, é um efeito de um meio dado, de
129
um grupo social e deve refletir as qualidades do agregado a que pertence.

Essa função transformadora do conhecimento é ilustrada ainda na ideia de “espírito


representativo”130, inserido nesta mesma dupla função do intelectual. Então, o artista ou
crítico não devem se restringir a contemplação, pelo contrário, devem ter como principal
finalidade de vida a ação, lutar por suas convicções através da arma a qual dispõe, a escrita.
Esta perspectiva teórica nos ajuda a compreender o tom polemista assumido pela maioria dos
intelectuais dessa geração, que tenta justificar um perfil de intelectual implicado com as
discussões públicas, principalmente com sua transformação na direção do que se entendia
como progresso, e que culminou com a justificativa da via republicana.
Com base neste modelo de intelectual que inspirou parte dos intelectuais dessa
geração, não é difícil compreender como a seriedade substituiu a vivacidade do discurso,
assim como a ansiedade pela luta, comprometida em guiar a nação, mostra-se relutante à
polidez e o tato. Percebe-se assim que, além das duas frentes estabelecidas para julgar o
romantismo brasileiro, a denúncia do subjetivismo ou do formalismo, é também freqüente o
ataque às formas cortesãs da literatura. A suposta objetividade evolucionista, como vimos
anteriormente na análise de Simmel sobre Nietzsche, parte do princípio que o potencial
evolutivo é condensado em um indivíduo, que se sobrepõe em termos de alcance analítico da
realidade a todos os demais. E isto casa-se perfeitamente com uma perspectiva aristocrática,
que justifica a premência de determinados espíritos sob a sociedade. Porém, enquanto o

_______________________________________________
128
Roberto Ventura afirma que a polêmica, onde é comum o uso de uma linguagem de luta e “predicados como valentia e
coragem”, formou-se a partir de uma espécie de sincretismo entre um código de honra tradicional e a compreensão
evolucionista da luta pelas ideias, como forma de aperfeiçoamento cultural e social. E assim demonstrando que há uma
correlação entre o método crítico e forma de convivência entre os intelectuais do período. VENTURA, Roberto. Estilo
Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil 1870-1914. Companhia das Letras, São Paulo, 1991. p. 80.
129
SÍLVIO ROMERO. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira. Editora UNICAMP, Campinas, 1992.
p. 79.
130
Idem, pp. 70-80.
74

super-homem nietzschiano caminha indiferente através dos limites relacionados à mediania,


Sylvio mobiliza essa compreensão da sua superioridade crítica como um comprometimento
de transformação social. E, de fato, percebe-se, a contragosto do próprio crítico, a reprodução
do principal traço da ciência positivista que enxergava no conhecimento o único caminho de
evolução social131. Esta mesma pretensão em guiar a sociedade pode ser percebida no escrito
da juventude de José Veríssimo, mas, com um peculiar tom pessimista que sempre o
acompanhou, e contrastava com a euforia daquele período:

Á litteratura cabia o papel de, pelo estudo do passado, levantar o espirito nacional – tão
precocemente abatido – por uma fórte reacção contra o presente. Ahi estava, porém, a
ignorancia popular engendrando o nenhum amor á leitura e obrigando os nossos litteratos, a
quem não faltava talento, nem vontade talvez, a mentirem á sua vocação e a escreverem
sómente de modo a poderem ser lidos e bemquistos de leitores ignorantes e sem gosto, para
não verem seus livros comidos pelas traças nas estantes das livrarias; e a pseudo-critica que lê
primeiro o nome do autor do que o titulo da obra e indaga-lhe da posição official que occupa
132
antes de estudar-lhe o livro.

Este trecho que, pela agressividade, poderia ser do próprio Sylvio, revela bem este
distanciamento em termos de competência entre, de um lado, o artista e a sociedade, e, de
outro, entre a crítica imbuída de pressupostos científicos e aquela preocupada com a “posição
oficial” do artista a ser analisado. A primeira barreira, entre o artista e o público “ignorante”,
revela bem a superioridade pretendida por esse perfil de intelectual, que trata como
rebaixamento estético a pretensão artística de querer ser acessível a este tipo de público.
Como podemos ver, uma das condições da arte cortesã, a de promover a sociabilidade, é aqui
duramente contestada por essa geração, que advoga essa superioridade. Cabe ao público
adequar-se, para seu próprio bem, à elevação artística. Por outro lado, o público tratado ao
qual o autor parece se voltar aqui não é propriamente aquele da boa sociedade carioca, mas se
dirige de maneira mais abrangente à sociedade nacional, de uma forma que aquela
sociabilidade cortesã não pretendia abarcar. Trata-se, portanto, de uma compreensão de
público mais moderna, em direção a ideia de espaço público como suscitada por Habermas

_______________________________________________
131
Muitas das opções intelectuais de Sílvio foram negociadas com as contingências do momento, portanto, as referências
positivistas, naturalistas e até idealistas eram utilizadas seletivamente à medida que se mostravam úteis para a compreensão
e atuação nos processos históricos brasileiro. CANDIDO, A. O método crítico de Sílvio Romero. Editora da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988. p. 124.
132
Este texto foi publicado originalmente em 1877. JOSÉ VERÍSSIMO. A literatura brazileira: Sua formação e destino. In:
Estudos Brazileiros: 1877-1885. Laemmert & Cia. São Paulo. Sem data. p. 2-3.
75

em seu estudo da ampliação da imprensa no século XIX europeu133, mas em completa


contradição com o verdadeiro público literário no período, que era composto principalmente
por setores das boas sociedades de algumas capitais das províncias.
A segunda assimetria identificada por José Veríssimo, entre a crítica científica e
aquela mais recorrente nos jornais até então, nos permite compreender como a objetividade
evolucionista repercute na relação entre os intelectuais. É com estes que se dá a disputa, e,
tendo em vista a predominância, naquele instante, de formas retóricas que reviviam o
ambiente de corte, é contra estes traços cortesãos que os críticos da geração de 1870
desembainharão suas armas. A superioridade com que se punham em relação aos outros
intelectuais já significa, por si mesma, uma afronta à sociabilidade, afronta legitimada pela
própria teoria ao justificar a competição como um procedimento desejável ao universo
intelectual. Portanto, a disputa não se trava apenas entre grupos para definir quem porta a
competência para a análise literária, a disputa se dá efetivamente entre modelos intelectuais e
retóricos distintos. São “formas de vida” específicas, o que fez com que a geração de 1870 se
ativesse preferencialmente a combater os principais alicerces da forma de vida literária
associada à sociabilidade cortesã. É nesse contexto que a polidez e o tato são observados
como entraves a serem combatidos, e que dificultam a evolução do pensamento, tendo em
vista que a “verdade” só advém do embate. E, neste sentido, a cortesia da sociabilidade, que
significa certa simulação da igualdade, ou até mesmo da subjugação de si diante do
interlocutor, portanto, que defendem a humildade como retórica, foi tratada como exagero
elogioso, e, principalmente, como uma hipocrisia governada pelo interesse de ascensão. É
nesse sentido que podemos compreender o famoso jargão de Sílvio Romero, o “elogio para
inglês ver”134, que afirmava ser de bom tom agradar alguns medalhões e atacar outros, com o
intuito de obter reconhecimento pelas “panelinhas”135. Machado é, segundo Sylvio, um

_______________________________________________
133
HABERMAS, J. Mudança estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa.
Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1984.
134
SÍLVIO ROMERO. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira. Editora UNICAMP, Campinas, 1992.
p. 56.
135
Este tipo de crítica ao ambiente intelectual é um dos traços marcantes de Sylvio, e, antes mesmo do livro sobre Machado
de Assis, ele já havia se expressado mais ou menos da mesma forma em seu já citado livro de poesias, em uma longa nota
que expressa seu ressentimento por suas poesias terem sido tão mal recepcionadas. E vale a pena reproduzir este trecho:
“Não se faz mistér grande despeza de considerações para provar o estado lastimavel de insciencia de alguns lettrados,
aliás de nomeada, no Brazil. O jornalismo e as conferencias ahi estão para attesta-lo a qualquer espirito algum pouco
intelligente e imparcial. – Ahi andam as commanditas de elogio mutuo, com sua sede principal no Rio de Janeiro, sempre
76

desses medalhões, a quem é de bom tom elogiar, e levanta suspeitas a grande parte desses
elogios, acusando seus admiradores de, às escondidas, difamar o nome de Machado. Esse
traço marcante da sociabilidade cortesã, de ponderar a fala e valorizar floreios e expressões
que sempre enaltece o interlocutor, e dissimula o juízo mais contundente ao ponto de um
leitor desatento não perceber as ponderações mais consistentes, é descrito como hipocrisia, e
é tratado por Sylvio como uma constatação da ausência de honestidade intelectual.

2.2 Sinceridade e autenticidade

Sylvio alude constantemente a sinceridade de seu juízo, e pretendeu colocar Machado


no “verdadeiro” lugar que deve ocupar no cenário literário brasileiro, que, apesar de ser
abaixo do que a crítica nacional supõe, é justo, e o dignifica por provir da sinceridade.
Estamos diante a mesma suspeita com que as máscaras são questionadas no final do século
XIX pela crítica inglesa, e que julgava com severidade qualquer postura ambígua que não
fizesse jus à sinceridade característica do Reino Unido segundo estes críticos136. Esta
sinceridade toma feições distintas daquela usual na corte, baseada no desempenho de papéis,
e passa a ser caracterizada por sua busca incessante de uma forma específica de
autenticidade. Agir de forma contrária aos impulsos passa a ser identificado como hipocrisia
e cálculo de ascensão, como se utilizasse de maneira pragmática as relações para obter maior
rendimento para si. Como pode ser percebido, toda mudança retórica desejada por parte dessa
geração de 1870 parece se encaminhar para uma percepção de subjetividade que molda a si
mesma, de dentro para fora, e que enxerga as relações sociais como um meio de efetivação de
sua visão de mundo, e re-instaura, com isso, a tensão incessante entre indivíduo e sociedade.
O artista autêntico expressa a si mesmo, sem restrições movidas por desejo de agradar,
reserva ou polidez, e trata ainda a modéstia com desconfiança, como espécie de afetação ou,
pior ainda, uma falsidade com objetivos de obter por meios escusos e desonestos um status ao
qual não merece. Assim, a crítica a Machado é definida por Sylvio como um ato de justiça,
não somente às letras, ou à Tobias Barreto a quem durante todo seu ensaio tenta colocar

prestes a tomar o thuribulo logo que se trata de qualquer frioleira por alguns associados lançada á circulação”. In:
SYLVIO ROMERO. Cantos do fim do século. Typografia Fluminense, Rio de Janeiro, 1878, p. 235. Uma nota com
certeza escrita para a publicação em livro, portanto posterior a publicação em jornal das poesias.
136
TRILLING, Lionel. Sincerity and authenticity. Oxford University Press, London, 1974, p. 103.
77

acima do primeiro presidente da academia brasileira. Sua justiça impetuosa é voltada para
agraciar Machado, como se a postura honesta e autêntica fosse a mais elevada forma de
virtude que poderia se esperar de um crítico.
A honestidade considerada como a maior virtude possível a um intelectual significa,
paradoxalmente, uma exposição de si, tal como é, e, por isso mesmo, com todos os defeitos
que possui, como se chamasse atenção para sua condição de homem decaído e marcado pelas
vicissitudes137. Assim, suas falhas eventuais, não são motivo de vergonha e sim de coragem
pela auto-exposição, e uma possibilidade honesta de superá-las. Esse aspecto torna-se ainda
mais paradoxal quando contrastado com o alto padrão intelectual com que se julgam e
justificam sua superioridade. No entanto, é um paradoxo apenas aparente, pois, como vimos,
a modéstia é encarada como uma falta de honestidade, como uma forma de auto-sacrifício
que não esconde, para eles, a falsidade retórica. Falta de honestidade que não cometem
consigo, e nem com os artistas a serem analisados. Deste modo, aquele sistema crítico que
aconselhava a moderação aos jovens estreantes nas letras, tanto para coibir o esmorecimento,
o excesso de auto-julgamento que pode implicar em insegurança, como, de outro lado, a
elevação exagerada de auto-estima ao ponto de tratar-se como um gênio pronto e que não
precisa de amadurecimento, esse sistema crítico é substituído, aqui, por outro, amparado nas
teorias evolucionistas modernas da crítica e, ainda, nesta perspectiva naturalista a respeito da
arte e do intelectual, como um ser que deve expressar suas vicissitudes, encaradas como uma
honestidade, cujos excessos não são apenas desejáveis, mas a única possibilidade de
expressão artística, tendo em vista que a moderação é encarada como uma máscara, uma
falsidade. No mesmo sentido com que expõem suas vicissitudes, o principal intuito desta
retórica é indicar ao público as corrupções morais inscritas na própria sociedade138, tratando a

_______________________________________________
137
Trilling aborda essa correlação entre a autenticidade e a noção do pecado ao afirmar que a autenticidade é uma
possibilidade de “satisfy our modern demand for reminders our fallen state [...]”. Esta busca pela consciência do pecado
estaria na base mesmo da própria definição de autenticidade, e, ainda, da própria modernidade. Idem, p. 98.
138
A arte imbuída de autenticidade, assim, se compromete em tratar temas tabus da sociedade, forçando o público a
confrontar-se com as próprias vicissitudes, e, segundo seu ponto de vista, permitindo que este esclarecimento signifique
um primeiro passo para superá-las. “The authentic work of art instructs us in our inauthenticity and adjures us to overcome
it.” TRILLING, Lionel. Sincerity and authenticity. Oxford University Press, London, 1974. p. 93. A relação entre a
narrativa histórica e a autenticidade, compreendida como um princípio pedagógico, é ainda mais evidente neste outro
trecho do mesmo autor: “Narrative history, by its representation of necessity and vicissitude, served to keep man
sufficiently weighty, made it still possible for feet to know that the solid earth was under them, that there was required and
right course for them to follow”. Idem, p. 128.
78

sociedade como um ambiente decaído, e, portanto, que deve ter seus defeitos e carências
ressaltados para que vislumbre, de fato, uma possibilidade de transformação.
Se compararmos o tom desses jovens intelectuais que apenas estréiam na carreira
crítica - que permanecem em alguma medida em Araripe Junior e, como vimos, parece se
intensificar em Sílvio Romero - com aquele suscitado no início do capítulo, percebe-se,
facilmente, a grande diferença. A retórica deste não é uma conversa, pois não admite réplica,
e se faz em tom contundente, de quem afirma, baseado fortemente na oratória, utilizando
imagens fortes no discurso e com pretensões apoteóticas e grandiloqüentes139. Também,
percebe-se que já não se trata de um crítico que se põe humildemente diante o interlocutor,
como se pedisse desculpas pelo juízo ou por qualquer pequeno reparo, pois Sílvio Romero,
José Veríssimo na juventude e Araripe Junior parecem amparar suas afirmações contundentes
em um critério que não suprime a possibilidade do erro em decorrência do aumento da
“temperatura” de suas análises, pela verve, e, cujo sacrifício de si mesmo diante da
sociabilidade lhes pareceriam um sinal de fraqueza e desonra. Aliás, a própria arte associada
aos compromissos da retórica da sociabilidade cortesã são utilizadas de forma pejorativa. Ao
tratar a poesia de Machado, Sylvio destaca que ele é “um doce poeta de salão, pacato e
meigo, se quiserem; porém mudo ou completamente gago para servir de companheiro a
qualquer coração dorido, a qualquer alma sedenta de emoção e verdade”140. Ser um “doce
poeta de salão” ou “meigo”, são associadas a uma dupla fraqueza do ponto de vista desta
retórica científica, falta de emoção, ao mesmo tempo que um certo caráter efeminado, de
fragilidade. O desejo de agradar ao interlocutor, uma das exigências feitas aos escritores pela
crítica do início da carreira de Machado, é associado à ausência de emoção e verdade, dotes
restritos à atitude sincera e franca, que expõe a si mesmo, independente de agradar ou não o
público.
Ainda segundo esta perspectiva, a escrita combativa deve ser dotada de seriedade, no
sentido da elevação da densidade, que pode até ser irônica desde que sem sutiliza alguma,

_______________________________________________
139
Haroldo Campos trata ironicamente esse modelo retórico baseado na oratória, tratando-o como uma retórica rica, que
exagera da “abundância” e “colorido” da frase, em forte contraste como o estilo de Machado, caracterizado por certa
“magreza estética”, composto de “lacunas e reiterações, de elipse e redundância, de baixa temperatura vocabular e alta
temperatura informacional estética”. CAMPOS, Haroldo de. Arte pobre, tempo de pobreza, poesia menos. In. SCHWRZ,
Roberto (org). Os pobres na literatura brasileira. Editora brasiliense, São Paulo, 1983. p. 182.
140
SÍLVIO ROMERO. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira. Editora UNICAMP, Campinas, 1992.
p. 82.
79

portanto, completamente contrária à ideia de dar mais leveza à frase com a vivacidade. E este
ponto é importante porque marca o grande contraste entre a retórica conciliatória da vida
literária cortesã e o tipo de interação baseado nas polêmicas. O discurso pode ser irônico, mas
precisa tratar seriamente seus temas, e transmitir rigor científico, e não raro com a simbólica
relação entre cansaço e seriedade, como se a densidade do pensamento pudesse ser expressa
por exageradas conexões de ideias e excesso de referências. E, por último, e derivada de todos
os contrastes anteriores, este modelo retórico da crítica desta geração não tem a pretensão de
medir a frase através de nenhum anteparo na polidez ou tato, pois, segundo ele, a verdade está
acima das conveniências. A busca pela verdade artística, empreendida pela crítica, passa pela
necessidade de dissipar a bruma que encobre as relações, estas conveniências sociais. Pois,
acredita-se, somente assim é possível descrever o mundo tal qual ele é, sem desvios, como se
o triunfo da honestidade representasse, por si mesmo, a evolução do pensamento e, por
conseguinte, da própria vida intelectual/artística e também da sociedade.
Deste modo, a fase inicial da institucionalização de espaços propriamente artísticos e
intelectuais, no Rio de Janeiro, em fim do século XIX, é marcada por essas tensões acerca do
perfil de intelectual e artista, e essa tensão se deflagra nos distintos tons retóricos utilizados
discursivamente. É fácil visualizar essa tensão a partir do tratamento que José Veríssimo
dispõe ao seu principal desafeto, já na sua fase de amadurecimento intelectual, ao mencionar
o discurso proferido por Sílvio Romero, na ABL, no momento da solenidade de recepção de
Euclides da Cunha, em 18 de dezembro de 1906. Para Veríssimo, o discurso acadêmico pode

[...] exprimir, e feito por tais homens tem exprimido, os mais alevantados, os mais livres, os
mais novos pensamentos. Tem, porém, a sua maneira, se quiserem, a sua retórica própria, que
é aliás apenas a de um salão de boa companhia. Neste todas as opiniões e ideias podem ser
aventadas e sustentadas, contanto que não ofendam susceptibilidades respeitáveis ou
veneráveis delicadezas de sentimento, e a linguagem e os gestos se acomodem ao ambiente
social. A própria existência de qualquer sociedade policiada supõe o sacrifício das expansões
demasiado pessoais, em proveito das vantagens que tira o homem da sociabilidade. Sob este
aspecto só é verdadeiramente livre o selvagem ou o grosseirão. A prolixidade somente já é
141
num salão ou numa Academia um documento de mau gosto e de má-criação .

_______________________________________________
141
Post scriptum, publicado em: Que é literatura? E outros escritos, de 1907. In: JOSÉ VERÍSSIMO. José Veríssimo:
teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa. EDUSP, São Paulo, 1977. p 141-
142.
80

É interessante verificar, no entanto, que o próprio José Veríssimo recorre à polêmica para
afirmar o caráter desagradável e hostil de tal forma de expressão/relação142, reforçando ainda
mais a tese da sua conversão. Seu processo de auto-modelagem, a intenção de fixar em
Machado de Assis um novo parâmetro de conduta, um exemplo ético e artístico a ser seguido,
contou, de início, com formas de auto-afirmação similares ao modelo que considerava
indesejável. Reforçando, assim, as nuances de sua intenção, da tentativa de se inspirar em um
modelo, que, em seu caso, era praticamente oposto à sua primeira formação intelectual. Mas,
para além da riqueza que este trecho possui em relação à compreensão da própria conversão
de José Veríssimo, e que trataremos de forma mais detida em seguida, quando será exposta a
retórica impressionista, este trecho nos confirma o tipo de tensão entre a retórica polêmica
baseada na franqueza e autenticidade com a “forma” sociável de convivência literária. É
muito explícita a busca pela correlação feita pelo “maduro” José Veríssimo entre a Academia
Brasileira e um “salão de boa companhia” com uma “retórica própria”, ou seja, em uma
ambição em demarcar esses ambientes através de uma “herança” da conduta sociável da vida
cortesã. A proposital negligência de Sylvio em se adequar a essas “regras” da boa
convivência, demonstra a fragilidade desta “herança” neste instante, e não deixa de ser
simbólico que tenha ocorrido justamente em solenidade na Academia Brasileira, e, que, após
este discurso polêmico de Sylvio, tenha se instituído que todos os discursos de recepção a um
novo imortal devam passar por uma censura prévia. A necessidade de estipular formalmente
uma lei desse teor significa a própria fragilidade do padrão de convivência baseado nesta
“herança” da sociabilidade cortesã.
A noção de aventura, descrita metaforicamente por Araripe Junior para explicar o
pendor de rebeldia, agora fica mais clara. A rebeldia está na oposição a todas as regras da
sociabilidade cortesã e aos seus princípios de boa convivência, impondo novas formas de
retórica e de imagem intelectual. Essa rebeldia é certamente uma propensão para o risco, que
visa redefinir o mundo a partir dos próprios pressupostos, e estipula o aumento da própria

_______________________________________________
142
A partir da década de 1894 se inicia uma relação de animosidade entre José Veríssimo e Sílvio Romero, cujas
conseqüências são uma série de artigos, cujo trecho destacado faz parte, onde se atacam e deslegitimam um ao outro como
crítico literário. Apesar das ofensas pessoais que o próprio José Veríssimo utiliza na contenda, o crítico paraense sempre se
arroga do argumento da deselegância de tal forma de discussão de “ideias”. Contudo, parece que José Veríssimo adota
definitivamente o “tédio a controvérsia”, de inspiração machadiana, ao deixar sem resposta o artigo de Sílvio Romero
“Zeverissimações ineptas da crítica”, de 1909. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas
literárias no Brasil 1870-1914. Companhia das Letras, São Paulo, 1991. p. 117
81

honra e dignidade a partir da desonra do oponente, ou daquele que se enxerga como


oponente. Assim, é compreensível, dentro do ponto de vista desses intelectuais estreantes na
carreira crítica, e embainhados das armas científicas, que estes encarassem Machado de Assis
como um oponente, que incorporava toda decadência romântica e, ao mesmo tempo, os ares
de afetação cortesã. Detratá-lo significava para estes intelectuais apontar a hipocrisia da
retórica cortesã, sob a defesa de um julgamento justo e sincero, ainda que sem pleno controle
do aumento da temperatura crítica, que fatalmente os conduziram aos excessos, que Araripe
Junior e José Veríssimo preferiram definir como arroubos juvenis.
82

3 O CRÍTICO IMPRESSIONISTA: LEITURA COMO EXPERIÊNCIA

As lettras tambem precisam de amnistia. A differença é que, para obtel-a, dispensam votação.
É acto proprio; um homem pega em si, mette-se no cantinho do gabinete, entre seus livros, e
elimina o resto. Não é egoismo, nem indifferença; muitos sabem em segredo o que lhes dóe
do mal politico; mas, enfim, não é seu officio cural-o.

Machado de Assis
Crônica de 29 de setembro de 1895

É necessário esclarecer, desde já, que não é possível falar em um “movimento”


impressionista brasileiro nesse período. Sendo assim, não devemos esperar da crítica literária
analisada uma busca por sistematização de pressupostos impressionistas, ou, ainda, que
possuíssem clareza em relação ao emprego dessa terminologia, tendo em vista que não se
pode afirmar, com toda a certeza, que esta crítica teve contato estreito com as manifestações
artísticas que ocorriam na pintura francesa. Não há nenhuma menção às novidades estéticas
trazidas por alguns pintores franceses, e nem ainda às polêmicas travadas por Zola a partir da
década de 1860 quando o escritor francês analisou e defendeu as pinturas de Manet, Monet e
Cézanne na segunda metade do século XIX143. No entanto, é possível constatar traços
impressionistas em parte das resenhas publicadas após a década de 1870, principalmente na
década seguinte, quando alguns críticos buscavam compreender as Memórias Póstumas de
Brás Cubas. Apesar de não se tratar de um movimento estético definido, podemos encontrar
em algumas resenhas a defesa da autonomia individual para julgar a obra, reduzindo assim a
importância de modelos críticos pré-estabelecidos, e dotando de maior ênfase a necessidade
de transparecer as sensações que a obra provoca. Portanto, o que aqui defino precariamente
por crítica impressionista, se relaciona com a importância agora concedida às sensações, uma
forma de recepção da obra que busca ressaltar a particularidade do julgamento e até mesmo
as contingências que permeiam esse julgamento. Esta mudança parcial na recepção da obra
de Machado de Assis tem pelo menos duas conseqüências que serão analisadas mais
pontualmente. Uma delas é o novo status conferido ao artista, percebido agora como um
“temperamento independente” que projeta sua própria percepção de mundo, e, a outra

_______________________________________________
143
ZOLA, Emile. A batalha do Impressionismo. Editora paz e Terra, Rio de Janeiro, 1989.
83

conseqüência é a redefinição do leitor e do próprio momento de leitura, compreendida como


uma experiência onde se estabelece um vínculo íntimo com a obra. Antes de iniciarmos a
exposição e análise dessas duas conseqüências, nos deteremos um pouco no contexto de
surgimento desses novos traços mais “íntimos” na análise literária.
Se a década de 1870, tal como miticamente demarcada por alguns intelectuais que
fizeram parte desta geração, significou a formalização de princípios metodológicos para a
crítica literária, o período que logo a sucede, principalmente na última década do século XIX,
parece dar margem a posicionamentos críticos marcados pela oposição à racionalização. Tal
como dito logo acima, isso significou, para alguns intelectuais, a primazia das sensações do
sujeito, e suas constantes variabilidades, em detrimento dos repertórios analíticos
cristalizados em modelos com pretensões sistêmicas. Aliás, a crítica com orientação científica
parece enxergar com maus olhos a flexibilização do método, e, até mesmo a contestação de
princípios científicos, como podemos ver nesse trecho de Araripe Junior:

Felizmente, porém, para os excentricos ahi vêm o simbolismo, o magismo, o egotismo, o


ipseismo, o neo-catholicismo, o tolstoismo, o ibsenismo, todas as nuanças, emfim, do
mysticismo moderno com os seus respectivos credos de destruição da carne e purificação da
idea; e si bem que as tendências dos reaccionarios, ultimamente postos em evidencia, apenas
se relacionem entre si por um vago anceio religioso, uma necessidade de volver ás formas
archaicas de todos os tempos e a um hieratismo literário quasi attingindo o fakirismo, é bem
provavel que dessa luta por novos ideaes comecem a surgir produtos capazes de rivalizar com
os primores dos mestres de todas as épocas, logo que os novos revolucionarios consigam
144
explicar os seus desaccordos com os progressos scientificos do seculo XIX.

A ironia é bastante evidente, pois o crítico trata essas novas estéticas como algo
aconselhável aos excêntricos, àqueles que não se dão por convencidos com os princípios
científicos, e os convida para que deixem mais claro estes novos ideais. A pluralidade com
que os nomeia também porta uma ironia, como se esses excêntricos fossem caracterizados
pela dispersão, incapacidade de dotar de coerência suas teorias, e recair em uma tendência ao
restabelecimento do “idealismo”, ou em termos mais usuais do período intelectual analisado,
a “metafísica”, cujo próprio conceito já vem carregado de concepções pejorativas para
aqueles formados sob o sentido das ciências positivas.145 Mas, apesar desse tom depreciativo
adotado por Araripe Junior, há um aspecto interessante de sua análise ao apontar a conexão

_______________________________________________
144
ARARIPE JÚNIOR. Machado de Assis. In: Revista Brasileira. Laemmert & C. Editores. Rio de Janeiro, 1895. p. 27.
145
José Veríssimo também menciona o ressurgimento da metafísica, demonstrando que o espírito positivo foi muito
apressado em decretar sua extinção. JOSÉ VERÍSSIMO. A Retórica de Nietzsche. In: JOSÉ VERÍSSIMO. Homens e
coisas estrangeiras: 1899-1908. Topbooks, Rio de Janeiro, 2003. p. 611-612.
84

desses novos modelos estéticos com um “vago anseio religioso”. O adjetivo “vago” não é um
simples acessório nesse contexto, pois reforça a dispersão dessas novas estéticas, e isso nos
leva a compreender o sentido específico com que Araripe Junior analisa o resgate da
“religião”. Se antes a ciência positiva, como os membros da geração de 1870 a definem,
decretou o fim da religião, substituindo o pensamento total do cristianismo por outro, baseado
em pressupostos racionalistas, essas novas perspectivas estéticas são marcadas pela
diversidade e ausência de sistema ou pretensão totalizante, e não possuem a capacidade de
fornecer uma visão ampla da vida. E nesse sentido elas estão mais distantes da abrangência
explicativa inerente à cosmologia cristã do que as correntes cientificistas. Portanto, o
ressurgimento de uma experiência religiosa no sentido cristão, não é recuperado em sua
totalidade, e, não se pode afirmar nem mesmo que se trate de um revigoramento religioso em
sentido estrito, e sim de uma forma individual de busca espiritual, que adquire um caráter
mais íntimo e recluso, baseado em uma espécie de esteticismo religioso. Portanto, a
recuperação de pressupostos idealistas ou religiosos, é percebida por Araripe como uma
recuperação fragmentada, quase como uma experiência individual, onde cada uma dessas
tendências parece recriar, à sua maneira, um sentido distinto de explicação das coisas, sem
comungar de princípios comuns capazes de produzir coesão ao “movimento”, ou seja, o
oposto daquilo que pretende a discussão científica, onde todas as discussões teóricas
precisam fazer constantes referências à métodos e teorias consagradas.
Esse revigoramento do espiritualismo parece ter se formado em oposição à pretensão
sistêmica e racionalista de definir a vida, que criava categorias rígidas para se compreender o
comportamento social, que acabavam por suprimir as experiências individuais. Com isso, o
revigoramento religioso desenvolvido por esses novos modelos estéticos não se deve
exclusivamente ao fato da ciência “decretar” o fim da religião. O “vago anseio religioso”
parece estar correlacionado ao fato de que juntamente com este “fim” da religião proclamado
pela ciência, decretou-se, também, a morte da alma, e é esta perda que parece dar fôlego ao
ressurgimento do espiritualismo moderno. Nesse sentido, a busca “vaga” pela religião se
refere mais a valorização da alma, da experiência individual, do que necessariamente a
necessidade de recuperação da cosmologia cristã ou de criação de uma religião moderna146.

_______________________________________________
146
É possível realizar uma leitura do texto “Ciência como Vocação” através da crítica que Weber tece a esta noção de
experiência e sua conexão com esse vago anseio religioso. Para ele, estas buscas íntimas por experiências não estão à altura
85

O que estou chamando aqui de impressionismo crítico, da busca pelo enaltecimento


das sensações na relação com a arte e sua conexão com o “vago anseio religioso” apontado
por Araripe Junior, pode ser melhor compreendido pela noção de experiência, que, aliás,
torna-se também um termo recorrente nas resenhas sobre Machado, e em um sentido distinto
da concepção de experiência científica. Para tornar mais nítido o conceito de experiência e o
contexto de seu aparecimento, nos valeremos da análise de Walter Benjamin sobre
Baudelaire, mais precisamente do trecho em que analisa o conceito de experiência como
definido por Bergson e a apropriação ficcional deste conceito na obra de Proust.
A maneira como Benjamin trata essa busca pela experiência no final do século XIX e
início do século XX, já parte de uma perspectiva contextual, ao tentar dar conta da “mudança
na estrutura da experiência do leitor”147 moderno. Este leitor moderno é o habitante dos
grandes centros, marcados pela dispersão, incapacidade de concentração, típico das cidades
que levaram ao máximo o processo de racionalização na vida cotidiana. Neste contexto, a
noção de experiência desenvolvida por filósofos como Bergson simbolizam uma busca por
outra forma de autoconhecimento, que dê ênfase às contingências particulares, em uma
procura por suprimir a distância entre sujeito e objeto. Segundo Benjamin, o caminho seguido
por Bergson para explicar a possibilidade da experiência na vida moderna seria a mémoire
pure e a durée, nova noção de tempo que superasse os pressupostos racionalistas e desse
ênfase à maneira particular com que o tempo se manifesta para o indivíduo. Proust, também
segundo Benjamin, teria apreendido essa noção de experiência em seu livro Em busca do
tempo perdido, e teria almejado demonstrá-la literariamente, com a diferença que a memória
capaz de produzir essa experiência não seria um ato de vontade, seria um dispositivo
involuntário acionado a partir do contato com algum objeto que, através de um choque,
permitisse ao indivíduo a possibilidade de reviver uma sensação do passado capaz de permitir
uma imagem plena de si mesmo, em correlação com as coisas e pessoas à sua volta. O que
nos interessa dessa leitura que Walter Benjamin realiza sobre a noção de experiência, e,
principalmente, a apreensão de Proust dela, é, efetivamente, a sua percepção de que este tipo
de experiência estaria cada vez mais subjugada a uma expressão puramente estética. Portanto,

dos desafios da vida moderna, marcado pelo politeísmo de valores e ausência de referências claras acerca das ações
individuais. Neste sentido, a transformação da experiência em um dos principais objetivos dos jovens intelectuais alemães,
é considerada como ausência de virilidade e uma fuga da vida pública. A busca por experiências contrasta totalmente com
as características exigidas pela vocação científica e sua implicação com o sacrifício individual e, principalmente, pela
abdicação em encontrar no conhecimento algum tipo de sentido para a vida, principalmente diante às exigências da vida
moderna inscrita na dimensão do progresso contínuo. WEBER, Max. Ciência como Vocação. In: Ciência e Política: duas
vocações. Cultrix, São Paulo, 2002.
147
BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin: Obras Esolhidas III. Charles Baudelaire:
um lírico no auge do capitalismo. Editora brasiliense, São Paulo, 1989, p. 104.
86

a possibilidade da experiência é de fato restrita a um âmbito de simulação, possível através da


arte, e, talvez, poderíamos acrescentar, que trata-se mais de um artifício retórico do que uma
real possibilidade para o indivíduo moderno, o leitor do final do século XIX e início do
século XX.
Esta outra ansiedade instaurada pela modernidade, de buscar uma forma de
experiência pura que reconcilie sujeito e objeto, tem um tratamento bastante específico pelos
literatos, e inclusive pela própria crítica. E, quem melhor ilustrou a busca por fazer da crítica
literária uma possibilidade de experiência, foi, novamente, Proust, através de seu ensaio sobre
a leitura148. Neste ensaio, Proust não está preocupado em demonstrar a experiência a partir da
criação literária, e sim através da condição de leitor e de sua relação com a obra. Proust
pretende, através da leitura, superar o estranhamento entre sujeito e objeto produzido pelo
excesso de racionalidade, o estranhamento tão bem ilustrado por Agamben ao analisar as
ilustrações de Grandville, e afirmar a partir delas que o homem moderno é marcado pela sua
“má consciência com relação aos objetos”149. A constante tirania do objeto, que impõe ao
homem a condição de seu uso, é ilustrada quase como uma figura demoníaca, em que este
objeto, travestido em mercadoria, se rebela e ganha uma autonomia e dinâmica própria. Esta
dinâmica é a própria conduta racional, que visa estabelecer o vínculo entre o homem e as
coisas, através de uma noção de utilidade. A sobreposição da racionalidade na relação com as
coisas imprime no homem moderno uma constante exigência de recalcamento da
sensibilidade, e, portanto, um impedimento para a emergência da experiência, da valorização
da relação particular entre o indivíduo e o mundo a sua volta. Para que esta discussão se torne
mais clara, abordaremos o ensaio de Proust, com a finalidade de identificar como ele
correlaciona a experiência com a leitura. A partir disso será possível analisar as semelhanças
deste ensaio com algumas inovações estéticas presentes, de forma fragmentária, em certos
textos críticos sobre Machado.
A busca por recriar a si mesmo através do restabelecimento de uma relação autêntica
entre leitor e obra foi algo muito usual no final do século XIX, e outros ensaios de crítica
literária, principalmente aquelas desenvolvidas por escritores, ilustram bem isso. Henry

_______________________________________________
148
PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Editora Pontes, Campinas, 2003.
149
AGAMBEN, G. Estâncias: A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2007. p. 81.
87

James inicia a análise de sua obra de Flaubert150, buscando, inicialmente, resgatar o instante
em que começou seu contato com a obra Madame Bovary, quando lia as publicações nos
jornais. Esse resgate do momento da leitura conta, ainda, com a descrição do escritório de seu
pai, onde tinha acesso aos jornais, e a aparente banalidade desta descrição porta, na verdade,
uma tentativa de dotar a literatura de uma perspectiva mais ampla, como parte efetiva da vida
e que só pode ser compreendida quando o próprio leitor percebe-se como parte do processo
de constituição do sentido literário. Deste modo, o instante, tudo aquilo que envolve a leitura,
como o escritório do pai de Henry James e a constelação de significados afetivos que isso
envolve, faz parte desta experiência literária. Para que o leitor possua uma experiência
através da literatura, é necessário trazer para a sensibilidade tudo aquilo que envolve a leitura,
e assim resgatar aspectos significativos deste instante, que acabam por ser suprimidos.
Proust faz uma extensa descrição desses instantes de leitura, e com isso, nos dá uma
ampla imagem de como decorreu todo sua relação com os livros durante sua infância, de
forma similar à descrição de Henry James. A leitura, nestes escritores, é convertida em um
momento de intimidade, de reclusão, onde, aparentemente, o leitor é retirado do convívio
social, voltando-se intensamente para a relação com o texto. Um dos pontos que Proust mais
se atém é justamente a descrição da leitura como um momento de intimidade do leitor
consigo mesmo, o contrário de Ruskin151, que compreendia este instante como um diálogo
que o leitor pode estabelecer com homens sábios, que enxerga, portanto, a literatura como
uma forma de conversação. Vejamos o que Proust menciona a este respeito:

Procurei mostrar nas notas que se seguem a este volume que a leitura não poderia ser
assimilada a uma conversação, mesmo com o mais sábio dos homens; que a diferença
essencial entre um livro e um amigo, não é a sua maior ou menor sabedoria, mas a maneira
pela qual a gente se comunica com eles, a leitura, ao contrário da conversação, consistindo
para cada um de nós em receber a comunicação de um outro pensamento, mas permanecendo
sozinho, isto é, continuando a desfrutar do poder intelectual que se tem na solidão e que a
conversação dissipa imediatamente, continuando a poder ser inspirado, a permanecer em
152
pleno trabalho fecundo do espírito sobre si mesmo.

_______________________________________________
150
HENRY JAMES. Gustave Flaubert. Sete Letras, Rio de Janeiro, 2000.
151
O ensaio de Proust foi escrito originalmente em 1905, como prefácio à Sésame et les Lys de John Ruskin, livro também
traduzido por ele. PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Editora Pontes, Campinas, 2003.
152
Idem, p. 27.
88

O isolamento é, para este tipo de experiência literária, uma condição, e, restabelecer o


vínculo entre autor e leitor através da leitura é a única possibilidade de acessar aquilo que
Proust chama de “ato psicológico original”153. Compreender a leitura como um ato
psicológico é de fato uma forma muito distinta da maneira pela qual a sociabilidade cortesã a
encarava, pois percebia a literatura como uma conversa entre autor e leitor, onde o crítico
apenas se limita a indicar ao autor e leitor os caminhos para tornar sua obra mais viva e
animada, sem perder a dimensão moral discutida. Portanto, o ato de leitura mesmo, em si, não
era considerado, tendo em vista que se dissimulava o isolamento com estímulos para que a
leitura se convertesse em temas para animar as conversas nos salões. A compreensão da
leitura como um ato psicológico se encaminha para uma acepção da conversa e da
sociabilidade como elementos indesejáveis à leitura, que ao invés de potencializar a “vida do
espírito”, tende, nesta definição, justamente a tolhê-la, assim como podemos ver nessa
passagem do mesmo ensaio de Proust:

Como não somos, nós os vivos, senão mortos que ainda não entraram nas suas funções, toda
essa polidez, todas essas saudações no vestíbulo que chamamos deferência, gratidão,
154
devotamento e onde misturamos tantas mentiras, são estéreis e fatigantes.

A vida social, principalmente aquela ocorrida nos salões, é compreendida como algo
estéril, justamente por não ser mais capaz de cumprir com seu papel enquanto sociabilidade,
e, desta maneira, todo o padrão de comportamento cortesão, que visava justamente a
possibilidade de uma interação desinteressada e capaz de proporcionar a liberdade em sua
dimensão lúdica, parece se transformar em um padrão objetivo, com o predomínio do cálculo
das maneiras, como uma forma de prisão para o espírito. Na verdade, a grande transformação
operada nessa forma de compreender a leitura está relacionada a própria transformação do
que se entende por “vida do espírito”, como algo localizado nas “regiões mais profundas de
si mesmo”155.
Ao contrário do que possa parecer, a leitura não é percebida como uma forma de
isolamento completo do indivíduo, pois, assim como Proust demonstra a necessidade de

_______________________________________________
153
Idem, p. 25.
154
idem, p. 42.
155
Idem, p. 33.
89

resgatar os afetos intermediários entre o indivíduo e o mundo através do momento da leitura -


tal qual Henry James no escritório de seu pai -, do mesmo modo, pode-se falar que há um
contato entre autor e leitor. Apesar de refutar a tese de Ruskin, em tratar a leitura como uma
conversação, Proust não rejeita a dimensão do contato entre leitor e autor. Mas, qualifica essa
interação, concebendo-a a partir da percepção da leitura como um diálogo entre amigos, o
mais puro diálogo possível. Tal diálogo é remetido ao plano interno do leitor, que, despido de
todas as conveniências sociais, inclusive àquelas que se estabelece com um amigo real - pois
para Proust nem mesmo assim supera-se as dimensões do interesse e da vaidade – pode
acessar essas zonas profundas de si mesmo. Mais do que isso, a leitura viabiliza a
intensificação do contato com outro espírito, tendo em vista que torna possível a fusão entre o
eu e uma alma alheia.
Este poder da literatura é recomendado inclusive para os melancólicos, que, cada vez
mais distanciados da vida e, principalmente, do mundo objetivo e das coisas, não se
encontrariam pré-dispostos a restabelecer esses vínculos por si mesmos, padecendo de uma
doença da vontade. Deste modo, a leitura e sua peculiar forma de contato do indivíduo com o
outro, pode favorecer o restabelecimento destes vínculos devido ao fato de que a “atmosfera
dessa amizade pura é o silêncio, mais puro que a palavra”156. O silêncio aqui ilustra a
supressão das formalidades retóricas estabelecidas pelos diálogos sociais, onde, na acepção
de Proust, estão condenados a padecerem com a ausência de sinceridade. A “cura” do espírito
melancólico é possível porque não é necessário sair da solidão para receber os estímulos de
outro espírito, que pode intervir no leitor atormentado, nesta atmosfera de silêncio, somente
possível com a leitura, agora literalmente definida como o “limiar da vida do espírito”157.
Trata-se de uma forma de diálogo, via literatura, que rejeita completamente a
objetividade, e estabelece a “intimidade” instaurada neste ato como o espaço adequado para a
superação da ambivalência entre sujeito e objeto, diante da constatação da inexistência de
outros mecanismos possíveis. Parece que somente através da supressão da percepção objetiva
e consciente do mundo e com a intensificação da sensibilidade, entendida como uma postura
honesta diante si mesmo viabilizada pelo diálogo interno com outro espírito, é possível
restabelecer esse vínculo, e com isso, tornar possível a experiência.

_______________________________________________
156
Idem, p. 43.
157
Idem, p. 32.
90

O principal aspecto para se converter a leitura em uma experiência, desdobrada a


partir do que tratamos até aqui, é a forma como a leitura desencadeia uma postura ativa do
leitor a medida que ele estabelece esse vínculo/diálogo com o autor. A possibilidade de
povoar essas “regiões mais profundas de si mesmo”, de dotar de vida o espírito que
permanece inativo e recalcado, somente é possível, para Proust, através do efeito benéfico da
“aspiração” que a leitura suscita. Somente a condição de formular o “desejo”158 permite ao
espírito superar a imobilidade causada pela vida social e seus formalismos, e, assim,
combater a melancolia159. Deste modo, a imaginação suscitada pela literatura, restabelece o
vínculo do leitor com o mundo, conduzido por este guia silencioso que é o autor, uma das
únicas possibilidades de contato entre este espírito atrofiado da modernidade com outro
espírito. Somente através dessa formulação do desejo, através da imaginação, é possível que
este espírito atrofiado, ganhe vida e crie para si mesmo a “verdade da leitura”, que, para
Proust, é uma criação individual do espírito.160
Temos condições, a partir de agora, de compreender o significado desta reformulação
do papel da literatura, fundamentada, primeiramente, na transformação da própria leitura.
Não podemos esquecer, no entanto, que a teoria da leitura desenvolvida por Proust reflete um
estado do “espírito” do homem moderno, para permanecermos com sua terminologia. Assim,
o escritor francês expressa uma forma literária de lidar com a vida, na busca pela experiência,
e que se torna usual entre parte dos intelectuais e literatos no fim do século XIX, como
veremos posteriormente na análise de algumas resenhas sobre Machado publicadas após as
Memórias Póstumas de Brás Cubas. A partir dessa ressalva, podemos supor que há uma
diferença entre esta postura estética frente à relação da arte com a vida e aquela outra forma
estética baseada nos pressupostos científicos defendidos pelos partidários da escola de Recife.
A autenticidade científica, voltada para a expressão sincera de suas opiniões, encontra aqui
uma reformulação, pois esta percepção da leitura como uma atividade íntima do espírito
recria a busca por autenticidade com traços bem distintos. Ambas as formas de autenticidade
buscam a superação do modelo de convívio social circunscrito por regras muito rígidas, mas,

_______________________________________________
158
Idem, p. 30.
159
Idem, p. 33.
160
Idem, p. 38
91

enquanto a autenticidade científica desenvolvida pela geração de 1870 baseava-se na


polêmica como o caminho para a efetivação da personalidade, aqui, temos um modelo
pautado na reclusão, e que lida com o ambiente social com certa indiferença, sem nenhuma
pretensão de realizar a plenitude da personalidade através da transformação do meio externo.
Pelo contrário, a reclusão e a separação dos formalismos da vida pública é a única
possibilidade do cultivo do espírito.
O mesmo fenômeno social que provocou essa instrumentalização da arte como
atuação pública teve um efeito contrário para parte dos intelectuais. Isso que, de forma
rudimentar denominamos por retórica impressionista abrange uma série de perspectivas
estéticas que partiam de novas formas de vínculo entre arte e vida social, desde o recorrente
discurso da arte pela arte, até uma estetização de certos aspectos banais da vida tratados como
obras de arte, nos mais variados níveis. Essas formas múltiplas de estabelecer conexões com
a vida distanciam-se do modelo de intelectual engajado em causas públicas, e costumam, até
mesmo, idealizar o isolamento, por uma busca de reconstituir a ligação entre sujeito e objeto
através de si mesmo, em forte oposição às perspectivas racionalistas. Alguns parecem
justificar esse novo modelo de conduta intelectual, de afastamento da vida pública, devido a
desilusões relacionadas ao processo político, como parece ser o caso de José Veríssimo e
Joaquim Nabuco em suas fases mais maduras, outros por uma espécie de necessidade nessa
“fuga” peculiar da vida. Independente da motivação individual que levou a esse isolamento
que ocorre principalmente na última década do século XIX, surgem algumas oposições,
tímidas é verdade, à racionalização científica, tal como pode ser percebido na descrição
irônica de Araripe Junior transcrita mais acima.
Deste modo, é necessário qualificar, em primeiro lugar, como ocorreu no Brasil, no
fim do século XIX, a defesa de uma postura artística e intelectual que se baseia neste
distanciamento da vida pública, para, depois, conseguirmos compreender como este
distanciamento permitiu o desenvolvimento, mesmo que incompleto, de um olhar
impressionista da obra de Machado de Assis. Para isso, seguiremos um pouco a descrição do
segundo momento da trajetória biográfica do crítico literário que realizou o posicionamento
mais emblemático em relação à participação do intelectual na vida pública, e que, relativizou
os postulados críticos desenvolvidos pela geração de 1870 ao tratar especificamente da obra
92

de Machado de Assis após a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas,


desenvolvendo uma linguagem que estava sob a influência da crítica impressionista
francesa161: José Veríssimo. A descrição desta nova etapa do pensamento de José Veríssimo é
interessante para pensarmos a redefinição do papel do intelectual e artista frente à realidade
social, e suas conseqüências no estabelecimento de uma leitura mais impressionista, e
permite-nos insinuar, de maneira mais ampla, como outros críticos de Machado passaram por
transformação similar durante aquele período.

3.1 José Veríssimo e o impressionismo

A partir de 1891, com sua ida definitiva para o Rio de Janeiro, percebem-se algumas
mudanças na maneira pela qual José Veríssimo define a atividade crítica, e, principalmente,
como enxergava a ficção de Machado. E esta transformação ocorre simultaneamente à
aproximação entre o José Veríssimo e o romancista, pois, como o próprio crítico revela em
artigo de jornal um mês após a morte de Machado162, ele lembra que ao chegar no Rio de
Janeiro foi imediatamente procurar a Machado de Assis, motivado por admiração de longa
data. E antes mesmo desse encontro eles já haviam trocado correspondência em 1883, cuja
iniciativa foi do próprio Veríssimo, que convidava o ilustre fluminense para ser colaborador
de sua recém fundada Revista Amazônica, e lamentava o pequeno público que dispunha163.
Essa postura de José Veríssimo demonstra que, possivelmente, algumas alterações do seu
julgamento de Machado de Assis ocorreram antes mesmo de sua mudança para o Rio, pois, é
válido lembrar que no ano em que os dois trocam cartas, Machado já era o autor consagrado
das Memórias Póstumas, livro que teve uma boa receptividade crítica164 e considerado um dos

_______________________________________________
161
BARBOSA, João Alexandre. A tradição do Impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo.
Editora ática, São Paulo, 1974. p 136.
162
Artigo publicado no Jornal do Comercio em 29 de outubro de 1908. In: MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e obra
de Machado de Assis. Vol 3, Maturidade. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981. p. 178.
163
Machado de Assis. Correspondência. W. M. Jackson, INC. Editores. São Paulo, s.d. p.p. 141-143.
164
Sobre a receptividade do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas ver: MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e obra
de Machado de Assis. Vol 3, Maturidade. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981. p 1-19.
93

símbolos do pessimismo em literatura no Brasil. É como se antes mesmo de sua ida para o
Rio de Janeiro o futuro crítico se visse diante um impasse, entre a crítica naturalista e, de
outro lado, uma tendência ao pessimismo165, semelhante ao de Machado, com quem já
manifestava intenção de aproximação. Segundo Barbosa, citando Otto Maria Carpeaux, a
aproximação entre eles se dava devido a certa afinidade baseada em “um realismo pessimista
de quem tinha a consciência das fraquezas humanas”166. Afora o problema de considerar
Machado de Assis um autor situado na escola realista, há de fato uma aproximação de visão
de mundo entre os dois, pois José Veríssimo, já em sua juventude manifestava certo pendor
para um diagnóstico do Brasil não tão promissor, em contradição com sua postura teórica
combativa. De todo modo, a mudança a respeito de Machado de Assis se concretiza em um
artigo de jornal167, em 1892, ao resenhar o livro Quincas Borba. Neste artigo já não há
nenhum resquício do seu texto da juventude, tratando Machado de Assis com deferência e
reavaliando completamente seu parecer do primeiro texto, até mesmo mencionando o livro
Ressurreição onde Machado manifestaria ser um “romancista observador”. O mais
significativo desse artigo, no entanto, é a mudança de seu critério de análise da obra de
Machado de Assis, demonstrando uma transformação íntima a respeito da própria percepção
da literatura e da crítica. Esse é o famoso ensaio em que José Veríssimo afirma não ser
possível abordar a obra de Machado através do critério nacionalístico, se reportando
diretamente a Sílvio Romero como um dos que injustamente desmereciam o escritor
fluminense por não enxergar nele a temática realmente brasileira e nem de contribuir para

_______________________________________________
165
José Veríssimo desde seu primeiro ensaio crítico, A Literatura Brasileira: sua formação e destino, já manifestava um
pendor para o pessimismo ao desculpar em parte a ausência de uma literatura mais ousada no Brasil devido a ausência
correlata de um público de leitores. Como se a baixa qualidade da literatura produzida se devesse a uma tentativa dos
literatos em tornarem-se acessíveis ao leitor de pequena erudição. Esse tipo de postura põe um impasse para a
transformação do país, que viveria “o espetáculo de um país novo com os vícios das sociedades decadentes”. In:
BARBOSA, João Alexandre. A tradição do Impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo.
Editora ática, São Paulo, 1974. p 34.
166
CARPEAUX, Otto Maria. José Veríssimo – crítico da nacionalidade. Artigo no Correio Paulistano. 14 de dezembro de
1949. Ibid. BARBOSA, João Alexandre. A tradição do Impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José
Veríssimo. Editora ática, São Paulo, 1974. p 56.
167
Às Segundas Feiras: um novo livro do Sr. Machado de Assis. Jornal do Brasil, 11 de janeiro de 1892. Posteriormente este
artigo seria reeditado em seu livro Estudos Brasileiros, 2º série, publicado em 1894 com o título de Machado de Assis –
Quincas Borba. Ibid: MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis. Vol 3, Maturidade. Editora
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981. p. 192.
94

[...] a determinação do caráter nacional, ou, em outros termos, qual a medida do seu concurso
na formação de uma literatura, que por uma porção de caracteres diferenciais se pudesse
168
chamar conscientemente brasileira .

Essa exceção com que José Veríssimo caracteriza a obra de Machado de Assis não
significa apenas uma concessão de valor ao autor de Quincas Borba diante o método
naturalista de crítica, e sim a própria contestação desse método para a abordagem da sua obra,
e, talvez, também como fundamento efetivo de crítica. Parece que José Veríssimo começa a
rejeitar em parte todo método que defina de forma muito estrita o que é a arte, chegando a
afirmar que cada vez menos acredita na eficácia das escolas e menos ainda no “emprego
sistemático de fórmulas críticas”169. Ou seja, sua releitura de Machado de Assis é parte de um
processo de relativização dos condicionamentos da verdadeira obra artística, questionando até
que ponto esses determinismos são suficientes para apreender esta forma superior de arte170.
Para chegar a isso José Veríssimo ataca em duas direções, a primeira visa diminuir a
importância da escola literária, afirmando a necessidade de maior liberdade de imaginação
estética aos escritores, e a segunda se volta para a própria crítica, apontando as restrições dos
fundamentos de análise das teorias críticas ao indicar que certas fórmulas prejudicam o
entendimento efetivo da obra de arte imortal. Esses dois pontos da crítica de José Veríssimo
conduzem ao mesmo lugar, a tentativa de justificar o caráter individualizado do grande artista,
tratando-o como um indivíduo complexo que de certa forma se descola do meio ao qual está
imerso e produz algo novo e digno de fazer parte da “eterna beleza da obra literária”171. Por
isso O crítico paraense defende que Machado não pode ser categorizado, e que ocupa um
lugar “especial” na literatura brasileira, como se sua obra não pudesse ser racionalmente
compreendida e delimitada estritamente por características de alguma escola literária.

_______________________________________________
168
Ibid idem, p. 193
169
Sílvio reproduz um grande trecho desse ensaio em seu livro sobre Machado de Assis de 1897, para depois rebater a crítica
de José Veríssimo afirmando que querendo ou não Machado deve ser visualizado pelo método nacionalístico, pois
qualquer escritor brasileiro manifesta, de alguma forma, a índole nacional, e o autor de Falenas não sairia à lei comum, “e
ai dele, se saísse. Não teria valor.” ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira.
Editora UNICAMP, Campinas, 1992. p. p. 65-66.
170
O crítico chega a essas concepções críticas em outro ensaio intitulado O Naturalismo na Literatura Brasileira, texto
publicado em 1894 no mesmo Estudos Brasileiros, 2º série. Portanto, é praticamente simultâneo ao texto sobre Machado
de Assis mencionado anteriormente e está de acordo com os mesmos pontos de renovação do seu pensamento. In: JOSÉ
VERÍSSIMO. José Veríssimo: teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa.
EDUSP, São Paulo, 1977. p. 204
171
Idem. p. 204.
95

E a razão é que a do Sr. Machado de Assis é a obra eminentemente pessoal de um escriptor


que pelo seu genero de vida, pelas próprias circumstancias da vida a que acima alludi, e talvez
por condições especiaes de temperamento e de caracter, ficou alheio ao conjuncto de factos de
toda ordem que eu chamaria a Vida brazileira.
[...]
Veria acaso superficialmente quem não visse, porém, que nem tudo foi nisso perda para o
escriptor e que a sua obra ganhou por isso mesmo em distincção, no sentido exacto desta
palavra, e, talvez, em profundeza. O Sr. Machado de Assis não é simplesmente um escriptor, é
tambem um escriptor á parte. Na litteratura brazileira elle póde não occupar o primeiro lugar,
ou sequer um dos primeiros lugares, mas, se não me engano redondamente, occupará um
lugar especial.
Não pertencendo a escolas, elle não poderá ser classificado consoante á esthetica de cada uma
dellas. Escrevendo ao sabor da sua inspiração e do seu talento, sómente o modo porque
172
executou a sua obra lhe será levado em conta no juízo final da nossa historia litteraria.

Como podemos observar, Machado é definido por José Veríssimo como um autor que
viveu deslocado da vida nacional, voltado unicamente para si mesmo, e cuja obra reflete esse
isolamento. O valor de sua obra, assim, não pode ser compreendido a partir de esquemas
amplos de análise ou por uma hierarquia que definisse o lugar que Machado ocupa em
comparação com outros escritores, essa compreensão somente é possível com o diálogo do
crítico com a personalidade do autor, um contato mais intimo com sua obra, que ressalte os
aspectos qualitativos de Machado de Assis.
Desta forma, essa revisão crítica efetuada por José Veríssimo tem por objetivo inicial,
redimensionar a relação entre as escolas literárias e o escritor, e apesar do caráter de
generalidade da questão que desejava, era evidente que seu foco era o movimento literário
naturalista. Para José Veríssimo as escolas concorrem pela supremacia estética, lutando entre
elas pela definição de quais postulados teóricos representam efetivamente o valor artístico.
Então, as escolas motivadas pela disputa acabam por lidar de modo apaixonado diante a arte,
enxergando padrões e limites normativos do fazer literário, e, assim, sufocando a verdadeira
expressão artística baseada em certa liberdade subjetiva. A vitória de determinada escola
sobre as demais a encheria de presunção, como se toda a história literária concorresse para a
sua formação, a forma última e definitiva de arte. Assim relata José Veríssimo:

A tarefa da crítica é compreender. Por mais falsa e censurável que lhe pareça, pois, este
critério das escolas literárias triunfantes ou em via de triunfo, é sua obrigação entendê-lo,

_______________________________________________
172
José Veríssimo. Jornal do Brazil, Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1892. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 358-359.
96

quase como uma fraqueza humana, necessária e indispensável à vitória das ideias. Não se
173
triunfa sem fé, e a fé não vai sem um pouco de fanatismo .

A escola literária triunfante, portanto, se define pelo caráter normativo, fanático, com
que lida com a estética artística, e seriam os naturalistas os recém ganhadores de um embate,
os novos portadores dos significados e contornos da literatura, e que agiriam no sentido de
neutralizar qualquer outro movimento ou nova estética que viesse a surgir. Assim, as
características individuais do artista se vêem oprimidas pela visão totalizante e estreita do
fazer artístico, sendo podadas e condicionadas a cumprir com os preceitos normativos de
determinada escola. Essa seria a “fraqueza humana” diante o poder, tratar a história com a
indiferença de quem se supõe acima dela, mas que para Veríssimo não seria capaz
verdadeiramente de evitar o surgimento da obra de arte, que alheia a esses movimentos e aos
constrangimentos que sofre sobreviveria à revelia da presunção de tais “fanáticos”.
O segundo ponto da revisão teórica de José Veríssimo se volta para a indicação de
como determinadas críticas literárias cumprem justamente esse papel coercitivo dos
movimentos literários, pois na sua busca de compreensão da obra acabam por deixar
preponderar os critérios normativos da escola a qual representa. Assim, ao invés de utilizar as
teorias como recurso de análise, tais críticas, ou mais diretamente tais críticos, acabavam
convertendo seus pressupostos em parâmetro de definição do que é ou não arte. Portanto, é
como se o movimento tivesse pretensões de perpetuar-se como forma de apreensão da
literatura, traduzindo tudo à luz de sua própria percepção estética. Assim percebe-se a dupla
crítica de José Veríssimo, tanto pela cristalização de pressupostos teóricos, como pela
descrição muito rígida do que seria a literatura nacional, ou seja, uma dupla crítica ao
naturalismo e sua pretensão em reduzir a análise literária a partir da relação da arte com o
meio, raça e os fatores históricos. Como pensar a obra de arte imortal mediante esses juízos
objetivos da ciência crítica naturalista? As determinações do meio, da raça e do momento
histórico seriam capazes de explicar a individualização de uma obra e sua inserção no rol da
grande literatura? Esse é o ponto fundamental da conversão de José Veríssimo, pois explica
como o crítico deixa de tratar a obra de Machado como pura imitação da estética estrangeira
para considerá-lo como um grande escritor.

_______________________________________________
173
JOSÉ VERÍSSIMO. José Veríssimo: teoria, crítica e história literária. Seleção e apresentação de João Alexandre
Barbosa. EDUSP, São Paulo, 1977. p. 204
97

José Veríssimo não abandona de todo a crítica naturalista, e até mesmos os


pressupostos positivistas e evolucionistas, mas minimiza seus principais postulados teóricos,
demonstrando a necessidade de combiná-los a outros critérios para a apreensão de
determinado autor, e Machado seria um exemplo disso justamente por escapar a essas
determinações, estando a parte “[...] do conjunto de fatos de toda ordem que eu chamaria a
Vida Brasileira”174. No primeiro artigo sobre Machado, Veríssimo atacava o escritor
fluminense devido a sua imitação, pois não seguia a índole do povo, produzindo uma arte
indiferente às possibilidades estéticas de sua raça. E, em seus ensaios e resenhas posteriores a
essa sua “conversão”, inverte completamente sua abordagem, valorizando positivamente o
descolamento de Machado frente o meio, e também à sua raça, como se este deslocamento
fosse o ponto que caracterizasse a genialidade de sua obra. É necessário lembrar que José
Veríssimo ainda está imbuído, como já foi dito, de alguns “vícios” racionalistas, e, portanto,
mesmo que discorde de certos diagnósticos ainda acredita na existência de uma realidade
concreta a ser apreendida pelo conhecimento. Ou seja, a relativização da relação entre o
grande escritor e o meio não significou que Veríssimo tenha questionado que a experiência
histórica brasileira e de outras nações pudesse ser investigada mediante os critérios da ciência
em voga, o que ocorreu de fato foi uma valorização da genialidade do grande escritor, que
devido a fatores especiais, principalmente em decorrência do próprio temperamento, consegue
apartar-se das determinações e produzir a grande obra. Assim, José Veríssimo tece o elogio à
Machado justamente nesse ponto, ao distanciamento, a possibilidade de se sobrepor à
realidade mesquinha e desencantada que se desenhava diante seus olhos. João Alexandre
Barbosa em seu estudo sobre José Veríssimo explica o “grão de ironia e de ceticismo” do
crítico paraense a partir da desilusão gerada com a esperada República, tentando relacionar o
momento político social de início da nova forma de governo com a tendência do crítico ao
afastamento. Uma frustração com o próprio modelo de intelectual da geração de 1870, que
acreditava poder transforma a sociedade através da propagação das novas ideias científicas, e
que defenderam e lutaram pela implantação da República. Para José Veríssimo só restaria ao
intelectual reconhecer sua impotência diante a história e tentar preservar seus princípios e a si
mesmo no seu próprio recolhimento. Deste modo ele desenvolve uma aversão declarada

_______________________________________________
174
José Veríssimo. Às Segundas Feiras: um novo livro do Sr. Machado de Assis. Jornal do Brasil, 11 de janeiro de 1892.
Ibid: MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis. Vol 3, Maturidade. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1981. p. 194.
98

contra a luta e o embate, pois não resultam em nenhuma mudança, não produzem de fato
alteração nos rumos da história175, e a postura de intelectual combativo, que supera os
obstáculos da conversação comedida para afirmar seus princípios, parece passar a ser
identificada por José Veríssimo como um fruto indesejável da geração de 1870, um reflexo de
desejos de transformação imponderados e afoitos.
Desse modo, a partir do julgamento cético da realidade e da sensação de
desprendimento frente ela, parece que José Veríssimo de fato dá o tom de como o crítico
deve se debruçar sobre a obra. E, curiosamente, baseia-se no próprio exemplo de crítica
literária desenvolvida por Machado.

Como crítico, Machado de Assis foi sobretudo impressionista. Mas um impressionista que,
além da cultura e do bom gosto literário inato e desenvolvido por ela, tinha peregrinos dons
de psicólogo e rara sensibilidade estética. Conhecimento do melhor das literaturas modernas,
inteligência perspicaz desabusada de modas literárias e hostil a todo pedantismo e
dogmatismo, comprazia-lhe principalmente na crítica a análise da obra literária segundo a
176
impressão desta recebida.

Estamos diante da compreensão da crítica literária como uma espécie de obra de


arte177, em que é exigida a sensibilidade do crítico, e não um distanciamento metodológico. O
bom gosto e erudição, apesar de comparecer como acessórios, são na verdade uma condição
da atividade crítica, e dão o tom da sua educação estética. Deste modo, o preponderante é o
nível de educação estética do crítico, preponderante até mesmo em relação às doutrinas
estéticas e teorias científicas. Na verdade, os métodos e doutrinas seriam mais obstáculos do
que de fato instrumentos passíveis de serem mobilizados e que ajudariam de algum modo a
crítica. O aspecto mais significativo seriam as impressões, mas não qualquer impressão,
tendo em vista a importância do valor individual daquele incumbido na crítica, e, que ao ler e
comentar alguma obra de arte parece agregar a ela uma valor superior, como se fizesse parte
da composição da obra, ou, pelo menos, como se produzisse uma outra obra de arte com seus

_______________________________________________
175
Essa análise de João Alexandre Barbosa encontra-se no capítulo III de seu livro, “Um Grão de Ironia e de Ceticismo”. In:
BARBOSA, João Alexandre. A tradição do Impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo.
Editora Ática, São Paulo, 1974. p. p 112-156.
176
JOSÉ VERÍSSIMO. História da Literatura Brasileira: De Bento Teixeira (1601) A Machado de Assis (1908). José
Olympio. Rio de Janeiro, 1954. p. 359.
177
LUKÁCS, Georg. On the nature and form of the essay. In: LUKÁCS, Georg. Soul and Form. The Mit Press, Cambridge,
Massachusetts, 1980.
99

ensaios e resenhas. Desse modo, a composição do ensaio de crítica literária deixa de passar
pela necessidade de sistematicidade, pelo contrário, a obra contemplada seria um motivo que
permite a esse crítico falar “a partir” dela, e não propriamente “dela”. O que vale é sua
impressão, e aquilo que mobiliza para compor a imagem específica depreendida desta
impressão, e não propriamente a obra em si.

3.2 Crítica, melancolia e distanciamento

A trajetória de conversão de José Veríssimo, este seu progressivo abrandamento das


perspectivas racionalistas de sua própria juventude, quando se filiava ao movimento da
geração de 1870, nos ajuda a compreender como esse impressionismo estético se moldou no
Brasil naquele período, e como isto se refletiu na resenhas sobre a obra de Machado de Assis.
Algumas das características que indicam a aproximação entre a leitura da obra e a valorização
da sensação e da impressão, se apresentam combinadas às teorias científicas em voga, ou
melhor, uma combinação que acaba por provocar a flexibilização desses conceitos científicos.
No entanto, a trajetória biográfica de José Veríssimo não é suficiente para compreendermos o
desenvolvimento deste novo “olhar” frente a obra de arte. Falta ainda vislumbrar como, nas
resenhas, a leitura ganha a possibilidade de se converter em uma experiência e qual o papel
disso da impressão deste leitor, tal como apontado por Proust. É importante salientar que
outros intelectuais manifestam o mesmo pesar em relação aos destinos da vida pública
nacional, e tendem a perceber a literatura de uma forma distinta das expectativas de atuação
pública da geração de 1870. E o trecho seguinte é bastante ilustrativo nesse sentido:

Era no dia de S. Sebastião, que, creio, continúa a ser o padroeiro da cidade, porque as
deposições não foram ainda até á folhinha ecclesiastica. Eu li o livro de Machado de Assis e
ouvia o troar os canhões na barra, e pensei:
- Quando uma plêiade de egoístas incita sorrateira, covarde e perversamente um bando de
infelizes a matar e a morrer, pela sustentação dos seus palacetes, das suas carruagens e das
suas amantes, consola ter uma brochura destas na mão e pensar que ha ainda nesta quem
100

trabalha, quem ganha e augmenta a fortuna de boa reputação – á única que se póde gozar
178
livremente, publicamente, que é solida e que vai além da vida.

A liberdade que Machado de Assis pode gozar é muito distinta dos modelos de
liberdade relacionados ao aspecto lúdico da sociabilidade ou a busca pelo enfrentamento dos
autores racionalistas. Esta liberdade, ainda que tenha repercussões na imagem pública do
autor, se inscreve em um âmbito de solidão moral, porque a condição imposta para poder
“gozar” dessa liberdade é manter-se altivamente alheio aos acontecimentos políticos do país.
Entretanto, o mais importante é verificar o significado da obra para o crítico, que, claramente
o põe como uma “consolação” para os tempos que se vivem, do mesmo modo como a
passagem seguinte de Arthur Azevedo:

Dom Casmurro foi para mim uma surpresa e uma consolação: uma surpresa porque eu
supunha o mestre totalmente absorvido pelas suas lides de funccionario, que é solicito e
operoso; uma consolação, porque o seu livro afastou o meu espirito da melancolia dominante
179
nos tempos tristes que atravessamos.

Este trecho é mais claro para compreendermos porque ambos os críticos leram
respectivamente Quincas Borba e Dom Casmurro como uma possibilidade de consolo. Isto
somente é possível porque estamos distantes da compreensão de literatura como a
combinação entre entretenimento e aprendizado, ou, ainda, da possibilidade de instrução
acerca a realidade do país para uma melhor intervenção social. Aqui a literatura se apresenta
como um recolhimento, uma “consolação” diante o cansaço da vida e de suas desilusões. E
assim como chamado atenção por Proust, a leitura parece ser concebida como o melhor
remédio para o estado melancólico180, para esse humor que se tornou a nota predominante em

_______________________________________________
178
José Anastacio - possível pseudônimo de Teófilo Guimarães. O tempo, Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1892.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 373.
179
A. A. - Iniciais de Arthur Azevedo. O Paiz, Rio de Janeiro, 18 de março de 1900. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 406.
180
Há uma vasta bibliografia que correlaciona a melancolia e a vida moderna, e privilegiei os trabalhos seguintes:
AGAMBEN, G. Estâncias: A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2007. Apesar
de voltar-se mais para a cultura clássica e renascentista, o trabalho de Panofsky, Klibansky e Saxl também insinua certas
discussões com a vida moderna, principalmente o final do século XIX. In: PANOFSKY, E.; KLIBANSKY, R.; SAXL, F.
Saturno y la melancolía. Alianza Editorial, Madrid, 1991. Essa discussão ainda não é amplamente debatida no Brasil,
com as raras exceções, como os trabalhos de Ricardo Benzaquen de Araújo e Moacyr Scliar, diretamente relacionados com
o período abordado. Respectivamente: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Através do Espelho: Subjetividade em Minha
101

meio às transformações modernas na segunda metade do século XIX. Aquele entusiasmo viril
defendido por alguns intelectuais dos anos de 1870 é substituído pela sensação de impotência
frente os processos históricos, cuja única forma de altivez possível é dotar de relevância o
recolhimento, traduzido como uma forma de liberdade. José Veríssimo também fará a mesma
alusão à literatura como possibilidade de consolo, e chama ainda a atenção para o período
conturbado que os artistas e intelectuais vivenciam:

Nos tristes tempos que atravessamos – tristes para a vida litteraria ao menos – os livros como
o do Sr. Machado de Assis são um consolo e uma esperança. Confortão-nos algumas horas
como o doce perfume de uma flôr rara ou a sombra fôfa de uma copa d’arvore em meio de um
longo caminho árido, e alentão-nos com a idéa de que mais adiante toparemos com outras
181
flores ou com outras arvores.

Esta imagem sintetiza o significado do consolo produzido pela arte, pela sensação de
conforto a qual ela vem associada. A literatura, e, principalmente, o momento de leitura,
parece ter se convertido em uma imagem de beleza e harmonia em contraste com a descrição
severa que realizam do momento por eles vivenciados. Esta harmonia da arte - mas não
somente ela como veremos mais a frente - permite ao espírito aquela sensação de
relaxamento que Joaquim Nabuco atribui à suas estadias em Londres e que corroborou para
sua conversão ao catolicismo, a situação de recolhimento necessária para a busca por
experiências182. Aparentemente, tal como nas citações acima, a literatura é apresentada por
esses críticos como uma trégua com o mundo, uma possibilidade de descanso e relaxamento
impossíveis quando se deixam conduzir pelas turbulências da vida cotidiana nesses “tristes
tempos”. Mas, este ‘consolo” tem uma dimensão mais profunda, porque está de acordo com

Formação, de Joaquim Nabuco. RBCS, vol 19, nº 56, 2004. e SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: A melancolia
européia chega ao Brasil. Companhia das Letras. São Paulo 2003.
181
José Veríssimo. Jornal do Brazil, Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1892. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 364.
182
O próprio Nabuco salienta a necessidade do recolhimento para que o indivíduo seja capaz de desenvolver uma impressão
da obra de arte, criticando a dispersão e aceleração com que caracteriza sua juventude. “De passagem, pode-se ver muita
coisa, mas não se tem a revelação de nada. A primeira condição para o espírito receber a impressão de uma grande
criação qualquer, seja ela de Deus, seja das épocas – nada é puramente individual -, é o repouso, a ocasião, a
passividade, o apagamento do pensamento próprio; dar à forma divina o tempo que ela quiser para refletir-se em nós,
para deixar-nos compreendê-la e admira-la, para revelar-nos o pensamento originário donde nasceu.” JOAQUIM
NABUCO, Minha Formação. Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional. p. 14.
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000096.pdf. De fato esta passagem, apesar de não ser de um crítico
de Machado, é bastante relevante para se pensar o significado do impressionismo aplicado às artes, tal como percebido
comumente entre os intelectuais do final do século XIX. Sua importância se dá pelo fato de, assim como outros
intelectuais, como José Veríssimo, Nabuco teve contato com o cientificismo da geração de 1870, e revê criticamente esse
seu período, caracterizando-o pela melancolia moderna. Melancolia que, para além de implicar em tristeza e desinteresse,
está associada com a inconstância com que Nabuco se define, como Ricardo Benzaquen de Araújo chama atenção em seu
artigo. In: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Através do Espelho: Subjetividade em Minha Formação, de Joaquim
Nabuco. RBCS, vol 19, nº 56, 2004. p. 8. Sobre a relação de Joaquim Nabuco com Londres consultar, ainda, o mesmo
artigo de Ricardo Benzaquen Araújo, que reserva um espaço importante para esta questão.
102

uma demanda do próprio tempo por “impressões” acerca da realidade, que leva Leopoldo de
Freitas a afirmar que o livro Páginas recolhidas pertence “[...] ao gênero literário que muito
apreço adquiriu na presente época em que temos o espírito constantemente solicitado,
atraído ou dominado por uma excessiva multidão de fatos e impressões”183. Portanto, a
literatura e a leitura parece ter uma relevância em relação àquilo que se apresenta como
realidade, relevância muito bem expressa nesse trecho de Mario de Alencar:

A língua não me ajuda a traduzir o meu pensamento sobre a feitura e as idéas do livro; menos
ainda as sensações que me produziram no correr das paginas. Lembro-me e confesso que ri
tres vezes, com um gosto tão forte, que a risada me sorprendeu e espantou; e que duas vezes
tive os olhos cheios de lagrimas e o coração apertado, como se eu estivesse, no livro ou na
realidade, vendo morrer aquellas duas senhoras que morrem nelle, uma formosa e moça,
amada e amante inexplicavel de dous formosos gemeos, outra já não moça, mas ainda
formosa, boa e pura que era a mãi delles. As outras sensações são agora confusas, múltiplas e
varias, intensas, mas confusas como as sensações da vida. É particularmente por esta feição
que o livro domina: pela superior, pela absoluta reproducção ou idealização da vida humana, a
ponto que, lendo-o eu não estava lendo, mas vivendo entre os personagens delle, no passado e
no presente, desde um tempo que eu não conheci, entre costumes que se foram, até os dias de
agora, com todos os nossos usos, as nossas cousas e pessoas, com os seus feitios proprios, que
eu não tinha notado antes porque não possuo os olhos agudos e pespicazes do autor. Quando
fechei o livro, foi como se sahisse da realidade, do mundo em que moro, e tive pena de que
Ella não continuasse sempre ou por muito tempo ainda, até a consummação dos meus dias.
Não que Ella fosse mais alegre do que esta ou menos triste. Ao contrario, alli a tristeza é viva,
os contrastes mais profundos, como acontece nos quadros, em que o crepusculo não corre
tanto como na natureza, e ha de se perpetuar com as suas sombras e luzes pela força e pela
184
mesma condição da arte humana.

De fato, esse isolamento não pode ser caracterizado como uma fuga da vida ou uma
forma de readquirir energia para novamente lidar com ela. É muito mais do que isso, pois,
como podemos perceber a partir desse trecho de Mario de Alencar, o que está em jogo é a
educação estética através da sensibilidade. Ao ressaltar as sensações produzidas pela leitura
do texto e depois circunscrevê-las como uma realidade superior à própria realidade material,
ele não quer afirmar que foge do mundo, e sim que passa a enxergá-lo com novas lentes.
Aliás, a frase final é nesse sentido bastante sugestiva, pois a distinção entre as duas
“realidades” está na profundidade dos contrastes, na possibilidade da literatura tornar o
mundo habitual mais “vivo” e interessante, e reduzir o acelerado transcorrer das coisas para
ser possível admirá-lo, aliás imagem artisticamente rebuscada através da metáfora sobre a

_______________________________________________
183
Leopoldo de Freitas. O País, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1900. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 219.
184
Mario de Alencar. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 de janeiro de 1904. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 422-423.
103

velocidade do crepúsculo. A riqueza dos contrastes e a lentidão do crepúsculo significam a


sensibilidade do escritor para traduzir esteticamente a realidade, e estilizar certos conteúdos
“aparentemente banais” do cotidiano. E, neste sentido, o isolamento buscado parece ser um
caminho para sobrepor-se à racionalidade e sua lógica “fria” em estabelecer a ordem das
coisas. Segundo este argumento crítico, somente com o isolamento da leitura é possível dotar
a vida de outros significados, que prestigiem o olhar individual a partir de outro ritmo, que
ressalte a duração do evento condicionada a quem o contempla. O consolo à melancolia,
nesse sentido, é a possibilidade do indivíduo ser reconduzido para a vida, percebendo-a como
uma fonte silenciosa para a satisfação de sua peculiaridade.
Há ainda um aspecto interessante do trecho de Mario Alencar acima. A maneira como
descreve o conjunto de sensações produzidas pela arte, e essa educação estética para
intensificar a relação com a vida, parece caracterizar perfeitamente o estado de espírito
melancólico, não aquele marcado por certa ideia de depressão e inatividade, mas outra forma
de melancolia baseada na veleidade, dispersão e que parece se traduzir pela oscilação
frenética por todos os estados de comportamento, variando da alegria à tristeza
rapidamente185. Deste modo, a leitura de Mario de Alencar aparentemente contrasta com a
recomendação de Proust acerca a utilidade “clínica” da leitura, pois ao invés de proporcionar
equilíbrio, acabava por intensificar justamente a dispersão melancólica ao estimular esse
variado estado da alma. Mas, este leitor suscetível de Mario de Alencar parece ter contraste
até mesmo com a imagem final do crepúsculo, em que se abre a possibilidade para um olhar
mais detido e cauteloso sobre uma imagem inspirada na realidade. Um olhar com mais vagar,
que pelo contrário, subentende mais controle da sensibilidade, ou pelo menos um maior nível
de cuidado com que se lida com a própria sensibilidade, do que um estímulo constante da
variação de sentimentos. E parece ter sido essa a tônica da interpretação acerca de Machado,
como se esse visasse minimizar os impactos das “impressões”.

N’um romance contado impessoalmente, o escriptor deve pintar as scenas de modo a que
vamos assistindo a ellas ao passo que se desenrolam. O que elle tem a fazer é dizer o que
houve, deixando a cada um o direito de impressionar-se como quizer. Aqui, porém, quem tem
a palavra é um homem que chegou ao scepiticismo absoluto. Quando elle relata qualquer

_______________________________________________
185
Esta forma de melancolia é mais apropriada para se definir o tipo de compreensão que se fazia dela no final do século
XIX, como podemos perceber no estudo de Ricardo Benzauen de Araújo sobre Joaquim Nabuco. In: ARAÚJO, Ricardo
Benzaquen. Através do Espelho: Subjetividade em Minha Formação, de Joaquim Nabuco. RBCS, vol 19, nº 56, 2004.
p. 8
104

d’esses velhos episodios em que tomou parte, não póde deixar de pensar que n’esse momento
estava sendo illudido e ridiculo. A narração tem forçosamente de ressentir-se d’essa analyse
intima. Qualquer pessoa contando um lance em que figurou commovidissima, mas no qual
sabe depois que representou um papel grotesco, por estar sendo n’esse momento comicamente
enganada, não póde mais reviver o enternecimento primitivo, logo contrabalançando pela
consciencia de que era n’essa occasião victima de um engano visivel. Assim, a tendencia
ironica do escriptor, achou n’este livro logar mais proprio para expandir-se. [...] E admiravel
é, de facto, a arte de um escriptor que nos dá, como que defendendo-se d’isso, impressões tão
186
fortes.

Esta citação de Medeiros e Albuquerque é bem representativa da maneira pela qual


esta crítica com tendências impressionistas costuma encarar a obra de Machado. Assim, é o
ceticismo e não a variedade de sensações que marcam aquela supressão do tempo que permite
o leitor se debruçar sobre si mesmo e certos aspectos da vida que o rodeia. A “realidade” do
livro pode até ter maior riqueza de contrastes que a vida, entretanto, essas cores mais vivas
não estimulam a variedade de emoções, e sim, certo equilíbrio, pois ajudam o leitor a
defender-se desse tumulto de emoções ao diminuir as expectativas exageradas em face da
felicidade ou tristeza, para ajudar a conter os impulsos de risos e lágrimas do leitor, devido o
ridículo que eles podem significar187.
E como, segundo esta crítica, Machado é capaz de reconduzir seu público para uma
nova percepção da realidade, e, de certo modo, retirá-lo desse estado de inércia de sua
sensibilidade ou, pelo contrário, de melancolia e dispersão? Podemos iniciar esta resposta por
uma assertiva mais genérica de Mario de Alencar:

Não é tambem do pensamento da philosophia accusar os homens e a vida, os homens e a vida


são o que são porque assim tem de ser. Olhal-os e reprodul-os, sem os culpar ou desculpar,
fazendo delles o espectaculo em que os comparsas se interessam e, levados da emoção, se
suppõem um momento espectadores, tal é o officio da arte. Nem tem outro fim, nem outra
188
razão de origem. Felizes os que têm o dom de a entender e realizar!

_______________________________________________
186
J. dos Santos - pseudônimo de Medeiros e Albuquerque. A Notícia, Rio de Janeiro, 24 e 25 de março de 1900.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 417.
187
José Raimundo Maia Neto apreende a obra de Machado de Assis justamente através do ceticismo pirrônico, como se seus
personagens narradores fossem marcados por um processo que o conduz a um olhar cético em face da vida, em que o
primeiro estágio seria o desenvolvimento da capacidade de identificar a contraposição dos objetos (eqüipolência), sucedido
pela busca da investigação (zetesis), para assim atingir a tranqüilidade (ataraxia) através da suspensão do juízo (epoche).
MAIA NETO, José Raimundo. O ceticismo na obra de Machado de Assis. Annablume, São Paulo, 2007.
188
Mario de Alencar. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 24 de julho de 1908. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 483.
105

Assim, esta arte literária abandona o julgamento moral, que era a tônica da literatura
cortesã e sua busca pela exemplaridade. Este artifício artístico é ainda bem distinto do afã por
realidade da geração de 1870, e sua pretensão de intervenção social. Aqui, a estratégia da
arte, afirmada como uma pretensão genérica de toda arte, é transformar os leitores em
expectadores de suas próprias vidas, e ao se depararem com isso, serem conduzidos a sentir
essas imagens. Sentir as imagens no estado de recolhimento, em que o leitor pode olhar de
forma honesta para si mesmo, sem os inconvenientes formais da vida social, ou seja, sem as
máscaras impostas pela boa educação. Mas, para compreendermos de fato a extensão desse
argumento, é necessário identificar o que para Mario de Alencar, e também outros críticos,
entendem por “espetáculo”, ou seja, o que eles selecionam da obra de Machado que
caracterizaria a vida do homem.
A vida descrita por Machado de Assis, segundo estes crítico, é composta por aspectos
aparentemente banais do cotidiano, elementos vulgares e medíocres, devido à disponibilidade
para apreciação. Não há nada de grandioso, ou moralmente elevado, ou capaz de encantar
pela intensidade na imaginação. Pelo contrário, a busca dessa crítica é exaltar o corriqueiro
nas suas obras, que encontram no último romance de Machado, Memorial de Aires, uma
confirmação feliz dessa busca pela simplicidade cotidiana.

Estes episodios não são mais do que as impressões quotidianas da existencia tranquilla e
singela que um velho diplomata aposentado passava no Rio de Janeiro, na convivencia de
189
uma irman e de uma familia de sua amizade.

A existência tranqüila e singela ressalta, na verdade, a capacidade de criar um


elemento de curiosidade e interesse sobre o habitual, que torna o cotidiano um objeto
relevante de atenção, não algum cotidiano marcado por grandes transformações, pelo
contrário, um cotidiano que poderia ser de qualquer um, e que o próprio livro parece
estimular para que seja apreciado, com a mesma calma e tranqüilidade, e assim, permitam,
além do afloramento das próprias impressões do leitor frente sua vida, a possibilidade de
redefinição do tempo a partir dessa contemplação.

_______________________________________________
189
L. F. - Iniciais de Leopoldo Freitas. Diário Popular, São Paulo, 29 de setembro de 1908. GUIMARÃES, Hélio de Seixas.
Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 472.
106

A ênfase na impressão de aspectos banais da vida, como principal mote dessa corrente
com ares impressionistas, ganha a forma mais bem acabada na resenha de Salvador de
Mendonça, ainda sobre o Memorial:

Á beira da estrada uma teia de aranha recamada de perolas de orvalho, irizadas com a luz da
manhã, é por certo uma cousa bella, mas quasi vulgar para os olhos que não a sabem ver.
Quem, porém, se imaginará capaz de duplicar tal beleza? Para isso quer-se primeiro a aranha
que possue o monopolio da materia prima, privilegio de familia com que a natureza a dotou,
sem exigir que archivasse a formula da composição e a dosagem dos ingredientes. Depois
requer-se o orvalho, lagrimas que a noite recolhe de todos os soffrimentos ignorados.
[...]
Isto verá quem tiver olhos para vêr e para admirar. Para aquelle, porém, que por meio seculo e
mais um anno tem acompanhado de perto a sua obra litteraria e, por que não dizel-o? – os teus
estados de alma, desde a noite da vigilia das armas, na vespera de seres armado cavalleiro, até
a noite da vigilia do coração quando sentiste que t’o arrancavam do peito para esse o
Memorial de Ayres encerra ainda mais. Desde o começo sente-lhe o perfume da tristeza.
Folheando-o mais adiante vê desprenderem-se de suas paginas as borboletas azues da
saudade. No final, sob o adejar de grandes azas brancas, ouve um chamado vindo de longe, a
que responde do fundo da cantiga do rei trovador, e, discreto como Ayres, para não perturbar
o mudo colloquio de dous corações amantissimos, retira-se sem rumor de passos, porque
190
quem te chama é a tua Musa companheira, a mais consoladora, a Esperança.

Este longo trecho transcrito é bastante sugestivo em vários aspectos, o primeiro deles
por ressaltar a dificuldade da arte simples, e, em segundo, pela descrição da importância da
sensibilidade para que o crítico seja capaz de apreciar esta arte. O primeiro desses dois
aspectos está perfeitamente ilustrado pela metáfora da teia de aranha salpicada pelo orvalho.
Não há imagem mais banal, por ser algo completamente corriqueiro, mas, cujo valor está na
capacidade de apreender essa banalidade como um motivo artístico. Deste modo, todo o
enredo do último romance de Machado estaria baseado nessa capacidade de saber “olhar”
algo suprimido pelo embotamento relacionado à vida moderna, pela forma mecânica como o
homem racional se comporta com seu entorno. Esta capacidade de saber conferir a
simplicidade uma dignidade estética, passa pela readequação do olhar, de enriquecer esta
banalidade com o bom gosto daquele que o observa. O segundo aspecto está correlacionado
ao primeiro, pois a sensibilidade é a condição de ser suscetível às “belezas” cotidianas, de se
comover com a simplicidade. Mas, o que se acrescenta no segundo trecho transcrito da
resenha de Salvador Mendonça, e torna-o interessante para nossa apreciação, é a correlação
entre a sensibilidade e a intimidade. Ter “olhos para ver e admirar” é comparado à relação de

_______________________________________________
190
Salvador de Mendonça. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 06 de setembro de 1908. GUIMARÃES, Hélio de Seixas.
Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 468.
107

intimidade que o próprio autor da resenha possui com Machado, como se o poder deste
“olhar”, da capacidade de sentir e produzir impressões a partir disso, fosse equiparado à
amizade sincera, e proporcionasse, assim como este grau de amizade, uma relação de intensa
aproximação.
A partir desses novos significados para a leitura adotados pelos críticos, há uma
transformação das expectativas acerca o papel do escritor. Agora sua importância é medida
pela possibilidade de produzir sensações que, de algum modo, estejam em sincronia com a
capacidade de sentir do próprio público. O escritor, desse modo, se converte em um guia,
cuja estilização da vida tenha força o suficiente para convidar seus leitores a essas “novas
realidades” contidas em seus livros. Mas, a condição para o artista de fato conseguir produzir
sensações em seu público, é que ele mesmo tenha vivenciado, em algum grau, as desilusões e
pessimismos de seus próprios personagens. É indispensável que a narrativa de suas ficções
esteja vinculada às suas experiências, ou seja, não é mais suficiente basear a ficção somente
na observação distanciada pretendida pelos racionalistas. Desse modo, é necessário conciliar
observação e experiência, dotando de um novo status literário a própria vivência do autor,
como podemos perceber nessa passagem de Urbano Duarte:

Dirá o auctor que aquillo é o fructo de longa observação e experiência, mas nós lhe
contestaremos que nos phenomenos da observação e da experiencia o ponto de vista é tudo.
Os effeitos de luz e sombra dependem do ponto em que, voluntaria ou involuntariamente, se
191
collocou o observador.

A passagem seguinte do crítico com pseudônimo de Abdiel é ainda mais


enfática nesse ponto:

Mas a observação é tão positiva, os factos são de uma realidade tão palpável, fiel, esmagadora
e perfeita, que ninguem os podia ter inventado, nem fabulado, a frio, entre quatro paredes de
gabinete; é evidente que o autor os viveu primeiro e os pôz no papel muito mais tarde, com o
juízo calmo da experiencia e as desilusões da edade, com as recordações, amargas ou doces,
do tempo que passou, com a nota predominante do seu temperamento e o melhor do seu
192
coração.

_______________________________________________
191
Urbano Duarte. Gazetinha, Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1881. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 350.
192
Abdiel. A Estação, Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1881. Idem, p. 353.
108

Assim, percebe-se que há uma consagração do “ponto de vista”, ou do olhar marcado


pela “nota predominante do temperamento”, a exposição daquilo que o próprio autor “viveu”
após o seu amadurecimento e capacidade de meditar sobre o ocorrido, com tranqüilidade.
Estamos diante do mesmo tipo de expectativa em relação à literatura que a descrita por
Proust, do livro como espelho calmo da fisionomia do escritor193. E esta acepção é bem
distinta daquela desenvolvida pela crítica racionalista, ou mesmo a naturalista. Nestas
vertentes da crítica, desenvolvidas inicialmente por membros da geração de 1870 e a que
Silvio Romero e Araripe Junior dão continuidade, a possibilidade de se investigar o
temperamento do autor a partir de sua obra tem um procedimento muito distinto. Enquanto
nos trechos acima se ressalta a individualidade que alcança um ponto de alta reflexão em
relação a si mesmo e a vida, e uma reflexão que passa pela experiência, para a crítica
racionalista e naturalista o temperamento é percebido como um reflexo inevitável do autor, e
ainda, de suas idiossincrasias. A crítica racionalista não acredita na possibilidade de que o
autor seja capaz de refletir de forma relevante sobre si mesmo e a sociedade sem passar por
um viés objetivo, ou seja, sem utilizar como ferramenta estética a própria contribuição
científica aliada ao seu pretenso distanciamento. Assim, a obra, para essa crítica com fins
objetivos de análise, não é um “espelho calmo”, ou seja, um resultado de uma experiência ou
longa meditação proporcionada pelo silêncio do isolamento e honestidade diante si mesmo.
Para esta crítica racionalista, a possibilidade de compreensão de si mesmo se dá a
partir do distanciamento, e não da experiência pessoal. Isso demonstra a grande diferença
entre o recolhimento propício à leitura e contemplação, idealizado por intelectuais e artistas
afeitos a essa percepção impressionista da arte e, de outro lado, o distanciamento almejado
pelo racionalismo. Enquanto um significa uma busca interior, uma especulação acerca dos
aspectos qualitativos dos vínculos que o indivíduo estabelece com as coisas, o olhar com
ênfase na racionalidade intensifica justamente o oposto, pois busca formular sistemas capazes
de criar categorias e tipificações que acabam por distinguir os sujeitos por suas características
externas, por aquilo que o aproxima de outros indivíduos e, desse modo, que se comportam,
segundo essa premissa, a partir de uma racionalidade pré-estabelecida. O isolamento do
impressionismo se volta para a construção de um universo simbólico onde, de algum modo,
seja ressaltada a sensibilidade, e buscando um reencontro consigo mesmo mediante a ênfase

_______________________________________________
193
PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Editora Pontes, Campinas, 2003. p. 43-44.
109

em perceber-se como alguém que sente e é afetado pelas circunstâncias externas, e que
moldam, desse modo, a própria alma, enquanto o distanciamento objetivo baseia-se em um
constante policiamento frente aos imperativos da vontade e do desejo, e que pretendem
recalcar os próprios valores com vistas a uma suposta neutralidade. Deste modo é natural a
diferença de foco entre estas duas perspectivas “estéticas”, pois a compreensão objetiva
volta-se para o estudo sistemático da sociedade, de onde se pode depreender o
desenvolvimento de qualquer característica pessoal. Bem distinto do universo significativo
para a sensibilidade que compõe o sujeito segundo essa outra crítica mais afeita ao
impressionismo, em que o mais relevante para a elaboração da própria imagem passa pela
reconstituição dos laços mais estreitos, dos interiores familiares, da rotina quase sempre
deslocada frente aos vínculos mais abrangentes com a sociedade.
111

em função do desenvolvimento de outras formas retóricas, como a impressionista e a


cientificista, mesmo que se mantenha como um padrão de “boas maneiras” e tato.
Apesar da pluralidade de interpretações sobre Machado de Assis e da porosidade da
crítica para valer-se de percepções usuais das formas sociais de classificação, percebe-se em
praticamente todas as resenhas a intenção de suprimir a ambivalência entre arte e vida, entre
perspectivas estéticas e mundanas. No entanto, antes que se determine de forma apressada a
prevalência de formas de classificação mundana diante os pressupostos estéticos, é necessário
compreender que não há uma divisão clara entre vida e arte, ou mais precisamente entre
aspectos materiais e estéticos. Portanto, ao contrário de se imaginar um desdém pelas
categorias estéticas, o objetivo das interpretações das resenhas parece orientar-se pela busca
da imersão dos pressupostos estéticos na própria vida. E essa persistência em correlacionar o
mundo social e a arte, ou entre autor e obra, revela-se no uso recorrente da categoria
“temperamento literário”, como uma tentativa de formular uma imagem que seja capaz de
suprimir a fronteira entre estética e vida.
A superação da ambivalência entre autor e obra, ou arte e vida, ocorre de maneira sui
generis, como se a partir da investigação de determinada obra fosse possível visualizar essa
forma distinta de personalidade, que não se resume às suas trajetórias sociais ou pressupostos
artísticos. O temperamento literário comporia uma unidade bem definida, em uma mescla de
características atribuídas à personalidade do autor, e aspectos estéticos que supostamente
moldariam a sua linguagem. O processo de modelagem desse temperamento especial está à
mercê de uma série de influências inerentes a escrita, e, segundo os padrões da crítica do
período, ele se materializaria na obra, podendo ser apreendido em qualquer de seus
fragmentos. Assim, a “feição literária do escritor”194 é marcada por dois conjuntos de
referências, sendo o primeiro conjunto aquilo que definiria o “homem” e o segundo, seus
pressupostos estéticos. A partir da seleção de algumas características provenientes de cada um
desses universos, se comporia a unidade do autor, o seu temperamento literário. Não há
nenhum modelo fechado para definir como seriam selecionadas características de cada um
desses universos, principalmente quando tomamos conhecimento da diversidade discursiva
apresentada nos três primeiros capítulos. Assim, essa categoria “temperamento literário” não

_______________________________________________
194
Esta noção de “feição literária do escritor” foi retirada da resenha que tem por provável autor Ferreira de Araújo, segundo
Ubiratan Machado. Ferreira de Araújo. Gazeta de notícias, Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1876. MACHADO, Ubiratan.
Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 102.
112

significa a existência de uma definição clara de como os críticos procederam para se criar a
unidade entre obra e autor, e apenas nos permite perceber que por traz dela existe a pretensão
de delinear uma imagem coerente e bem definida. Nesse sentido, todos os críticos parecem
concordar com a compreensão de Taine sobre a obra de arte: “Em primeiro lugar e
visivelmente, uma obra de Arte, um quadro, uma tragédia e uma estátua pertencem a um
conjunto, isto é, à obra total do artista que é seu autor. Isto é elementar”195.
A ambição em pintar o temperamento artístico de Machado tem resultados muito
diversos, pois, além desse universo plural para julgar a obra de Machado de Assis, as “fontes”
disponíveis são, ainda, interpretadas de modo mais livre. Com isso, além da diversidade das
fontes utilizadas para traçar este temperamento literário, devemos observar o papel
desempenhado pela interpretação do crítico, suas bases de julgamento, o que significa dar
relevo às próprias concepções de arte e artista passíveis de serem apreendidas nas resenhas, ou
seja, os modelos de julgamento artísticos imersos em suas análises, que estariam diretamente
correlacionados com as “formas de vida” identificáveis nas resenhas. Deste modo, cada
resenha, à sua maneira, tentou realizar essa equação entre vida e obra, artista e pessoa, e
pintou retratos de Machado a partir de parâmetros diversos, dotando de cores e relevância
distintas cada uma dessas fontes. E o que nos interessa deste amplo universo, ao qual é
impossível apreender em toda sua riqueza, é compreender como foram criadas personas
específicas, ficções de autor. Mais precisamente: como a crítica criou retratos com base na
leitura da obra de Machado de Assis e compôs diferentes subjetividades, cada uma delas
dotadas internamente de coerência e unidade196.
O objetivo deste capítulo é definir os variados temperamentos literários retratados
pelos críticos, explorando esta categoria nativa usual no século XIX, sem, no entanto, nos

_______________________________________________
195
TAINE, Hippolyte. Da natureza e produção da Obra de Arte. Editorial Inquérito, Lisboa, 1940. p. 7-8.
196
A discussão sobre o autor pode ser encontrada em FOUCAULT, M. O que é um autor? Editora Nova Vega, Lisboa,
2006. Esta polêmica conferência de Foucault, proferida em fevereiro de 1969, trata o autor como uma “função” dos
diversos discursos, e que, portanto, retira do escritor o papel ativo no delineamento das especificidades do texto,
atribuindo-o à linguagem. Apesar de seguir algumas linhas gerais dessas contribuições de Foucault, é necessário lembrar
que não tratamos aqui a literatura Machadiana, portanto não se pretendeu identificar a “função discursiva” desempenhada
pelo autor Machado. Mas, é interessante destacar que a crítica literária do século XIX parece se caracterizar pela ansiedade
em dotar o autor desta grande coerência interna, que estabelece vínculos fortes entre vida e obra, assim como criticado por
Foucault. Deste modo, a recepção da obra de Machado de Assis no período, apesar de dotar o autor de grande importância
em suas análises, parece delinear a imagem de Machado a partir da coerência interna de seus próprios discursos, ou, como
definimos, em suas próprias retóricas. O debate desencadeado por Barthes e Foucault a respeito da autoria pode ser
encontrado em: COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e senso comum. Editora UFMG, Belo
Horizonte, 2010.
113

debruçar em demasia nas particularidades destes retratos. A principal finalidade é tornar um


pouco mais evidentes estas diversas ficções do “personagem” Machado de Assis, e, assim,
ilustrar a variedade de parâmetros de modelagem da subjetividade artística inerente ao
período analisado. Para isso, buscamos identificar algumas afinidades entre determinadas
resenhas, o que significa que a centralidade da análise estará mais relacionada às afinidades
entre os conteúdos das resenhas, do que propriamente em relação aos críticos. Desta maneira,
nossa pretensão é identificar as principais tendências presentes nas resenhas e não privilegiar
uma imagem coerente de Machado de Assis através da lente de apenas algum crítico. Para
selecionar essas tendências gerais, esses quadros que se repetem com algumas nuances em
certas resenhas, não perderemos de vista os modelos retóricos definidos anteriormente, que
estão implicados no tipo de subjetividade atribuída a Machado de Assis.
Determinadas descrições do temperamento de Machado de Assis derivam da
caracterização que lhe é feita em meio à sociedade, sendo que alguns destes críticos trocavam
cartas regularmente com o autor de Helena e gozavam de contato mais íntimo. Porém, ao que
parece, a maioria dos críticos baseou-se em relatos indiretos, incluindo outras resenhas, ou
ateve-se exclusivamente às publicações de Machado. A construção da imagem de um autor a
partir de diferentes tipos de textos - o acesso direto à obra de Machado ou a outros pequenos
perfis traçados pela crítica - reforça ainda mais o caráter “ficcional” da autoria. Pois, aqueles
que se basearam em descrições indiretas, ignoraram as mediações interpretativas dessas
descrições, os pontos de vistas peculiares, enquanto que as resenhas que se voltaram quase
exclusivamente para a literatura de Machado na construção de seu perfil mundano costumam,
recorrentemente, desconsiderar a distinção entre o autor e seus diversos narradores inscritos
nos romances, contos e outros tantos eu-líricos de suas poesias. Portanto, as resenhas não são
documentos tão confiáveis para um estudo biográfico de Machado, porque grande parte
desses perfis delineados foi extraída diretamente da sua obra, com esta correlação direta entre
narrador/eu-lírico e autor, como se a literatura fosse o desdobramento natural do escritor e
ainda o campo de realização desse temperamento especial. Mas há ainda outro dado relevante
para se evitar o trato dessas resenhas como fontes para estudo biográfico. A categoria
“temperamento literário” se pauta por caracteres estáveis de comportamento, onde se
ambiciona mais a definição da personalidade, suas diversas qualidades, se calmo, ponderado,
intempestivo, e etc. Desta maneira, esse julgamento da subjetividade amparada apenas nessas
qualificações, que, como veremos, assumiram contornos bem distintos a depender da
modulação retórica, pouco ajudam para um estudo com pretensões biográficas. Deste modo,
114

estes retratos possuem sua própria dignidade, e reclamam por uma análise interna de si
mesmos, onde o autor Machado de Assis acaba por se tornar um elemento secundário.
Como será possível observar, há certa tendência geral na evolução das tipificações
realizadas sobre Machado. Seu temperamento, antes descrito a partir dos parâmetros das
categorias da sociabilidade cortesã, passa a ser desenhada de maneira mais plural. Portanto,
iniciaremos a discussão a partir do retrato de Machado como um “Mestre Cortês” e como este
retrato permanecerá, com algumas mudanças, mesmo após o surgimento de outras
modulações retóricas. Em seguida, perceberemos a transformação que a noção do trabalho
literário sofrerá, permitindo que os críticos elaborem perfis a partir de outro conjunto de
referências de subjetividade. Entre estes novos temperamentos delineados, nos deteremos
naqueles que intitulamos de Machado Excêntrico, Sábio Filósofo, Deus em Miniatura e
Artista Melancólico.

4.1 Mestre cortês: o ideal artístico na retórica cortesã

A maior parte das resenhas anteriores à publicação de Memórias Póstumas de Brás


Cubas apóia-se no tom de corte, e julgam Machado a partir das características consideradas
adequadas a um comportamento e literatura sociáveis, mas ainda encontraremos referências a
essas características do universo cortesão mesmo após essa linha divisória em sua obra.
Dentre estes traços o que parece ter maior destaque é a sua suposta modéstia197, e esta virtude
é uma função importante aos parâmetros de julgamento da arte nas condições da corte198, mas
não a única. A recepção literária e as expectativas acerca a literatura durante a predominância
do padrão de gosto cortesão199, ou mais propriamente da combinação entre extratos da corte e

_______________________________________________
197
A.D Hubert. Currier Du Brésil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1861. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003, p. 37. Sem Assinatura. A Saudade, Rio de Janeiro, 15 de
setembro de 1861. Idem, p 38. A modéstia é ressaltada ainda nas resenhas de Salvador Mendonça: Sem assinatura –
Ubiratan Machado atribui à Salvador Mendonça. O Novo Mundo, Nova York, agosto de 1876. Idem p. 104; e, também na
resenha seguinte de Artur Azevedo assinada com suas iniciais: A.A. O Paiz, Rio de Janeiro, 18 de março de 1900. In:
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 406.
198
A modéstia e sua relação com a sociabilidade cortesã foi discutida no primeiro capítulo em tópico específico.
115

da cidade do Rio de Janeiro, formam uma cultura, cujas categorias de regulação, descritas
anteriormente, são vigilantes a respeito da polidez, modéstia, vivacidade e naturalidade200. E
devido a essas expectativas da literatura tecida neste ambiente, Machado recebe,
reiteradamente, alcunhas como fidalgo d’alma201, simpático202, cavalheiro e recatado203 para
ressaltar sua polidez; ainda outros qualitativos para representar a vivacidade como a ideia de
juventude e espírito moço204, acrescentado ainda da designação de temperamento de
prosador205 e causeur206, estes últimos associados à sua apurada arte de conversação.
Trataremos aqui apenas as readequações desse “sistema de modelagem” da
subjetividade, a forma como essas referências cortesãs persistem entre os críticos mesmo na
fase madura de Machado de Assis. Podemos perceber nas citações seguintes como os autores
das resenhas descrevem Machado em sociedade e como esta descrição está preenchida destes

199
Norbert Elias chama atenção a relação entre cultura e o padrão de gosto, em uma tentativa de encadear o conjunto de
signos sociais e como estes se reproduzem na estética. No caso estudado por Elias, é chamada a atenção para o
descompasso das aspirações estéticas de Mozart em relação ao padrão de gosto cortesão. ELIAS, Norbert. Mozart:
Sociologia de um Gênio. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1995. p. 17. Independente da validade ou não do argumento
de Elias para a análise da biografia de Mozart, é interessante essa categoria “padrão de gosto” por representar uma busca
pela correlação entre referenciais sociais e elementos estéticos, o que amplia a definição de cultura.
200
A categoria de naturalidade será tratada na discussão sobre o trabalho artístico, logo em seguida a este tópico.
201
Dr. Fausto – pseudônimo de Augusto Fausto de Sousa. Semana Illustrada, Rio de janeiro, 19 de maio de 1972. In:
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004, p. 311.
202
Araucárius – pseudônimo desconhecido. O Novo Mundo, Nova York, 22 de fevereiro de 1875. Idem, p. 320. José
Anastácio - possível peseudônimo de Teófilo Guimarães. O tempo, Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1892. Idem, p. 373.
Magalhães de Azeredo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 de abril de 1892. Idem, p. 380. Oliveira Lima. Correio da
Manhã, Rio de janeiro, 03 de janeiro de 1908. Idem, p. 450.
203
Magalhães de Azeredo descreve machado como “perfeito e distinctissimo cavalheiro”. Magalhães de Azeredo. O Estado
de S. Paulo, São Paulo, 19 de abril de 1892. Idem, p. 379; Wlafrido Ribeiro, mais rico em adjetivos, ressalta seu recato,
timidez e pudor. Walfrido Ribeiro. Os Annaes, Rio de Janeiro, 05 de novembro, de 1904. Idem, p. 435. Valentin
Magalhães, ao destacar o equilíbrio como principal característica de Machado, afirma, logo em seguida, que “Machado de
Assis tem horror que chamarei orgânico pela violência; não emprega nunca as tintas cruas, as notas extremas. Na ideia
como na expressão evita escrupulosamente ir às de cabo”. Valentim Magalhães. O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 de
outubro de 1895. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003,
p. 186-187; Medeiros e Albuquerque também chama atenção para o “recato de sua personalidade” e o pudor em mostrar-
se abertamente ao o público, e como este recato comparece em sua poesia, tirando “[...] aos seus versos o que nós estamos
habituados a encontrar na poesia: a manifestação mais que completa, exagerada, dos sentimentos dos poetas, prontos
sempre a nos contarem por miúdo todas as suas dores, todas as suas alegrias”. J. dos santos - pseudônimo de Medeiros e
Albuquerque. A Notícia, Rio de Janeiro, 25-26 de maio de 1901. Idem, p. 252.
204
Valentim Magalhães destaca que Machado é “[...] moço ainda pelo frescor e tesura do estilo e pelo peregrino encanto da
imaginação”. Valentim Magalhães. O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 de outubro de 1895. Idem, p. 184. Magalhães de
Azeredo, nessa mesma apreensão da juventude, ressalta a vitalidade de Machado: “Sempre moço, ele deseja estar a frente
dos moços, combater com eles, com eles ir caminhando pelo futuro adiante”. Magalhães de Azeredo. Revista Moderna,
Paris, 5 de novembro de 1897. Idem, p. 190. Na mesma linha Alcindo Guanabara o chama de “espírito sempre moço”.
Pangoss - Pangloss era o pseudônimo de Alcindo Guanabara. A Imprensa, Rio de janeiro, 29 de julho de 1908. In:
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004, p. 449-450.
205
L. F. - possivelmente Leopoldo de Freitas. Kosmos, Rio de Janeiro, dezembro de 1904. Idem, p. 442.
206
ARARIPE JÚNIOR. Machado de Assis. In: Revista Brasileira. Laemmert & C. Editores. Rio de Janeiro, 1895. p. 24.
116

pressupostos cortesãos, permitindo-nos, ainda, identificar as similaridades entre seu


comportamento e sua literatura, como é possível notar nessa passagem de Valentin
Magalhães:

Não tem, nas letras como na vida, um inimigo, um desafeto sequer. Terá muitos amigos? Em
geral só quem tem inimigos tem amigos.
Machado de Assis, com a amarga e dolorida experiência que dos homens mostra em seus
livros, e com juízo que deles forma, não se iludindo sobre o móvel das mais belas ações, que é
para ele sempre e somente o egoísmo, Machado de Assis não deve ter vontade de ter amigos.
Tê-los para quê? Se o perdê-los é certo.
A verdade é que no mundo literário todos lhe querem bem; primeiro, porque, se faz sombra a
todos, não lhes disputa, contudo, lugares nem louvores, e demais procura tornar aquela
sombra o mais leve e diáfana que pode; segundo, porque é extremamente polido, amável e
cerimonioso. É desses homens cujas relações a gente mantém, cuidadosa, porque eles, quando
nos cumprimentam nas ruas, fazem-no de modo a nos darem importância aos olhos do
207
público. Não fosse ele mestre da vida!

A referência à modéstia e polidez é bastante nítida neste quadro de Valentin


Magalhães e é curioso que a modéstia não se choque com este suposto ceticismo da fase
madura de Machado de Assis, demonstrando que mesmo com a mudança estética de sua obra
após Brás Cubas, ainda pode-se vislumbrar a persistência da crítica em caracterizá-lo a partir
dos referenciais do modelo cortesão de comportamento. E, na percepção de Valentin
Magalhães, a polidez e a modéstia são traços marcantes do comportamento em sociedade do
criador de Brás Cubas, que apesar de ser um mestre em termos literários, se faz mestre,
também, na vida, em seu comportamento exemplar e humilde, apesar do reconhecimento que
dispõe. Outro a seguir esta mesma linha é Artur Azevedo, ao também dar ênfase à modéstia e
polidez para caracterizá-lo208:

E no meio de todos nós, que lhe quizemos bem muito antes de saber o que pensava o Mestre
dos nossos grandes ou pequenos predicados de espirito, elle é simplesmente um vivo e alegre
camarada, que se faz rapaz com os rapazes, que não nos dá o louvor a juros ou com a intenção
de agremiar caudatarios, mas que nos adverte e estimula, para nos ver triumphar em toda a
209
linha nobremente e sem ódios.

_______________________________________________
207
Valentim Magalhães. O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 de outubro de 1895. MACHADO, Ubiratan. Machado de
Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003, p. 186.
208
Há um trecho de outra resenha em que Artur Azevedo comenta de forma mais direta a polidez e reserva de Machado de
Assis, e afirma que, apesar de ser “[...] o primeiro dos nossos escriptores mortos e vivos, não anda a badalar aos quatro
ventos que vai publicar este ou aquelle volume. Tem horror ao annuncio e ao espalhafato. Faz como as senhoras pudicas e
discretas que, se concebem, ficam em casa para não dar em espectaculo a sua gravidez”. A.A., iniciais de Artur Azevedo.
O Paiz, Rio de Janeiro, 18 de março de 1900. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o
romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 406.
117

Fazer-se “rapaz com os rapazes” é um atributo designado por Artur Azevedo para
enfatizar o fato de Machado procurar nivelar-se àqueles do seu trato em sociedade, e assim
evitar a relação de assimetria, apesar da insistente denominação que lhe é dada de mestre,
tanto por Valentin Magalhães210 como pelo próprio Artur Azevedo. Além desse significado
importante para a polidez, o trecho acima nos permite compreender ainda outros aspectos,
pois a frase “se faz rapaz com os rapazes” é antecedida pela sua descrição de “um vivo e
alegre camarada”, com a intenção de ressaltar justamente a leveza do seu convívio, a sua
vocação para ser amável e agradável, de retirar os interesses e cálculos de ascensão ou status
das suas interações sociais. E isto torna Machado em um modelo condensado desse espírito da
sociabilidade de corte, ou melhor, da ville e da cour.
Apesar da nítida continuidade do padrão cortesão, que ampara o julgamento do
comportamento alheio a partir das expectativas acerca a personalidade ideal condizente ao
ambiente de sociabilidade, apesar dessa continuidade, as duas citações anteriores também nos
mostram certas mudanças. E a maior mudança que pode ser depreendida dessas duas
passagens é a própria alcunha de mestre211. Em sua fase madura já não encontramos as
advertências aos riscos da soberba, as recomendações de modéstia, a indicação de ser
necessário maior vivacidade, entre outras exigências. Até mesmo certos ares pesados de
pessimismo e ceticismo, tal qual advertido por Valentin Magalhães, convivem, sem tensão,
com a modéstia, sem comprometer seu tom vivaz e humilde. Machado agora nos é
apresentado de uma forma compacta, em um quadro preciso, sem contradições, e à crítica não
cabe mais apontar dissonâncias de seus textos, e sim indicar como é possível aprender com
ele. Portanto Machado se transforma em um modelo, e, para tanto, sua própria subjetividade
passou a ser dotada de uma sistematicidade, em que todas suas características compõem um

209
Artur Azevedo cita Arthur Barreiros, O Álbum, Ano I, nº 2, Rio de Janeiro, janeiro de 1893. In: GUIMARÃES, Hélio de
Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP,
Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 400.
210
Em outra passagem, Valentin Magalhães atesta a importância de Machado de Assis a outros artistas nacionais, que o
consideram um mestre, visando, assim, legitimar a própria denominação escolhida por ele. “Todos lhe (Machado de Assis)
chamam mestre, mesmo aqueles que, como Ferreira de Araújo, Olavo Bilac, Arthur Azevedo, Coelho Neto, têm nome feito
e reputação firmada”. Grifo meu. Valentim Magalhães. O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 de outubro de 1895. In:
MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 184.
211
Além de Valentin Magalhães e Artur Azevedo muitos outros autores de resenhas passaram a considerar Machado de Assis
um mestre, entre eles: Abdiel. A Estação, Rio de janeiro, 28 de fevereiro de 1881. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 352; Magalhães de Azeredo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abril de 1892. Idem,
p. 376. Arthur Barreiros. O Álbum, Rio de Janeiro, janeiro de 1893. Idem, p. 400; Alcides Maya. O Paiz, Rio de Janeiro, 8
de outubro de 1904. Idem, p. 431;Pangoss - Pangloss era o pseudônimo de Alcindo Guanabara. A Imprensa, Rio de
Janeiro, 29 de julho de 1908. Idem p. 448; Baptista Júnior. O Commercio de São Paulo, São Paulo, 16 de agosto de 1908.
Idem, p. 463; Salvador de Mendonça. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 6 de setembro de 1908. Idem, p. 468; Mario
de Alencar. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 24 de julho de 1908. Idem, p. 475
118

quadro unívoco, que não admite retoques. Isso pode ser atribuído ao próprio amadurecimento
de Machado, que alcança um status diferenciado após as Memórias Póstumas de Brás Cubas,
mas, a tentativa em conciliar características como pessimismo e vivacidade seriam
impensáveis nos padrões da sociabilidade cortesã. Portanto, apesar da permanência da
“cultura” da sociabilidade, os parâmetros de julgamento ganharam uma flexibilidade que
aponta a alteração do padrão estético. Ou, como defendemos aqui, uma proliferação de linhas
estéticas.
Esta busca pela conciliação entre características que seriam contraditórias sob a lógica
da sociabilidade cortesã, mas que passam a ser usuais a partir das Memórias Póstumas, se
evidencia ainda mais quando as resenhas tratam a relação entre arte e trabalho, que fatalmente
redefiniu a categoria cortesã de naturalidade.

4.2 O artista trabalhador entra em cena

É muito usual nas críticas dos jornais, e até nos estudos com maior aprofundamento,
como o de Sílvio Romero, a advertência da possibilidade do emprego público de Machado no
Ministério de Agricultura poder se tornar um empecilho à atividade literária212. Apesar de sua
aparente banalidade, esta questão é bastante interessante para se pensar as categorias sociais
vigentes no período, pois se trata de uma oposição nítida entre arte e vida burguesa. Não a
vida burguesa em seu sentido atrelado estritamente às posses ou a dominação dos meios de
produção vinculados à modernização industrial, ou seja, não por suas características
estritamente materiais. Esta advertência a Machado, por cautela na condução de sua vida para

_______________________________________________
212
Machado de Assis inicia a carreira burocrática em abril de 1867, quando foi publicada sua nomeação para o cargo de
ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial. In: MAGALHÃES JUNIOR, R. Vida e Obra de Machado de Assis:
volume 2, Ascensão. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981. p. 9. Uma etapa importante dessa ascensão na carreira
burocrática foi sua promoção, em 28 de março de 1880, para Oficial de Gabinete do Ministro da Agricultura, Manuel
Buarque de Macedo. Esta promoção foi noticiada por Raúl Pompéia, com a advertência de que “O governo vai absorvendo
os poetas”, o que poderia recair em prejuízo para o próprio Machado de Assis, pois seria “[...]um desastre se o official de
gabinete absorver o litterato”. Raul D - abreviação de Raul d’Ávila Pompéia. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 3 de abril
de 1880. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de
literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 345-346. Em 1889 Machado foi promovido a
diretor da Diretoria de Comércio do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em decreto assinado a 30 de
março. MAGALHÃES JUNIOR, R. Vida e Obra de machado de Assis: Volume 3, Maturidade. Civilização Brasileira,
Rio de Janeiro, 1981. p. 134.
119

não deixar-se absorver pela sina de funcionário, implica uma recusa por atrelar a arte a este
espírito disciplinado e imerso nas banalidades rotineiras de certa feição da vida burguesa. Um
temor pelo controle da imaginação por uma esfera de vida mais prática e metódica, baseada
na ausência de aspirações para a elevação do espírito devido a uma lógica pragmática frente
os cálculos corriqueiros dos pequenos interesses habituais. É como se houvesse uma oposição
entre, de um lado, a disciplina e pragmatismo comuns à vida burguesa e à mediania da ideia
de funcionário, e, de outro lado, a esfera da vida exclusivamente artística.
Essa crítica, ou advertência, está mais relacionada, neste caso específico, à negligência
do gênero daquelas defendidas pelos “honêtte homme” em face ao trabalho, do que a
aspiração pela autonomia da arte. São sobrevivências da própria vida cortesã, cuja dedicação à
elegância e sofisticação cultural era tida como incompatível com a esfera das necessidades.
No entanto, apesar dessa sobrevivência, alguns críticos apontam para uma tendência oposta, e
partem do princípio de que a disciplina de origem burguesa é, pelo contrário, uma das grandes
qualidades de Machado, como podemos ver nessa citação seguinte:

Eis em rápidos traços a vida official do poeta, que ao primeiro lance d’olhos se nos afigura
destituida de accidentes, sem lutas, e semelhante na tranquilidade á daquellas matronas
romanas, em cujas sepulturas os coevos epigraphavam o celebre distico: foi honesta e fiou
lan. O segredo, porém, desta tranquilidade, observada na carreira burocratica de Machado de
Assis, encontra-se na correcção do funccionario e no mais decidido horror á vida politica
activa, cortezan desbragada que ás letras brazileiras tem arrebatado os seu mais bellos
talentos. Não tendo a politica conseguido seduzil-o, volveu-se o seu espirito inteiro para a arte
213
e para o bello.

Assim, a “correção do funcionário” é vista por Araripe Junior como um fator


estimulante para a arte, e, de alguma forma, afugenta outras seduções, como a vida política.
Ressalta-se, portanto, a necessidade de tranqüilidade da vida artística, de certa proteção em
relação às excitações da vida social, encaradas como dispersão, tal como a atração da vida
pública parecia exercer. Deste modo, ao invés de compreender a disciplina do funcionário
como algo que impediria a liberdade, ela, na verdade, pelo menos em relação à Machado de
Assis, é compreendida como um fator que proporcionava uma espécie de liberdade bastante
adequada à vida literária, por permitir a tranqüilidade para o exercício da “atividade”. De fato,
esta é uma grande transformação, e a percepção da imagem de Machado a partir disso é bem
sintomática de uma possibilidade de correlação entre vida burguesa e arte que anteriormente

_______________________________________________
213
ARARIPE JÚNIOR. Machado de Assis. In: Revista Brasileira. Laemmert & C. Editores. Rio de Janeiro, 1895. p. 23.
120

não era possível214. Esta nova forma de vida, que associa a arte à disciplina burguesa, mais
precisamente, entre a arte e a disciplina desdobrada da noção burguesa de trabalho, tem
conseqüências nos próprios parâmetros de definição do temperamento de Machado. Assim, é
necessário identificar a mudança na maneira como este temperamento passa a receber outras
características na medida em que se alteram os próprios parâmetros de julgamento da
subjetividade artística.
Muitas vezes, no início da vida literária de Machado, os críticos chamavam a atenção
para sua simplicidade, o que leva um crítico de pseudônimo Rigoleto a designá-lo como
suavissimo poeta215, por ser dotado da capacidade de polir constantemente a matéria bruta da
arte, até torná-la aparentemente simples. Esta é uma das principais características do modelo
cortesão de arte, a referência à naturalidade da atividade criativa, com a ambição de
impressionar a partir da acentuação da própria originalidade em detrimento de todo o peso do
trabalho árduo relacionado à confecção da obra de arte. Assim, parece que a arte brota
naturalmente desse indivíduo vigorosamente dotado, deste talento robusto216, que não ostenta
os sacrifícios, dedicação e muito menos o cálculo cotidiano para expressar da maneira mais
simples, e assim dissimular não somente o peso do trabalho, como, ainda, o próprio artifício
da arte.
A categoria “naturalidade” tem desdobramentos também na esfera mundana da corte,
em que a sofisticação das maneiras na interação entre seus integrantes também é dissimulada,
na pretensão de converter os indivíduos em uma “forma de arte” marcada pela
espontaneidade, que simula o próprio desleixo para não aparentar afetação. Este
comportamento baseado na naturalidade é completamente oposto a noção moderna de
trabalho, sob a vigilância sistemática dos princípios racionais. É um refinamento que

_______________________________________________
214
Há um interessante debate entre Lukács e Thomas Mann justamente sobre este ponto, em que ambos afirmam que a forma
de vida burguesa alemã, da segunda metade do século XIX, seria o modelo de modelagem da subjetividade de inúmeros
artistas alemães, em oposição a uma imagem corrente na França que associava a arte com a vida boêmia. Lukács investiga
esse ponto na própria obra de Tomas Mann, e o autor de Buddenbrooks responde em um ensaio em que debate mais a
fundo essa relação entre arte e vida burguesa. As referências podem ser encontradas em: LUKÁCS, G. The Bourgeois Way
of Life and Art for Art’s Sake. In: LUKÁCS, G. Soul and Form. The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1980; e
MANN, Thomas. Reflections of a Non-Political Man. Frederick Ungar Publishing Co., New York, 1983.
215
Rigoleto - pseudônimo não identificado. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 11 de abril de 1878. GUIMARÃES, Hélio de Seixas.
Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 337
216
Vercigentorix - Antônio José Vitorino de Barros. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1866. MACHADO,
Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 69.
121

demanda, principalmente, o ócio. O “ócio” peculiar aos dândis217, que fazem da própria vida
um projeto de refinamento artístico, avesso às massificações do comportamento e que
representa uma das últimas formas de heroísmo do homem moderno218. No Brasil a referência
aos dândis era usual, sendo mais conhecidos como “Leões do Ouvidor”, por fazerem da
famosa rua no centro do Rio de Janeiro o local habitual para suas aparições públicas, tal como
alguns personagens dos romances urbanos de José de Alencar, que recorre freqüentemente ao
termo. Mas havia também importantes intelectuais que receberam essa alcunha, cuja
sofisticação das maneiras e dos seus trajes tornou-se famosa, como Joaquin Nabuco, que
ainda na juventude era conhecido como “Quincas, o Belo”219. No entanto, do ponto de vista
do próprio comportamento em sociedade, não há figura mais distante do dândi que Machado
de Assis, principalmente porque a imagem de alguém proveniente de uma origem humilde é
algo com o qual conviveu desde sua estréia.

_______________________________________________
217
Balzac é taxativo na definição do dândi como um ocioso. No entanto, é necessário salientar que essa concepção de ócio
não é a do tempo livre, isento de qualquer afazer. O ocioso é aquele que não depende de um trabalho fixo, uma ocupação
no sentido burguês. Todo seu tempo e energia se volta para a distinção através da rotina em tornar o supérfluo e o banal
uma matéria artística. “Para distinguir nossa vida pela elegância, não basta mais hoje, pois, ser nobre ou acertar uma
quadra numa das loterias humanas, é preciso também ter sido dotado dessa indefinível faculdade (o espírito de nossos
sentidos talvez!) que nos leva sempre a escolher coisas verdadeiramente belas ou boas, coisas cujo conjunto combina com
a nossa fisionomia, com o nosso destino. Trata-se de um tato refinado, cujo exercício constante é a única coisa que pode
fazer com que se descubram subitamente as relações, se prevejam as conseqüências, se adivinhe o lugar ou o alcance dos
objetos, das palavras, das ideias e das pessoas; pois, para resumir, o princípio da vida elegante é um elevado pensamento
de ordem e de harmonia, destinado a dar poesia às coisas”. BALZAC, H. Tratado da vida elegante. In: TADEU, Tomaz
(org). Manual do dândi: A vida com estilo. Editora autêntica, belo Horizonte, 2009. p. 46. Não há ócio mais
cuidadosamente estilizado com rigor e esmero, do que essa definição de elegância transcrita acima, na busca em tornar a
própria vida uma obra de arte.
218
O dandismo é um fenômeno peculiar durante o século XIX, e Baudelaire, em seu ensaio sobre Constantin Guy, dedica-se
a abordar diretamente o assunto. Ele explica o dandismo do século XIX através da teoria de que a transição entre a
aristocracia e a democracia gerou, para alguns, essa sofisticação extrema das maneiras e da forma de se vestir, em um
acentuado desejo por distinção. É nesse contexto que Baudelaire afirma que o dândi busca fundar uma nova forma de
aristocracia, baseada na elegância, e que é um fenômeno diretamente vinculado à decadência social, ao afirmar que o
“dandismo é o último rasgo de heroísmo nas decadências”. BAUDELAIRE. Charles. O pintor da vida moderna. In:
BAUDELAIRE, Charles. A modernidade em Baudelaire. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988. p. 196. Balzac, em menção
direta a ditos famosos de um dos mais conhecidos dândis do século XIX, o inglês George Brummell, baseia-se em vários
aforismos para definir a vida elegante. E, ao contrário do que se supõe, ele trata o dandismo como uma espécie de religião,
com uma extrema autodisciplina para viver de acordo com seus pressupostos estéticos. Disciplina dissimulada, tendo em
vista que o artifício e o esforço devem ser encobertos, como se o comportamento fosse natural e espontâneo. BALZAC, H.
Tratado da vida elegante. In: TADEU, Tomaz (org). Manual do dândi: A vida com estilo. Editora autêntica, belo
Horizonte, 2009.
219
Ubiratan Machado menciona a atração que Quincas, o Belo, exercia nos salões aristocráticos na época do romantismo
brasileiro, fazendo menção direta à pretensão do jovem Nabuco de encarnar um dândi. MACHADO, Ubirantan. A vida
literária no Brasil durante o romantismo. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2001. p. 134. Outro a quem normalmente é
relacionado ao dandismo é João do Rio, chamado de “D’Orsay de chapéu-coco, monóculo e polainas”. BROCA, Brito. A
vida literária do Brasil – 1900. José Olympio, Rio de Janeiro, 2004. p. 56. Nas duas referências ao dandismo no Brasil,
percebe-se mais o seu tom caricatural, quase de afetação, do que propriamente a maneira pela qual se compreende o
dandismo nas apreensões de Baudelaire e Balzac já citadas. No entanto, este tom de caricatura é interessante ainda assim,
por ajudar a compor os modelos de subjetividade que inspiravam o comportamento de literatos brasileiros.
122

Quem não conhece Machado de Assis? Na republica das lettras quem não se admira de um
homem todo espirito, cujo invólucro terreno faz lembrar a Baptistina irman de Benvindo
Miriel, a qual tinha um corpo que era um pretexto para uma alma viver na terra?
Fidalgo d’alma, o mavioso poeta das Crysalidas e das Phalenas há trabalhado tanto que fez da
obscuridade da sua origem o melhor titulo de sua grandeza actual.
[...]
Não é por ser trigueiro que a limpeza d’alma lhe sobresahe no rosto, mas, porque Deus
220
compraz-se em fazer de um rosto feio um límpido espelho de consciência .

De fato, não há descrição mais oposta ao dandismo do que as linhas acima, e o rosto
feio é uma constatação direta a isso. Entretanto, este retrato que destaca a humildade, a
discrepância entre límpido espelho da consciência e o rosto feio, ou, ainda, da fidalguia
d’alma e a obscuridade de sua origem, tomam contorno na imagem cristã da verdadeira
pureza, de um talento inato, portanto, sem artifícios. Dessa maneira, a passagem acima, ao
afirmar que Machado há trabalhado tanto que fez da obscuridade da sua origem o melhor
titulo de sua grandeza atual, não pode ser compreendida como uma ética do trabalho a
romper as barreiras sociais de sua origem humilde. É uma imagem que refaz a ideia de
naturalidade, não em sua variante dandismo, mas de um talento inato, original, que apenas
precisa ser polido. É nesta referência de trabalho entendido como polimento, também cortesã,
que precisamos compreender não somente o trecho acima, mas a atribuição de naturalidade à
Machado em seus primeiros anos de poeta e romancista. A própria referência à ideia de polir,
muito usual entre os críticos, tem grande peso, e revela a compreensão diferenciada de
trabalho, principalmente o trabalho artístico, tal como a arte é entendida neste período.
A compreensão de trabalho como polimento persistirá como figura retórica
praticamente até a morte de Machado221. Entretanto, já na recepção crítica das Memórias
Póstumas um novo significado para o trabalho também ganha espaço, e fica evidente neste
trecho que leva a assinatura D. Junio, em que o autor afirma que Machado de Assis “[...] é

_______________________________________________
220
Dr Fausto - pseudônimo de Augusto Fausto de Sousa. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, 19 de maio de 1872.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 311.
221
Leopoldo de Freitas menciona o fecundo “engenho literário” de Machado, cujo livro Esaú e Jacó é “uma dessas jóias de
finissimo cinzelamento”. L. F. - possivelmente Leopoldo de Freitas. Diário popular, São Paulo, 5 de dezembro de 1904.
Idem, p. 442; Alcindo Guanabara afirma que os trabalhos literários de Machado são feitos com vagar, amor e cuidado.
“Polidos, limados, uma, duas, dez, cem vezes, tantas quantas foram precisas para que ficassem impeccaveis”. Pangoss -
Pangloss era o pseudônimo de Alcindo Guanabara, A Imprensa, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1908. Idem, p. 448; Baptista
Junior menciona a pureza extrema dos seus períodos, “cinzelados com tanto carinho e tanto amor”. O Commercio de São
Paulo, São Paulo, 16 de agosto de 1908. Idem, p. 464. Xavier de Carvalho chama atenção para sua “cinzeladura
aristocrática da frase”. Le Messager Du Brésil. Paris, 29 de outubro de 1882. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 140
123

uma organização essencialmente litteraria e, sobretudo, um talento provadamente


progressivo: vence-se constantemente”222. Desta maneira, se antes a ideia de literato,
constituição literária ou até temperamento literário vinham associadas à polidez,
sensibilidade, delicadeza ou pudor - ou seja, os modelos de virtude do universo mundano de
parte da aristocracia e homens cultos de origem não aristocrática -, a partir deste instante
surgem outros significados da arte, associados à noção de trabalho como progressão contínua,
como forma de auto-superação. A subjetividade compreendida como um processo de auto-
modelagem incessante contrasta com a noção de talento e naturalidade inatos, que brotam
espontaneamente, independente da origem. Entretanto, a crítica, de uma maneira geral, evita
levar adiante a consideração desse contraste, e apesar de admitir o trabalho como progressão,
ainda assim, preserva o sentido de originalidade nativa223. Mas continuemos a seguir certos
rastros dessa noção de subjetividade progressiva, e ver a extensão dessa pequena
transformação para a compreensão da arte.
O mesmo sentido de conciliação entre contrastes pode se verificar na relação entre
artifício e naturalidade. Se na primeira perspectiva o trabalho, entendido como esforço, deve
ser dissimulado para dar a impressão de naturalidade, nesta segunda perspectiva o trabalho
aparece como um elemento de valorização, pois o esforço e a disciplina cotidiana para
superar-se compõem uma descrição positiva de Machado. O mesmo crítico que chama
atenção à vivacidade de Machado, que se faz jovem entre os jovens, assim o saúda:

Salve, Machado de Assis, que nos dás o exemplo da força e da sobranceria da arte; que não
esmoreces diante da indifferença, nem da inépcia, nem da maldade; que não fazes concessões
á turba alvar que t’as pede, e de quando em quando vais serenamente, magestosamente, com
224
um livro novo, elevando ainda mais a altura do monumento que a posteridade te reserva.

_______________________________________________
222
D. Junio – provável pseudônimo de José Ribeiro Dantas Júnior. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1881.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 347
223
Arthur Azevedo afirma que Machado é um “escritor de nascença”. A. A. - Iniciais de Artur Azevedo. O Álbum, Rio de
Janeiro, janeiro de 1893. Idem, p. 399; Oliveira Lima indica sua singularidade. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 de
novembro de 1904. Idem, p. 437; A originalidade é ressaltada ainda por Olavo Bilac, que elogia a capacidade de tornar
interessante um ambiente cosmopolita e sem feição própria como o Rio de Janeiro. A Notícia, Rio de Janeiro, 26 e 27 de
novembro de 1904. Idem, p. 440; Baptista Junior ressalta a originalidade deste grande homem de gênio. O Commercio de
São Paulo, São Paulo, 16 de agosto de 1908. Idem, p. 463-464. A originalidade das obras também é apontada por Mario de
Alencar. Jornal do Commercio, 24 de julho de 1908. Idem, p. 475; e, por último, Xavier de Carvalho descreve Machado
como uma “originalidade nativa”, que não pertence a nenhuma escola. Le Messager Du Brésil. Paris, 29 de outubro de
1882. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 140.
124

Onde antes se elogiava a vivacidade, tem-se agora a indiferença, e uma indiferença


marcada de forma positiva, onde a sobranceria da arte infunde a força suficiente para não
esmorecer e assim progredir serenamente na elevação de sua obra. Aqui fica mais evidente a
contradição entre o padrão cortesão, que exige vivacidade e humildade na relação entre o
escritor e seu público, e esta arte sobranceira, altiva e superior, que ignora a precariedade do
gosto do público. Tal indiferença vence-se com a serenidade e seriedade225, certa medida de
frieza vigilante, para evitar qualquer interrupção ou abalo da regularidade do trabalho. Se
antes a justa medida se delineava na ênfase ao entretenimento, agora outra estética artística
parece impor-se, para com isso estabelecer também alguns de seus próprios padrões. Para
entender melhor esses novos padrões é necessário intuir as influências que a
profissionalização da literatura pode ter na inclusão de alguns parâmetros de julgamento da
crítica, que passa a salientar outras características ideais ao literato, sem, contudo, significar
uma ruptura completa com os padrões cortesãos vigentes no Rio de Janeiro, pelo menos não
nesse período analisado. Para isso precisamos investigar mais a fundo as conseqüências da
definição de Machado de Assis como um trabalhador.
São muitos críticos, além dos já citados, que definem Machado como portador de forte
pendor para o trabalho226, e todos enfatizam sua disciplina e meticulosidade. Dentre todos os
qualitativos, um em especial aparece associado ao trabalho e nos fornece uma pista

224
A.A. - iniciais de Artur Azevedo. O Paiz, Rio de Janeiro, 18 de março de 1900. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 408.
225
Franco Moretti demonstra, em um interessante ensaio, como há uma relação entre as mudanças operadas no romance no
século XIX - criação do discurso livre indireto e de um padrão de imaginação mais voltado para a vida habitual - e a
emergência de uma forma de vida burguesa calcada no trabalho. Portanto, imaginação e linguagem seriam reflexos das
transformações culturais e da crescente racionalização da vida social. MORETTI, Franco. O século sério. In: MORETTI,
Franco (org). A cultura do romance. Cosac Naify, São Paulo, 2009. Acredito que é possível acrescentar ainda outras
mudanças a essas transformações de cunho estético, relativas às expectativas diante a imagem de artista: o ideal de uma
artista trabalhador, profissional, e que modela a subjetividade a partir desses princípios racionais derivados da forma de
vida burguesa.
226
Machado de Assis, “[...] sem desfalecimento nem cansaço, mas também sem pressa, foi caminhando sempre, sempre, e
caminhou tanto que quando deram por ele estava à frente da geração nova”. Valentim Magalhães. O Estado de São Paulo,
São Paulo, 31 de outubro de 1895. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio
de Janeiro, 2003. p. 184; “trabalhador consciencioso”. Clóvis Beviláqua. Épocas e individualidades. Estudos literários.
Livraria Magalhães, Bahia, 1895. Ibid Idem, p. 188; Frota Pessoa aponta a “probidade do seu temperamento literário”,
“amor ao trabalho”, e ainda ressalta que sua literatura é fruto de “meticuloso trabalho de arte que sua escrita revela”.
Crítica e Polêmica. Artur Gurgulino, Rio de Janeiro, 1902. Ibid Idem, p. 258; aperfeiçoamento incessante. Magalhães de
Azeredo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abril de 1892. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 378; “trabalhador”. Walfrido Ribeiro, Os Annaes, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1904. Idem, p. 433;
Oliveira Lima indica a unidade de sua obra e ainda ressalta a necessidade de “muita prática e muito trabalho” para o
desenvolvimento de uma literatura de aparência simples. Oliveira Lima, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 de
novembro de 1904. Idem, p. 437; “unidade da concepção dos trabalhos”. J. dos Santos - pseudônimo de Medeiros e
Albuquerque. A Notícia, Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1908. Idem, p. 469; arte de “execução diffícil”, sem “deixarem
de ter naturalidade”, e resultado de uma “perfeição crescente”. Mario de Alencar. Jornal do Commercio, 24 de julho de
1908. Idem, p. 475 e 482.
125

interessante. Na resenha de Walfrido Ribeiro ele designa Machado como um indivíduo


inteiriço227, e este uso nos remete diretamente a acepção de uma personalidade sistemática,
onde todas as características compõem um universo bem definido, uma unidade coesa e
indivisa. Um modelo de subjetividade artística muito diversa de como Baudelaire define o
pintor moderno e a si próprio como poeta, que cria a arte como se estivesse em uma luta de
esgrima, ao pintar de memória e de forma feérica a vida que lhe escorre para assim extrair a
“fantasmagoria da natureza”228. Esta descrição de Machado como um escritor dotado de
personalidade inteiriça indica uma noção de subjetividade muito distinta, mais auto-centrada e
definida de forma racional, e, por isso, todas suas características são identificadas como se
estivessem articuladas, erigidas em sistema. Sua obra seria o resultado da unidade de seu
temperamento, e também compõe uma espécie de sistema, em que são observadas
continuidades desde a primeira poesia até o último romance, como se todos fossem resultado
de um conjunto de reflexões conectadas, sendo as obras da maturidade apenas um
aperfeiçoamento de um conjunto de questões já esboçadas desde o início. Vida e obra são
tratadas como se compusesse uma unidade, resultado de uma força criativa do próprio artista,
o que torna suas escolhas e seu comportamento no plano mundano, assim como seus escritos,
desdobramento desse núcleo coerente, seu temperamento.

Celebrar Machado de Assis é propriamente celebrar a dignidade e a elevação da obra literária.


Grande coisa é a unidade de uma vida, a convergência invariável de todos os seus dias e todas
as suas horas para um só e mesmo ideal, principalmente quando este é um dos que com mais
pureza resumem o que de divino guarda ainda a Humanidade, no meio das suas mil misérias...
Machado de Assis, tendo-se votado à sua arte desde a adolescência, conservou-se-lhe fiel,
sem hesitações nem desfalecimentos, até hoje que já lhe branquejam os cabelos sobre a fronte
ainda jovem – porque ele, como me dizia numa carta, não é “dos que dão para octogenários”.
229

Este temperamento sistemático, marcado pela dedicação ininterrupta de todas às horas


a um ideal, desde a adolescência, parece adquirir um grau de perfeição capaz até mesmo de
suprimir o tempo. Se antes a juventude aparecia associada apenas à vivacidade e naturalidade,
agora se apresenta, também, como um caráter incorruptível diante o envelhecimento, um

_______________________________________________
227
Walfrido Ribeiro. Os Annaes, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1904. Idem, p. 435.
228
BAUDELAIRE. Charles. O pintor da vida moderna. In: Baudelaire, Charles. A modernidade em Baudelaire. Paz e
Terra, Rio de Janeiro, 1988. p. 173.
229
Magalhães de Azeredo. Revista Moderna, Paris, 05 de novembro de 1897. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 190.
126

caráter dotado em alto grau da força criativa e cujo vigor não esmorece com o passar dos
anos. Esta força se materializa descritivamente na imagem de coerência, na perfeita
articulação entre um conjunto de valores e uma poderosa e convincente visão de mundo,
perfeição desenvolvida através do esforço, da dedicação incessante.
Se no modelo cortesão o trabalho aparecia como polimento, marcado, portanto, pelas
relações sociais, onde a vivacidade e naturalidade preponderavam no contato social assim
como na linguagem literária, com esta nova compreensão de literatura vinculada a ideia de
trabalho, surge o elogio à auto-disciplina, e mesmo que a naturalidade ainda seja uma meta,
um objetivo artístico, ainda assim, não precisa se omitir o esforço, a dedicação, e, com isso, a
própria artificialidade. Pois, nesse modelo, a originalidade não é capaz de se tornar criativa
sem o aperfeiçoamento, e um tipo específico de aperfeiçoamento, que independe do contato
social, já que a auto-disciplina que viabiliza essa progressão constante é próxima ao heroísmo
burguês descrito por Weber, e baseia-se mais em uma ética da convicção do que da
adaptação230. Trata-se de uma poderosa correlação entre subjetividade e trabalho, e,
principalmente, entre racionalização e talento. Podemos falar em racionalização devido à
forma com que nos apresentam todas as características de Machado, similares a um sistema,
portanto sem contradições, e que efetiva sua personalidade na organização cotidiana da vida.
Por outro lado, essa racionalização é apenas um meio de realização do imperativo subjetivo,
já que se trata de uma originalidade. Dessa maneira, toda essa forte organização da vida,
vinculada a uma ética do trabalho, está a serviço deste temperamento forte, que não faz
concessões ao meio ou às exigências contingenciais - por isso seu caráter atemporal -,
portanto não se corrompe diante às milhares de demandas fortuitas que surgem da vida
cotidiana e das relações sociais.

_______________________________________________
230
Para ilustrar o auto-centramento ético do moderno empresário burguês, Weber faz a descrição é de um empresário da
indústria têxtil que, em meados do século XIX, chega a uma pequena cidade ainda em um contexto de comercio
tradicionalista e que, com os métodos racionais de organização da produção e distribuição produziu toda uma
transformação no cenário local. Seu padrão de comportamento não orientou-se pela tradição comercial da pequena cidade,
marcada por um ritmo mais lento e com relações entre produtores, comerciantes e consumidores, baseados em laços
tradicionais, pelo contrário, pois orientou-se a partir de métodos próprios e que implicavam grande sacrifício pessoal.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2006. p 58 à
61. Weber apresenta essa estória como um exemplo fictício para ilustrar como a racionalização das etapas de produção e o
sacrifício pessoal estaria mais na base do impulso do capitalismo do que propriamente o capital excedente. Marianne
Weber chama atenção que esse exemplo foi retirado da experiência vivida pelo seu próprio avô, Karl David Weber, a quem
Weber estudou a personalidade “como um exemplo de moderna iniciativa privada”, ao mudar-se para o campo e
desencadear o processo descrito por Weber, provocando irritação em seus pares. WEBER, Marianne. Weber: uma
biografia. Casa Jorge Editorial, Niterói, 2003. p 208-209.
127

4.3 O excêntrico Machado: a retórica cientificista

Comecemos diretamente com o trecho em que Araripe Junior ressalta seu juízo
naturalista e intitula Machado de “narciso literário”.

Machado de Assis continuou sua vida com a pertinácia de que são capazes os narcisos
litterarios. Apaixonado do proprio espirito, procurando em toda parte o reflexo de si mesmo,
nos livros, nas bibliothecas, nos museus, nas collecções, nos jornaes, nos theatros, nos salões,
nas reuniões de amigos, na rua do Ouvidor; ruminando a originalidade de suas obras, entre a
preocupação do applauso popular e o horror á vulgaridade; flagellado continuamente pela
obsessão do novo e pela imposição dos classicos, Machado de Assis fortaleceu-se na idéa e
aprimorou-se na fórma; mas hoje, como hontem, como em 1870, posso affirmal-o, não mudou
uma linha do seu primitivo eixo. Subiu, subiu muito alto; porém a linha ou as linhas que
prendem o seu papagaio multicor, são as mesmas com que elle o empinava quando menino,
231
isto é, na época em que surgiam os seus primeiros livros.

O trabalhador incansável ganha aqui um sentido pejorativo, ao indicar que o excesso


de produção literária foi reflexo da obsessão de Machado por si mesmo, e de uma obsessão
marcada por elementos contraditórios, fruto da “patológica” tentativa de conciliar o clássico
com o novo, ou o aplauso do público com o horror à vulgaridade. Portanto, esta forma de
trabalho é muito distante da nova concepção ideal de trabalho, e representaria uma versão
decadente e patológica do temperamento sistemático e organizado. Para Araripe Junior,
haveria uma perturbação no temperamento de Machado, devido a sua flexibilidade moral para
adotar características antípodas, cuja conseqüência seria seu temperamento flagelado e
atormentado devido a estes impulsos contraditórios. O escritor fluminense nos é retratado
como um temperamento fragmentado e cheio de tics, manias, idiossincrasias produzidas pelo
excesso de particularidades, como podemos observar neste outro trecho da mesma resenha:

Não pôde exprimir as atrocidades irregulares dos tempos modernos o temperamento que,
espontaneo, se affeiçoou ao modulo dos gregos; e se esse temperamento não tem força para a
contemplação objetiva, acaba por arrojar-se para dentro de si mesmo, transformando os seu
tics, as suas pequenas excentricidades, os accidentes de sua imaginação enclausurada na
232
expectação interior, nos curiosos typos do romance.

_______________________________________________
231
Araripe Júnior, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1892. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 364.
232
Araripe Júnior. ibid idem. p. 365.
128

Portanto, temos aqui diversos níveis de interpretação, que busca a correlação entre o
temperamento do autor e sua obra. O primeiro nível se dá pelo próprio juízo de que os tipos
ficcionais de Machado são excêntricos, e, em um segundo plano, que essa excentricidade se
deriva do próprio caráter patológico de Machado. Seus tics se devem, em outro nível de
interpretação, ao deslocamento histórico de seu temperamento em relação ao seu próprio
tempo, a impossibilidade de conciliar o clássico com o moderno, ou, mais precisamente, a
estética clássica e a estética cientificista da literatura realista/naturalista. Esse aspecto fica
nítido quando Araripe Junior afirma que esse temperamento afeiçoou-se espontaneamente ao
modulo dos gregos, portanto seria inapto para a contemplação objetiva amparada na noção de
método científico. Neste sentido, o próprio modelo de trabalho ao qual Araripe Junior se
baseia é o da racionalização, que implica frieza e distanciamento para o controle da
imaginação artística, características ausentes nessa versão patológica de Machado. A
compulsão da arte subjetiva de Machado não tem sistema, culpa de seu temperamento
incoerente que encontra impulso e motivação no amor a seus próprios tics. Portanto,
Machado, segundo Araripe Junior, seria o oposto de um “inteiriço”, justamente por não ser
dotado da sistematicidade adequada a esse modelo racional de personalidade. O trabalho, em
Machado, assumiria essa forma patológica, pois sua dedicação é retratada como uma espécie
de obsessão por si mesmo, sem disciplina e marcada pelo excesso.
Falta a Machado o equilíbrio entre os traços de seu temperamento, e a ausência deste
equilíbrio é a razão de sua excentricidade. Esta é uma tese recorrente no século XIX, e faz
parte dos novos significados que o termo “temperamento” recebe nesse período a partir da
“teoria” naturalista. O tratamento da literatura pelo crítico, nesse sentido, se assemelha ao de
um médico, que indica o “órgão” doente e que precisa ser corrigido233. A análise literária não

_______________________________________________
233
Ítalo Caroni, em seu ensaio A utopia naturalista, prefácio a edição brasileira do livro de Emile Zola, chama atenção
justamente a este aspecto da teoria naturalista aplicada aos romances, que buscam descrever “[...] a mecânica humana em
funcionamento, mas para detectar o órgão doentio a fim de saná-lo ou extirpá-lo”. In: ZOLA, Emile. Do Romance.
EDUSP, São Paulo, 1995. p. 10. Flora Sussekind, ao abordar diretamente a literatura naturalista no século XIX, afirma que
esta pretensão em diagnosticar a realidade a partir da busca pelos caracteres excêntricos, faz parte da ideologia estética
desta escola literária, cujo principal motivo dos romances era a descrição de certo temperamento, normalmente histéricos,
em meio a situações que ressaltassem suas motivações interiores. SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance.
Achiamé, Rio de Janeiro, 1984. p. Nos apoiaremos na acepção de que, além dos romancistas que escreviam sob a
influência naturalista, os críticos literários, como Araripe Júnior e Sílvio Romero, analisaram alguns escritores a partir da
aplicação dos pressupostos teóricos desenvolvidos pelo naturalismo, e cuja maior expressão se dá em seus estudos sobre
Machado de Assis. Nos Anos de 1930 parece ter-se renovado esse tipo de análise de Machado de Assis a partir de seus
caracteres desviantes, com a indicação, inclusive, de suas doenças físicas - entre elas a gagueira e a epilepsia -, tratando-as
como aspectos significativos para a compreensão de sua obra. Entre estes autores que assumem esta tendência em relação à
Machado, e que são resenhados por Modesto de Abreu, encontram-se Américo Valério, Augusto Meyer, Peregrino Júnior e
129

recebe grandes distinções frente às análises que o crítico realiza da sociedade ou do homem
comum, e a obra seria uma manifestação exata do próprio temperamento do escritor. Deste
modo, através da obra, é possível observar, com um olhar clínico, seus vícios, suas
“nevroses”, tudo aquilo que contribui para a perda de equilíbrio. Dessa forma, o diagnóstico
de Araripe Júnior indica que a ausência de equilíbrio em Machado compromete sua
capacidade literária, pois o seu temperamento parece estar em completo descompasso com a
capacidade objetiva, até mesmo de ter condições de sair de si mesmo para observar o real,
devido o aprisionamento da imaginação, enclausurada na expectação interior. Assim, esta
incapacidade literária para liberar a imaginação de si mesmo, tem como único valor a
possibilidade do autor expressar seu próprio temperamento, servindo de objeto a analise
naturalista, que pode “dissecar” a obra, e apresentar de modo mais bem acabado um
temperamento sui generis e suas patologias.
Silvio Romero segue aparentemente uma direção distinta para afirmar o caráter
excêntrico de Machado. O maior contestador da literatura machadiana no período possui uma
acepção diversa na relação entre trabalho e arte. Apesar de aparentemente elogiá-lo por ser
“[...] um progressivo, um espírito em diferenciação constante”234, e que deveria servir de
inspiração aos moços pelo menos nesse aspecto, Silvio parece ter uma compreensão
depreciativa do vinculo entre ética do trabalho e arte. E isto fica um tanto dissimulado neste
pequeno trecho biográfico sobre Machado:

Não sendo portador de pergaminho, que lhe abrisse a senda de qualquer profissão liberal,
como a medicina, a advocacia, a engenharia ou qualquer outra ao jeito da magistratura, da
diplomacia, do alto magistério, o nosso romancista atirou-se ao funcionalismo público de
ordem administrativa, a princípio no Diário Oficial e mais tarde na Secretaria da Agricultura e
Obras públicas, onde é o chefe de uma das diretorias.
Vida plácida, metódica, sem nada que jamais denunciasse qualquer desvio de boemia;
mediania risonha, enaltecida pela nobreza de sua senhora, inteligente dama portuguesa, irmã
235
do poeta Faustino Xavier de Novaes [...]”.

Aparentemente, o tom é elogioso, mas, certamente, ao identificarmos mais a fundo


como Silvio enxerga o reflexo que essa vida plácida e metódica tem na literatura,
compreenderemos melhor o que ele deseja insinuar. Silvio, em outro trecho, utiliza esse dado
biográfico, da vida plácida e metódica para afirmar que o “[...] humour de Machado de Assis é

Othon Costa. ABREU, Modesto de. Biógrafos e Críticos de Machado de Assis. Alba Oficinas Gráficas, Rio de Janeiro,
1939.
234
ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira. Editora UNICAMP, Campinas, 1992. p.
58.
235
Idem, p. 60-61.
130

um pacato diretor de secretaria de Estado, e o horrível de seus livros é uma espécie de


burguês prazenteiro, condecorado com a comenda da rosa”236. Estes dois trechos em
conjunto torna mais explícita a crítica que Silvio desenvolve sobre a correlação entre arte e
certa ética do trabalho. Se para Araripe Junior o trabalho obsessivo de Machado é resultado de
uma busca narcisista de si próprio, para Silvio ela ganha um formato distinto, e ao invés de
obsessão temos um traço de mediania. Aqui a qualificação dada ao burguês prazenteiro é de
uma espécie de impostor, que, tanto em sua trajetória social como na escolha da expressão
literária, revela o cálculo.
Tudo isso é dito de modo ambíguo, indiretamente, mas pode ser percebido com a
constatação de que esses traços principais do caráter de Machado, o de vida plácida,
metódico, pacato, burguês prazenteiro condecorado com a comenda da rosa, revelam a
ênfase de Silvio em afirmar que ele recusa o conflito, ou, mais precisamente, recusa a
exposição de qualquer opinião que provoque conflitos. Assim, essa placidez, é algo negativo,
como se na verdade a maior preocupação de Machado fosse assegurar uma confortável
posição social. E, deste modo, é possível identificar certa malícia quando Silvio afirma que a
esposa de Machado é detentora de uma nobreza que enaltece a vida metódica de Machado, a
mesma malícia presente em sua afirmação sobre o humorismo pacato de diretor de secretaria
de Estado. Essas insinuações pretendiam levar o leitor a crer que Machado fingia, ou buscava
aparentar, um temperamento distinto do que na verdade possuía, e faria isso com a intenção
de dissimular seu principal objetivo de obter reconhecimento social e elevar sua posição na
sociedade. O casamento lhe teria permitido um status social mais elevado e o humorismo
dissimularia essa sua principal preocupação vinculada à ascensão, que não obteria se
dependesse unicamente de seu talento. Deste modo, a noção de trabalho como esforço é
descrita por Silvio como uma característica inautêntica, condizente com temperamentos
medianos, que se contentam com a comenda da Rosa, com o reconhecimento público, ainda
que imerecido. A mediania e disciplina do funcionário público são correlacionadas, por
Sylvio, aos pequenos cálculos cotidianos daqueles que se preocupam apenas com a aparência,
quase tratando Machado como um “pueril”, um espírito limitado que precisa apelar para o
esforço caso deseje produzir algo com o mínimo valor artístico possível.

_______________________________________________
236
O humor e o horrível são questões relacionadas ao estilo literário, e que normalmente são atribuídas à Machado, mas que
Romero, em seu livro, tenta descaracterizar ao apontar seus traços de temperamento. Idem, p. 162.
131

Entretanto, e nos valendo diretamente da explicação da ascensão social de Machado


descrita por Silvio, nota-se que há uma distinção não tão óbvia entre as profissões liberais,
como as da alta magistratura, e a carreira “escolhida” por Machado, no funcionalismo
público. A intenção dissimulada de Silvio não é destacar o problema em correlacionar a arte e
o trabalho em sentido geral, e sim a mediania do funcionário público, dependente das
garantias do Estado. As profissões liberais se pautariam na necessidade de provar o próprio
valor, condição em sintonia com a característica dessa personalidade inteiriça do verdadeiro
artista, que demonstra sua força. Deste modo, Silvio não quer desfazer a relação entre arte e
trabalho, e sim realizar outra qualificação para o tipo de trabalho do funcionário público,
destacando que este não proporciona a emergência desta subjetividade forte, ao contrário, o
trabalho na secretaria desempenhado por Machado seria um sintoma de sua fraqueza, aliada a
uma necessidade de ascensão com o mínimo esforço, e por isso o cuidado em descrever o
autor fluminense como um burguês prazenteiro, qualitativo que por si só já aponta para uma
possível distinção com o que seria o burguês. Portanto, o trabalho no funcionalismo não
forneceria uma ética adequada para o trabalho artístico, não seria uma forma de vida
inspiradora, e isto, para Silvio, também poderia ser comprovado na análise da própria obra
literária de Machado.
A comparação entre o temperamento do romancista e o “caráter” nacional deixa isso
ainda mais evidente, pois, para ele, Machado possuiria um temperamento que condensa
aspectos nocivos do processo de formação racial brasileira, e sua dedicação à auto-superação
segue um caminho distante da índole nacional, mais autêntica. Para ele, esse espírito pacato,
de burguês tranqüilo, ou, por outro lado, do humorismo e pessimismo, são completamente
opostos ao brasileiro.

Nós brasileiros somos faladores, maldizentes, desrespeitadores das conveniências, assaz


irrequietos, até onde nos deixa ir nossa ingênita apatia de meridionais, mas não somos
pessimistas, nem nos agrada o terrível desencanto de tudo sob as formas desesperadoras dos
237
nirwanistas a Buda ou a Schopenhauer .

Portanto, a busca pelo horrível, pelo humour e também pelo pessimismo, seriam
indumentárias falsas, em contraste com o brasileiro, caracterizado pela expansividade, por

_______________________________________________
237
Neste trecho Sílvio Romero tenta demonstrar que há uma incompatibilidade nas características raciais do brasileiro e certo
ar pessimista dos livros de Machado de Assis. In: ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: Estudo comparativo de
literatura brasileira. Editora UNICAMP, Campinas, 1992. p. 256.
132

certa autenticidade no trato com as pessoas, que o torna propositalmente negligente com as
formalidades. Machado seria o oposto, como podemos ver nessa passagem:

Não tem, por certo, tido influência quase nenhuma no espírito nacional, não pelas
razões apontadas pelo Sr. José Veríssimo; porém pura e simplesmente pela índole mesma de
seu gênio literário: a falta de calor, de comunicabilidade, de entusiasmo, de vida, essa
238
centelha de proselitismo própria das almas combatentes.

Esse trecho revela bem o contraste entre o brasileiro e o temperamento de Machado.


Nele vemos de imediato a imagem de um escritor frio, com uma escrita opaca, incapaz de
transmitir vida. O contrário da expansividade do brasileiro, que não se subordina às
convenções, e parece ser movido pelo entusiasmo, justamente o que lhe faltaria.
Aliada a esta acusação de Machado ser um impostor, no sentido de fugir à índole
natural do brasileiro, há outro aspecto relevante para compreender o quadro pintado por
Sylvio: a ausência de espírito combativo. Isto está diretamente implicado no motivo pelo qual
Machado teria desenvolvido um comportamento tão distinto, marcado pela timidez e
introspecção, e também justificaria sua opção pelo “contorto” da vida de secretaria. Para
Sílvio Romero, tanto o literato como o crítico possuiriam por principal característica uma
grande capacidade de inspirar mudanças no comportamento social. O crítico como um guia
aos artistas, mostrando-lhes referenciais éticos e fornecendo o material de inspiração para as
obras de arte, e os artistas como pessoas capazes de produzir uma imagem de si mesmo, ou da
realidade, com vitalidade, superando as conveniências que tornam nebulosas os aspectos
cruciais para o desenvolvimento da sociedade. E tanto o papel do crítico como do artista,
estão bem definidos neste trecho a seguir, em seu ensaio sobre Gonçalves Dias:

Não cesso de combater ideias que julgo prejudiciais ao progresso e à unidade do povo
brasileiro. Em um país como o nosso, ainda novo, sem tradições bem formadas, sem coesão
social bem compacta, nunca é demais insistir sobre o seu caráter popular e histórico. Ainda
mais é isto indispensável, tratando-se de um poeta como Gonçalves Dias, um genuíno
brasileiro, um mestiço físico e moral, que será por muitos séculos uma das mais autênticas
239
manifestações da alma deste povo .

_______________________________________________
238
Idem, p. 316.
239
ROMERO, Sílvio. Poesia - segunda fase do romantismo. In: ROMERO, Sílvio. Teoria, crítica e história literária.
EDUSP, São Paulo, 1978. p. 64. Publicado originalmente em: História da Literatura Brasileira, Vol II, Livro IV: “Terceira
época do período de transformação romântica”, cap II, pp. 157-181.
133

Assim, o temperamento de Machado não é representativo desse caráter popular e


histórico que Sylvio atribui à Gonçalves Dias, como se o romancista fluminense titubeasse em
dar mostras de suas características “genuínas”, autênticas. Pois, se assim o fizesse, teria um
comportamento bem distinto, e também uma literatura mais expansiva, apropriada à sua
condição de “mestiço físico e moral”. A recusa por mostrar-se de maneira mais aberta e
decidida parece estar diretamente correlacionada com a introspecção da literatura machadiana,
sua ausência de iniciativa em prol da transformação do país, a buscar mais referenciais
literários em seu universo mais íntimo e excêntrico do que na realidade. A negligência de
Machado frente ao desafio imposto ao país devido à fragilidade da “tradição”, verdadeira
obsessão da literatura romântica e de Gonçalves Dias, tal como salientado por Sylvio,
revelaria a idiossincrasia de seu caráter. A recusa de Machado a este desafio, aliado à sua
timidez e reserva, e a construção de sua trajetória social e literária mais voltada ao cálculo
cotidiano para galgar espaços na sociedade, seria o outro lado do processo de miscigenação.
Desta maneira, timidez e reserva são partes de sua indecisão e indeterminação, fragilidades de
um artista mediano buscando diplomaticamente seu próprio espaço.
A tranqüilidade de funcionário público se transforma em fraqueza, em uma
mediocridade inconciliável com a verdadeira pretensão artística. Portanto, é necessário
perceber que a descrição de Machado a partir da qualificação que Sylvio faz do espírito de
funcionário público, é completamente negativa, tendo em vista que possui uma compreensão
depreciativa deste tipo de disciplina do caráter. Ao invés de proporcionar liberdade criativa,
esta disciplina parece se limitar a um cálculo medíocre, que, pelo contrário, aprisiona o artista.
A tranqüilidade de funcionário público, nesse sentido, está mais associada à acomodação, do
que uma possibilidade de liberdade, de potencializar a ética do trabalho burguesa para a
sublimação artística. Isso fica ainda mais evidente na resenha de Múcio Teixeira sobre as
Poesias Completas, em que este cálculo cotidiano para a ascensão nos é apresentado sem
nenhum disfarce.

Nasceu para a pacatez burocrática este estéril versejador de meia tigela. Subiu devagarinho,
desde que trocou a tipografia pela repartição pública, até chegar a oficial de secretaria; foi
mais tarde oficial da Rosa, que é a flor simbólica do amor e fidelidade à Monarquia; passou,
na República, a servir como oficial de gabinete dos ministros da Agricultura. E até já se diz
por aí, à meia voz, que está em vésperas de ser secretário particular de um alto personagem
134

que tem secretários pessoais... Conserve-se, pois, na secretaria, mas não volte mais ao
Parnaso.
Ninguém é capaz de explicar a sua imperturbalidade, permanente e fria, diante dos grandes
acontecimentos políticos, sociais e humanos do nosso agitado tempo, em que foi abolida a
escravidão da sua raça, dele, mulato com fumaças de branco, que torce o nariz chato e grosso
a todos os seus parceiros menos afortunados; nem mesmo diante dessa revolução de quartéis,
que proclamou o atual regime, baniu o Imperador enfermo, e substituiu os grandes estadistas
240
do Império por estes improvisados reis de jaqueta e príncipes... princeses.

A principal tese que Sylvio diluiu ao longo de suas quase trezentas páginas parece
estar sintetizada neste trecho da resenha escrita por Múcio Teixeira, apenas superando-o pelo
tom mais ofensivo, tendo em vista, que um pouco antes deste trecho o poeta nascido em Porto
Alegre ainda afirma que os antigos amigos de Machado o abandonaram, “cansados de
suportar-lhe os lamentos de epilético larvado”241.
Tendo em vista esse conjunto de questões suscitadas por Silvio Romero e expressas de
forma mais aguda por Múcio Teixeira, é possível compreender melhor o posicionamento do
crítico sergipano acerca de Machado de Assis, registrado principalmente em seu livro sobre o
consagrado autor fluminense. A desvalorização da literatura produzida por Machado está
inscrita no diagnóstico de Sílvio Romero sobre o processo de miscigenação no Brasil. Não em
relação à vertente positiva, que se encaminha para a autonomia intelectual do país liderada por
“genuínos brasileiros” - entre eles Gonçalves Dias -, e sim àquela outra, de temperamento
fraco a buscar referenciais estéticos em literaturas estrangeiras, incompatíveis com aquilo que
o crítico identificava como parte da verdadeira índole mestiça. A juventude literária de
Machado é descrita como parte da transição literária, quando ainda sobrevivia um romantismo
tardio, destoando da evolução a qual o país atravessava. Com a decadência “absoluta” do
romantismo decorrente do movimento cientificista, ao qual Sílvio se arroga como um dos
intelectuais que realizaram tal renovação no pensamento nacional, Machado de Assis teria
realizado uma má escolha estética, optando pela imitação ao invés de fazer parte das
inovações defendidas pela geração de 1870. E como forma de sobrevivência aliada à
pretensão de ascensão, teria desenvolvido esse temperamento pacato e disciplinado, que evita
os conflitos e busca mais agradar do que retratar a “realidade”.242

_______________________________________________
240
Múcio Teixeira. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 e 27 de maio de 1901. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 241.
241
Idem, p. 236.
135

Assim, o artista autêntico para Sylvio seria uma manifestação condensada desse
conjunto de características que delineiam o povo ou nacionalidade, próximo daquilo que se
designa como espírito, como uma entidade que pesa sob as subjetividades com uma força e
imperativo a qual ninguém escapa, apesar das pequenas variações com que essa força é
exercida particularmente243. A subjetividade forte, ou, em linguagem literária, ser um homem
de gênio, similar àquela a qual Sylvio faz seu insistente elogio - tal como à Gonçalves Dias –
seria, para esta retórica cientificista do século XIX, a manifestação plena desse espírito, cuja
expressão tomaria forma em seu máximo vigor. A imaginação do artista, segundo esse
critério, estaria amalgamada por essa forma, dispersa na realidade, e expressa a partir da
linguagem artística. Deste modo, a imagem de artista nacional legitima-se a partir da defesa
da mimese, da reprodução da realidade tal como ela é apresentada, sem floreios ou módulos
retóricos desnecessários, e manifesta na forma condizente com a imaginação apropriada a este
espírito.
Como vimos, há uma complementaridade nos quadros de Araripe Júnior, Múcio
Teixeira e Sílvio Romero, apesar de compreensões distintas acerca do traço marcante com que
pintam o retrato de Machado. Esta complementaridade reside justamente no ponto de partida
de ambos, ao tratar Machado como um desvio, um excêntrico, cuja personalidade parece ser
fragmentada e com desenvolvimento incompleto. Ao invés de pensá-lo como uma
individualidade que se contrasta com o meio devido a sua superioridade, os dois
remanescentes da geração de 1870 e Múcio Teixeira, partem de uma linha discursiva que
julga a particularidade, a distinção entre meio e sujeito, como uma anomalia diante o processo
de formação nacional. Uma anomalia explicável, principalmente para Sylvio e Araripe Júnior,
devido às limitações da raça e do meio, ainda imaturos, e que serão superadas à medida que a
crítica evidenciasse as diretrizes artísticas mais naturais e condizentes com a índole nacional.
Todos os três críticos parecem considerar patológico o distanciamento de Machado frente
àquilo que eles próprios diagnosticavam como realidade, e buscaram encontrar em traços do
temperamento do escritor fluminense os motivos desse afastamento, desta recusa em

242
Como podemos perceber, há certas afinidades dessa teoria sobre a mestiçagem e como ela teria se evidenciado no
temperamento e trajetória biográfica de Machado, com a compreensão do mestiço desenvolvido por Gilberto Freyre, que
ressaltou este caráter plástico, de grande capacidade de adaptação e negociação, que culminou, segundo Freyre, nesta
forma peculiar de ascensão. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Editora Record, Rio de Janeiro, 2000. Essa
discussão se encontra condensada no capítulo sobre a “Ascensão do Bacharel e do Mulato”, p 600-659.
243
Esta discussão foi feita por Taine, para quem este espírito, esta “temperatura moral”, é delineada pelo meio e pela
situação, a combinação de um conjunto de fatores históricos que produzem este espírito predominante, e que é expresso
pela arte. Segundo Taine, esta relação conceitual entre meio e situação deve ser entendida como uma lei científica. TAINE,
H. Da natureza e produção da obra de arte. Editorial Inquérito, Lisboa, 1940. p. 90 e 93.
136

expressar-se em sintonia com a “literatura brasileira”, tanto em relação à forma como aos
temas.
Tem-se, assim, uma compreensão do temperamento “desviante” de Machado como
algo indesejável para a arte, seja, pela falta de equilíbrio apontada por Araripe Junior, seja
pela inadequação ao temperamento nacional indicada por Sílvio Romero244. O interessante é
notar a disparidade com que ambos percebem Machado, pois se para Araripe Junior o autor
fluminense perde o equilíbrio devido ao excesso, a obsessão por si mesmo, fazendo do
trabalho árduo uma anomalia - tendo em vista que não se presta a nenhuma utilidade de
instrução ao público - de outro lado, Silvio identifica justamente o contrario, e destaca que
Machado seria um autor pacato, que não arriscava nenhuma literatura mais arrojada por estar
apenas preocupado com seu próprio bem-estar e a possibilidade de ascensão social. Deste
modo, qualquer tipo de comportamento ou traço de caráter em desacordo com as imagens
ideais de artista nacional criadas pelos dois, e ao que parece também à Múcio Teixeira, tende
a ser repudiado e a constituir-se, pejorativamente, como exceção. Apesar dos ideais distintos
de artista criados, e também pelas concepções diversas entre o que é normal e patológico ou
da relação entre arte e ética do trabalho, Sylvio e Araripe Júnior, principalmente, partem da
mesma pretensão totalizante de circunscrever a realidade a partir de suas teorias, tratando
como exceção e desvio tudo aquilo que não respeite suas próprias noções estáveis e
previsíveis da realidade brasileira e do verdadeiro artista adequado a ela.

4.4 Variações da impressão: alguns ídolos privados

_______________________________________________
244
Apesar da centralidade dada à relação entre o temperamento individual, a índole do povo e o meio onde este está inserido,
Sylvio também parece estar de acordo com Araripe Júnior a respeito da relação nociva entre doença e arte ao fazer menção
à gagueira de Machado como um dos comprometimentos ao seu estilo: “O estilo de Machado de Assis, sem ter grande
originalidade, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica
indecisa. Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútulo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme e
compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele
apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. “Ele gagueja
no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada”, disse-me uma vez não sei que desabusado num
momento de expansão, sem reparar talvez que dava-me destarte uma verdadeira e admirável notação crítica”. ROMERO,
Sílvio. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira. Editora UNICAMP, 1992, Campinas, SP. p
122.
137

Como vimos, a retórica da crítica literária cientificista parte de uma compreensão do


temperamento literário de Machado de Assis como se fosse uma exceção. E uma exceção
compreendida em um sentido pejorativo, como se a subjetividade peculiar, a busca por
diferenciação frente ao meio ou, ainda, em relação à objetividade, fosse derivado de um
comportamento considerado patológico. A retórica impressionista se afasta dos dois núcleos
principais das teses cientificistas: tanto a ideia de um artista ideal como resultado de um
sistema de valores e virtudes ajustados de maneira equilibrada, portanto de uma compreensão
de normalidade que funciona como parâmetro para tornar patológicas toda manifestação
singular, como ainda o outro principio, que considera o artista como a condensação de
determinado espírito nacional. Este trecho seguinte de José Veríssimo, escrito após sua
redefinição crítica, não deixa dúvidas sobre o seu repúdio pelo método científico em voga
aplicado para os estudos literários:

Para tais exemplos de um tão sublime, peregrino e difícil procedimento, a nossa crítica fácil
de satisfeitos, de covardes, de incapazes, de egoístas ou de impotentes, achou uma
pseudociência a fórmula sadia da anormalidade, da degenerescência, do caso patológico. Esse
método pateta aplicado ao julgamento da evolução humana teria reduzido a humanidade sã a
uma multidão de imbecis e excluído dela aqueles que lhe são a honra e a glória, a quem ela
deve o melhor dos seus progressos na ordem moral, na ordem espiritual, na ordem material,
os grandes criadores em religião, em ciência, em arte, em literatura, em filosofia, os eminentes
promotores de ideias, de concepções, de movimentos sociais, que todos, mais ou menos,
cabem em uma daquelas categorias, postas ultimamente em moda, ao alcance de todas as
ignorâncias, pela presumida ciência dos Lombrosos, dos Nordaus, dos Tardes e que tais.
Esses pretensos sábios começam esquecendo-se de dizer-nos qual é o tipo normal do homem,
o termo da comparação, o ponto de referência, a unidade que nos servirá de estalão. Dom
245
Quixote ou Sancho Pança?

A crítica parece dirigir-se apenas a pseudociência, mas o questionamento de um


parâmetro de homem normal para julgar um intelectual ou artista é um dos aspectos
problemáticos da tentativa, em seu período, de buscar adaptar determinados aspectos das
ciências para o estudo da arte. A questão de José Veríssimo não deixa de se remeter a certa
percepção aristocrática, de que grandes artistas não podem ser balizados por parâmetros
usuais, e, desse modo, buscar o tipo médio como parâmetro de julgamento seria um equivoco,
seja o tipo médio baseado na ideia de espírito nacional ou de uma percepção de normalidade.
Este reparo à crítica naturalista foi feito na resenha de José Veríssimo ao livro Ressurreição,
de Tolstoi, e, como veremos a seguir, difere do tipo de apreensão que o crítico paraense fez a

_______________________________________________
245
JOSÉ VERÍSSIMO. Tolstoi. In: JOSÉ VERÍSSIMO. Homens e coisas estrangeiras: 1899-1908. Topbooks, Rio de
Janeiro, 2003. p. 162-163.
138

respeito de Machado de Assis. E, de certo modo, demonstra certas contradições dos


parâmetros de julgamento da subjetividade artística proferida de forma mais geral por aquilo
que denominei de “retórica impressionista”, vigente no Brasil, principalmente no Rio de
Janeiro, no final do século XIX e início do XX. Ao longo da análise dos retratos de Machado
serão demonstrados os termos dessa contradição, mas, antes disso, é necessário entendermos o
ponto central desta retórica, que de certo modo foi mencionado no longo trecho citado por
José Veríssimo ao atacar a pseudociência.
A retórica impressionista, por valorizar a interpretação do texto e a identificação do
leitor com aquilo que é representado literariamente, acaba por produzir uma maior diversidade
de ficções de autor, retratos que são mais dependentes da busca por esse vínculo estreito entre
leitor e texto. No entanto, embora exista essa tendência de cada leitor produzir uma imagem
do autor a partir de suas próprias experiências literárias, percebe-se, ainda assim, um núcleo
comum entre esses vários retratos. Todas as imagens produzidas, mesmo diante da riqueza
dos referenciais que são utilizados em sua elaboração, todas fazem o elogio à peculiaridade,
ao progressivo apartamento entre o artista e o meio, e o gênio literário se caracterizaria pelas
peculiaridades de seu temperamento artístico, pela força em que justamente sua singularidade
se manifestaria. Portanto, ao contrário de Araripe Júnior, Sílvio Romero e José Veríssimo
antes de sua “conversão”, os críticos a seguir fazem o elogio da subjetividade excepcional,
não apenas no sentido de vigor invulgar, mas pela diferença com que se distingue frente os
outros, como podemos ver nesse trecho de José Veríssimo que ao resenhar Esaú e Jacó, trata
justamente dos limites do papel da crítica em seu julgamento de um autor:

À obra do Sr. Machado de Assis, a de mais perfeita unidade em nossa literatura, é tanto mais
preciso aplicar esta regra de crítica quanto a sua maneira literária, o seu estilo que, como em
raros, é ele próprio, são por assim dizer o seu mesmo temperamento individual. Ora, tudo em
suma se poderá talvez exigir de um escritor, menos que ele mude ou esconda o seu
temperamento, o que só por si lhe diminuiria, se não aniquilasse, a personalidade que acaso
tivesse. E é essa diversidade de temperamentos que, na unidade de uma literatura, lhe faz a
246
variedade e o encanto.

O crítico, portanto, não deve traçar prescrições aos artistas em relação ao seu estilo,
pode julgá-lo apenas a partir da própria concepção de beleza inscrita na obra, e apresentar o
temperamento do autor, estudar sua maneira de conceber a arte. Muito distinto dos reparos

_______________________________________________
246
José Veríssimo, Kosmos, Rio de Janeiro de 1904. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração.
EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 277.
139

feitos por Sylvio, que esperava a adequação de Machado àquilo que o próprio crítico concebia
por índole nacional. José Veríssimo, ao contrário, e em uma revisão de sua própria postura da
juventude, entende a literatura nacional como uma coleção de temperamentos diversos, e dota
de um novo significado a peculiaridade do escritor ao apontar que é a capacidade de afirmar
essa peculiaridade que prova o valor da personalidade artística.

Ora, apesar de enganadoras aparências, em todo caso mais pessoais que literárias, em
contrário, é grande e forte a personalidade do autor de Esaú e Jacó. É escritor que nunca de
todo cedeu a influência de meios, de parcerias ou de escolas. Passou por diversas, que a todos
aqui avassalaram, sem se deixar dominar completamente por nenhuma delas, conservando
247
senão intacta, independente a sua personalidade literária.

Como podemos ver, essa será a tônica de todas as resenhas que possuem algumas
características da retórica impressionista, cuja maior preocupação é identificar a peculiaridade
do autor, e que fazem o elogio ao temperamento literário capaz de mostrar sua força ao se
diferenciar frente o meio. E isto levou José Veríssimo a afirmar que Machado, na história
literária, ocupa um lugar especial, e recusou-se tanto a comparar a obra do Autor fluminense
em termos de uma filiação estética, como ainda enquadrá-la em uma interpretação mais ampla
que abarcasse um conjunto de tendências relacionadas à evolução literária brasileira248. Deste
modo, José Veríssimo opõe-se à imagem de um “burguês prazenteiro”, que evita todo tipo de
luta em prol de sua ascensão social, pois este artista que criou para si mesmo um “lugar
especial”, incomparável, teria demonstrado grande vigor ao não sujeitar-se às tendências
coercitivas das modas literárias, em um esforço para preservar seu valor individual, cuja
singularidade seria seu principal traço. Justamente o contrário da fraqueza mediana de
funcionário público descrita por Silvio Romero.
Esta noção de personalidade, portanto, não se baseia na sintonia ou afinidade com que
se vincula ao “real”, pelo contrário, sua força e seu valor provêm da capacidade de manter-se
distinto e preservar uma espécie de vigor interno. Deste modo, aquilo que era compreendido
como patologia, ganha, nessa vertente, a alcunha de verdadeira personalidade artística, com a
qual cabe ao crítico apenas saber identificá-la e compreendê-la. Os tics de Machado, tão

_______________________________________________
247
Ibid idem. p. 277.
248
Esta perspectiva está em flagrante oposição com os aspectos metodológicos da história literária desenvolvida no período,
por ressaltar esse “lugar especial” ocupado por algum autor, e que não pode ser explicado a partir da evolução literária.
José Veríssimo. Jornal do Brazil, Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1892. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 358-359.
140

criticados por Araripe Júnior por produzir tipos literários idiossincráticos249, são o diferencial
de sua obra, como podemos ver nesse trecho seguinte da mesma resenha de José Veríssimo:

Contando assim, eu estou que esse romance não tem interesse, nem graça, porque o que
principalmente lhe dá estas qualidades é, primeiro, a língua admirável, a rara ciência de
dicção com que é escrito, e depois a arte peregrina e toda pessoal da composição, os mesmos
tics e cacoetes do autor, o engenhoso artifício da apresentação, uma psicologia sutil, por vezes
talvez e infelizmente rebuscada, mas sempre inteligente e com aquele sal de malícia caro aos
250
paladares mais sãos.

A “arte peregrina e toda pessoal” é um dos aspectos mais importantes para dotar a
literatura de Machado de “interesse” e “graça”, o que torna seus “tics” e “cacoetes”
componentes especiais da sua arte, que se manifestam com intensidade na maneira como o
enredo é apresentado. Deste modo, José Veríssimo elege a forma e o estilo, ambas derivadas
do temperamento literário de Machado, como os aspectos mais relevantes para o encanto de
sua obra, acima da importância concedida ao enredo dos romances. Sua graça está em seu tic,
em seu estilo particular de escrever, produto apenas de sua arte “pessoal”.
Esse deslocamento do interesse da narrativa, da estória para o estilo, tem algumas
conseqüências. A primeira delas é a própria forma como, para a crítica, o escritor enxerga sua
relação com o público, baseada em um certo nível de indiferença tanto em relação aos
impactos que a recepção poderia causar na criação, como, ainda, na ausência de qualquer
desejo por intervenção na realidade. A criação e a imaginação que compõem a obra deixam de
ser produto das expectativas da recepção, como se a escrita não dependesse de nenhuma
imposição decorrente da forma como a obra poderia ser lida, portanto sem o desejo de agradar
predominante na corte ou de polemizar e intervir, comum aos círculos cientificistas daquele
período. Para os críticos afinados com essa retórica impressionista a obra de arte passa a ser
justificada como uma atitude estética de contemplação, onde não há espaço para nenhum
interesse prático, nem o de ser acolhido ou, ainda, de influenciar “positivamente” na
transformação do comportamento de seus leitores. E, em todas as descrições do temperamento
de Machado desenvolvidas a partir dessa ênfase em uma peculiaridade marcante e necessária
para a criação artística, que aqui denominamos de impressionismo crítico, percebe-se a

_______________________________________________
249
Araripe Júnior, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1892. Idem, p. 365.
250
José Veríssimo, Kosmos, Rio de Janeiro de 1904. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de
consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 280.
141

importância conferida a determinadas formas de indiferença entre o artista e seu público.


Todos os “tipos” que serão analisados aqui, o “artista melancólico”, o “sábio filósofo” e os
dois retratos de Machado que o relacionam a um “Deus em miniatura”, partem da defesa
destes níveis de indiferença, como se a verdadeira criatividade se baseasse na capacidade
seletiva de interagir com o meio.
Este elogio da distinção do temperamento do escritor frente o meio tem conseqüências
específicas na maneira como passam a julgar a relação do artista com seu público, e, como
isto cria novas dinâmicas para a imaginação dos temas. A criatividade e imaginação se
caracterizariam pelo distanciamento desapaixonado, sem pretensões de intervenção naquilo
que se entende por realidade, e, por isso mesmo, com um grau de liberdade frente a ela.
Entretanto, esta crítica literária - que possui algumas das referências relacionadas à leitura
como uma experiência que valoriza a impressão – não chegou ao ponto de problematizar a
noção de “intenção do autor”251, fundada a partir de referências da vida pessoal. Pelo
contrário, a busca pela singularidade do autor confirma que ainda se está distante do ideal
proustiano de dissociar a obra de aspectos biográficos do artista. E, como veremos a seguir, é
recorrente a tentativa de fundamentar o temperamento do autor, ou por meios transcendentais,
de um gênio que paira sobre a realidade humana, ou com maior ênfase nas experiências
pessoais/artísticas que justifiquem o desenvolvimento de uma capacidade rara para
contemplar a realidade, desprovida de qualquer interesse prático. Portanto, ambas as formas
de autoria, a transcendental e a outra, calcada nas experiências de vida, são formas de
justificar a indiferença do artista frente à recepção, que tem como resultado esse outro modelo
de subjetividade autóctone que não subjuga sua criatividade às contingências da vida social.
No entanto, e esta é um das aparentes incoerências dessa perspectiva, será demonstrado que
esta “intenção” não significa uma “visão peculiar da vida”, e sim em uma sensibilidade fora
do comum para apreender a realidade. Deste modo, ao mesmo tempo em que se elogia a

_______________________________________________
251
Compagnon aponta como este problema da autoria foi motivo de debate intenso ao longo do século XX, e que, após a
declaração da morte do autor, tenta-se redimensionar a “intenção do autor”, de forma moderada, através da distinção entre
“ato ilocutório” –a intenção inicial da autoria, seu projeto – e a “significação complexa do enunciado”. Nesta perspectiva
defendida por John Austin, há uma diferença entre o projeto do autor, aquilo que ele quis afirmar, e as possibilidades de
interpretação do enunciado. Essas variedades de interpretação não significam a impossibilidade da apreensão do “ato
ilocutório”, o que o permitiu reabilitar a “intenção do autor”. COMPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria: Literatura
e senso comum. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2010. p. 89. O uso que fiz da noção de “intenção do autor” não está
relacionado à sua reabilitação mais contemporânea - que só pode ser entendida diante o contexto do debate teórico
suscitado com a declaração da morte do autor, feita principalmente por Barthes e Foucault -, e sim a ideia corrente até o
século XIX de relacionar a intenção do autor com a biografia do artista, sua postura em sociedade e suas experiências
pessoais.
142

distinção, a singularidade subjetiva, elogia-se, também, a capacidade de representar a


realidade. Esta contradição na retórica impressionista do período demonstra que o aspecto
mais importante para esta crítica dirige-se mais para ampliar a experiência literária do leitor
do que determinar e fixar de maneira conclusiva a personalidade do autor. E esta contradição
será pontuada ao longo da análise dos retratos de Machado de Assis a seguir.

4.5 Deuses em miniatura: sacrifício, recolhimento e humildade

Em um sentido completamente oposto ao de narciso literário desenvolvido por


Araripe Junior ou de mediania de funcionário público de Sílvio, a imagem de trabalhador
incansável ganha outra forma na resenha de Salvador Mendonça, que o descreve como um
meticuloso artesão, dotado de capacidade extremamente complexa para produzir uma estética
de aparência simples e delicada.

Ao ouvir a leitura do seu formoso Memorial de Ayres, que me trouxe por cima do titulo as
suas expressões de boa e velha amizade, o que ao meio do livro e depois de concluida a leitura
começou a desenhar-se-me na memoria foi o lencinho de renda da velha Itaborahyense. Sim,
fizeste tambem a sua obra prima. Sobre a textura fina do Memorial desenhaste figuras do mais
puro lavor.
A obra, porém, é tão simples, tão fácil, tão natural, que haverá por ahi muita gente que a
julgue obra ao alcance de qualquer Penna. Esta facilidade apparente de feitura é realmente o
252
sello da verdadeira obra de arte.

Trata-se do coroamento da carreira literária de Machado, já em idade avançada, e


como um artista renomado e consagrado. Assim, é compreensível o tom de homenagem desta
resenha. Mas, para além da retórica de exaltação, a imagem criada por Salvador de Mendonça
é muito interessante para se compreender a correlação entre humildade, esforço e
simplicidade para compor este sello da verdadeira obra de arte. Neste quadro, as
características de Machado compõem uma unidade coerente, muito diversa da imagem
patológica realizada por Araripe Junior. Em primeiro lugar, o que está em jogo são a própria

_______________________________________________
252
Salvador de Mendonça. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7 de agosto de 1908. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 467.
143

compreensão de arte e a tensão de seus significados entre a arte comprometida com a


objetividade científica e a arte ainda vinculada a determinados padrões corteses.
Como vimos, a entrada em cena de uma noção de trabalho e artifício se imiscuiu aos
parâmetros corteses, sendo que tal inserção formou uma linhagem crítica com pretensões de
ruptura completa ao modelo cortesão. Neste primeiro momento, com a retórica cientificista, a
ideia de trabalho artístico foi apropriada de duas formas: a primeira compreendida como uma
espécie de especialização, em que a arte é exercida com distanciamento, e exigia do artista
uma competência também específica, um tipo de unidade e coerência entre aptidões que
favorecessem este distanciamento e objetividade, e, a segunda, que parte da ideia de que o
artista é uma representação de um espírito do povo, uma síntese de um conjunto de
características de determinada sociedade, meio e situação histórica, cuja conseqüência é a de
que este artista deveria carregar consigo, de forma condensada, a força para a construção de
uma obra de arte representativa, força esta moldada na competição, na luta por sobressair-se
frente os demais e provar seu próprio valor através do trabalho. Características que, para
Araripe Junior - mais filiado a primeira – e Sílvio Romero – defensor da segunda - Machado
não possuía. Esta outra linhagem crítica, insinuada por Salvador de Mendonça, também faz o
elogio ao trabalho, e ressalta o valor da dedicação árdua, mas a partir de outros referenciais, e
de forma mais conciliadora. Mas, para a entendermos melhor, é necessário conhecermos a
história da velha Itaborahyense, descrita ou inventada pelo autor para servir de espelho ao seu
perfil de Machado.
A resenha ganha um ar de fábula durante a descrição da velha artesã, que em idade
muito avançada, em vias de perder a visão, decide “[...] deixar de si melhor cópia em alguma
obra de primor que désse aos vindouros testemunho de seu mérito”253. Portanto, não é arte
sem assinatura, é um testemunho do mérito, uma comprovação de grande capacidade técnica,
muito diverso da ideia de artesão incógnito. Sua habilidade de costureira já seria reconhecida,
mas, mesmo velha, decide superar-se e fazer uma obra de arte. Para isso busca o isolamento,
sem alardear a pretensão, e o

_______________________________________________
253
Ibid dem, p. 465.
144

[...] tempo que a velha gastou nessa obra, horas, mezes ou annos, ninguem o soube; nem
sequer foi desde logo conhecido o porque se encerrara. Só alguns annos depois, no enxoval de
254
uma netinha, que se casara aos quinze anos, já phtisica, appareceu a maravilha .

O testemunho do grande mérito parece ser ainda mais exaltado pela humildade com
que é feito, sem alardear o propósito ou fazer-se engrandecer com auto-elogios, muito menos
evocar deliberadamente a quantidade de esforço despendido. Imagina-se o esforço, e elogia-se
tal energia gasta, mas, o artista preserva sua modéstia e não se gaba do próprio feito. Todo o
trabalho de arte tem por resultado um

[...] lencinho de linho de fórma redonda, no qual se combinava a mais fina renda de almofada
e o mais exellente lavor de agulha. O lencinho tinha um palmo de diâmetro, mas era tão fino,
tão fino que a dona o fechava todo na palminha da mão e não excedia os dedos um só fio. A
255
tradição diz que cabia dentro de um dedal.

Todo lavor e dedicação têm por propósito essencial ser singelo. E, além desta
descrição de delicadeza, simbolizada neste paninho frágil e fino, soma-se ainda a riqueza dos
desenhos e a meticulosa perfeição, mesmo diante de um espaço tão reduzido para compô-los,
cujo “[...] debucho do lenço fôra evidentemente copiado de alguma velha gravura Rhenana
composta por algum discipulo de Durer a que os dedos inspirados da velha haviam
resuscitado numa obra prima de arte”256. Essa é a história que inspira a criação do retrato de
Machado de Assis feito por Salvador de Mendonça, e, transcrevê-los nos dá maior dimensão
da relação entre humildade, esforço e simplicidade utilizada para retratar tanto o
temperamento do autor como definir a obra de arte. O trabalho é descrito com atributos de
paciência e prudência, e elevado a uma dignidade moral incomum, mas, ao mesmo tempo,
com um propósito desinteressado, cujo único objetivo é a própria perfeição artística buscada
em meio a um orgulhoso anonimato, tanto do trabalho como da repercussão da obra. A
descrição tem ainda maior peso ao se evidenciar a origem humilde e a velhice criativa e sábia
da velha Itaborahyense. Trata-se, portanto, de uma conciliação entre a ética do trabalho
somado à estética de naturalidade cortesã, em que a vivacidade e sua ideia de juventude
cedem espaço ao trabalho cotidiano, árduo, desempenhado com sobriedade e sabedoria

_______________________________________________
254
Ibid idem, p 465.
255
Ibid idem, p. 465-466.
256
Ibid idem, p. 466.
145

inerentes a certa ideia de velhice, quase de um santo eremita. Mas, cujo mérito é evidenciado
pelos valores de honra e desinteresse cortesãos, representados pela simplicidade da beleza,
sem ostentações exageradas, e que encerram um significado mais sublime de perfeição,
portanto, distantes da espera de retribuição, reconhecimento ou interesse, característicos do
trabalho especializado moderno.
Outro aspecto importante é a renovação de um grande valor artístico provindo do
passado. Pois, a partir dessa percepção estética, é a conexão com a tradição que torna o
trabalho artístico uma verdadeira obra de arte. A velhice sábia, assim, se amalgama em uma
visão mais resignada do mundo, que se permite absorver dos exemplos passados, renovando-
os, observando a medida adequada entre cópia e criação. Para essa visão conciliadora do
mundo, exige-se do artista uma postura humilde, subserviente ao seu trabalho e respeitoso da
tradição, onde se debruça com paciência para absorver seus temas e estilos, extraindo de seu
cultivo de erudito a matéria onde imprimirá seu próprio nome. Àquilo que Araripe Junior
praticamente nomeou como patologia, devido a incapacidade de optar entre o clássico e o
moderno, Salvador Mendonça enxergou justamente o oposto e aponta a coerência subjetiva
superior de Machado, ao conseguir conciliar o velho e o novo, e assim alcançar, em certo
grau, a imortalidade.

4.6 Deuses em miniatura: soberba e indiferença

Como vimos, a criação/descrição desses perfis passa pela qualificação do trabalho


artístico, dos significados que lhes são dados, como, ainda, pelas categorias usuais para definir
o temperamento. E, em meio a todas essas categorias utilizadas, outra também é bastante
recorrente e de certo modo é uma variação sutil de algumas categorias nativas. Trata-se da
definição de Machado como um gênio. A concepção de genialidade costuma ter significados
diversos, configurando-se, em determinadas linhagens do pensamento crítico, em uma
habilidade conquistada e aperfeiçoada, como veremos nos dois últimos retratos. No entanto há
uma persistente associação entre arte e divindade, comum no período romântico, e que ainda é
repetida, com menos freqüência, até em críticos mais tardios.
Naturalmente, tal associação entre arte e divindade também tem desdobramentos na
descrição do temperamento do próprio artista, tratado como uma espécie de santidade ou
semi-deus, e, não raro, até mesmo com certos atributos demoníacos, o que não ocorre nas
146

resenhas sobre Machado de Assis. Pelo menos dois críticos seguem esta linhagem, e
descrevem a genialidade como uma divindade, muito próximo à descrição de Salvador
Mendonça e sua analogia com a velha Itaborahyense, só que dita de maneira mais evidente, e,
também, com outro parâmetro de divindade: Arthur Barreiros e Mario de Alencar. O
primeiro, cujo trecho de sua análise foi reproduzido por outro crítico já mencionado, Artur
Azevedo, afirma que Machado “[...] vive a serena e luminosa vida da Arte, egualmente
repartido entre a obra divina e a obra humana [...]”257. Portanto esta arte divina baseia-se na
existência do dom, de uma verdade revelada e perfeita devido à sua própria “natureza”. Trata-
se, assim, de um indivíduo superiormente dotado devido à sua condição de ser partido entre
dois mundos, mediador entre o sagrado e profano, o céu e a terra. Mas, talvez a passagem
seguinte de Mario de Alencar revele com mais propriedade como esta relação entre
genialidade e divindade delineia alguns referenciais estéticos do século XIX:

Pensei tambem no que diriam os deuses se acaso retornassem á terra. Dos grandes dramas
humanos? Deuses são deuses, para os quaes não ha dramas, nem aspectos extraordinarios,
porque á visão delles tudo é transparente e vulgar, cousas minimas e maximas tudo é o
mesmo á distancia da perspectiva divina. Depois de visitarem a terra e conversarem os
homens, os deuses nos fallariam de casos curiosos de psycologia humana, ou escreveriam nos
troncos seculares das arvores algumas palavras de sabedoria ou graça, que consolassem a
vida.
É certo que muitos dos homens ouviriam indifferentes as cousas simples que os deuses
dissessem e passariam sem lêr as inscripções dos troncos antigos: como é certo que quase
todos preferem a complexidade e extravagancia das parasitas ás flores singelas das arvores
grandes. Que importa? As arvores grandes são grandes e vivem seculos; e os deuses são
258
deuses, nem morrem as palavras que dizem.

A imortalidade do artista é uma das garantias dessa condição de deus, acima do


homem comum, entretanto, o mais interessante para se notar é que a grande distancia entre o
deus e este homem médio, medíocre, é a indistinção para a criatura sagrada entre dramas e
futilidades inerentes à existência humana. Tudo se converte em matéria romanesca ou poética,
pois o atrativo é o olhar desse deus, e não propriamente a matéria abordada. São as palavras

_______________________________________________
257
Artur Azevedo cita Arthur Barreiros. O Álbum, Ano I, nº 2, Rio de Janeiro, janeiro de 1893. GUIMARÃES, Hélio de
Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP,
Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 400.
258
As parasitas descritas são os pequenos arbustos que dão flores exuberantes em comparação com as grandes árvores, com
flores singelas. Mario de Alencar. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1904. GUIMARÃES, Hélio de
Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP,
Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 483.
147

de sabedoria ou graça, capazes de nos consolar caso as entendamos e lhes dermos o devido
valor, são essas palavras o verdadeiro atrativo. E elas são ditas por motivos superiores,
transmitindo-nos a sensação de que esta indiferença com que nos são transmitidas demonstra
a irrelevância de qualquer vínculo entre criador e criatura. A metáfora do divino na obra de
arte tem um desdobramento similar na relação entre autor e seu público, em que o autor
profere sua arte e conhecimento superiores indiferente à recepção. A relação entre as
“inscrições dos troncos antigos” e a realidade, possui um caráter também relevante. Este deus
não está preocupado com que suas palavras representem diretamente a realidade, pois a
indiferença com que enxerga os dramas humanos põe em um mesmo plano as coisas mínimas
e máximas, de forma indistinta e despreocupada, sem uma pretensão em fazer de sua escritura
sagrada uma descrição apenas dos casos curiosos de psicologia humana, essa seria apenas
uma possibilidade, dentre outras, e somente a fariam caso sua vontade insondável assim o
desejasse. Deste modo, não existe uma obrigatoriedade do romancista, convertido em deus,
em analisar a realidade social, em pretender extrair dela aspectos significativos para a sua
compreensão. Este “ser” perfeito pode até interessar-se por aspectos significativos da vida,
mas sem necessariamente ter a necessidade de optar por consolar ou inspirar-se por eles, e,
muito menos, comprometer-se com qualquer tentativa de explicação.
Assim, de forma diversa à Salvador Mendonça e sua imagem de Machado como um
humilde artífice, cujo parâmetro de artista baseou-se nessa espécie de santo aparentemente
alheio ao mundo, este outro deus não obtém sua superioridade a partir do exercício da
modéstia e simplicidade, e sim da sua própria condição de ser espiritual, em contato com uma
esfera sagrada inalcançável ao homem. Enquanto a metáfora da velha Itaborahyense transmite
um exemplo de artista que imita a humildade cristã incorporada na figura de Jesus, este outro
deus tem uma postura diversa por voltar-se em direção aos homens com sua curiosidade
algumas vezes incompreensível ao mundo, deixando rastros de sua sabedoria por vontade
própria e indiferente às aspirações e dramas humanos. Portanto, não é um deus que sofra pelos
homens ou cultive a misericordia, pois sua grandiosidade não brota da compaixão, e seus
ensinamentos, apesar de disponíveis, não visam ser compreensíveis.
Este deus em miniatura, apesar de não se aproximar da imagem católica
contemporânea, também é bem distinto dos deuses do Olimpo. Se não existe o traço marcante
da misericórdia característico do cristianismo católico que se desenvolve no Brasil, por outro
lado, este deus se distancia, também, daquilo que caracteriza os deuses gregos, daquela marca
de excesso e intempestividade com que interferem nos destinos humanos, seja por capricho ou
movidos pela fúria. Apesar de também ser caracterizado pela altivez, este deus descrito por
148

Mario de Alencar tem por principal traço o ceticismo, o olhar desapaixonado, característica
associada pelo crítico à grande capacidade de análise e reflexão, portanto, um elogio ao artista
em pleno domínio das suas emoções. Com isso, verifica-se uma compreensão de divindade
marcada pela distância e indiferença, como se a vida humana não repercutisse
emocionalmente nos deuses.
Dessa maneira, a analogia da obra divina com a própria obra artística, nos dá a
impressão que mais vale a imortalidade dos romances, contos e poesias de Machado do que
propriamente a recepção e transmissão de seu conhecimento e apreciação de sua arte. Como
se essa imortalidade independesse da recepção, cujo único parâmetro para defini-la é o
próprio temperamento do autor, a combinação de certas características que o tornam superior.
Por outro lado, essa sua condição superior lhe permite olhar para todos os dramas humanos
sem tanto entusiasmo, portanto em uma condição de imparcialidade e ausência de paixão,
certa frieza, um ceticismo de nível distinto ao próximo retrato, o filósofo sábio, que foi criado
a partir da valorização direta da experiência relativa ao envelhecimento. Este outro deus, ao
contrário, é inacessível e perfeito, o que converte o seu ceticismo em uma característica
aparentemente inata e não um estado de espírito adquirido. Portanto, ao invés do processo de
envelhecimento e aprimoramento progressivo, aqui a genialidade “parece” ser entendida
como um dom, um traço atemporal e independente do meio externo.

4.7 A experiência do dom

Estas duas variações da personalidade de Machado que o comparam a um deus são


muito distintas daquela compreensão do artista cujo temperamento é forjado pela
nacionalidade, como a representação condensada de um espírito, de um conjunto de
qualidades “naturais” a certo meio social, tal como defendido por Taine e, aqui no Brasil,
desdobrado nos projetos de “histórias literárias”, principalmente de Sílvio Romero. Pois, o
principal ponto desta comparação de artistas a deuses é a de que as características de certo
artista são a expressão máxima do potencial humano, em tal proporção que ocorre certa
“desumanização”. Outro aspecto em que estes dois perfis diferem da noção de espírito é que
estes artistas-deuses expressam ou a realidade desapaixonada ou o máximo da graça artística,
e não uma visão de mundo e estilo condicionados pelo temperamento, pois, a ênfase está,
justamente, na perfeição quase divina. Desse modo, o alvo da atenção dos críticos é a
149

capacidade da contemplação cética da realidade como a possibilidade de expressar-se de


forma simples e perfeita, ao invés da busca pela “intenção” particular do autor ou a
manifestação de um espírito coletivo.
A metáfora “deus em miniatura”, aplicada ao fim do século XIX, é muito diferente de
outro perfil de intelectual e artista associado à divindade em fase mais moderna, cuja
genialidade se caracteriza por uma licença para o pecado, justamente por estar acima dele259.
Os dois modelos de divindade de Salvador Mendonça e Mario de Alencar são pautados na
perfeição, e a exigência da grandiosidade da obra se espraia necessariamente para a
grandiosidade também na vida. Desse modo, é muito comum certa idolatria relacionada a
esses grandes homens, idolatria próxima a de José Veríssimo quando analisa alguns trabalhos
de Tolstoi e Ruskin, cujas vidas guardam “[...] uma inteira conformidade com suas ideias e
cujas ações correspondessem plenamente aos seus ensinos”260. Neste artigo sobre Tolstoi,
José Veríssimo ainda dá mais ênfase a esta afirmação ao chamá-lo de um “[...] out-law de
nova espécie, que saísse da sociedade, do Estado, da Igreja oficial, para se consagrar, com a
abnegação de um santo e a coragem de um herói, ao bem do homem e da humanidade, e dar
às suas palavras a sanção dos seus atos.261 Certamente este artista/intelectual estaria acima
das coisas terrenas, mas não para fugir aos ditames da perfeição, e sim para julgar, do alto,
essa humanidade tendente aos vícios. Desse modo, somente este “deus em miniatura” tem
condições de definir aquilo que pode ou não ser pecado, reagindo com indiferença ao que o
mundo entende como vícios ou virtudes. E, temos assim, o mesmo princípio de auto-sacrifício
contido no parâmetro de divindade ilustrado por Salvador Mendonça através da velha
Itaborahyense. Ao lado de ambos os críticos - José Veríssimo e Salvador Mendonça destes
trecho selecionados -, nos encontramos distantes do prazer revelado por Tomas Mann em
ironizar as tentativas de Goethe e Tolstoi em “espiritualizar moralmente su corporeidad
pagana”262. Pois, José Veríssimo parece convencido dessa conquista da espiritualização do
corpo empreendida por Tolstoi e sua abnegação de um santo.

_______________________________________________
259
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Deuses em miniatura: Notas sobre genialidade e melancolia em Gilberto Freyre. Revista
Travessias, nº 1/1999. p. 102
260
JOSÉ VERÍSSIMO. Tolstoi. In: JOSÉ VERÍSSIMO. Homens e coisas estrangeiras: 1899-1908. Topbooks, Rio de
Janeiro, 2003. p. 162.
261
Idem.
150

Estes dois perfis de divindade parecem se afastar, neste aspecto, da perspectiva mais
predominante na retórica da crítica impressionista. Enquanto as resenhas de Mario de Alencar
e Salvador Mendonça se aproximam de uma noção de autor transcendental, perfeito, a tônica
predominante da retórica impressionista na interpretação de Machado busca retratá-lo dando
ênfase à correlação entre ficção e experiência pessoal, como se, de uma forma não
programada, o autor acabasse por desenvolver um olhar cético e desapaixonado da realidade.
Mas, antes de avançarmos para este outro modelo de subjetividade, é necessário explorar
ainda os sentidos vinculados a busca pela “espiritualização moral” e analisar até que medida é
de fato possível constatar a ausência de experiências de vida nesses arquétipos de genialidade
baseados na ideia de divindade.
Em um sentido mais amplo, podemos compreender esta “mistificação” do autor como
resultado da vertigem de se deparar com uma obra artística que ganha autonomia,
generalidade e certa imortalidade, independentes de uma intenção criadora. Essa busca por
uma origem metafísica - como inspiração de fora do sujeito ou, neste caso específico,
desempenhada por um “ser” perfeito - tenta dar conta justamente dessa incapacidade em
compreender a “imortalidade” de algumas obras humanas, em nossa área de interesse, de
determinadas obras literárias. No sentido específico dos dois retratos de Machado de Assis
relacionados a uma origem divina, podemos inferir que esta possibilidade da imortalidade dos
feitos humanos, da grande obra de arte, tem como conseqüência a recusa em tratar o autor a
partir das mesmas categorias utilizadas para definir o homem comum. Pois, este autor com ar
transcendental, cada vez mais espelhado por princípios de perfeição, parece ser resultado de
uma crescente preponderância do texto sobre o autor, cujas imagens mundanas acabam
sofrendo uma mistificação correlata, como se seu próprio temperamento espelhasse a suposta
perfeição atribuída ao texto, em termos de coerência entre todas as características. Pois o “[...]
conceito de Deus é a plena realização da personalidade”263, cuja existência não se baseia em
uma estruturação das experiências para a composição da personalidade. Por isso, o deus,
como totalidade conceitual, não conhece nem a memória nem a experiência particular, e,
portanto, não possui de fato experiências.
A aplicação do conceito de personalidade divina especificamente nestes dois modelos
de “deuses em miniatura” - Salvador Mendonça e Mario de Alencar - encerra, entretanto, uma

262
MANN, Thomas. Dostoievski con medida. In: MANN, Thomas. Ensayos sobre música, teatro y literatura. Alba
Editorial, Barcelona, 2002. p. 190.
263
SIMMEL, G. A personalidade de Deus. Um ensaio filosófico. In: SIMMEL, G. Religião: ensaios. Vol. 2. Editora Olho
d’Água, São Paulo, 2011. p. 73.
151

contradição, pois este artista divino não se faz na ausência completa frente à experiência,
como se fosse um portador de um dom imutável e perfeito. Por mais absurdo que seja a alusão
a um deus portador de experiências que tenha permitido alcançar certa elevação espiritual -
ou, na linguagem irônica de Thomas Mann, a “espiritualização moral da corporeidade pagã”
– os dois críticos, Mario de Alencar e Salvador Mendonça, afirmam exatamente isso.
Mario de Alencar, na mesma resenha sobre Memorial de Ayres, diz que

A impressão final deste livro é que o autor delle conserva o vigor do engenho com que
escreveu Memórias Posthumas de Bras Cubas; e ganhou mais, o que só podia vir do officio de
fazer os livros que fez, e perfeição crescente em cada um dos romances posteriores áquelle, e
264
neste último, suprema.

Deste modo, o modelo de perfeição de Machado foi resultado de um processo de


aperfeiçoamento e auto-superação, ao contrário do que se suporia do trecho referente aos
deuses e suas palavras inscritas nos “troncos seculares”. A perfeição da última obra significou
uma evolução da experiência desencadeada a partir dos livros anteriores, um aperfeiçoamento
crescente. E, da mesma maneira como o Tolstoi retratado por José Veríssimo é marcado por
alguma experiência que o faz distanciar-se da “sociedade, do Estado, da Igreja Oficial”, este
Machado de Mario de Alencar parece encaminhar-se para uma divinização através da
experiência. A “velha Itaborahyense” de Salvador Mendonça também é marcada pela mesma
evolução em direção a sua obra máxima, cuja perfeição foi obtida através da elevação do grau
de abnegação, o aumento da intensidade de trabalho e, também, de seu sacrifício, que mesmo
com a deficiência física - Salvador de Mendonça ressalta seu estado de quase cegueira - se
afasta do mundo tendo por único objetivo o culto estético do belo. Certamente, cada um dos
modelos de divindade está impregnado por experiências muito distintas que, de alguma
forma, criam modelos de personalidade também distintos. Entretanto, todos partem do mesmo
pressuposto contraditório de correlacionar uma personalidade perfeita, divina, e experiências
mundanas.
Mario de Alencar ressalta essa conexão da arte com a experiência ainda neste trecho
da mesma resenha:

_______________________________________________
264
Mario de Alencar. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1904. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 482.
152

Nem tudo é só maldade e simulação e egoísmo nos homens. O scepticismo de Ayres perturba-
se, e quase se declara vencido. A dôr, a continuidade de viver que é em suma a experiência da
dôr, desencanta a ironia. Póde o soffrimento pensado fazer sorrir; mas aquelle que é
verdadeiramente sentido apaga o sorriso e abre os olhos para a bondade dos homens, onde a
265
encontra. É gosto dos que soffrem achal-a e rever-se nella, comprazer-se della e sentil-a.

A continuação da resenha ainda afirma a mudança do ponto de vista e da expressão


moral do próprio Machado - e não mais de seu personagem Ayres -, que parece expressar-se
cada vez mais de forma humanizada, em vez do sorriso irônico e distanciado de um
sofrimento pensado. Essa humanização se dá através da dor, do sofrimento sentido, e está
conectado a alguma experiência de vida do próprio Machado. Assim, a sua obra perfeita só foi
possível por estar em conexão com algum sofrimento “sentido” pelo próprio Machado, o que
permitiu o desenvolvimento de um tipo de ceticismo controlado pela compaixão e assim
descreveu uma paisagem moral mais humanizada. Mario de Alencar não revela qual
experiência poderia ter humanizado a ironia Machadiana, apenas o constata como algo certo.
Mas, encontramos no final da resenha de Salvador Mendonça uma menção direta a uma
experiência de dor que explica o fato deste romance ser considerado pelos dois como o mais
perfeito e humanizado:

Á beira da estrada uma teia de aranha reclamada de perolas de orvalho, irizadas com a luz da
manhã, é por certo uma cousa bella, mas quasi vulgar para os olhos que não sabem ver.
Quem, porém, se imaginará capaz de duplicar tal belleza? Para isso quer-se primeiro a aranha
que possue o monopolio da materia prima, privilegio de familia com que a natureza a dotou,
sem exigir que archivasse a formula da composição e a dosagem dos ingredientes. Depois
requer-se o orvalho, lagrimas que a noite recolhe de todos os soffrimentos ignorados.
Afinal é ainda indispensavel a collaboração do sol, esse grande centro de vida, que a cada
palpitação expede onda de luz e calor que são a alma das cousas creadas.
[...]
Isto verá quem tiver olhos para vêr e para admirar. Para aquelle, porém, que por meio seculo e
mais um anno tem acompanhado de perto a sua obra litteraria e, por que não dizel-o? – os teus
estados de alma, desde a noite da vigilia das armas, na véspera de seres armado cavalleiro, até
a noite da vigilia do coração quando sentiste que t’o arrancavam do peito para esse o
Memorial de Ayres encerra ainda mais. Desde o começo senti-lhe o perfume da tristeza.
Folheando-o mais adiante vê desprenderem-se de suas paginas as borboletas azues da
266
saudade.

Aqui fica evidente a busca pelo crítico em relacionar uma experiência de sofrimento
de Machado com o seu Memorial. E, talvez, a série de resenhas que enfatizam a

_______________________________________________
265
Ibid idem, p. 481.
266
Salvador de Mendonça. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7 de agosto de 1908. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 468.
153

transformação em Machado na direção de uma maior humanização, tenha de algum modo


orientado boa parte das críticas que o Memorial recebeu após a sua morte, que o tratam como
composto por certa tendência autobiográfica267. A longa citação acima possui dois aspectos
interessantes. O primeiro destes aspectos é reconhecer que o vínculo afetivo do crítico com
Machado lhe teria permitido “perceber” a correlação das experiências de vida com a ficção, e,
em segundo lugar, a indicação da importância concedida à sensibilidade para a interpretação
do próprio romance. Começaremos pelo primeiro aspecto.
O testemunho do próprio crítico em relação à experiência de dor de seu amigo foi a
perda de sua esposa, D. Carolina, como era conhecida pelos intelectuais e artistas do círculo
de Machado. E aqui não nos interessam os aspectos particulares do vínculo entre os dois
amigos ou a investigação mais detida no significado desta morte, e sim a correlação entre uma
experiência, neste caso o luto, com o memorial de Ayres. Neste sentido, a sua obra de ficção é
considerada como parte de seu próprio processo de luto, como se o livro estivesse diretamente
vinculado ao tempo necessário para a absorção do choque, em que o entendimento e a
sensibilidade cumprem seu papel, permitindo o afloramento da experiência, da real percepção
do significado da perda e sua possível superação268. O interessante é que a arte, segundo
Salvador Mendonça, cumpre parte desse processo em Machado, como se a obra literária fosse
uma via indireta da experiência de luto. A sua superioridade como artista, a perfeição de sua
obra, estaria no grau de dignidade com que lidou com a perda, com que apreendeu sua própria
experiência e “progrediu” a partir dela. Desse modo, a perfeição da personalidade somente é

_______________________________________________
267
Lúcia Miguel Pereira, em sua biografia de Machado, afirma até que há no personagem Ayres, principalmente no
Memorial, certa projeção do autor. Uma busca por uma redenção diante a vida, que acalme suas angústias “nervosas”
devido à fragilidade física, e elabore uma imagem reconfortante e serena da vida. Imagem essa tecida em cima de
recordações, em que certas lembranças seriam sutilmente costuradas no desenrolar do romance, principalmente da
personagem D. Carmo, uma versão de D. Carolina. Ver capítulo XIX em: PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis:
Estudo crítico e biográfico. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1955.
268
A discussão sobre a relação entre experiência e tempo é o principal tema de discussão de Henri Bergson, em Matéria e
Memória, mas aqui esta discussão comparece a partir da apreensão desta obra por Walter Benjamin, em Sobre alguns
temas em Baudelaire. A perspectiva de Benjamin, como já discutimos no capítulo III, é crítica a respeito da noção de
experiência relacionada à vida moderna, pois, devido a primazia da racionalidade frente a sensibilidade na vida moderna e
a velocidade de estímulos cotidianos que o indivíduo é submetido, não há de fato a possibilidade da estruturação da
experiência, e tais estímulos ou ficam recalcados no inconsciente ou afloram de forma traumática. É neste sentido que
Benjamin afirma que o livro de Proust Em busca do tempo perdido – que para ele representou a tentativa literária em
confirmar a correlação entre memória e experiência desenvolvida por Bergson - é apenas a representação literária de uma
possibilidade de experiência cada vez mais rara na vida moderna. BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In:
Walter Benjamin: Obras Esolhidas III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Editora brasiliense, São
Paulo, 1989. No entanto, no início do século XX, a busca por experiências que consigam superar a visão racionalizada da
vida, torna-se algo corriqueiro, e, neste sentido, busca-se as impressões, o vínculo entre indivíduo e objeto, que, de alguma
forma, estabeleça a experiência particular dos sujeitos.
154

possível com o aprendizado extraído do sofrimento e da capacidade de sofrer, de possuir a


sensibilidade para se comover com os acontecimentos da vida. Isto significa que a
espiritualização da corporeidade pagã se dá através de uma condução superior do próprio
sofrimento, não como negação destes, pelo contrário, através de uma forma particular de
intensificá-los, através de uma experiência quase espiritual. Só se entende o sofrimento
humano através do próprio sofrimento, como se o conhecimento da vida se desse por uma
forma de empatia, de conexão intensa entre sujeito e objeto. A indiferença do deus, nesse
sentido, não significa afastamento do mundo, e sim um tipo de vínculo especifico, através das
experiências pessoais.
O segundo aspecto está relacionado diretamente à seguinte pergunta: Qual o
significado de possuir olhos para ver e admirar? Essa pergunta está diretamente associada à
noção de empatia, de possuir uma sensibilidade para ser capaz de se colocar no lugar do
outro. Essa sensibilidade, como foi dito, somente é possível através de uma forma de
condução do próprio sofrimento, de um aprendizado a partir da experiência. Deste modo,
possuir os olhos para admirar significa um tipo de expansão da capacidade de percepção
estética, que consegue extrair grande profundidade reflexiva de aspectos aparentemente pouco
significativos. Mas, a pergunta necessária é: porque a vida habitual, a beleza simples, se torna
um tema tantas vezes ressaltado por essa linhagem crítica269? A resposta já foi de certa forma
encaminhada pela discussão sobre a relação entre a arte e o trabalho moderno. Mas, há certas
questões específicas da retórica impressionista e o tipo de vínculo estabelecido com a
realidade.

_______________________________________________
269
São vários os críticos que ressaltam esse olhar de Machado voltado para os fatos ordinários, entre eles: Oliveira Lima.
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1904. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de
Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p.
438. Alcindo Guanabara, que correlaciona a ausência de trama com o “ensejo para encher 300 páginas de observações
grandes e pequenas, de reflexões altas e baixas [...]” numa clara atenção para como um romance devotado ao habitual está
vinculada à noção de “preencher” as páginas com reflexões e liberdade para extrair grande densidade de aspectos
aparentemente pouco significativos. Pangloss - pseudônimo de Alcindo Guanabara. A Imprensa, Rio de janeiro, 29 de
julho de 1908. Idem, p. 449. José Veríssimo menciona ainda a apparencia insignificante”, cuja “simplicidade extrema” é
de difícil execução. José Veríssimo. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 03 de agosto de 1908. Idem, p. 451. Um artigo com
a assinatura de V, possivelmente de Valentin Magalhães, ressalta também como as 300 páginas são devotadas a “episodios
da vida banal, da vida ordinaria,da vida de todos os dias”. V. O Commercio de São Paulo, São Paulo, 09 de agosto de
1908. Idem, p. 456. Medeiros e Albuquerque menciona o “idilio sereno e honesto” do Memorial. J. dos Santos -
pseudônimo de Medeiros e Albuquerque – A Notícia, Rio de janeiro, 16 de agosto de 1908. Idem, p. 471. Leopoldo de
Freitas segue a mesma linha de análise ao salientar que tanto Esaú e Jacó como o Memorial são constituídos de “episodios
(que) não são mais do que as impressões quotidianas da existencia tranquilla e singela que um velho diplomata
aposentado passava no Rio de Janeiro [...]”. L.F. - Iniciais de Leopoldo de Freitas – Diário Popular, São Paulo, 29 de
agosto de 1908. Idem, p. 472 (grifo meu). Artur Azevedo demonstra o mesmo tipo de elogio à simplicidade da estória de
Dom Casmurro, ao mencionar que “romance propriamente dito quasi o não ha nessas paginas”. A.A. - Iniciais de Artur
Azevedo. O Paiz, Rio de Janeiro, 18 de março de 1900. Idem, p. 408.
155

Franco Moretti chama atenção para a forma do romance moderno justamente ao


ressaltar a necessidade, inovadora, de se voltar com tanta ênfase a questões puramente
habituais da vida cotidiana. Em que a trama, normalmente banal, é “preenchida” com uma
série de pequenas decisões de ordem secundária ao romance ou com algumas considerações
do narrador, que não alteram decisivamente o próprio enredo. A curiosidade frente a esses
pequenos detalhes da vida habitual, o prazer descritivo nas minúcias, tanto de cada detalhe
moral como dos cenários, seria na verdade um “[...] prazer narrativo compatível com a nova
regularidade da vida burguesa270”. Nesse sentido, o prazer nas minúcias é parte da “[...]
tentativa de racionalizar o romance, e de liberar, através disso, o universo narrativo: poucas
surpresas, ainda menos aventuras, e milagres nem pensar”271.
Trata-se, de fato, de um narrador que consegue - ou busca - estabelecer distância frente
à realidade, e que se interessa exclusivamente por ela, pelo menos por aquilo que a vida
burguesa reconhece por realidade. Nada das aventuras ou grandes lances que poderiam alterar
bruscamente a história; o resultado seria justamente o oposto, tendo em vista que o desenlace
é obsessivamente encaminhado através de toda a preparação do romance, o que dá uma
dignidade inesperada aos “preenchimentos”, em detrimento de impulsos na condução das
escolhas disponíveis aos personagens. De certa forma, esta obsessão pelo habitual estaria
relacionada à objetividade, a capacidade do narrador conseguir esse distanciamento frente à
realidade, que, na verdade, significaria na prática o desdobramento da racionalidade burguesa.
Nesse sentido, a observação do cotidiano se traduziria por uma necessidade de controle, de
consolidação de um espírito de previdência, em que as escolhas mais importantes fariam parte
de uma intensa reflexão, para se evitar certas “tragédias” implicadas nas más decisões. Essa
busca pelo trivial teria uma significação similar àquela criada por Hannah Arendt através de
sua compreensão da “sociedade moderna imersa no cotidiano”272.
Essa imersão no cotidiano, no entanto, pode ter um sentido distinto daquele
empregado pela necessidade de controle da racionalidade burguesa, e Hannah Arendt estava
atenta a isso quando afirma que esta organização da vida baseada nas trivialidades da rotina

_______________________________________________
270
MORETTI, Franco. O século sério. In: MORETTI, Franco (org). A cultura do romance. Cosac Naify, São Paulo, 2009.
p. 842.
271
Idem, p. 842.
272
ARENDT, Hannah. A condição humana. Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2000. p.53.
156

teve um impacto específico na poesia do século XX, até mesmo na francesa que cunhou o
termo petit bonheur, com um sentido específico para designar esse “encantamento com
pequenas coisas”273. Deste modo, esse encanto com as belezas simples parece ser mais similar
àquela descrição de Salvador Mendonça, um tanto exagerada, sobre a teia de aranha, e ter
olhos para ver e admirar significaria, desse modo, a capacidade de encantar o cotidiano, e
não de fato controlá-lo.
Assim, a noção de experiência seria justamente uma resistência à racionalização, uma
resistência amena a esse tipo de controle da realidade empreendida pelo desejo de
sistematização do estilo de vida burguês. Na verdade, é uma tentativa de extrair uma
significação intensa de pequenas coisas, através da estilização de aspectos triviais, como se
através deles pudesse se atingir outro nível de interesse, mais profundo. No entanto, esse
encantamento é muito diferente daquele empreendido pelo romantismo e sua busca por uma
intensidade incomum e impossível nessa vida rotineira de belezas simples idealizada por
Salvador Mendonça, pois nota-se que esta atração pelo banal vem acompanhada pela
moderação, que refreia o entusiasmo exagerado, do mesmo modo que impede também o ódio
ou repulsa em relação à normalização da conduta. A atração pelo cotidiano não se dá através
de um encantamento de intensa felicidade, pois, vale lembrar, esta forma de encantamento
compartilha um grau de indiferença encetado pela perfeição divina, e não permite tanto
entusiasmo nessa admiração. Mas, assim como ocorre na leitura de Salvador Mendonça a
respeito da relação entre o Memorial e a experiência de luto de Machado, baseada na
redenção, também a obra de arte calcada nesse encantamento das coisas simples parece tender
a essa visão reconfortante da vida, que almeja extrair uma variedade de sensações e
impressões do próprio cotidiano. Nesta perspectiva, a impressão não deixa de portar alguma
rebeldia frente à regularidade e seriedade da vida racional, mas, uma rebeldia também bem
contida, que não visa enfrentar a realidade, pois parece contentar-se com uma forma de
redenção que, de certo modo, pode ser entendida como resignação.
Talvez quem melhor descreva a correlação em Machado entre esta imersão no
cotidiano e a estilização artística de pequenas coisas como uma busca por redenção seja José
Veríssimo neste trecho seguinte:

_______________________________________________
273
Idem, p.61.
157

É, talvez, que na obra do Sr. Machado de Assis a representação dos aspectos materiaes da
vida não provém da descripção ou da enumeração das partes que os compõem, senão, como
nos pintores das novas escolas - e não me refiro ás chamadas decadentes - da impressão geral,
e por assim dizer animadas, e quase espiritual das cousas. Nesse sentido elle é, talvez, um
ruskiniano: a paisagem, que elle, aliás, não ama, e da qual, que me lembre, jámais se occupou
– não será para elle um conjuncto de arvores, montes, aguas, pedras, com este ou aquelle
aspecto particular, senão a impressão moral e esthetica que ella produz no artista.
Se esta é, como creio, a característica da sua representação litteraria, tanto nos romances como
nos contos, a da sua psychologia é idêntica a esta, mostrando assim que os seus processos
litterarios, como proprios e pessoaes que são, derivão do seu mesmo temperamento de
274
escriptor e procedem de um fundo commum de idéas e sentimentos.

Qual o significado do encantamento do cotidiano discutido anteriormente se o


confrontamos com este trecho? De fato, o encantamento está na impressão geral quase
espiritual que se tem das coisas. Em contraposição à descrição “realista” do mundo, faz-se
presente uma imagem pessoal, que se espiritualiza nessa busca por uma identificação com
este mundo que o rodeia, mundo de coisas simples e banais, através da ênfase em buscar um
reconhecimento entre aquilo que observa e a si mesmo. É interessante constatar que a
espiritualização passa justamente por essa ênfase na visão pessoal, na impressão, e, deste
modo, por uma espécie de perfeição que não suprime de modo algum as experiências, pelo
contrário, somente se torna possível a partir delas.
De modo diverso a esses dois modelos contraditórios de autoria, baseada em uma
tentativa de criar uma síntese entre divindade e experiência, os dois perfis que se seguem
estão mais fincados na noção de experiência e a possibilidade de extrair delas um significado
artístico mais humanizado. Selecionamos apenas mais dois exemplos disso, a valorização de
um tipo de envelhecimento e, logo em seguida, a compreensão de melancolia como algo
significativo para o temperamento do artista; duas formas distintas de aquisição da
sensibilidade.

4.8 O sábio filósofo

_______________________________________________
274
José Veríssimo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 19 de março de 1900. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores
de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 413.
158

Outra imagem que se tornou recorrente, e também se assemelha à descrição da velhice


sábia, é a que nos apresenta Machado como um filósofo. Mas seu ponto principal não reside
somente na ideia de uma “constituição progressiva” que se coroa na velhice. Uma resenha em
especial, sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas, marcou definitivamente a visão de
Machado como filósofo, e, nesse sentido, a crítica de Capistrano de Abreu parece ser um
divisor de águas na recepção de Machado de Assis. Esta resenha não aborda as categorias
usuais no julgamento do romance - imaginação, estilo e temperamento do autor -, e sua
originalidade está em apontar uma filosofia no livro de Machado. Filosofia caracterizada
metaforicamente como um misto entre Sancho Pança, que vê o mundo a partir de um delírio
de perfeição, e La Rochefoucauld, a quem Capistrano de Abreu atribui certo ceticismo
voltado para observar o mundo mais a partir da trivialidade do que pelo entusiasmo. Toda a
história do livro é recontada com base nessa filosofia identificada por Capistrano, que assim
redesenha a própria estória, fornecendo um guia de leitura aos despreparados para um texto
que parece desconstruir o modelo cortês dos romances anteriores, ao ponto do próprio
Capistrano abrir sua resenha com a pergunta: As memórias posthumas de Braz Cubas serão
um romance?275 Nosso objetivo aqui não é o de investigar as conseqüências estéticas de se
pensar a literatura machadiana como uma filosofia. Apenas nos ateremos a entrever como esta
concepção exige também, como equivalência, um temperamento apropriado, a partir de
determinadas imagens de filósofo recorrentes nas resenhas.
O traço comum a todas essas percepções de Machado como filósofo parte da suposta
existência de um sistema em suas ficções. Algum tipo de sistema filosófico que lhe seja
próprio e confirme, de forma distinta para cada resenha, seu próprio temperamento e sua
vocação para o trabalho, como podemos ver nesse trecho de Magalhães de Azeredo:

Cultivar a poesia, o conto, o romance, o teatro, a crítica, o folhetim, a crônica, tudo isso
galhardamente, sendo pelo estilo um artista acrisolado, ser ainda um pensador, um humorista,
um moralista, uma espécie de filósofo sem presunções, que, descuidoso de dar o seu sistema
completo, nos dá tão só fragmentos soltos dele, mas bastantes para que lhe adivinhemos
276
plenamente a estrutura [...].

_______________________________________________
275
Capistrano de Abreu. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 1881. Idem, p. 347.
276
Magalhães de Azeredo. Revista Moderna, Paris, 05 de novembro de 1897. MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 191.
159

Encontraremos atribuições similares a essa, juntamente à denominação de filósofo


para designar Machado, em outros críticos277, e, de um modo geral, é dada ênfase à ideia de
uma organização coerente da vida que se reflete também em seu trabalho, onde as teses
obedecem a uma espécie de sistema, de pensamento estruturado278. Nesse sentido, a passagem
acima é bastante exemplar, pois ao mesmo tempo em que aponta a gama de atribuições do
filósofo fluminense, ressalta a existência, ainda que dispersa, de um sistema. Dispersa e
fragmentada pela naturalidade com que é transmitida, sem pretensões de se inscrever
propriamente como um filósofo, o que significaria maior gravidade e seriedade de seus
trabalhos, e, talvez por isso, tenha sido chamado por Magalhães de Azeredo de filósofo sem
presunções, propositalmente descuidoso do próprio sistema. Entretanto, a naturalidade da
filosofia de Machado não significa empobrecimento analítico, pois, Magalhães de Azeredo
parece querer ressaltar somente a ausência de pompa e exagerada seriedade, que em sua
opinião seria comum aos filósofos em sentido estrito. A grande diferença é que, de modo
similar à descrição conciliadora de Salvador Mendonça, este filósofo sem presunções está
perfeitamente conectado à naturalidade cortesã. Portanto, como uma resposta implícita à
Capistrano de Abreu, ainda que indiretamente, Magalhães de Azeredo concebe um Machado
filósofo dentro dos limites do que é possível a partir de referenciais artísticos da época.
Assim, o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma obra que sugere ao leitor o sistema
filosófico dentro do romance, este com uma amplitude maior e mais aberta do que um tratado
filosófico. Se, Capistrano parece querer oferecer um guia ao leitor desavisado da novidade
que contém as Memórias, Magalhães de Azeredo, pelo contrário, trata a obra de Machado, e
também suas publicações em idade madura, como obras de arte que possuem um conteúdo
filosófico a despeito da gravidade exigida em caso de uma obra exclusivamente filosófica.
Fica evidente ainda que, ao contrário da novidade com que Capistrano de Abreu enxerga as
Memórias, Magalhães de Azeredo percebe em toda a extensa publicação de Machado uma

_______________________________________________
277
Xavier de Carvalho exalta a observação de filósofo de Machado. Le Messager Du Brésil, Paris, 29 de outubro de 1882.
Idem, p. 140; Já Urbano Duarte enfatiza que Machado de Assis é um tipo de filósofo sóbrio, que deixa transparecer uma
ponta de materialismo. U.D. - iniciais de Urbano Duarte. Gazetinha, Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1881. In:
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 350 -351; Artur Azevedo destaca Machado de assim como
filósofo adorável. O Álbum, Rio de Janeiro, janeiro de 1893. Idem, p. 399.
278
Justamente o oposto ao que Silvio considerava, pois identificava em Machado apenas uma “veleidade de pensador e de
filósofo” ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira. Editora UNICAMP,
Campinas, 1992, p. 162.
160

unidade, cujos fragmentos nos permite enxergar este sistema filosófico, ainda que essas
diferentes publicações percorram gêneros tão distintos.
A resenha de Magalhães de Azeredo nos remete, portanto, àquela linhagem que se
recusa a liberar a arte daquele conjunto de categorias presentes no padrão de gosto cortesão,
linhagem crítica que se dedica a conciliar determinadas perspectivas mais modernas, como a
concepção de unidade da obra, vocação para o trabalho onde se evidencia o valor do esforço,
e, também de certo teor de seriedade filosófica, aos pressupostos de naturalidade, amplitude
temática e leveza, provenientes do estilo de arte recorrente na corte. Inclusive, como seria de
esperar tendo em vista a qualificação de Machado como um narciso literário, Araripe ataca
justamente a falta de seriedade das obras maduras de Machado, segundo ele resultado da
intensificação das idiossincrasias do autor. Devido a isso, Araripe Junior define Machado
como um filósofo buissonier279, que se diverte em ridicularizar grandes correntes filosóficas,
como o darwinismo e o positivismo, em uma clara relação à filosofia humanitas do
personagem Quincas Borba. Assim, para Araripe Junior, diferente de Magalhães de Azeredo,
não há uma impossibilidade em transformar a obra de arte em um trabalho filosófico ou
científico, esta estética racionalista para ele era, pelo contrário, desejável em uma ficção.
Araripe crítica essa pretensa alcunha de filósofo justamente pela ausência de seriedade
decorrente do compromisso de Machado em entreter e divertir o público, em limitar-se a
manter a necessidade de vivacidade, e, ainda, vale lembrar, da completa incapacidade do
filósofo buissonier em controlar seus próprios impulsos narcísicos em prol de um olhar e
descrição objetivos.
Percebe-se, portanto, que a categoria filósofo recebe definições e utilidades diversas a
partir das respectivas linhas estéticas seguidas, variando desde um elemento a ser contido para
não comprometer a leveza da obra de arte, ou, em direção oposta, uma característica
indispensável à arte moderna comprometida com determinada concepção de realismo. Porém,
outra parte dos críticos, ao contrário de Araripe Junior, supõe a existência de um sistema
estruturado na obra de Machado, e, de forma diversa à Magalhães de Azeredo, costumam dar
maior peso à alcunha de filósofo para defini-lo. Portanto, seguem, com mais precisão, a
leitura de Capistrano de Abreu de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Entre estes críticos
estão Olavo Bilac, que considera Machado um “pensador para quem a alma humana não tem

_______________________________________________
279
Araripe Júnior. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 5 de fevereiro de 1893. Idem, p. 406.
161

segredos”280, Valentin Magalhães, que descreve Machado como um sábio, cuja alegria é
calma e pouco expansiva, sem piedade ou desprezo281, e, ainda, Mario de Alencar,
designando-o como um pensador-artista282. São três críticos de gerações posteriores à
Machado, cujo contato com o autor fluminense se deu a partir das Memórias, e seguem a
perspectiva de Capistrano de Abreu em estabelecer um corte estético na obra de Machado
após a criação de seu famoso personagem Brás Cubas. Nestes, portanto, é acentuada a ideia
de uma literatura autônoma, elevada a um status de filosofia, obra de grande vulto, e
desempenhada verdadeiramente apenas por espíritos superiores e dedicados ao trabalho, com
a capacidade de auto-superação283. Assim, o filósofo ou pensador-artista, teria progredido,
devido à dedicação sistemática ao trabalho, e acabou por romper com a estética anterior,
criando um sistema próprio, inconfundível, como pode ser visto na passagem seguinte, de
Gama Rosa:

Os Papéis avulsos são, na essência e na modalidade, uma continuação da maneira iniciada nas
Memórias de Brás Cubas.
O mesmo maneirismo, o mesmo pessimismo, o mesmo ar sarcástico, cético, desiludido de
tudo e de todos, as mesmas revelações apocalípticas, os mesmos sentidos obscuros e
ambíguos, o mesmo humorismo doentio, o mesmo espírito enigmático fazem desconhecer, no
primeiro como no segundo livro, o poeta lírico e o escritor romântico de outrora.
O fato possui significação e merece ser apreendido: trata-se não de uma mudança
momentânea, um movimento acidental, mas de uma impressão perduradoura, de um novo
modo a ser adquirido pela individualidade do escritor.
O elegante poeta fluminense irrevogavelmente trocou a sua varinha mágica de charmeur pelo
284
látego e a férula do moralista.

_______________________________________________
280
Olavo Bilac ainda afirma que o pessimismo de Machado, sua análise fria e cruel e a dolorosa impressão de desconsolo que
a sua obra provoca é a reprodução da própria vida, e que “Machado de Assis, escreve, torturando-se a si mesmo, rasgando
suas próprias entranhas, pondo a nu os seus nervos”. O. – inicial de Olavo Bilac. A cigarra, Rio de Janeiro, 24-25 de
outubro de 1895. In :MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro,
2003. p. 181.
281
Valentim Magalhães. O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 de outubro de 1895. Idem, p. 186.
282
Mario de Alencar. Jornal do Commercio, 24 de julho de 1908. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 482-483
283
Em uma resenha sem assinatura, se afirma que uma “grande e fecunda renovação se operou no espírito do autor das
Crisálidas, e que, o Machadinho de 1860 se transformou num escritor poderoso e sóbrio, perscrutador, original, moderno”.
Afirma ainda que Machado vive o “espírito do tempo”, e sob uma nova orientação literária mais próxima à ironia de Swift,
do pessimismo de Schopenhauer e do realismo de Daudet. Sem Assinatura. A estação, Rio de Janeiro, 15 de novembro de
1882. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 144.
284
Gama Rosa. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 2 de novembro de 1882. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 140-141.
162

Parece que juntamente com essa dedicação ao trabalho, Machado de Assis, por razões
não muito exploradas pelos críticos, desenvolve um traço de ceticismo conveniente a esta
imagem de filósofo, que mantém a calma e evita tanto a alegria desmedida como a
infelicidade exagerada. Se antes essa contenção passava pela sua identificação com o padrão
cortesão, agora é tida como um atributo individual, para os poucos capazes dessa disciplina do
próprio humor. Pois, o charmeur dos romances, poesias e contos anteriores às Memórias,
cede espaço a um moralista, com uma imagem mais sisuda e carrancuda. Assim, a disciplina
de seu humor, de seu temperamento, que atinge esse ceticismo descrito de forma similar ao
ceticismo pirrônico285, não é um constrangimento proveniente da sociabilidade cortesã, a
recomendar humildade diante do público. Neste trecho, seu temperamento marcado por um ar
sarcástico, cético, desiludido de tudo e de todos, origina-se de um pleno conhecimento da
alma humana, de uma superioridade de mestre, acima dos pequenos tormentos que atingem o
homem, portanto de uma distinção entre artista e seu público.
Percebemos, assim, um mesmo ponto de transformação que de algum modo explicaria
essa passagem de Machado para uma postura mais cética. No entanto, se nas duas metáforas
de Machado como divindade por vias distintas destaca-se que a imagem do autor atinge a
perfeição através de uma experiência e esta de algum modo produz uma visão mais
reconfortante do mundo, neste outro modelo costuma prevalecer uma compreensão de
ceticismo mesclado contraditoriamente com outro traço que normalmente lhe atribuem: o
pessimismo.

No fundo, bem no intimo, elle não acredita no amor, nem na religiosidade, nem no
patriotismo, nem no desinteresse, nem na sympatia, nem na bondade; crê, disfarçadamente, no
egoismo todo poderoso, força incontrastavel, que inspira e domina todos os actos, todos os
projectos, todas as conquistas e todas as fundações humanas.
A revolta seria, pois, tão absurda e vã, como qualquer tentativa de castigo ou qualquer sonho
de correcção.
O humorismo de Machado de Assis deriva d’ahi, desse escuso e profundo veio de amarga
286
philosophia pessimista.

_______________________________________________
285
MAIA NETO, José Raimundo. O ceticismo na obra de Machado de Assis. Annablume, São Paulo, 2007.
286
Alcides Maya. O Paiz, Rio de Janeiro, 8 de outubro de 1904. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 431.
163

Independente de qual experiência modela essa forma amarga de enxergar a vida, este “sistema
filosófico” não visa à elaboração de nenhum quadro singelo e reconfortante. A resignação
obtida através do encantamento do cotidiano, das pequenas coisas, é substituída aqui por uma
resignação necessária, tendo em vista não haver nenhuma outra solução para conter o
desespero. A constatação do egoísmo irremediável, dos pequenos interesses contidos em todas
as relações, não consegue produzir a sensação de plenitude almejada por aquela noção mística
de experiência. Deste modo, trata-se de outra forma de experiência, completamente distinta da
espiritualização do corpo. Nesta via não há redenção alguma possível, apenas a constatação
triste de uma realidade mesquinha. E o tipo de experiência que permite a constatação da
“verdade” a respeito das pessoas não passa pela “esperança”, como defendida por Salvador
Mendonça, nem por uma possibilidade de conforto, pois a verdade é obtida com a desilusão, e
o “pleno conhecimento” dos homens resulta em uma postura amarga e pessimista.

Mas a observação é tão positiva, os factos são de uma realidade tão palpavel, fiel, esmagadora
e perfeita, que ninguem os podia ter inventado, nem fabulado, a frio, entre as quatro paredes
de gabinete; é evidente que o autor os viveu primeiro e os pôz no papel muito mais tarde, com
o juízo calmo da experiência e as desilusões da edade, com as recordações, amargas ou doces,
do tempo que passou, com a nota predominante do seu temperamento e o melhor do seu
287
coração.

As desilusões da idade e as experiências desdobradas dela são conseqüência de uma


ausência de ideais, ausência de esperança na possibilidade de evolução humana, o que
transforma toda tentativa nesse sentido em uma pureza fadada, irremediavelmente, à
desilusão. Por isso Graça Aranha afirma que essa postura pessimista em face da vida só pode
resultar de um

[...] sentimento de desespero de um ser profundamente inteligente, que divisa toda a


inutilidade da loucura humana para a felicidade. Seu pessimismo é radical e o vence, como
uma enfermidade da alma. É uma coisa sincera, essencial no seu caráter, esta incapacidade de
288
fé, que é o fundo do desalento.

_______________________________________________
287
Abdiel. A Estação, Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1881. Idem, p. 353.
288
Graça Aranha. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, fevereiro de 1898. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 198-199.
164

Esta filosofia amarga é regularmente atribuída à influência que Machado poderia ter
sofrido de Schopenhauer289, e esta associação é interessante para se notar a distinção de
experiências, entre esta desilusão do filósofo pessimista, e, de outro lado, a experiência de
espiritualização relacionada aos deuses em miniatura, e novamente recorreremos a Simmel
para conseguirmos expressar de forma adequada essa oposição.
Para Simmel, Schopenhauer atribui à vida individual um constante sofrimento, em que
a busca pela felicidade, relativa à satisfação do desejo, é marcada pela dor. Aliás, a própria
felicidade é apenas um instante passageiro, pelo alívio de suprimir essa dor provocada pelo
desejo. Desse modo, o homem conviveria mais com o sofrimento do que com a felicidade, por
esta última se reduziria a um instante mínimo, em que tal desejo é realizado, para, novamente
se refazer o ciclo de dor através da formulação de outro desejo. A única possibilidade de
redenção seria a negação dessa vida290, principalmente desses aspectos particulares do sujeito,
pondo fim ao exagero na expectativa na satisfação dos desejos. Com isso chega-se a
conclusão de que o indivíduo empírico, particular, deve ser superado291, pois a busca da
verdade se faz na supressão da história, de tudo aquilo que se distancie da perfeição
metafísica. Essa repulsa pelo particular, pelo manifestamente empírico, reduz a memória a
uma condição circunstancial desimportante, e que desvia o sujeito dessa possibilidade de
auto-superação que implica a rejeição de si mesmo. A partir disso, a noção de experiência
como espiritualização do corpo através de circunstâncias particulares de vida seria
irrealizável, o que torna o cotidiano, aquilo diretamente vinculado a existência individual,
como algo fadado ao sofrimento, caso não estabeleça um distanciamento frente a ela. Dessa
maneira, o pessimista enxerga como sofrimento a imersão do homem no cotidiano, não no
sentido de projetar uma satisfação particular mais elevada, e sim no de que toda projeção de
desejos vinculados a qualquer tipo de satisfação particular resultaria em sofrimento.
Simmel insere, em outro contexto de sua exposição, um autor que qualifica de forma
distinta essa discussão sobre a relação entre o desejo e felicidade, e este estaria mais próximo
da possibilidade de espiritualização do corpo e, também, do próprio cotidiano. Trata-se de

_______________________________________________
289
Gama Rosa escreve sobre a “filosofia triste, triste e verdadeira, pura filosofia de Schopenhauer”. Gama Rosa. Gazeta da
Tarde, Rio de Janeiro, 2 de novembro de 1882. Idem, p. 141.
290
O anseio de redenção em Schopenhauer “se expresa en un no frente a la vida”. SIMMEL, Georg. Schopenhauer y
Nietzsche. Prometeo Libros, Buenos Aires, 2005. p.154.
291
Idem, p.165.
165

Maeterlinck292, apresentado por Simmel como o mais original antípoda de Nietzsche. Nesta
sua leitura, o autor é descrito como aquele que busca justamente a “espiritualização do
cotidiano” como uma forma de se produzir uma felicidade no aprofundamento dos pequenos
desejos, conferindo um prazer nos aspectos da permanência e não na intensidade das
impressões intensas e casuais. De fato, como o próprio Simmel ressalta, significa uma
inversão de onde se pode encontrar o extraordinário, tendo em vista que aquilo que é regular
passa a ser dotado de um deslumbramento de beleza que é normalmente suplantado com a
repetição, com o treinamento da percepção que acaba por suprimir essa profundidade do
banal. Desse modo, além da valorização da vida, da possibilidade de uma satisfação do dia-a-
dia em oposição à intensidade que normalmente se busca na vida moderna e sua “regular”
valorização de impressões intensas, Maeterlinck afirma, segundo Simmel, que até mesmo os
grandes e intensos desejos, as grandes impressões, somente podem ser balizados e convertidos
em experiência quando se possui o tempo necessário para apreendê-los, quando
transformamos esta impressão extraordinária em assunto da rotina, e sua permanência nas
pequenas felicidades que constituem sua lembrança e apreensão de seus significados. O
próprio Simmel indica como um erro de Schopenahuer somente compreender a relação entre
desejo, dor e felicidade através de situações puras entre o ter e o não ter, como se a felicidade
somente fosse possível na ausência da dor e vice-versa. Para Simmel, e de forma
particularmente próxima de sua leitura de Maeterlinck, até mesmo o caminho que se constitui
na busca pela satisfação da felicidade precisa considerar seus efeitos psicológicos293. E, nesse
ponto de vista, qualquer busca pela satisfação de um desejo, e, muitas vezes até mesmo sua
frustração, é preenchida por graus de felicidade, como se o caminho até aquela satisfação
última fosse permeado de graus menores de satisfação, o que, em outros termos, remonta ao
prazer obtido a partir das pequenas etapas cumpridas para a satisfação deste desejo. Uma
forma bem mais estética em se lidar com o cotidiano, a regularidade e previdência necessários
para se alcançar determinado objetivo. Isto significa uma ampliação da dignidade daquilo
normalmente compreendido apenas como o “meio” para a realização deste objetivo. E, de
forma distinta de Schopenhauer, reforça que a felicidade está diluída no viver cotidiano, cuja
regularidade não implica somente em carência e sofrimento.

_______________________________________________
292
Idem, p. 170-171.
293
Idem, p. 73.
166

Estas duas perspectivas distintas a respeito do entrecruzamento entre sofrimento,


felicidade e cotidiano apontam justamente para a oposição entre este perfil de Machado como
filósofo pessimista e aqueles outros dois baseados na metáfora de deus em miniatura. O
primeiro retrato enxerga no próprio envelhecimento uma espécie de experiência negativa, mas
necessária, cujo resultado é justamente a negação da possibilidade de se obter satisfação, tanto
do pondo de vista do aspecto mesquinho da vida social como, e mais importante, da
incapacidade do indivíduo atingir a perfeição, tendo em vista que as experiências particulares
não permitem que o indivíduo histórico e singular “viva” na superação do tempo e na
perfeição metafísica. Em seu oposto, a tentativa de espiritualização do corpo, mais
precisamente através da espiritualização do cotidiano, dos aspectos simples, parte de uma
noção de experiência que consegue apreender a beleza inscrita rotineiramente nas banalidades
da vida. Uma experiência que busca re-encantar o cotidiano, devido a sua capacidade de
superar o embotamento de nossa percepção causado pelo controle racional e regular do olhar.
Desse modo, para conseguirmos apreciar o cotidiano e essa realidade que transcorre em ritmo
compassado, para que tenhamos verdadeiramente os olhos para ver e admirar que Salvador
Mendonça elogiava, é necessário essa espiritualização das coisas simples, que implica, por
outro lado, uma grande capacidade de apreender verdadeiramente essas experiências singelas.

4.9 O artista melancólico

O cético indiferente e pessimista abre espaço para outra característica muito recorrente
neste universo artístico/intelectual do século XIX, pois refere-se a noção de que a melancolia
é o estado psicológico adequado para a expressão artística. Há uma série de pesquisas que
explicam historicamente como durante o século XIX essa relação entre arte e melancolia
ganhou um novo significado294 e até mesmo alguns estudos, em outra vertente, afirmam que
as condições sociais de grandes cidades modernas proporcionam essa acentuação do caráter
melancólico295. De qualquer modo, é tão freqüente este “diagnóstico”, e até mesmo a auto-

_______________________________________________
294
PANOFSKY, E.; KLIBANSKY, R.; SAXL, F. Saturno y la melancolía. Alianza Editorial, Madrid, 1991.
167

representação como melancólico, que alguns teóricos referem-se a este estado de humor como
uma epidemia, um mal-estar de fim de século296. Ainda que conte com um grande número de
estudos que demonstrem essa relação entre arte e melancolia no mundo moderno europeu,
aqui no Brasil há poucas referências a este respeito297, apesar de ser, curiosamente, muito
freqüente a associação entre melancolia e o próprio Machado de Assis298. É interessante
identificar, portanto, a forma como Machado passou a ser esboçado como um melancólico, e,
ainda, como determinados críticos delinearam sutilmente o percurso pelo qual o autor
fluminense adquiriu tal feição.
Assim como a maioria dos outros retratos se delinearam, este Machado melancólico
também parece ter sido inspirado no tom e estilo de suas obras da maturidade. Contudo, este
perfil tem uma peculiaridade frente aos demais, por se tratar de uma imagem elaborada pelo
próprio Machado, visto que os críticos enxergaram em seu personagem Ayres um desenho
definitivo de si próprio299. Vale lembrar que os críticos possuem um papel ativo na
interpretação do personagem, dotando-o de um perfil próprio. E tais interpretações da crítica a
respeito de Ayres parecem aproximar-se levemente da noção de melancolia, como podemos
visualizar nos dois trechos seguintes, de Mario de Alencar e Alcides Maya.

E o que ha mais neste livro admirável? Além da perfeição ha a eterna flôr viçosa que
Machado de Assis tirou de si para pôr na botoeira do Conselheiro Ayres. É flôr que sorri
sobre as tristezas e as alegrias da vida e faz que a gente vá passando através dellas, enlevada
300
pelo seu perfume que consola, pelo seu sorriso enigmatico que é a ironia da natureza [...].

295
BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin: Obras Esolhidas III. Charles Baudelaire:
um lírico no auge do capitalismo. Editora brasiliense, São Paulo, 1989.
296
AGAMBEN, G. Estâncias: A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2007.
297
SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: A melancolia européia chega ao Brasil. Companhia das Letras. São Paulo
2003.
298
Magalhães de Azeredo afirma que a melancolia de Machado se faz presente em seus personagens, atormentados pela
moléstia da dúvida. Magalhães de Azeredo. Revista Moderna, Paris, 5 de novembro de 1897. In: MACHADO, Ubiratan.
Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003 p. 193; Graça Aranha questiona se Machado
teria estudado os “[...] eternos problemas humanos com esse sabor melancólico, que se encontra no Eclesiastes e vem
peregrinando por Spinoza, Sterne, Swift e outros, até Schopenhauer”. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, fevereiro de
1998. Idem, p. 198; Medeiros e Albuquerque chama Machado de um “ex-romântico desiludido”. J. dos Santos -
pseudônimo de Medeiros e Albuquerque. A Notícia, Rio de Janeiro, 24 e 25 de março de 1900. GUIMARÃES, Hélio de
Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP,
Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 416; Alcides Maya o designa como um “tranqüilo melancólico”. O Paiz, Rio de
Janeiro, 8 de outubro de 1904. Idem, p. 432; nessa mesma perspectiva, Oliveira Lima afirma que Machado tem uma
“melancolia moderada”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1904. Idem, p. 438; Mario de Alencar
ressalta a existência de certa melancolia no Memorial. Jornal do Commercio, 24 de julho de 1908. Idem, p. 481.
299
Candido - pseudônimo de José Veríssimo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de agosto de 1908. Idem, p. 452; Oliveira
Lima. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1904. Idem, p. 440; Salvador de Mendonça. Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, 6 de setembro de 1908. Idem, p. 468.
300
Mario de Alencar. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1904. Idem, p. 429.
168

Como pode ser percebido, Mario de Alencar considera o conselheiro Ayres uma
extensão do próprio Machado, como se o ficcionista emprestasse algumas de suas
características ao seu personagem, dando-lhe vida a partir do seu próprio temperamento. Tais
traços supostamente emprestados ao seu personagem revelam certa aproximação com o
ceticismo e distanciamento apontados anteriormente, mas agora estes comparecem somados à
uma benevolência que de algum modo torna esse ceticismo distinto. O retrato de Machado
como um filósofo pessimista que professava com indiferença - e certo rancor - sua sabedoria
sobre os homens cede lugar a este novo Machado que começa a nos ser apresentado por
Mario de Alencar na passagem acima, que sorri quase com cumplicidade das alegrias e
tristezas. Portanto, há compaixão nesta descrição, um perdão das fragilidades e fraquezas
humanas. O trecho seguinte de Alcides Maya segue a mesma linha, ao afirmar que:

A resignação zombeteira de D. Casmurro e a duvida elegante do Conselheiro Ayres, o


diplomata das meias palavras, das fhrases ambíguas, das definições estramboticas, dos gestos
de dois sexos e dos pensamentos mysteriosos, que á proclamação da Republica deu ao
Custodio o conselho da taboleta e a ultima pagina do Esaú e Jacob prefere aceitar uma
hypotese infamante, acariciando docemente a eterna flor que lhe viçava na botoeira, a aceitar
um debate inútil, são as duas expressões mais perfeitas e suggestivas do genio de doce
301
mysantrhopo theorico do escriptor brazileiro.

Portanto são a resignação zombeteira e a dúvida elegante que caracterizam Machado


de Assis. Note-se, entretanto, a diferença de detalhamento concedida ao narrador Dom
Casmurro e ao personagem Ayres, onde se verifica que a resignação é muito menos
qualificada do que a dúvida elegante, que encobre em si uma série de outras características,
tais como a indiferença em externar a própria opinião e, também, a ambigüidade de suas ações
e respostas, marcas de sua diplomacia e horror a controvérsia. Tudo isso compõe a imagem de
doce misantropo teórico de Machado. Assim, sua aversão diante dos homens é moderada e
não o afasta do convívio social, apenas lhe dá um ar secreto de desilusão e indiferença. A
ambigüidade, portanto, deriva mais dessa leve aversão por se enredar em compromissos
mesquinhos do que por uma necessidade de status.
Como vimos, as duas passagens não revelam explicitamente essa interpretação de
Ayres como melancólico. Entretanto, percebe-se em ambos trechos certa insistência com uma
imagem que não é apenas acessória e pode nos revelar certa tendência de suas interpretações.

_______________________________________________
301
Alcides Maya. O Paiz, Rio de Janeiro, 8 de outubro de 1904. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de
Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p.
431-432.
169

Trata-se das misteriosas metáforas eterna flor e flor viçosa, colocadas por Machado na
botoeira do Conselheiro Ayres. Só é possível entender seu significado a partir de três outras
passagens, todas de Magalhães de Azeredo.

Essa flor amarela e mórbida do desencanto, sem dúvida uma forma, e das mais requintadas,
da sabedoria, só pode ser, num indivíduo ou num povo, resultado de longo cultivo, de
complicada evolução. Como se engendrou e desabrochou ela no espírito de Machado de
Assis? Para a sua alma, delicadamente, esquisitamente sensível, tanto como refletida e
analista, a experiência se deve ter consumado depressa; ora, no espetáculo da realidade, dois
fenômenos capitais o impressionam, quando ele considera o homem face a face com a
natureza de que faz parte: um é a sua pequenez, a sua quase nulidade como fator da ordem
universal, sujeito qual está sempre a um encadeamento de leis que não formula a seu talante e
não pode suspender ou abrogar; o outro é a sua insignificância mesmo no foro íntimo, tantas
causas conhecidas e desconhecidas concorrem para lhe enfraquecer o livre-arbítrio até nos
302
mínimos atos.

Aqui a metáfora da flor é mais bem compreendida, porque vem acompanhada dos
qualitativos associados à melancolia, pelo menos aos seus aspectos patológicos, da sua
morbidez e desencanto. O doce misantropo teórico anterior é substituído por outra imagem
mais densa, principalmente quando Magalhães de Azeredo fundamenta a origem desse
desencanto, como se formou esta exagerada sensibilidade. Em primeiro lugar é necessário
notar que Machado nos é apresentado como um indivíduo peculiar, pois a delicadeza de sua
alma não é natural ao meio, não brotou espontaneamente de uma condição social em que este
desencanto seria previsível. Por isso sua peculiaridade e a estranheza de Magalhães de
Azeredo diante essa alma excessivamente delicada. Em segundo lugar aparece a qualificação
da formação desta alma sensível de Machado como fruto de uma consciência aguda dos
próprios limites do homem, tanto diante da sociedade como do autocontrole. Magalhães de
Azeredo não quer dizer com isso que Machado reconheça a sua incapacidade em controlar
sua própria imagem ou dos seus atos, porque na mesma resenha afirma que: “O zigue-zague
está mais na lógica real que a linha reta; nada tão comum como a dualidade, a
multiplicidade até de uma alma; algumas há de uma só peça; mas são tão raras!”303 E é
claro que Machado faz parte dessas almas de uma só peça, portanto uma personalidade
inteiriça. Mas isso não impede a emergência da melancolia, pois ela reside no
reconhecimento da sua distância frente esta humanidade errática, que segue em zigue-zague,

_______________________________________________
302
Magalhães de Azeredo. Revista Moderna, Paris, 05 de novembro de 1897. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 193.
303
Magalhães de Azeredo. Ibid idem, p. 193.
170

perdida em termos de referências e incapaz de controlar seu próprio humor. Assim, a


“superioridade”, ou talvez, determinado tipo de solidão derivado dela, seriam explicações
para o desenvolvimento dessa melancolia singular, como pode ser melhor compreendido a
partir de outra resenha do mesmo crítico:

Machado de Assis não póde queixar-se de sua sorte; a gloria não foi ingrata para com elle.
Creio que esse lettrado amável e bom nunca teve de soffrer com as perversidades grosseiras
de um povo que o desconhecesse, e não quizesse dar echo á sua voz; não é incomprehendido.
Si o fundo da sua alma é cheio de melancholia e desalento, não provém isso, por certo, sinão
da disparidade e da antinomia, que hão de existir sempre, apesar de tudo, entre o homem de
304
pensamento e de coração e o commum dos mortaes.

Assim, Machado continua a ser designado como uma pessoa com dotes superiores,
que o faz ser incomum entre os mortais, mas é descrito como um homem, e um homem que é
atingido pela distância que existe entre ele e todos os outros indivíduos. As características que
compõem esta “alma” particular são a sensibilidade exagerada, grande consciência da
realidade, inteireza do temperamento e retidão de suas condutas. São traços compatíveis com
a descrição do filósofo, tal como definido por determinados críticos, e portanto de uma
subjetividade pautada na organização sistemática de seu temperamento. Contudo, esta alma
sensível, se abala com a distância, torna-se melancólica, apesar de possuir reconhecimento
social de um público. Poderíamos ousar supor que para Magalhães de Azeredo esta
melancolia é uma espécie de fardo que todo artista carrega consigo, uma tristeza derivada
desta alta sensibilidade e capacidade de entrever o que há de espúrio no comportamento
humano. Em contrapartida, ao invés de desprezo por esse caráter maléfico da humanidade,
Machado teria se resignado, quase com compaixão pelos comuns dos mortais. Dessa maneira,
a indiferença é substituída pela melancolia, pelo fardo de se perceber distante e incapaz de
transformar ou corrigir o comportamento humano, por ter a certeza de ser vã toda pretensão
em utilizar sua clarividência em prol de alguma transformação, tendo em vista a consciência
de que os homens caminham invariavelmente em zigue-zague, perdidos, incapazes de
controlar suas próprias ações.
A melancolia é descrita, portanto, por um aspecto positivo, quase uma virtude, tendo
em vista que ela parece equilibrar o ímpeto indiferente e auto-suficiente do artista, através da
compaixão. E, devido a essa peculiar melancolia descrita, Machado contém seu pessimismo,

_______________________________________________
304
Magalhães de Azeredo, O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 de abril de 1892. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin
Editorial, São Paulo, 2004. p. 365.
171

moderando-o, tornando-o mais leve. Aliás, grande parte dos críticos contraria o perfil anterior
ao afirmar que o pessimismo de Machado é mais brando, menos radical305, como se fosse um
pessimismo capaz de compreender a falibilidade humana, e, ao mesmo tempo, não se sentisse
no direito de um julgamento mais duro e rígido. A melancolia seria o tempero para tornar o
artista mais humano e, portanto, mais suscetível. É interessante notar, entretanto, que ao
contrário de um artista que se intitula como melancólico, como Baudelaire, Machado não é
descrito como um indivíduo compelido ao zigue-zague devido ao tumultuar de emoções que o
forçaria a desenvolver as famosas cesuras do poeta francês306. A melancolia, como lhe é
descrita, parece se localizar puramente na comoção em relação ao outro, devido ao excesso de
sensibilidade que o permite sentir a dor alheia, portanto, esse retrato de Magalhães de
Azeredo parece ganhar forma na figura da compaixão e misericórdia.

Mas não haverá para além dos astros Alguém compassivo e remunerador – essa justiça
imanente que é ao mesmo tempo imanente Misericórdia? Cuido não errar supondo que
Machado de Assis, quaisquer que sejam as vacilações do seu espírito diante do eterno
Problema, tem no fundo da sua consciência a fé, instintiva ao menos, com que se apela das
iniqüidades transitórias para a Suprema Sabedoria que corrige e harmoniza as especiosas
307
contradições do Universo. Além de quê, ele não é um blasé.

Portanto, esta melancolia tem contornos cristãos, em uma versão moderna da


compaixão, que também implica em grande nível de sofrimento. Há um cristianismo estético
amparando essa imagem do artista fadado ao sofrimento devido seu excesso de sensibilidade,
cujo único conforto é acreditar em alguma forma de redenção, algum mecanismo que produza
ou restabeleça a harmonia, suprimindo as “contradições do Universo”. Entretanto, a busca de
Machado por redenção, como o próprio Magalhães de Azeredo salienta, se registra mais na

_______________________________________________
305
“Pessimismo, não dissimulo que o há; mas um pessimismo que não é nem a rabuge caduca da velhice, nem a caturreira de
um emperrado, que por toda parte visse a ruína e a morte, que se sentisse invadido pela treva e o mal. Um pessimismo
bem-humorado, fino, risonho e delicioso, que não é insensível ao bom e ao belo; mas que se não deixa levar pelo
entusiasmo irrefletido dos primeiros anos: produto natural e espontâneo da idade, da experiência, da observação”. Sem
assinatura. A estação, Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1882. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de
consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003 p. 144; Magalhães de Azeredo menciona o sabor de fel provocado pelo riso
sardônico nas obras de Machado. Revista Moderna, Paris, 5 de novembro de 1897. Idem, p. 194; Artur Azevedo também
descreve a deliciosa ironia desta philosophia risonha. A.A - iniciais de Artur Azevedo. O Paiz, Rio de Janeiro, 18 de
março de 1900. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o
público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 407.
306
BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Walter Benjamin: Obras Esolhidas III. Charles Baudelaire:
um lírico no auge do capitalismo. Editora brasiliense, São Paulo, 1989. p. 111.
307
Magalhães de Azeredo. Revista Moderna, Paris, 05 de novembro de 1897. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis:
roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 197.
172

resignação do que propriamente em uma tentativa de intervenção, e, portanto, baseia-se mais


na ideia de auto-sacrifício, em que se verifica sobretudo o próprio controle para não julgar e
emitir juízos severos a respeito da conduta de seus personagens que caminham em zigue-
zague. Este sacrifício é interessante, porque recoloca a questão da humildade cortesã em
outros termos. Se, para a sociabilidade de corte, a humildade era uma condição para que se
estabelecesse uma sensação de igualdade a todos que participavam dos circuitos de interações,
aqui, a humildade possui uma conotação distinta. A relação entre melancolia, humildade e
sacrifício deixa nítida que a sensação de isolamento é irremediável, pois, como podemos ver,
a melancolia reside justamente na consciência da distância entre os comuns dos mortais e o
artista. Deste modo, é o isolamento que marca essa tristeza, a sensação de irreparável
distância, de não se sentir pleno no engajamento à vida social. E essa melancolia, sentida
devido à distância e solidão, impede o afloramento da soberba de seu pessimismo,
redimensionando a indiferença entre o artista e seu meio.
Esta flor viçosa colocada por Machado na botoeira do Conselheiro Ayres pode ter, no
entanto, um sentido ainda mais profundo, relativa a uma experiência um pouco mais
complexa do que essa perspectiva de uma melancolia que humaniza o artista ao preenchê-la
com compaixão. De fato, nenhum crítico apresenta a melancolia de Machado como um traço
mórbido, pois sempre a contrabalança com a resignação, como se a melancolia fosse sempre
moderada. O tipo de melancolia que apresenta tem uma origem distinta daquela descrita por
Joaquim Nabuco308, marcada mela dispersão e mais afeita a essa imagem do zigue-zague
criada por Magalhães de Azeredo. Mas, esta solidão do seu espírito diante o mundo, que na
alusão de Magalhães de Azeredo parece se remeter quase como a distancia da divindade
perante o commum dos mortaes, pode apresentar outro significado na correlação entre a sua
impotência contrastada com a incapacidade de ser indiferente.
O blasé na acepção de Magalhães de Azeredo vem acompanhado de uma impressão
negativa, e, não à toa, o crítico decide afirmar que o fato de Machado não ser blasé é um dos
indícios de uma fé íntima, quase instintiva. Entretanto, este embotamento da percepção

_______________________________________________
308
Joaquim Nabuco, em sua viagem a paris ressalta como sua atenção estava marcada pela atração do olhar, de tudo ver
rapidamente, e usa, inclusive, o termo “roubar” para representar essas visitas rápidas para tudo ver. JOAQUIM NABUCO,
Minha Formação. Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional. p. 13.
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000096.pdf. Ricardo Benzaquen chama a atenção para essa atração
dispersa do jovem Nabuco, e a correlaciona com o personagem do conto de Edgar Allan Poe, “homem das multidões”, que,
em zigue zague percorre febrilmente as ruas de Londres. In: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Através do Espelho:
Subjetividade em Minha Formação, de Joaquim Nabuco. RBCS, vol 19, nº 56, 2004.
173

somente é uma característica nociva quando julgado a partir de um julgamento moral. Ela
pode ser compreendida de outra forma se partirmos da acepção de que certo nível de
indiferença aos estímulos incessantes da vida moderna possui uma função importante de
preservação do indivíduo309. Esta indiferença está diretamente relacionada com a velocidade
dos estímulos, que se fossem absorvidos pela sensibilidade de modo contínuo, provocaria
grande excitação nervosa. Por isso, afirmar que Machado é um sensível, que se comove com
as iniqüidades transitórias e o zigue-zague dos homens, significa afirmar que, em certo grau,
Machado possui uma propensão nervosa que precisa ser controlada continuamente. Nesse
sentido é muito relevante a tese em que Lúcia Miguel Pereira se apóia sobre este assunto, ao
afirmar que a epilepsia de Machado era um dos sinais físicos dessa patologia psíquica, o que
fica evidente na descrição de uma cena ocorrida entre Machado e o próprio Magalhães de
Azeredo em uma farmácia:

Aliás, parece que a impressão nervosa agia terrivelmente sôbre sua doença. Um dia, entrando
numa farmácia em companhia de Magalhães de Azeredo, o farmacêutico contou-lhe,
horrorizado, um ataque epiléptico que socorrera pouco antes. Machado começou a dar sinais
de aflição, e afinal, não se contendo, exclamou: “Cale-se, por favor, que eu também sou
doente e estou sentindo que vou ter alguma coisa”. Devia estar mesmo fora de si, para
310
confessar assim o seu mal.

A presença do próprio Magalhães de Azeredo nessa situação confirma que ele teve
consciência da doença que afligia o autor do Memorial de Ayres - apesar de não ser possível
precisar se a data de sua resenha foi anterior ou não à situação descrita por Lúcia Miguel
Pereira -, acrescido ainda das próprias cartas escritas por Machado, como a de 17 de janeiro
de 1901 em que Machado afirma que foi acometido por um “acesso intermitente de
nevralgia” devido ao excesso de trabalho311. Desse modo, auxiliado por esse testemunho,
podemos perceber que mesmo que só tenha tomado conhecimento posterior dessa tendência
nervosa de Machado, Magalhães de Azeredo, de certa forma, já indicava em suas resenhas

_______________________________________________
309
SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito. In: Revista Mana, nº 11(2), Rio de Janeiro, 2005. p. 581.
310
Segundo Lúcia Miguel de Pereira essa estória foi lhe contada por Afonso Arinos de Melo Franco, que a teria ouvido do
próprio Magalhães de Azeredo. In: PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: Estudo crítico e biográfico. Livraria
José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1955. p. 270
311
Ibid idem. MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e Obra de Machado de Assis. Volume 4, Apogeu. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1981. p. 148.
174

algumas insinuações, moderadas pela polidez, em que dava margem à descrição de um retrato
de Machado como alguém frágil e suscetível às condições externas.
Este aspecto é interessante porque abre margem a uma discussão da relação entre
certos estados doentios e arte, um tema muito recorrente no fim do século XIX, e que se
manifestava também no Brasil neste período. Um desses casos de transtorno melancólico
chama atenção por ter sido vivenciado por um amigo próximo a Machado e documentado em
sua correspondência. Este caso foi registrado em extensa troca de cartas entre Mario de
Alencar e Machado de Assis, em que o autor já em idade avançada, e com constantes queixas
a respeito da fragilidade de sua saúde, recomendava ao amigo mais jovem uma série de
atitudes para conter o avanço do abatimento, cuja intensidade patológica é desencadeada a
partir dos escândalos gerados pela eleição de Mario de Alencar para a academia312.
As trocas de cartas com as descrições do mal-estar de ambos, principalmente acerca o
estado nervoso de Mario de Alencar, dura cerca de dois anos e meio, da primeira carta de
Mario de Alencar em 26 de fevereiro de 1906 até a última carta de Machado, em agosto de
1908. Portanto, é provável que o principal teor da correspondência se prolongasse ainda mais,
se o próprio Machado não falecesse. Nestas cartas, é comum a alusão de Mario de Alencar ao
seu espírito “em penumbra”313, ao torpor de seu espírito, e também, diretamente à menção à
melancholia314. Durante todo esse período Machado aconselha algum tipo de “regime” do
cotidiano, que dê algum ânimo, principalmente a partir do interesse que pudesse ser
despertado. Entre esses conselhos de Machado, há o seu pedido para que ele escreva algo,
mesmo que “[...] idéas fugitivas, quadros passageiros, emoções de qualquer especie”315, ou,
recomenda ainda, o convívio com a família316. No entanto, há dois aspectos de seus conselhos

_______________________________________________
312
O escândalo, bem apresentado por Magalhães Júnior, ocorreu em virtude de uma série de artigos publicados após a
eleição, e a contestavam por julgar Mario de Alencar um aspirante literário, que havia publicado apenas dois “magros
livros de versos”. Entre essas publicações, havia um soneto satírico de Emílio de Meneses, que afirmava que Mario de
Alencar só foi eleito por fazer parte da “panelinha”. O próprio Emílio de Meneses parece ter reagido por desforra, pois seu
nome já havia sido cogitado para concorrer a Academia, mas foi repudiado por Machado por considerá-lo de má fama.
Somente se elegeria seis anos após a morte de Machado de Assis. Ibid idem. MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e
Obra de Machado de Assis. Volume 4, Apogeu. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981. p. 242-243.
313
Carta de Mario de Alencar, Rio de Janeiro de 02 de dezembro de 1906. In: MACHADO DE ASSIS. Correspondência.
Editora W. M. Jackson, INC. Editores. São Paulo, 1946. p. 249.
314
Carta de Mario de Alencar, Fazenda da Conceição, 02 de janeiro de 1907. Idem, p. 251.
315
Carta de Machado de Assis, Rio de Janeiro, 18 de março de 1907. Idem, p. 260.
316
Carta de Machado de Assis, Rio de Janeiro, 28 de março de 1907. Idem, p. 267.
175

que ganham relevo após essas primeiras cartas sobre o assunto, e que iniciam uma fase em
que Machado parece confidenciar os próprios males que lhe afligem.

O mal-estar de espírito a que se refere não se corrige por vontade, nem há conselho que o
remova, creio; mas, se um enfermo póde mostrar a outro o espelho do seu próprio mal
conseguirá alguma coisa. Também eu tenho d’esses estados de alma e cá os venço como
posso, sem animações de esposa nem risos de filhos. Veja se exclue todo o presente, passado
e futuro, e fixe um só tempo que comprehenda os trez: Prometheu. A arte é o remedio e o
317
melhor d’elles.

Neste único trecho se condensa esses dois aspectos que são recorrentes em suas cartas,
até mesmo a menção ao Prometeu. A primeira delas é esse recurso do próprio Machado em
servir de espelho ao Mario de Alencar, como se a exposição da semelhança do seu próprio
mal pudesse ser útil ao seu amigo. A segunda, e que já seria previsível, é a menção a arte
como o melhor remédio possível, aliás, a mesma menção que Proust faz, tratada
anteriormente318. É interessante que estas duas recomendações apareçam juntas, porque, de
algum modo, o tipo de ação curadora que a literatura pode proporcionar, a partir da
perspectiva de Proust, é justamente a possibilidade do leitor se reconhecer na obra, de
conseguir transpor a apatia através desse contato intenso e solitário que o momento de leitura
pode proporcionar319. Aqui, Machado parece indicar outra possibilidade além dessa, ao
afirmar que pode ser útil a exposição de si mesmo como alguém afetado pelos nervos - nervos
que ele literariamente representa como “[...] máos inquilinos, que quando se mettem a
proprietarios effectivos abusam desapiedadamente da casa”320.
O mais importante, no entanto, é a segunda recomendação, a arte. É interessante notar
que sua imagem do Prometeu vêm no contexto em que Machado fala sobre a fixação de um
tempo que conjugue o passado, o presente e o futuro. Essa é a principal referência da retórica

_______________________________________________
317
Carta de Machado de Assis, Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1908. Idem, p. 292-293.
318
Ver capítulo III.
319
Vale a pena transcrever a passagem de Proust sobre isso, apesar de ser um pouco longa: “Sabe-se que certas afecções do
sistema nervoso, o doente, sem que tenha nenhum de seus órgãos atingidos, é mergulhado numa espécie de impossibilidade
de querer, como numa rotina profunda da qual não pode escapar sozinho e na qual acabará por perecer se uma mão
poderosa e segura não lhe for estendida. [...] E uma degradação orgânica, que terminaria por tornar-se equivalente a uma
doença que ele não tem, seria a conseqüência irremediável da inércia de sua vontade, se o estímulo que ele não pode
encontrar em si mesmo não lhe vier de fora. [...] O que é preciso, portanto, é uma intervenção que, vinda de um outro, se
produza no fundo de nós mesmos, é o estímulo de um outro espírito, mas recebido no seio da solidão”. In: PROUST,
Marcel. Sobre a leitura. Editora Pontes, Campinas, 2003. p. 33 e 34
320
Carta de Machado de Assis, Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1908. MACHADO DE ASSIS, J. Correspondência. Editora
W. M. Jackson, São Paulo, 1946, p. 280.
176

impressionista, a possibilidade da suspensão do tempo racional, e instauração de uma


imagem, quase mítica, vinculada à vida. A criação artística ou a contemplação, segundo essas
“prescrições”, seria capaz de retirar Mario de Alencar desse torpor, e reatar seus laços com o
mundo a sua volta, principalmente daquelas pequenas delicadezas familiares, a quem
Machado sempre menciona. A última carta que Machado envia ao sobrinho de José de
Alencar encerra esse tema, com a surpresa do velho acadêmico ao reler “uma pagina da
biographia do Flaubert; achei a mesma solidão e tristeza e até o mesmo mal, como sabe, o
outro...”321. Este outro mal é a epilepsia, e parece que há uma satisfação de Machado em
constatar essa semelhança com um grande escritor, uma satisfação que esperava encontrar eco
em Mario de Alencar ao lhe fazer a exposição de seus próprios males. Ao que parece, suas
recomendações não são uma forma de extirpar as enfermidades, e sim minimizar seus
impactos, tornando-as um combustível para a criatividade, e, até mesmo, uma forma de
experiência superior, capaz de fixar um tempo que compreenda o passado, presente e futuro.
Ao mesmo tempo em que Machado parece lamentar seus males, ele sabe que convive com
eles, e a moderação dos efeitos maléficos seria na verdade a instância significativa de sua
criatividade.
A constatação desse interessante “capítulo” da vida de Mario de Alencar e Machado -
cristalizado nessas trocas de cartas onde se discute tão abertamente sobre a melancolia,
excitação nervosa, nevralgias e até pequenos incômodos como gripes - nos leva a seguinte
pergunta: Por que, como seria natural, nenhum de seus contemporâneos relacionam
diretamente a literatura machadiana às suas enfermidades a partir de uma perspectiva
positiva? Toda menção à enfermidade de Machado aparece nas resenhas de uma forma direta
apenas naquelas com intenção ofensiva. Silvio Romero descreve sua gagueira, Múcio
Teixeira, a epilepsia, e Araripe Junior as idiossincrasias, os tics322, todos com a intenção de
demonstrar como a obra de Machado é comprometida por deficiências físicas ou de
temperamento. Todo tipo de valorização de suas idiossincrasias, seus “tics”, aparece com

_______________________________________________
321
Carta de Machado de Assis, Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1908. Idem, p. 322.
322
Sobre a gagueira: ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira. Editora
UNICAMP, 1992, Campinas, SP. p 122. Sobre a referência a epilepsia: Múcio Teixeira. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
20 e 27 de maio de 1901. In MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de
Janeiro, 2003. p. 236. Sobre os tics: Araripe Júnior, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1892. In:
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São Paulo, 2004. p. 365.
177

palavras comedidas, em um tom polido, como se a enfermidade não pudesse ser de modo
algum valorizada. Até mesmo a melancolia surge com disfarces, de modo indireto, e, mesmo
com uma necessidade de conter a sua menção relacionando a outras qualidades de cunho mais
positivo, que modere o sentido da melancolia. Por isso fala-se em Machado como um
“tranqüilo melancólico”323, ou da “compaixão”324 que pode-se entrever dela.
Essa ponderação nas resenhas, que não deixa de representar certo receio polido em
mencionar publicamente esses traços de peculiaridade, são de ordem completamente distinta
do culto de alguns escritores a partir da relação entre enfermidade e arte. Dentre eles, um que
também sofre da enfermidade “sagrada”325: Dostoievski. Thomas Mann correlaciona
Dostoievski e Nietzsche justamente nessa apreensão do vínculo forte entre arte e enfermidade,
a partir de sua noção de “enfermidade criativa”326, afirmando que:

[...] ciertas conquistas del alma y del conocimiento no son posibles sin la enfermedad, la
locura, el crimen intelectual, y los grandes enfermos son crucificados y víctimas, ofrecidas en
sacrificio a la humanidad y a su elevación, a la ampliación de su sensibilidad y saber, en
resumen: a su salud superior. De ahí la aureola religiosa que rodea tan ostensiblemente la vida
de estos seres y que también influye profundamente en su conciencia de sí mismos. De ahí
también los sentimientos, por así decir anticipados, de fuerza y victoria, y de una vida
extraordinariamente exaltada, a pesar del sufrimiento, que conocen estos mártires,
sentimientos triunfales que sólo pueden ser definidos como engañosos en un sentido médico
pedestre: una fusión de enfermedad y fuerza en sus personas que invalida la asociación
habitual entre enfermedad y debilidad y contribuye por su paradoja a la coloración religiosa
de su existencia. Nos obligan a repensar las ideas de “enfermedad” y “salud”, la relación entre
enfermedad y vida; nos enseñan prudencia ante el concepto de “enfermedad”, al que estamos
demasiado dispuestos a dar un signo biológico negativo. Precisamente se discute este punto
en una nota de Nietzsche para la Voluntad de poder. “Salud e enfermedad - dice -, ¡seamos
cautelosos! La medida sigue siendo la florescencia del cuerpo, la elasticidad, la audacia y la
alegría del espíritu, también naturalmente qué cantidad de enfermedad puede cargar sobre sí

_______________________________________________
323
Alcides Maya. O Paiz, Rio de Janeiro, 8 de outubro de 1904. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de
Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. EDUSP, Nankin Editorial, São
Paulo, 2004. p. 432.
324
Como citado anteriormente de trecho escrito por Magalhães de Azeredo. Revista Moderna, Paris, 05 de novembro de
1897. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. EDUERJ, Rio de Janeiro, 2003. p. 197.
325
Thomas Mann ressalta a epilepsia de Dostoievski como um aspecto fundamental para o entendimento de sua obra,
remontando ao sentido original dessa enfermidade, considerada sagrada. THOMAS MANN. Dostoievski com medida. In:
THOMAS MANN. Ensayos sobre música, teatro y literatura. Alba Editorial, Barcelona, 2002, p. 194. Provavelmente
sua referência para adotar a epilepsia como “doença sagrada” seja O Problema XXX de Aristóteles, em que além do uso
desse termo para designar a epilepsia, estabelece a relação entre a melancolia e epilepsia. ARISTÓTELES. O homem de
gênio e a melancolia: O problema XXX. Lacerda Editores, Rio de Janeiro, 1998. p. 81.
326
A concepção do artista como um ser distanciado da sociedade através da enfermidade, de ordem física com reflexos na
organização espiritual ou puramente espiritual, é um tema recorrente da literatura, assim como tratado criticamente em
ensaio por Thomas Mann, que também utilizava essa imagem de artista em inúmeros romances e contos. THOMAS
MANN. Dostoievski com medida. In: THOMAS MANN. Ensayos sobre música, teatro y literatura. Alba Editorial,
Barcelona, 2002, p. 202.
178

y asimilar, es decir, puede sanar”. (El subrayado es de Nietzsche.) “Eso que destrozaría a
327
seres más delicados forma parte de los medios estimulantes de la gran salud”.

Neste seu ensaio Thomas Mann contrapõe Goethe e Tolstói, com suas buscas pela
“espiritualização da corporeidade pagã”, à Nietzsche e Dostoievski, que se encaminham para
uma grandiosidade, uma experiência quase sagrada, a partir da concepção desse corpo
enfermiço e por isso mesmo portador de uma forma de experiência mais intensa, porque se
encontra impregnada no corpo ou no temperamento, e que é incurável, dando maior
abrangência à percepção das coisas a sua volta. Não é através da busca pela perfeição que o
artista obtém a grandeza espiritual, e sim pela experiência que confirma de forma acentuada a
fragilidade do corpo, a consciência do potencial nocivo do próprio temperamento.
Vinculada a esta noção da enfermidade como uma potência humana, a metáfora do
sacrifício torna-se emblemática. Como se a grandeza do artista derivasse da capacidade de
lidar com o abandono de si, que impediria qualquer tentativa de divinização de si mesmo do
ponto de vista do controle da própria imagem. No entanto, percebe-se o vínculo dessa noção
de sacrifício com a estética cortesã, só que com maior profundidade e intensidade. Se, na
sociabilidade cortesã o artista sacrifica sua própria vaidade em prol de um tipo de
sensibilidade que reforça os laços, aqui, não se tem em mente nenhum tipo de preocupação
em relação à sociabilidade. É à humanidade que se volta o sacrifício, em uma atitude
grandiosa e que marca ainda mais sua proximidade em relação à matriz simbólica do
cristianismo. Esta intensidade da experiência de sacrifício é tamanha que subverte a
sociabilidade literária e sua ambição de estabelecer os vínculos de origem cortesã entre artista,
público e crítica. O artista lança-se ao sacrifício, à morte, não apenas como metáfora, mas
com a consciência carnal da própria decomposição.
Este trecho de Tomas Mann elucida um aspecto importante de algumas categorias
vinculadas à estética da arte no século XIX e início do XX, e nos fornece ainda uma pista para
que consigamos compreender porque a crítica literária brasileira deste mesmo período evita
tratar Machado nesta correlação entre arte e enfermidade. Principalmente após notar que
quando alguma enfermidade de Machado é mencionada, sempre tende a uma conotação
pejorativa - como nas resenhas de Araripe Junior, Múcio teixeira e Sílvio Romero -, e
percebe-se nitidamente a intenção de depreciar seu alcance artístico. A pista do trecho acima é

_______________________________________________
327
Idem, p. 203.
179

a crítica que Thomas Mann faz do pensamento mediano, e comedido, em não se atrever a
conferir à enfermidade essa força, e, citando Nietzsche afirma que “eso que destrozaría a
seres más delicados forma parte de los medios estimulantes de la gran salud”. A crítica
justamente a esse pensamento higiênico da perfeita saúde, de sempre partir do princípio de
que os seres superiores são portadores de um temperamento equilibrado, cuja preponderância
de uma característica sobre outra pode produzir desequilíbrios.
Com isso, é possível pensar que a própria prevalência dessa forma comedida em fazer
a crítica à Machado, mesmo possuindo elementos que comprovassem o contrário, através dos
diversos comentários que fazia nesse sentido, é um ponto limite para a crítica. Parece que a
crítica literária contemporânea a Machado não consegue tolerar essa forma intensificada da
noção de sacrifício, excluindo a possibilidade da experiência de enfermidade como algo
importante no tipo de literatura que desenvolveu. E, com isso, sempre tende a abrandar a
melancolia que afirmam encontrar ao longo de sua obra, não investigando mais a fundo como
ela se faria presente ao próprio Machado. Aqui, nos deparamos com o limite da intensificação
da impressão, que, de certo, modo, ainda se recusa a desfazer completamente os vínculos
estabelecidos pela sociabilidade literária.
180

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: MACHADO DE ASSIS COM MEDIDA

Basta-me a impassibilidade natural, não ser abalado por nenhuma cousa, nem do céo nem da
terra, nem por fogo nem por agua. Esta é meia liberdade, meu caro levita do Senhor, ou
antes toda, se é certo que não a há inteira.

Machado de Assis
Crônica de 13 de maio de 1894

Identificamos ao longo do trabalho como o surgimento das duas retóricas, das duas
novas formas de vida, indica um conjunto de transformações na própria sociabilidade culta da
cidade do Rio de Janeiro após a década de 1870. Como pudemos observar, essas duas formas
retóricas, apreensíveis através da crítica literária, possuem compreensões antípodas de arte,
atribuindo funções à literatura também distintas. Essas compreensões distintas representam as
próprias transformações ocorridas na sociabilidade da corte brasileira, e, de certo modo,
ilustra a maneira pela qual essa sociabilidade tornou-se cada vez mais frágil, sobrevivendo
como uma forma destituída de valor intrínseco. Pois, a literatura significava uma das maneiras
pela qual a sociedade culta da corte conseguia constituir símbolos que davam coesão a seus
membros, formando com isso um senso de sociedade. A reconfiguração da linguagem
literária, dotando de novos significados a ideia de literatura, a leitura, o artista e também a
crítica, provocou esse esvaziamento de conteúdo da sociabilidade. Desse modo, aquilo que
nomeamos de sociabilidade cortesã - que, como já afirmamos anteriormente, era composto
por membros cultos aristocratas e não aristocratas da cidade do Rio de Janeiro -, sobreviveu
como mera formalidade durante as três últimas décadas do século XIX, incapaz de formar um
senso se sociedade mais abrangente através da literatura, nos permitindo traduzi-la a partir da
noção de Simmel de “onda de sociabilidade inferior”:

Pode-se também falar de uma onda de sociabilidade superior e inferior para os indivíduos.
Tanto no momento em que o estar junto se apóia em um conteúdo e em uma finalidade
objetivas, como no momento em que o fator absolutamente pessoal e subjetivo do indivíduo
aparece sem qualquer reserva, a sociabilidade não é mais o elemento central e formador, mas,
328
no máximo, continua a ser o princípio mais formalista superficial e mediador.

_______________________________________________
328
SIMMEL, Georg. A Sociabilidade: exemplo de sociologia pura ou formal. In: Questões fundamentais da sociologia.
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006. p. 68.
181

É interessante notar que esta “onda de sociabilidade inferior”, ocorre justamente no


instante em que se busca uma autonomia da literatura, e aspira-se a profissionalização, a
criação de uma carreira literária e intelectual, que não dependesse de outras funções, e quando
se discute o papel do artista, a imagem e temperamento ideais para constituir modelos de
subjetividade e um tipo apropriado de imaginação literária. Tentamos ao longo de todo o
trabalho apresentar e analisar alguns desses modelos de arte e artistas inscritas na crítica
contemporânea à Machado de Assis, e, pudemos perceber que, em linhas gerais, as duas
formas retóricas que englobam parte desses modelos de artista estão vinculados diretamente à
noção de Simmel de “onda de sociabilidade inferior”. Pois, as duas formas retóricas
representam os pontos extremos que impedem a criação da “forma lúdica de sociação”329. A
retórica cientificista parte justamente do princípio de que “estar junto se apóia em um
conteúdo e em uma finalidade objetivas”, e, a retórica impressionista, se basearia no sentido
oposto, ao perder a referência dessa forma lúdica por intensificar o “fator absolutamente
pessoal”, destituído do senso de reserva.
A busca destas duas retóricas pela autonomia da literatura significou, portanto, o
enfraquecimento da sociabilidade e está atrelada a um aspecto mais abrangente da
modernidade. Ambas formas de vida representam a variedade de subjetividades possíveis ou
idealizadas na vida moderna, baseadas nestes dois individualismo que impedem o surgimento
da sociabilidade, e, fatalmente contribuiu para o seu enfraquecimento. Um individualismo de
caráter qualitativo, caracterizado pela intensificação daquilo que é singular e incomparável, e
outro individualismo marcado pelo excesso oposto, pela hipertrofia da objetividade330. A
própria variedade de perfis e retóricas identificadas é uma demonstração de como este tipo de
crítica é mais porosa às diversas categorias nativas utilizadas pelos intelectuais e artistas no
período e representam este início da tensão gerada por esses dois individualismos. Tensão
registrada na obsessão e ansiedade por reinventar uma ordem, que não deixa de significar uma
espécie de saudade idealizada da organicidade de mundo original irremediavelmente perdido.
Essa reinvenção da organicidade se dá através da própria idealização do artista, como uma
entidade capaz de reinventar o mundo através de uma lógica própria, sempre ambicionado

_______________________________________________
329
Idem, p. 65.
330
SIMMEL, Georg. Indivíduo e sociedade nas concepções de vida dos séculos XVIII e XIX: exemplo de sociologia
filosófica. In: Questões fundamentais da sociologia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006.
182

uma totalidade de significados construídos a partir da realidade. Desse modo, este tipo de
qualificação da modernidade está em sintonia com a metáfora weberiana do politeísmo331, que
ilustra bem a incessante disputa de visões de mundo na modernidade, em que os diversos
“deuses” lutam entre si em busca da autoridade para prover os “verdadeiros” significados da
realidade.
Os vários modelos de artista desenhados pela crítica posterior à sociabilidade cortesã
baseiam-se na independência frente à recepção, e desprezam, assim, as relações possíveis
entre leitor e autor. Aliás, Sílvio Romero, critica Machado pela sua fraqueza diante da
recepção, por pautar sua produção na tentativa por agradar e com isso obter sua ascensão
social. A grande maioria dos críticos, inclusive Araripe Junior, elogia a autonomia de
Machado, a sua capacidade de produzir de forma independente, sem deixar-se seduzir por
outras atrações da vida social, como a política, e se manter fiel à literatura. Entre àqueles
próximos ao impressionismo é comum ressalta o papel importante da indiferença do artista,
uma indiferença que o permite olhar para a realidade de forma cética, e, outros críticos desta
mesma forma retórica ressaltam o papel da compaixão e sacrifício como uma maneira sui
generis de valorizar o “recolhimento” e as condições de vida desviantes como forma de
representar a realidade, em que o sacrifício assume tal grau de intensidade que se torna
contrário a qualquer sociabilidade. Todos esses modelos de artista - que podem ser
apreendidos a partir da metáfora weberiana de deuses - deixam de estar condicionados pela
necessidade de entreter, pelo menos no sentido que esta noção de entretenimento assume na
sociabilidade, como leveza e naturalidade. A retórica cortesã não é abolida e continua a
fornecer parâmetros de intermediação entre público, crítica e artista, no entanto, estes níveis
de indiferença - representados no poder e autonomia conferidos ao artista - dotam de tal
preponderância a criação que acaba por torná-la uma forma de distinção social. Distinção que
permite ao artista se manter isento das expectativas e implicações normativas do público, pelo
menos nesse período estudado. Deste modo, a compreensão da autonomia a partir da ideia de
distinção, desenvolve uma noção de liberdade também negativa, que não significa
necessariamente responsabilidade perante o público.

_______________________________________________
331
WEBER, Max. A ciência como vocação. In: WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Editora Cultrix, São
Paulo, 2002. p. 41.
183

Este quadro geral descrito a partir do baixo nível de sociabilidade, gerou essa
pluralidade de referenciais para julgar a obra de Machado, nos apresentando um conjunto de
categorias mobilizadas para a elaboração desses retratos. Com isso, a pergunta que se
depreende dessa constatação é se poderíamos analisar a obra de Machado a partir desse
específico público leitor que compõe a crítica literária do século XIX. Será que os contornos
dessas diversas leituras guiavam de fato a obra de Machado? Seria possível, é claro,
estabelecer diversos vínculos entre este universo apresentado através da análise das resenhas e
a obra machadiana, entretanto, estes vínculos não são tão diretos, devido à multiplicidade de
linguagens, nem sempre acessível e compreensível a todos, devido às distintas visões de
mundo encenadas. Deste modo, considerar Machado capaz de possuir plena compreensão de
todo esse universo retórico seria recair na idealização da autoria, de modo muito similar ao
empreendido pelos mesmos críticos do período tratado.
A escrita de todo este ensaio representou uma tentativa de resistir à tentação de
conceder um espaço para o próprio Machado, mais precisamente às minhas interpretações de
sua obra. Esta resistência às seduções de sua literatura nem sempre foi bem sucedida, mas de
certo modo pôde ser controlada. Evitou-se, principalmente, dotar as resenhas de seus
contemporâneos de uma força exagerada, e, ainda assim, respeitar sua dignidade, suas
condições particulares. Tentou-se conter, ainda, o risco comum a qualquer estudo sobre crítica
literária, mesmo àquele com um olhar mais sociológico: o de desviar o foco dos ensaios
críticos para a literatura e conferir primazia à própria interpretação em detrimento dos críticos
analisados. Os críticos contemporâneos de Machado correram também um risco similar - e
que de modo geral todo aquele que contempla alguma obra de arte acaba por correr - de dar
ênfase a própria interpretação ao analisar a obra de Machado, e, com isso diluir um pouco de
si na obra de arte, como se a contemplação artística fosse alçada a uma dignidade própria, e de
algum modo aproximasse a arte daquele que a aprecia, que não deixa de ser uma aproximação
do público em direção ao artista. Estes caminhos tortuosos que aproximam conhecimento e
arte, e que de algum modo seduz o crítico a se aproximar do artista, e aos quais nos
remetemos ao longo dos capítulos anteriores, se vêem condensadas nas duas alternativas
mutuamente excludentes, já citadas. Esses dois caminhos mais radicais na busca por produzir
um conhecimento significativo sobre a obra de arte foram tratados aqui através das noções de
experiência e objetividade. A experiência como uma busca pela linguagem individual, na
ambição de confirmar, ou dar novo significado, às próprias experiências através da
contemplação da obra, como se esta fosse dotada de uma realidade somente apreensível
àquele que a experimentou antes de algum modo significativo. A objetividade, no outro
184

extremo, visa o caminho oposto, pois não é o crítico com pretensões científicas que eleva sua
própria função à dignidade conferida à obra de arte, é esta última que se vê nivelada a
categoria de outras obras humanas, como se compreender a obra significasse torná-la mais
factível.
Estas duas alternativas, experiência e objetividade, enfrentam de formas distintas um
dos enigmas da obra de arte: de compreender porque um livro pode se tornar um elemento
significativo para nós, independente da época em que foi escrito ou ainda de uma intenção
original do autor. À objetividade cumpriria a ambição de desconstruir essa idolatria, ao
ressaltar o interesse histórico de localizar as condições materiais e estéticas da produção da
obra. Enquanto a noção de experiência parte de um suposto distinto, a partir da ideia de que
aquele conteúdo da obra transborda para a própria vida de quem a aprecia, como se sua
interpretação, e apenas ela muitas vezes, constitui-se o “verdadeiro” significado encoberto
pela obra. Aqui, não é o espaço adequado para investigar mais a fundo esta dicotomia entre
objetividade e experiência. Entretanto, a partir do quadro descrito nos capítulos precedentes,
surge uma indagação de ordem teórica, e que certamente nos fornece novos contornos para a
questão suscitada na introdução: Quem foi Machado de Assis? Como pudemos perceber a
partir dos diversos retratos e das retóricas distintas mobilizadas pelos críticos, não há uma
definição estável sobre a personalidade de Machado. Optar por uma delas, como a mais
próxima da verdade, seria temerário, devido à desconfiança que essa diversidade acaba por
produzir. Pressinto que a questão de fato mais relevante para se compreender o vigor da obra
de um dos mais importantes nomes da literatura brasileira não é tentar solucioná-la, como se
desvendasse um mistério por traz de sua face. Talvez seja, pelo contrário, tentar compreender
porque essa busca para solucionar este enigma tenha se tornado continuamente uma obsessão
de historiadores da literatura, nomes da teoria literária, sociologia e crítica, entre outros, onde
a cada vez surge alguma nova suposição que pretenda se mostrar a altura do desafio. Os
capítulos precedentes tentaram demonstrar o quão longe pode se chegar ao enfrentar o enigma
Machado de Assis.
Para entendermos a força da obra de arte, a capacidade dela se mostrar atual e
independente da intenção de quem a criou, talvez não adiante procurar essa resposta no
próprio criador, e, sim questionar a capacidade mesma dessa obra se manter atual. Proust, por
exemplo, considerava a existência material do escritor, seus traços de personalidade e
trajetória biográfica, aspectos completamente irrelevantes para se compreender a obra de arte,
por olhar com desconfiança para todas as aparências da vida pública, assim, como para
aqueles pequenos vícios pessoais que constituem a vida de todos. É a obra que importa
185

verdadeiramente, a sua capacidade de tornar irrelevante toda intenção original. Machado de


Assis afirma algo similar ao ressaltar a importância de que toda estética artística contribui
para o “pecúlio do espírito humano”332, mesmo sendo suprimida pelo tempo ao deixar de ser a
expressão corrente de novas gerações. E esta imagem do “pecúlio”, explorada exaustivamente
por Abel de Barros Baptista333, constitui um elemento interessante para compreender um dos
enigmas presentes em toda obra de arte, principalmente nos tempos modernos, em que as
ciências “despovoaram o céu dos rapazes”334, ao qual tentou-se repovoar tantas vezes com
novos deuses. O pecúlio é justamente essa característica que garante a imortalidade da obra,
uma espécie de liberdade que transpõe o momento histórico ao mesmo tempo em que nega a
possibilidade de uma essência. Aquilo que a faz sobreviver não é nem a sua origem
fundadora, a intenção do escritor, nem, tão pouco, o fato de ter atingido alguma essência
humana, alguma linguagem que é acessível a todas as épocas e se constitui com um grau de
objetividade que transpõe as particularidades dos momentos históricos. O pecúlio, aquilo que
perdura na arte, é a sua disponibilidade para restaurar continuamente o enigma, o desafio de
seu entendimento. Esta constante atualização do enigma já traduz a capacidade que essa obra
possui de ser continuamente revisitada e, com isso atualizada. A busca constante pela solução
desse enigma, que muitos dos críticos tratados empreenderam, é uma aspiração nunca de fato
atingida, e, cujo resultado foi de corroborar, de algum modo, para a ampliação da experiência
literária de admiradores futuros da obra de Machado.

_______________________________________________
332
MACHADO DE ASSIS. A nova Geração. In: MACHADO DE ASSIS. Crônica, crítica, poesia, teatro. Editora Cultrix,
São Paulo, sem data. p. 124.
333
BAPTISTA. Abel de Barros. A formação do nome: Duas interrogações sobre Machado de Assis. Editora da
UNICAMP, Campinas, São Paulo, 2003. pp 85-96.
334
MACHADO DE ASSIS. A nova Geração. In: MACHADO DE ASSIS. Crônica, crítica, poesia, teatro. Editora Cultrix,
São Paulo, sem data. p. 125.
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