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Bergmeier, Horst (2007).

Conceitos e Formas de Realização de Bildung e de Bildungsroman: Goethe, Handke,


Wenders, Rutschky. In A. F. Araújo, F. Azevedo & J. M. Araújo (Orgs.). Educação e Imaginário. Literatura e Romance
de Formação. Actas de Colóquio Internacional, pp. 9-27. Braga: Universidade do Minho. ISBN: 978-972-8746-61-2

CONCEITO E FORMAS DE REALIZAÇÃO DE BILDUNG E DE BILDUNGSROMAN

GOETHE, HANDKE, WENDERS, RUTSCHKY

Horst Bergmeier
Universidade do Minho

1. Bildung

Bildung1 (e Bildungsroman)2 é um conceito que faz parte da cultura alemã.


Desenvolve-se por volta de 1800 em conjunto – e esclarecendo-se mutuamente – com
outro conceito básico, Geschichte (História), para um conceito específico, não
congruente com os conceitos correspondentes nas linguas romanas e no inglês. Trata-
se de singulares collectivos em que a a reflexão como condição duma acção possivel
se encontra interligada com as modalidades da propria acção.3 Bildung representa
uma das contribuições genuínas alemãs para a dominação linguística da experiênca
1
Vierhaus, Rudolph, "Bildung" em Brunner, Conze, Koselleck ed., Geschichtliche
Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, Stuttgart
1972, Bd. 1, p. 508 – 551, Koselleck, Reinhart, "Einleitung – Zur anthropologischen und
semantischen Struktur der Bildung", in Reinhard Kosellek ed., Bildungsbürgertum im 19.
Jahrhundert. Teil II. Bildungsgüter und Bildungswissen, Stuttgart 1990, p. 11-46. Espagne,
Michel, "Bildung, Kultur, Ziviliation" em Barbara Cassin ed., Vocabulaire Européen des
Philosophies, Paris 2004, p. 195-205. Fuhrmann, Manfred, Bildung. Europas kulturelle Identität,
Stuttgart 2002. Fuhrmann, Manfred, Der europäische Bildungskanon, Ffm., 2004. Para o
contexto cultural alemão ver Bruford, Walter H. The German Tradition of Self-Cultivation.
“Bildung” from Humboldt to Thomas Mann, Cambridge 1975. A traduçao de Bildung como “Self-
Cultivation” tem, como nota Koselleck, l. c. um caracter irónico. Mais próximo do conceito
parece ser a palavra “Self-Formation”, cunhada por Shaftesbury, tendo também em conta o
facto de que a recepção de Shaftesbury influenciou o desenvolvimento do conceito da Bildung
na Alemanha. Ver Voßkamp, Wilhelm, “Der Bildungsroman in Deutschland und die
Frühgeschichte seiner Rezeption in England”, in Bürgertum im 19. Jahrhundert.. Deutschland
im europäischen Vergleich, ed . Jürgen Kocka, vol III, München 1988, p. 257-286.
2
Os conceitos da Bildung e do Bildungsroman na sua interrelação encontram-se numa forma
mais extensa desenvolvidos em Bergmeier, Horst, “Bildung e Bildungsroman” em Dicionário
Temático de Filosofia da Educação (ed. Adalberto Dias de Carvalho), Porto 2006.
3
Koselleck, l.c. , p. 15f.
vivida da Europa revolucionária.4 Geralmente não é traduzido para outras línguas
europeias. Quando traduzido assimila-se obrigatoriamente a conceitos associados a
outras tradições culturais. Esta potência de diversificação do conceito é inerente ao
próprio conceito da Bildung, sendo este um conceito totalizante.

Bildung é historicamente, primeiro um conceito teológico e, no seguimento,


pedagógico. O termo é derivado do antigo alemão “bildunge” no sentido de “imagem”
(imago) e “imitação” (imitatio). A referência é Deus. O homem é concebido como
“imago dei” e a vida dele deve seguir a imagem de Cristo.

A mística da Idade Média, sobretudo de Meister Eckhard, estende o horizonte


semântico de “bildunge” através da formação do verbo “inbilden” (tornar-se imagem,
uma interiorização da imagem).5 O pietismo do século XVII e XVIII retoma a antiga
ideia do “imago dei” e a secularização do pietismo na metade do século XVIII permite
a transposição do conceito da Bildung para uma utilização secularista. Schiller postula
que todo o interior do homem é para ser exteriorizado e todo o exterior assim
formado.6 Agora a Bildung ja não está relacionada com uma forma pré-definida mas
torna-se um processo que pode e deve ser alterado constantemente através da
reflexividade.

A ligação da identidade no sentido da faculdade de auto-determinação do


sujeito à reflexividade, e esta no sentido da reflexão desta auto-derminação, é decisivo
para o conceito da Bildung e distingue-o da antropologia dos moralistas franceses.7 A
forma reflexiva do processo é a condição para o sujeito se poder criar livremente a si-
próprio.
4
l. c., relativamente ao teórico mais importante da Bildung, Wilhelm von Humboldt, ver tambem
Bergmeier, Horst, "Natur, Ästhetik und Revolution. Zu Wilhelm von Humboldts Frühschriften"
em A Palavra e o Canto. Miscelânea de Homenagem a Rita Iriate, Dep. de Estudos
Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade e Lisboa ed., Lisboa 2000, p. 107-114.
5
Em Eckhard o termo "inbilden" significa o "Einbilden" - a interiorizaçâo da imagem, o tornar
imagem (Bild) - de Deus na alma do homem. Ver Constantin, Emmy, Die Begriffe "Bild" und
"Bilden" in der deutschen Philosophie von Eckehart zu Herder, Blumenbach und Pestalozzi, phil
Diss. Heidelberg, 1944 e Schaarschmidt, Ilse., Der Bedeutungswandel der Worte "Bilden" und
"Bildung", phil. Diss. Königsberg 1931.
6
Schiller, Friedrich, “Über die ästhetische Erziehung des Menschen”, in Friedrich Schiller,
Sämtliche Werke, vol. 5 (Gerhard Fricke e Herbert G. Göpfert, ed.), München 1962, p. 507-669,
p. 603.
7
Warning, Rainer, “«Education» und «Bildung». Zum Ausfall des Bildungsromans in
Frankreich”, in Fohrmann, Jürgen (ed.), Lebensläufe um 1800, Tübingen 1998, p. 121-140.

10
A conceptualização do conceito secularizado inicia-se na segunda metade do
século XVIII, indo até à metade do século XIX. O Neuhumanismus radicaliza a
concepção de Bildung para a tarefa humana do trabalho de si-próprio de cada
indivíduo.8 A formulação concisa de tal projecto é devida a Wilhelm von Humboldt que,
em primeiro lugar, era filólogo. No seu estudo sobre a diferença entre as línguas
humanas e a influência delas sobre o desenvolvimemto espiritual da humanidade,
Humboldt afirma que Bildung transcende os conceitos de Zivilisation e Kultur9 e, no
seu estudo sobre a epopeia em versos Hermann und Dorothea de Goethe10, ele afirma
que Bildung consiste “na recepção, com toda a receptibilidade, do material que o
mundo oferece ao indivíduo e na utilização de todas as faculdades interiores
autoactivas na sua reestruturação para estabelecer uma interrelação harmoniosa e
intensa entre o eu e a natura”11. O alvo é uma Bildung completa e bem
proporcionada12 englobando todas as faculdades num conjunto. Primordial para a
Bildung, é o domínio da relação do homem com o mundo que, sendo aequal, como
Humboldt explica numa carta a Schiller em 179613, estimula o conjunto das faculdades
do indivíduo. Este domínio é a arte e a literatura é a forma da arte que se encontra no

8
Luhmann, Niklas, Das Erziehungssystem der Gesellschaft, Ffm. 2002, p. 189.
9
Wilhelm von Humboldt, "Über die Verschiedenheiten des menschlichen Sprachbaues und ihren
Einfluss auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts" in Humboldt, Wilhelm von,
Werke in fünf Bänden, (Andreas Flitner e Klaus Giel ed.), Darmstadt 1960 – 1965, vol. III
(1963), p. 368 - 756, p. 401. Para a função do conceito da cultura para a ideia da Bildung ver
Bollenbeck, Georg, Bildung und Kultur. Glanz und Elend eines deutschen Deutungsmusters,
Ffm., 1996.
10
"Über Göthes Hermann und Dorothea", in Humboldt, Wilhelm von, Werke in fünf Bänden,
(Andreas Flitner e Klaus Giel ed.), Darmstadt 1960 – 1965, vol. II (1961), pp. 125-356, p. 127f.

Ver tambem Bergmeier, Horst, "Natur, Ästhetik und Revolution. Zu Wilhelm von Humboldts
Frühschriften" em A Palavra e o Canto. Miscelânea de Homenagem a Rita Iriate, Dep. de
Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa ed., Lisboa 2000, p.
107- 114.
11
"Natura" designa "a soma de tudo o que para nós pode ter realidade". (Humboldt, l. c., vol. II.
(1961) p. 145.
12
Humboldt, l. c., vol. I (1960), p. 64.
13
Seidel, W. ed., Der Briefwechsel zwischen Friedrich Schiller und Wilhelm von Humboldt, Berlin
1962, vol 2, p. 28-36.

11
primeiro plano, devido a seu fundamento na língua14. O conceito Bildung adquire uma
importância fundamental que mantém até ao início do século vinte.

2. Bildungsroman

O romance é a forma moderna da literatura. Não conhece nenhuma tradição,


não tem lugar na poética tradicional dos géneros. Na Alemanha, ao contrário da
Inglaterra e das países de língua romana, o romance desenvolve-se tardiamente e
exige uma legitimação. Goethe durante o trabalho nos Anos de Aprendizagem de
Wilhelm Meister, publicado desde 1795 até 1796 e posterioremente ponto de partida e
de referência para o desenvolvimento do conceito do Bildungsroman, ainda exprime
dúvidas sobre a escolha do género, na correspondência que mantém com Schiller.15
Por outro lado, foi exactamente o estado estético precário do género romance que
coduziu a um processo de reflexão que desde o início foi parte integral do romance.
Desta forma, o romance produziu a sua própria poética e crítica. O romance tornou-se
assim a forma auto-reflexiva literária por excelência, quebrando e ultrapassando a
estética normativa.

Em 1766/67, Christoph Martin Wieland publica a Geschichte des Agathon. Este


romance é considerado o primeiro romance multidimensional da literatura alemã.
Embora esteticamente muito avançado, ao nível ideológico o romance fica preso nas
normas morais da sua época. A orientação no telos duma virtude não permite
nenhuma liberdade às figuras do romance. O romance é concebido como “história de
todos os homens”, uma história exemplar com uma exigência pedagógica comparável
à do Emile de Rousseau.

14
Para a fundação da Bildung na língua e consequentemente na literatura ver Ladenthin,
Volker, Moderne Literatur und Bildung. Zur Bestimmung des spezifischen Bildungsbeitrags
moderner Literatur, Hildesheim, Zürich, New York 1991.
15
Para Schiller o romance ainda era um “médium impuro” e o “autor de romances um mero
meio-irmão do poeta”. Cit. em Kimpel, Dietrich e Conrad Wiedemann ed., Theorie und Technik
des Romans im 17. und 18. Jahrhundert, vol. II: Spätaufklärung, Klassik und Frühromantik,
Tübingen 1970, p. 61f.

12
O romance alemão que consegue romper com a predeterminação, abrindo
assim um espaço de liberdade, é o Wilhelm Meister de Goethe. Este espaço de
liberdade consiste na transposição literária do conceito básico da forma da auto-
formação reflexiva, da Bildung. O núcleo central do romance é constituído pelos dois
conceitos, o da Bildung e o da Einbildung (Imaginação).16

Exceptuando a crítica entusiasta e congenial de Friedrich Schlegel17 e dos


românticos em geral, a recepção do romance visou a Bildung, desprezando a
Einbildung. O romance foi lido como romance duma personagem que consegue atingir
a auto-realização.

Em 1774 Goethe tinha publicado o Werther, que obteve um sucesso


extraordinário, mas o sucesso foi resultado duma leitura identificadora. Desta leitura
resultaram até suicídios. O romance de Goethe revela o processo nefasto da formação
da subjectividade individual num processo de “enganar-se a si mesmo”. Este duplo
processo de “enganar-se a si mesmo” produz-se na leitura identificadora do
protagonista no livro de Goethe e na leitura identificadora do mesmo livro. Werther,
como o leitor que se identifica, é, usando uma expressão de Stendhal, um “homme
copie”. Goethe sentiu-se obrigado a inserir na segunda edição do livro a epígrafe “seja
um homem e não me siga!”.

A estrutura do Wilhelm Meister é bastante mais complicada do que a estrutura


traditional do romance epistolar do Werther. A escrita não é linear, trata-se duma
composição de pequenos blocos e capítulos independentes entre si. Os blocos são
interligados por motivos e meios literários formais como repetições, séries, reflexões
(no duplo sentido da termo) e a unidade é obtida através duma forma irónica18 da

16
Ver Kritschil, Larissa, Zwischen “schöpferischer Kraft” und “selbstgeschffnem Wahn”. Die
Imagination in Goethes Romanen, Würzburg 1999 e Bergmeier, Horst, «"Bildung" e
"Einbildung" no Wilhelm Meister de Goethe», em Araújo, Alberto Filipe e Joaquim Machado de
Araújo ed., História, Educação e Imaginário, actas do VII colóquio de História, Educação e
Imaginário, Centro de Investigação em Educação, Instituto de Educação e Psicologia,
Universidade do Minho, Braga 2004, p. 107- 114.
17
Schlegel Friedrich, “Gespräch über Poesie”, em Schlegel, Friedrich, Kritische Friedrich-
Schlegel-Ausgabe, Ernst Behler ed., vol. II, Charakteristiken und Kritiken I, Manfred Eichner
ed., München, Paderborn, Wien 1976.
18
Ver Behler, Ernst, “Goethes Wilhelm Meister und die Romantheorie der Frühromantik”, in
Behler Ernst, Studien zur Romantik und zur idealistischen Philosophie, Paderborn 1993, p. 157-
172 e também Swales, Martin, “Irony and the Novel. Reflections on the German

13
narrativa. E só Schlegel nota que o protagonista é duma ”grenzenlose Bildsamkeit”
(formabilidade infinita) e conclui que Os anos da Aprendizagem podiam formar
qualquer personagem imaginável com exepção de Wilhelm, concluindo que o objecto
da Bildung não é um ou outro homem mas a natureza, a própria Bildung. A auto-
reflexividade do romance como forma moderna dobra no seu objecto, a Bildung. Essa
também se torna auto-reflexiva.

Mesmo assim, permanecia a possibilidade de uma leitura identificadora. No


século XIX, os burgueses leram o romance de Goethe como curriculum dum homem
que consegue – citando Humboldt – “a maior e melhor proporcionada constituição de
todos as faculdades num conjunto”. Esta leitura mistura o protagonista do romance
com o autor.

Romance da formação, Bildungsroman,19 foi a nomenclatura encontrada para


classificar o romance de Goethe e alguns outros romances. O termo é usado pela
primeira vez por Karl Morgenstern em 1810 numa conferência. É fundamental destacar
que Morgenstern com o termo Bildungsroman não visa o objecto estético, a literatura
mesma, mas o conceito da Bildung, sendo a literatura um meio entre outros para
atingir a meta da Bildung.

Um dos projectos não realizados de Morgenstern introduzia um elemento


essencial no desenvolvimento do conceito. Morgenstern planeava uma autobiografia
da sua Bildung em forma de romance20. O que este projecto introduz é uma
perspectiva individualizante da Bildung e consequentemente a predominância do
narrador-autor devido ao género da autobiografia, que surge simultaneamente – e

Bildungsroman”, in Reflection and Action. Essays on the German Bildungsroman, Columbia


1991, p. 46-68.
19
Do núcleo duro desta tradição, cuja construção varia de crítico a crítico, geralmente fazem
parte, no século XVIII, Wieland: Geschichte des Agathon ; Goethe: Wilhelm Meisters Lehrjahre;
Novalis: Heinrich von Ofterdingen; Jean Paul: Titan; no século XIX: Stifter: Der Nachsommer;
Keller: Der grüne Heinrich; no século 20: Thomas Mann: Der Zauberberg. Mas: Sobre nenhuma
destas obras existe unamidade sobre a sua pertença ao conçeito do Bildungsroman.
A historiografia literária tem a tendência de diluir o conceito do Bildungsroman. Assim por ex.
os panoramas de Jacobs, Jürgen e Krause, Markus, Der deutsche Bildungsroman.
Gattungsgeschichte vom 18. bis zum 20. Jahrhundert, München 1989 e sobretudo Gutjahr,
Ortrud, Einführung in den Bildungsroman, Darmstadt 2007.
20
W. Süss, Karl Morgenstern. Ein kulturhistorischer Versuch, Dorpat 1928, p. 159, cit. por
Martini em Selbmann, Rolf (ed)., Zur Geschichte des deutschen Bildungsromans, Darmstadt
1988, p. 244.

14
intimamente ligado21 - ao romance moderno no século XVIII. No projecto de
Morgenstern, o homem culto (Gebildete) autobiógrafo escreve a sua própria vida em
forma de romance, sendo o essencial da vida identificado com a Bildung. Nesta
configuração dos conceitos Bildung, romance, autobiografia e homem culto
(Gebildeter), os dois conceitos de Bildung e Bildungsroman ocupam uma posição
extrema22.

Como consequência, a partir daí, o próprio autor pode tornar-se mais


importante do que a própria obra, sendo esta expressão e representação do seu autor.
Foi o que aconteceu com Goethe no século XIX. O nome de Goethe é “o simbolo da
Bildung” desde há 150 anos, como afirma Ilse Schaarschmidt23.

A autobiografia constitui uma das fontes do romance moderno. Goethe afirma


mesmo em relação ao Wilhelm Meister: “O romance sou eu”. Esta afirmção é dum
autor que escreveu a autobiografia Dichtung und Wahrheit, que está escrita numa
forma discursiva. Uma autobiografia pretende representar um todo: a vida do autor.
Mas, segundo Goethe, o essencial só pode ser exprimido na forma poética e encontra-
se exprimido na obra do autor. A autobiografia Dichtung und Wahrheit faz assim parte
duma autobiografia da Bildung do indivíduo Goethe, que consiste no conjunto de todos
os escritos do autor. Note-se que Goethe escreve na própria autobiografia: “A obra
não se anunciou sob forma autónoma; ela está destinada a preencher as lacunas da
vida dum autor, completar vários fragmentos e guardar a memória de riscos perdidos e
desaparecidos.”24

O que numa leitura identificadora dos Anos de Aprendizagem não parece


apresentar qualquer problema, em Dichtung und Wahrheit encontra-se exaustivamente
discutido sem solução: primeiro, a questão, se o indivíduo pode desenvover todas as
suas capacidades. Aqui a tradição iluminista duma especialização confronta-se com o
Neuhumanismus em que o ideal dum desenvolvimento de todas as faculdades se

21
Como exemplo mais marcante pode figurar a obra de Karl Philipp Moritz.
22
Os termos extreme e configuração são utilizados no sentido de Walter Benjamin.
23
Schaarschmidt, l. c., tambem em Schaarschmidt, Ilse, “Der Bedeutungswandel der Worte
«bilden» und «Bildung» in der Literatur-Epoche von Gottsched bis Herder”, in Klafki, Wolfgang
(Hg.), Beiträge zur Geschichte des Bildungsbegriffs, Weinberg 1965, p. 68.
24
Goethe, Johann Wolfgang von, Aus meinem Leben. Dichtung und Wahrheit, vol.1 Text
(Siegfried Scheibe ed.), Berlin 1970, p. 447.

15
impõe; segundo, a questão de como o indivíduo reconhece as suas faculdades. As
“tendências falsas” foram um problema maior para Goethe.25 Ele hesita se deve deixar
a decisão a uma voz interior ou se deve considerar os desvios que foram introduzidos
por falsas tendências como elementos importantes da Bildung.26

Se recorrêssemos agora a todos os elementos que Morgenstern associa à


ideia (e agora não conceito) do Bildungsroman, incluindo o projeto duma autobiografia
da sua Bildung sob forma de romance, a obra inteira de Goethe deveria ser
considerada como Bildungsroman. E este romance que mistura os géneros não está
muito longe da ideia romântica do romance como Gesamtkunstwerk (obra de arte
integral), desenvolvida por Friedrich Schlegel no Gespräch über Poesie (1800).

O Wilhelm Meister é uma das facetas do próprio Bildungsroman. Trata da


imaginação, Einbildung. Bildung e Einbildung encontram-se interligados,
etimologicamente e também conceitualmente.27

Mesmo já na superficie textual do romance de Goethe sobressai a pura


frequência do conceito da Einbildung e da Einbildungskraft. Ao nível da narração a
Einbildungskraft produz um jogo entre ilusão e desilusão. Ao nível da construção
alegórica das personagens representadas numa forma natural, a Einbildungskraft
deixa-as oscilar entre personagens naturais, ideais e – através da estrutura diáfana –
figuras míticas.28 O mesmo movimento oscilatório nota-se no romance entre a
estrutura, constructivista, e a representação natural. A reflexão e auto-reflexão do
romance são constituídas por imagens, Bilder,29 de maneira que a auto-reflexividade

25
Goethe, Johann Wolfgang von, Aus meinem Leben. Dichtung und Wahrheit, vol. 2
Überlieferung, Variantenverzeichnis und Paralipomena (Siegfried Scheibe ed.), Berlin 1974, p.
449.
26
Ver também Jannidis, Fotis, Das Individuum und sein Jahrhundert. Eine Komponenten- und
Funktionsanalyse des Begriffs «Bildung» am Beispiel von Goethes «Dichtung und Wahrheit»,
Tübingen 1996, p. 134ff.
27
Ver também Bergmeier (2004), l. c.
28
ver Schlaffer, Hannelore, Wilhelm Meister. Das Ende der Kunst und die Wiederkehr des
Mythos, Stuttgart 1980.
29
Sobre a função das imagens ver Schings, Hans-Jürgen, “Symbolik des Glücks. Zu Wilhelm
Meisters Bildergeschichten”, in Goebel, Ulrich et al (ed.), Johann Wolfgang Goethe: One
hundred and fifty years of continuing vitality, Lubbock, Texas 1984, p. 157 – 177, Voßkamp,
Wilhelm, “Ein anderes Selbst”. Bild und Bildung im deutschen Roman des 18. und 19.
Jahrhunderts, Göttingen 2004.

16
da poesia do romance30 está transferida para a Einbildungskraft. A Einbildungskraft
torna-se então sujeito e objecto do romance.

O drama da imaginação é o Tasso, escrito por Goethe entre 1780-89. Tasso


reaparece no Wilhelm Meister, quando Wilhelm recorda o jogo teatral infantil. O auge
representa a história de Tankred e Chlorinde. A criança encontra-se fascinada pelo
carácter de amazona de Chlorinde. Wilhelm conta a história de Tankred, destinado a
ferir tudo o que ele ama, no momento em que ele entra na mesma constelação em
relação a Mariane. A constelação Tancred-Clorinde definirá a percepção de Wilhelm e
as suas acções.

A sequência das histórias preferidas (Lieblingsgeschichten) de Wilhelm termina


com o quadro preferido, o quadro do príncipe doente que amava sem esperança a
noiva do pai. Este quadro tinha feito parte da colecção do avô. A venda dos quadros
representava os primeiros tempos tristes na vida de Wilhelm. O quadro representa o
momento em que o médico revela à noiva que entra no quarto do doente a causa da
doenca, abrindo desta forma o caminho para um fim feliz.

O quadro prefigura e determina a acção do romance. Wilhelm procura a bela


amazona mas encontra-a somente depois de se ter confrontado com várias falsas. A
constelação do quadro repete-se várias vezes mas, de cada vez, trata-se de uma
“tendência falsa”.

30
Esta auto-reflexividade é, segundo a terminologia de Friedrich Schlegel, a “poesia da poesia”
e o romance de Goethe para Schlegel é poético. A poesia para Schlegel tem um horizonte de
significação vasto. O que é importante no presente contexto é o seu carácter de forma de
mediação entre o real e o ideal e entre a objectividade e a subjectividade. (Para uma
presentação pormenorizada dos significados ver Bär, Jochen A., Sprachreflexion der deutschen
Frühromantik. Konzepte zwischen Universalpoesie und Grammatischem Kosmopolitismus,
Berlin, New York 1999, p. 425-479.) Sendo fundamentalmente irónica, a auto-reflexividade
inicia um processo infinito de auto-negação. Nota-se também que o romance na terminologia
de Schlegel fornece a base do romanticismo. Romantisch (romantico) refere-se ao Roman
(romance).

17
3. Falsche Bewegung [Movimento falso]

Movimento falso (Falsche Bewegung) é o título do filme de Wim Wenders de


1974. O script foi escrito por Peter Handke.31 Sendo script para o filme de Wenders, ao
mesmo tempo, o texto apresenta-se como obra literária, independentemente do filme.
A publicação do texto como livro em 1975 não contém qualquer referência ao filme de
1974, senão no paratexto que apresenta o autor e o livro. A última frase é: “Wim
Wenders fez o filme homónimo a partir desta narrativa. no Outono de 1974”32 Esta
última frase segue a história resumida do texto com a conclusão: “Esta é a história da
Filmerzählung (história de filme ou para um filme ou filmica) “Falso Movimento”.33 O
género do texto é “Filmerzählung” com toda a ambivalência do termo alemão. Ele
evidencia o texto como essencialmente literário. A narrativa (como o filme) é uma
adaptação livre dos “Anos de Aprendizagem” de Goethe. O título refere-se aos falsos
movimentos do protagonista Wilhelm, as “falsas tendências” na terminologia de
Goethe. Mas ao mesmo tempo refere-se à ilusão de movimento, ao “movimento falso”
das imagens através do “aparelho” que Deleuze em L’image mouvement põe em
evidência.34

Em Falsche Bewegung Bild (imagem), Einbildung (imaginação),


Einbildungskraft (faculdade da imaginação) e Bildung (formação) entram numa nova
constelação.

O primeiro plano do texto de Handke, utilizando uma linguagem


cinematográfica, mostra o centro duma pequena cidade, o segundo plano mostra o
protagonista Wilhelm de costas, enquadrado numa janela olhando para o referido

31
Handke, Peter, Falsche Bewegung, Ffm., 1975. O Bildungsroman constitua um ponto de
referencia essencial na obra de Handke em geral, sobretudo nos anos 70 alem de Falsche
Bewegung com Der kurze Brief zum langen Abschied (1972) e Langsame Heimkehr (1979).
32
Handke, p. 2. “Wim Wenders hat im Herbst 1974 danach den gleichnamigen Film gedreht.”
33
“Das ist die Geschichte der Filmerzählung Falsche Bewegung.”
34
Deleuze, Gilles, Cinema 1. L’image-mouvement, Paris 1983, p. 10. “Le cinéma en effect
procède avec deux données complémentaires : des coupes instantanées qu’on appelle images
; un mouvement ou un temps impersonnel, uniforme, abstrait, invisible ou imperceptible, qui est
«dans» l’appareil et «avec» lequel on fait défiler les images. Le cinéma nous livre donc un faux
mouvement, il est l’exemple typique du faux mouvement.”

18
centro da cidade. Wilhelm esbarra no vidro da janela mas permanece enquadrado:35
“Uma fotografia de Wilhelm enquanto criança numa parede da casa onde vive com a
mãe.” Entre estes dois enquadramentos Wilhelm escreve, e o texto da obra de Handke
dá-nos não só o texto escrito por Wilhelm mas também a imagem do texto. “De perto:
o que ele acabou de escrever, vê-se. O livro de notas de Wilhelm: Se finalmente
conseguisse escrever…”.36 Pouco depois, Wilhelm mostra à mãe uma fotografia.
Wilhelm indica um indivíduo na fotografia, explicando que se trata dele próprio. A frase
pronunciada corresponde ao retrato. “O rosto de Wilhelm: Há algumas semanas abri o
jornal, não reparei bem na fotografia e de repente reconheci-me”.37 Wilhelm declara o
seu descontentamento consigo mesmo, tendo compreendido que ele durante todos
aqueles anos não representava mais do que este indivíduo anónimo. “A fotografia já
foi tudo o que havia para dizer sobre mim. Preciso de tentar descobrir mais sobre
mim.”38 Aqui começa a viagem. “O rosto de Wilhelm: Ainda hoje partirei. Preciso ainda
de fazer a mala .”39

Wilhelm, ao contrário do Wilhelm de Goethe, já não tem imagens interiores


para o guiar. As imagens que o guiam são exteriores.

O fim da obra corresponde, na utilização estruturante de imagens, ao início. A


viagem em conjunto num grupo heterogéneo de pessoas que são construídas
segundo personagens do livro de Goethe acaba. Therese, uma destes personagens, a
amante de Wilhelm, pressente a partida de Wilhelm. Pergunta para onde Wilhelm
tenciona viajar. “Wilhelm: Vi agora mesmo no jornal uma fotografia da Zugspitze.
Nunca estive na Zugspitze.”40 Nesta fotografia Wilhelm não está presente ao contrário
da fotografia de jornal que inicia o primeiro movimento. Num monólogo, Wilhelm
retoma as palavras iniciais que se referem a um sentimento de mal-estar e de um mau
35
Handke, p. 9. “Ein Foto von Wilhelm als Kind an der Wand in seinem Elternhaus.”
36
l.c. “Nah: was er gerade geschrieben hat, ist zu sehen. Wilhelms Notizbuch: Wenn ich nur
schreiben könnte…”
37
l. c. p. 11. “Wilhelms Gesicht: Vor ein paar Wochen schlug ich die Zeitung auf, sah das Foto
gar nicht recht an und erkannte auf einmal mich.”
38
l. c. p. “Das Foto war auch schon alles, was es über mich zu sagen gab. Ich muß versuchen,
mehr über mich herauszufinden.”
39
l. c. “Wilhelms Gesicht: Noch heute fahre ich weg. Ich muß noch den Koffer packen”.
40
l. c. p. 76f. “Wilhelm: «Ich habe gerade in der Zeitung ein Foto der Zugspitze gesehen. Ich
war noch nie auf der Zugspitze».”

19
humor indefinido. No início do primeiro movimento a mãe sobrepõe-se a Wilhelm.
“Wilhelm de perto: abre os lábios. Wilhelm e a mãe: Não precisas de dizer nada, caro
Wilhelm. Aguarda até não poder mais. E não percas o teu sentimento de mal-estar e o
teu mau humor, vais precisar deles, se queres escrever.”41 No início do segundo
movimento Wilhelm pronuncia as palavras da mãe. Só agora estas palavras se
encontram relacionadas com a memória como condição duma possibilidade de
finalmente escrever, mas a memória torna-se também condição dum sentimento da
vida, o de amar. “Agora ao falar, lembro-me e fico com desejos. Sei que mais tarde
vou amar-te muito.”42 Wilhelm toma a decisão de separar-se das últimas pessoas
ainda presentes com quem tem passado o tempo da narrativa, Therese e Mignon.
Esta separação deverá ocorrer na cidade, na multidão, em analogia com o início da
narrativa. A narrativa repete a imagem inicial da fotografia em que aparece Wilhelm.
“Um senhor filmando o filho. Wilhelm: Neste filme aparecemos também nós.
Continuam o caminho. Wilhelm: Queria uma vez escrever um poema sobre a minha
aparência acidental em tantas fotografias e filmes.”43 Therese e Mignon desaparecem
na multidão. “Wilhelm sozinho. Está para levar a mala. Um senhor aproxima-se.”44
Este senhor pede a Wilhelm para lhe tirar uma fotografia e exprime de seguida a sua
gratidão, acrescentando que a fotografia iria ser uma bela recordação.

A última imagem da narrativa representa a Zugspitze na neve acompanhado de


barulho de tempestade e do barulho crescente duma máquina de escrever.

A imagem (Bild) está sob a forma de fotografia e filme presente na narrativa


como forma de representação e auto-representação ligada à memória. Só em Mignon
a imagem não se torna prisão. O seu gesto repetitivo, que evoca Cary Grant em Die
blonde Venus,45 é livre e irónico. O sonho de Bernhard é aterrador. Uma pessoa está a

41
l. c. p. 10. “Wilhelm nahe: er öffnet die Lippen. Wilhelm und die Mutter: Nein du brauchst
nichts zu sagen, lieber Wilhelm. Wart damit, bis du anders nicht mehr kannst. Und verlier dein
Unbehaglichkeitsgefühl und deinen Mißmut nicht, die wirst du brauchen, wenn du schreiben
willst”.
42
l. c. p. 78. “Schon mit dem Reden jetzt erinnere ich mich und kriege Lustgefühle. Ich weiß,
daß ich dich später sehr lieben werde, Therese.”
43
l. c. p. 79. “Ein Mann, der sein Kind filmt. Wilhelm: Auf diesem Film sind wir mit drauf. Sie
gehen weiter. Wilhelm: Ich möchte einmal ein Gedicht darüber schreiben, auf wievielen Fotos
und Filmen ich zufällig mit drauf bin”.
44
l c., p. 80. “Wilhelm allein . Er will den Koffer aufheben. Ein Mann tritt auf ihn zu.”
45
l. c. p. 49 e 78.

20
ser perseguida por um homem com uma câmara. O seu suicídio é filmado e o narrador
vê o filme em tempo real. Wilhelm está preso nas imagens que tornam, através da
repetição, o início do segundo movimento tão falso como o primeiro.

O barulho da máquina de escrever com que termina a narrativa não representa


o Bildungsroman conseguido mas, na sua indiferença do mero barulho de escrita de
máquina, a aleatoriedade da representação e auto-representação como Bild (imagem)
que perdeu a sua força dinâmica como elemento substancial no processo da Bildung.

No filme, a sequência do livro em que são referidos outros filmes onde Wilhelm
aparece acidentalmente, a exclamação de Wilhelm: “Neste filme estamos também
nós”, torna-se auto-reflexiva relativamente ao médium. A narrativa completa,
transformada em imagens em movimento (falso), torna-se acidental para o
protagonista. O modelo do Bildungsroman de Goethe permanece exterior ao
protagonista, o que interioriza o outro protagonista de cada Bildungsroman, o leitor.

No final do filme Wenders distancia-se da Filmerzählung. A imagem final do


filme evoca o famoso quadro de Caspar David Friedrich “Wanderer im Nebelmeer”. O
falso movimento conduz o protagonista a uma solidão que ironicamente tem a forma
exterior de uma obra de arte. Ironicamente, porque o protagonista é uma pessoa, que
tem o desejo de se tornar escritor, quer dizer artista. Ao inverso do romance de
Goethe, a imagem em Wenders está no fim. O falso movimento do filme pára na
imagem fixa em que o protagonista fica preso.

A possibilidade de Bildung já não existe para este Wilhelm, nem na narrativa,


nem no filme. O que faz mover o Wilhelm de Handke e de Wenders é um desejo
abstracto, o de escrever. Sendo a linguagem, e esta sobretudo sob forma de escrita, a
condição de auto-reflexão, e esta sendo parte constitutiva e incontornável da Bildung,
representando o núcleo dela, a procura de Wilhelm deve ser considerada como a
procura da própria condição de Bildung.

Em Goethe, o protagonista encontra-se guiado por uma imagem, mais


precisamente, por duas e estas imagens são complexas, são constelações.46

46
Ver Schings, l. c. e Voßkamp, l. c.

21
Também ele encontra uma imagem de uma mulher. Só ao nível da ilusão do
filme como médium, o encontro podia ser logo real. A não-acção de Wilhelm, o seu
mero olhar, torna a mulher imagem. Ela entra num comboio e o protagonista em vez
de a seguir, vê-a na janela como numa moldura. O encontro posterior é devido à
acção da mulher. Ela deixa a moldura, ela sai do quadro.

Sendo Teresa e não Natalie (a figura dos “Anos de Aprendizagem” que não
existe em Handke e Wenders) e sendo transformado em imagem pelo Wilhelm,
movimento e tendência são falsos.

A imagem inicial do filme, o golpe do protagonista que quebra o vidro da janela


não permite uma abertura. Wilhelm só faz o caminho de um quadro para um outro e
isso em falso movimento.

Sendo cada Bildungsroman um romance de formação dum protagonista e ao


mesmo tempo e sobretudo do leitor, a reflexão ex post do autor que se torna leitor de
si-próprio, entra no complexo chamado Bildungsroman. Thomas Mann, por exemplo,
escreveu sobre a criação do seu romance Doktor Faustus o livro Die Entstehung des
Doktor Faustus (A Génese do Doutor Fausto). O filme de Wenders sob forma de DVD
contém um comentário do realizador. Vendo o filme e ouvindo o comentário, o filme
torna-se fragmento de autobiografia do realizador, sendo a autobiografia
historicamente uma das raízes da forma do Bildungsroman. Reflectida na ligação à
memória narrativa do próprio trabalho artístico do autor, a obra torna-se forma do
projectado romance de Morgenstern da sua própria Bildung

4. Lebensromane [Romances da vida]

Em 1998 Michael Rutschky publica o livro Lebensromane, [Romances da vida],


com o subtítulo Zehn Kapitel über das Phantasieren, [Dez capítulos sobre o acto da
imaginação].47 Neste livro as formas tradicionais das romances tornam-se matrizes
para a vida das personagens. Deixar o romance não é possível. O caminho só pode

47
Rutschky, Michael, Lebensromane. Zehn Kapitel über das Phantasieren, Göttingen 1998.

22
conduzir a um outro romance. O romance da Bildung concebido por Morgenstern pode
agora ser um romance qualquer. A imaginação modela a vida.

A obra tem uma forma própria, que escapa à classificação. O autor constrói
biografias – geralmente – fictícias que ele analisa paralelamente à construção delas
através das mais importantes teorias contemporâneas. A forma desta análise consiste
na introdução dos representantes das respectivas teorias como interlocutores.

Os dez capítulos referem-se a dez formas do romance. O capítulo I ao


Künstlerroman, [romance de artista], O capitulo X ao Desillusionsroman, [romance da
desilusão]. O capítulo IX é dedicado ao Bildungsroman. Este capítulo é a sequência do
capítulo I. A personagem principal do Künstlerroman, Gerlinde Stürzenbecher, é ainda
protagonista do capítulo IX no Bildungsroman. O caminho da personagem do capítulo I
ao capítulo IX representa uma excepção no livro. Nenhuma outra personagem
transcende o seu romance (capítulo). O capítulo I tem o subtítulo Die eigentliche
Arbeit, [O trabalho verdadeiro]. Ele – e com ele o livro – começa com a afirmação:

“Ninguém recebe o que quer mesmo. É por isso que continuamos. Se


recebêssemos uma só vez o que desejamos mesmo, iríamos logo acabar com a
vida.

Assim cada um é obrigado a desejar o que não há. Cada um precisa do seu
romance próprio.”48

Segue como ilustração a biografia abreviada de três páginas do escritor de


língua alemã vindo da Roménia que falha no seu próprio sucesso. O livro não revela
que esta biografia é real. Uma biografia real torna-se no texto do livro transposição do
mito. “Icaro, um homem que consegue o impossível, o que é voar, aproxima-se
demasiado do Sol e cai – provavelmente Icaro é a mais alta representação mítica dos
que falham no sucesso.”49 Recorrendo a Freud o autor/narrador identifica o

48
l.c., p. 7. “Niemand kriegt, was er sich wirklich wünscht. Deshalb machen wir ja weiter. Wenn
man nur ein einziges Mal bekäme, was man sich wirklich wünscht, man würde auf der Stelle mit
dem Leben aufhören.
So muß man fortfahren, sich etwas zu wünschen, das nicht da ist. Jedermann braucht seinen
höchstpersönlichen Roman”.
49
l. c., p. 9. “Ikarus, ein Mensch, der Unmögliches vermag, nämlich zu fliegen, kommt dabei der
Sonne zu nahe und stürzt ab - wahrscheinlich ist Ikarus der mythische Inbegriff dessen, der am
Erfolg scheitert.” Note-se que a crítica literária mostrou que o mito de Ícaro já se encontra,
ligado à imaginação, por detrás da concepção do Wilhelm do primeiro livro dos Anos de

23
Lebensroman com o Familienroman der Neurotiker. O Lebensroman não exige ser
escrito, ao contrário, proíbe o registo escrito.50 “O espaço da ambição é no fundo a
imaginação – o romance, o romance da vida não escrito e impossível de escrever. O
que, como foi dito, se deseja na própria vida no mais profundo, só tem lugar neste
romance, não na realidade social.”51 O Lebensroman do trabalho próprio não depende
do conceito da auto-realização através do trabalho na tradição de Hegel e Marx.
Sendo o imaginário o espaço do prestígio do trabalho próprio, este é aspirado sob
forma do auto-esquecimento.52 A ideia do trabalho próprio como trabalho do artista
nasce no vazio que deixa o desaparecimento do trabalho.

A carreira de Gerlinde Stürzenbecher está marcada por trabalho como


secretária, escola de noite com Abitur, curso de psicologia, cursos suplementares. A
cada nível da carreira ela encontra-se confrontada com o mesmo antagonismo entre a
ideia do trabalho próprio e o trabalho real.53 Não tendo aspirações artísticas, ela entra
no primeiro capítulo, dedicado ao Künstlerroman, porque o autor interpreta o Wilhelm
Meister de Goethe como “maior romance de artista da história literária alemã”54 e não
como romance de formação. Wilhelm desiste das suas ambições artísticas e dedica-se
a uma profissão “ridiculamente normal”.55 Nesta interpretação, a ambição artística de
Wilhelm corresponde ao Lebensroman. Independentemente da interpretação redutora,
porque contemporânea no sentido pragmático, do romance de Goethe como obra
literária, a leitura do autor/narrador vai mais longe do que a grande maioria dos
intérpretes. Esta leitura mostra que Wilhelm não consegue atingir uma auto-

Aprendizagem. Ver Ammerlahn, Hellmut, Imagination und Wahrheit. Goethes Künstler-


Bildungsroman Wilhelm Meisters Lehrjahre. Struktur, Symbolik, Poetologie, Würzburg 2003, p.
49ff.
50
l. c. p. 12.
51
l. c., p. 14. “Der Raum des Ehrgeizes ist überhaupt die Imagination - der Roman, der
ungeschriebene und unschreibbare Lebensroman. Was man sich, wie gesagt, am tiefsten in
seinem Leben wünscht, das ist nur in diesem Roman unterzubringen, nicht in der sozialen
Wirklichkeit.”
52
l. c., p. 19.
53
l. c., p. 22.
54
l. c., 17.
55
l. c.

24
realização56 na vida prática. O espaço do imaginário (Einbildung) é essencial para
ideia e realização de Bildung.

O capítulo IX, Der Bildungsroman tem o subtítulo Na companhia terapêutica57 e


começa: “…Gerlinde Stürzenbecher continua sempre na mesma forma.”58 O capítulo I
já tinha posto em evidência a impossibilidade de atingir a meta. O capítulo IX continua
a narração, explicando através da socialização da protagonista a forma adquirida da
sua alma que a conduz à profissão de psicoterapeuta. A narração analítica da
biografia parece, afirma o texto, tirada directamente da vida. Mas, lê-se, esta
verosimilhança é exactamente o que pretende cada romance. O autor/narrador insere
consequentemente a ficção da narração ser o resumo dum romance contemporâneo e
continua a narração analítica inserindo consequentmente como interlocutor um crítico
literário. Assim, a biografia (fictícia) é discutida numa perspectiva de história literária
através do resumo da crítica do crítico literário. A passagem entre o resumo da crítica
e a continuação da biografia analítica é indefinida. Como o objecto da crítica é o texto
presente e a crítica faz parte desse mesmo texto, a indefinição dos limites torna-se
essencial. Esta mesma indefinição produz-se na relação entre a regressão histórica
sob forma de explicação da génese do Bildungsroman a partir do pietismo e da
prehistória da psicologia na forma da “Seelenkunde“ por um lado e a progressão da
narração da biografia, que sempre mais se diluía na descrição das técnicas
psicológicas da protagonista, por outro lado. Indefinição existe também entre o
trabalho no “objecto” e no “sujeito”. Para a protagonista cada trabalho torna-se
trabalho de si próprio. Se Schiller postulava que todo o interior do homem é para ser
exteriorizado e todo o exterior assim formado, para a protagonista do Bildungsroman
de Rutschky a formação do exterior torna-se acidental. Se a ligação de identidade - no

56
A primeira das poucas interpretações, para além da de Friedrich Schlegel, que não cai na
armadilha - dissimulada na estrutura irónica do romance - da interpretação unidimensional do
caminho de Wilhelm como auto-realização do protagonista via Bildung provém de Karl
Schlechta (Wilhelm Meister, Ffm., 1953). Martin Swales, The Geman Bildungsroman from
Wieland to Hesse, Princeton 1978, também não vê nenhuma harmonia em relação ao
protagonista no fim do romance. Em “Der deutsche Bildungsroman in komparatistischer Sicht”
in Rupp, Heinz e Roloff, Hans-Gert ed. Akten des VI. Internationalen Germanistenkongresses,
Basel 1980, p. 117-125. Swales destaca a auto-reflexividade do romance relativo ao género,
considerando o Bildungsroman um comentário aos eminentes resultados do romance europeu.
57
In therapeutischer Gesellschaft
58
Rutschky, p. 235. “…Gerlinde Stürzenbecher macht immer so weiter.”

25
sentido da faculdade de auto-determinação do sujeito - à reflexividade - no sentido da
reflexão desta auto-derminação - constitui essencialmente o conceito da Bildung, a
personagem em Rutschky já não consegue a auto-realização sob forma de Bildung.
Tal é então a situação da personagem Gerlinde Stürzenbecher, assim como das
personagens Wilhelm Meister de Goethe, de Handke e de Wenders, nenhuma delas
sendo submetida ao processo (conseguido) da Bildung. A forma reflexiva do processo
é a condição para a possibilidade do sujeito poder livremente criar-se a si próprio. A
Bildung não é para os protagonistas dos Bildungsromane mas para o leitor.

O Bildungsroman de Gerlinde Stürzenbecher revela-se na narração como


forma imaginativa do governo do próprio e do mundo (a psicanálise sendo a crítica
mais radical desta forma de Bildungsroman).59

Sob o aspecto literário as alternativas de formas possíveis para a actualização


do Bildungsroman são – para a personagem do crítico no livro – ambas problemáticas.
Ou transforma-se o Bildungsroman num livro não-literário ou numa confissão.60

5. Bild, Einbildung e Bildung

A alternativa estética consistente, compativel com o conceito do Bildungsroman


como médium da Bildung, é a actualização da forma, segundo o modelo da forma
auto-reflexiva da crítica congenial do primeiro Bildungsroman, o de Goethe, por
Friedrich Schlegel. Esta é a solução encontrada por Michael Rutschky em
Lebensromane e, do mesmo modo, Handke e Wenders. Bild eEinbildung são os
componentes essenciais de cada actualização válida do Bildungsroman como
transposição literária – sendo este a forma da reflexão – da componente de linguagem
da Bildung como médium da reflexão.

59
l.c., p. 254.
60
l. c., p.261ff.

26
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Gattungsgeschichte vom 18. bis zum 20. Jahrhundert, München.

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18. und 19. Jahrhunderts, Göttingen.

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