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“A Fetichização da Imagem da Mulher”

por Mariana Meloni

“Por milhares de anos nossos reflexos culturais e políticas sexuais


foram influenciados por imagens de mulheres: mulheres como mães,
deusas, musas ou objetos sexuais (COTTER, 2000: 1).”

O corpo feminino como objeto de representação oscila, muitas vezes, entre o sagrado e o
profano. Segundo Georges Bataille, "as imagens eróticas ou religiosas, introduzem essencialmente,
para uns, comportamento de proibição, para outros, comportamentos contrários" (1988: 30).
Representada como mãe, Deusa e/ou prostituta, a mulher, dicotomizada, foi quase sempre um dos
temas prediletos na produção de imagens na história da arte. Na Antigüidade, divindades gregas foram
retratadas eroticamente através da arte estatuária, mas a sexualidade subjacente à estas imagens era
velada pelo seu aspecto mítico (EWING, 1999: 26). Em meados do século XV surgiu o nu na pintura a
óleo européia e, sob um pretexto religioso (o pecado original), representa-se a mulher primeiramente
pela figura de Eva.1 Nessa ocasião, o corpo nu era perfeitamente aceitável desde que codificado em
poses heróicas, motivos bíblicos ou mitológicos. Posteriormente, quando a tradição da pintura laicizou-
se, outros temas passaram a oferecer a oportunidade de pintar nus de mulheres, mas a nudez ainda
persistia como tabu:

De fato, o que permanece proibido é a nudez "real". Para evitá-la, e evitar o olhar
concupiscente que suscita, é necessário moralizá-la, vesti-la de intenções morais e estetizantes,
sublimá-la e platonizá-la pela submissão do Belo (PESSANHA, 1991: 45).

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No entanto, devido a um condicionamento visual que perdura por séculos, através dos modelos
ocidentais de representação figurativa, não é possível neutralizar completamente o olhar quando
observamos imagens: as pinturas de nus podem continuar a incitar o erotismo mesmo quando
legitimadas por uma falsa moralidade, que pode não conseguir despojar o corpo nu da condição de
objeto de desejo. Em algumas pinturas de nus femininos nota-se, muitas vezes, que o artista almejou
deixar implícito que a retratada foi pintada como consciente de estar sendo vista por um espectador
(BERGER, 1982: 53). Este ato enfatiza o caráter voyeurístico intrínseco à imagem: a mulher encara o
espectador como se estivesse convidando-o a participar da cena com ela : um diálogo sedutor.
A partir de 1850, se popularizaram as fotografias eróticas e os retratos de mulheres que visavam
estimular o apetite sexual de espectadores, em sua maioria, masculinos. Os cartões postais, modo mais
barato de se distribuir fotografias na época, variavam entre paisagens e temáticas fetichistas:
sadomasoquismo, lesbianismo, entre demais práticas sexuais consideradas socialmente transgressoras,
pelo menos no período, eram representadas e distribuídas. As fotografias eróticas logo foram
encontradas em Paris, e a maioria delas tentavam realçar o caráter voyeur inerente ao meio fotográfico,
olhando o obsceno (o fora de cena) pelo "buraco da fechadura". No entanto, apesar de serem cartões
postais, estes não serviam como comunicação via correio, dada a grande censura da época, mas sim
entregues pessoalmente aos amigos.

Os espelhos também eram utilizados e, assim como na pintura, permitiam que o voyeur
simultaneamente visse o corpo feminino de outros ângulos. Os cenários das fotografias eróticas que
datam desse período eram freqüentemente exóticos, onde a mulher deitava-se sobre uma cama ou divã
adornado por panos e tecidos bordados.

Onde se concerne todas as formas de amor e desejo, o corpo é o significante primeiro, ora nu
ou vestido. E toda manifestação do corpo na fotografia, que hoje chamamos de nu, é
definitivamente a mais comum e a mais complexa (EWING, 1999: 39).

Em uma época onde o corpo feminino era coberto por roupas que permitiam revelar apenas as
mãos e o rosto, o homem muitas vezes descobria o corpo da mulher através da imagem. Estas
fotografias circulavam entre o gênero masculino que, ao consumir a representação de uma mulher
voluptuosa, simbolicamente indicava que ela era sua possessão, sua propriedade. Diferente da pintura,
a fotografia por seu caráter indicial, evidencia o rapto de um momento que de fato ocorreu em um
definido tempo e espaço. A presença na fotografia, pelo menos nessa época, era inquestionável, pois
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ela é, de certa forma um vestígio, um índice2 : "na fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá"
(BARTHES, 1984: 115). Talvez por essa razão, o nu tenha sido proibido na Grã-Bretanha durante a era
Vitoriana, declarando o corpo feminino como além da capacidade do fotógrafo em retratá-lo. A nudez
associava-se com a prostituição e a boêmia, e a mulher, dentro de uma visão patriarcal, deveria estar
em casa cuidando da vida doméstica, como esposa e mãe, e não posando para fotografias eróticas.
O uso do corpo feminino para incitar o desejo foi assegurado pela distribuição de imagens para
uma audiência cada vez mais larga. Com o progressivo advento da fotografia e suas técnicas de
reprodutibilidade, a imagem deixou de ser tratada como uma curiosidade e tornou-se cada vez mais
acessível. O caráter de sugestão sexual embutido na imagem da mulher, foi legitimado pela sociedade
norte-americana no pós-guerra com as chamadas pin-ups3, tornando-se imensamente populares no final
da década de 40:

Uma pin-up é uma imagem sexualmente evocativa, reproduzida em múltiplas cópias, na qual a
atitude, o olhar e a expressão da modelo convidam o expectador a participar ou fantasiar
sobre um envolvimento pessoal com a retratada (GABOR, 1996: 23).

As pin-ups eram utilizadas para chamar a atenção principalmente da audiência masculina, mas
não deixavam de servir como cânone estético para o público feminino. Eram usadas para vender quase
tudo, de uma geladeira até um conceito, despertando o consumo e a libido de seus espectadores. A
fantasia erótica é a chave para entender os estilos de pin-ups: existem tantas delas como são os desejos
sexuais, seu sucesso depende de sua imagética enquanto ser estimulante na imaginação de fantasias
eróticas. Assim, estas imagens incorporavam o uso de alguma indumentária, pois "quando um homem
vê uma mulher nua, parece-lhe ter visto tudo" (ALBERTONI, 1986: 183), seria o imaginário do
espectador que deveria despi-la.
Sempre parcialmente cobertas, as mulheres retratadas na forma de pin-ups estavam geralmente
posando maquiadas, penteadas e envoltas por um cenário montado com objetos estrategicamente
colocados (telefones, brinquedos, travesseiros, etc.), a fim de tampar as partes proibidas do corpo.
Revistas masculinas como a Playboy, primeiramente publicada nos Estados Unidos em dezembro de
1953, consolidaram-se como um dos meios mais declarados para divulgar imagens eróticas de
mulheres direcionadas para a massa masculina. No início, não podiam ser expostas as partes púbicas
das da pin-ups sem que houvesse alguma interferência: os pêlos do púbis eram constantemente
censurados para publicação, como até hoje subsiste em certa pornografia japonesa4 .

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As pin-ups não se encontravam somente em girlies magazines (revistas que vendem imagens de
mulheres com o apelo sexual visando o consumo do público masculino), mas em calendários, pôsteres
e tudo que podia ser comprado, utilizando o sexo como forma de atrair o consumidor. Muito do sucesso
da propaganda norte-americana na década de 50 deve-se a aparição das pin-ups: em anúncios de carros,
por exemplo, elas se apresentavam em indumentárias como o biquíni5 , sugerindo a aquisição do
produto com sua conquista amorosa.

O calendário mais publicado na história das pin-ups foi o de Marilyn Monroe, quando ela ainda
era uma modelo desconhecida. As fotos deste calendário foram tiradas em 1949 e publicadas em 1951,
mas só venderam milhões anos depois, quando Marilyn atingiu o sucesso como atriz e símbolo sexual
(GABOR, 1996: 178).
Na realidade, não poderíamos encontrar melhor exemplo que Marilyn Monroe (...) para
encarar a nova Alice nos país das maravilhas, pin-up sob celofane — o puritanismo manda —
tão artificial como intocável, impenetrável, negócio apenas de voyeurs (NÉRET, 1994: 20).

Monroe tornou-se ícone daquilo do que muitos homens da sociedade norte-americana


esperavam de uma mulher: ser uma representação de beleza e sensualidade, ingênua e insinuante,
porém passiva, intangível e mítica.
Hoje, as imagens de mulheres produzidas com a intenção de despertar a libido do espectador,
estão ao alcance de um público cada vez maior. O ato de fotografar é praticado por uma vasta
população como um fácil gravador visual, onde o sujeito aponta sua lente para seus fetiches ou
simplesmente para aquilo que deseja registrar. Desde então, cada vez mais imagens que exploram a
imagem da mulher como objeto de desejo são publicadas em circuitos comerciais. Muito dos materiais
considerados hoje pornográficos6 destinados ao público masculino heterossexual, são constituídos de
imagens de mulheres, tendo como objetivo principal excitá-los sexualmente enquanto voyeurs. Nas
imagens pornô-eróticas, as mulheres são objetos de representação especialmente construídos para o
público masculino, culminando em uma "assimetria entre personagens masculinos dotados do poder de
olhar e personagens femininas feitas para serem olhadas (...) entre a mulher como imagem e o homem
como portador do olhar" (AUMONT: 1995: 126).
No entanto, algumas mulheres não concordam que a produção de materiais pornográficos deva
dirigir-se somente para o gênero masculino. A norte-americana Candida Royalle, criadora do selo
Femme, luta para que exista um mercado democrático do sexo, produzindo filmes pornôs "não só feito
por mulheres, mas para mulheres" (LEMOS, 1994: 6). Mas na visão da sociedade, que muitas vezes
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mostra-se ainda machista e conservadora, a mulher que se coloca como ser sexual independente, seja
na indústria pornográfica como modelo, atriz, produtora ou espectadora, tem, infelizmente, relacionada
à sua imagem o papel de prostituta, saindo dos padrões de uma mulher "respeitável". A fetichização da
imagem da mulher é, antes de tudo, uma aprendizagem derivada de um processo social, construção esta
que torna a mulher, cada vez mais, uma imagem passível de ser fetichizada.

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Referências Bibliográficas:

ALBERTONI, Francesco. O erotismo: fantasias e realidades do amor e da sedução. São Paulo:


Círculo do Livro, 1986.
ALVES, Branca Moreira e PITANGUY, Jaqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1995.
BARTHES, Roland. A Câmera clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1984.
BATTAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Antígona,1988.
BERGER, John. Modos de ver. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
BRANCO, Lúcia Castello. O que é erotismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.
COTTER, Holland. Though women´s eyes, finally. [online]. Disponível na Internet via www. url:
http://www.nytimes.com/library/magazine/millenium/m2/cotter.html
ERWING, William A. Love and desire: photoworks. Nova Iorque: Thames & Hudson, 1999.
GABOR, Mark. The pin-up. Alemanha: Evergreen,1996.
LAPEIZ, Sandra M. e MORAES, Eliane R. O que é pornografia. São Paulo: Brasiliense, 1985.
NAZARIEFF, Serge. Jeux de dames cruelles: photographies 1850-1960. Espanha: Taschen, 1992.
NÉRET, Gilles. Arte Erótica. Itália: Taschen, 1994.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva,1999.
PEREIRA, Aldo. Dicionário da vida sexual. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
TACCA, Fernando de. "Sexualidade e imaginário no Japão". In: Cadernos de Pós Graduação do
Instituto de Artes da UNICAMP, ano 1, vol.1, nº 2. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999, pp.
37-41.
WILLIE, John. The complete reprint of John Willie´s Bizarre. Itália: Taschen, 1995.

Notas:
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1
Vide o quadro "Queda e expulsão do Paraíso" de Pol de Limbourg, que data deste período. Sobre a representação da
mulher na pintura européia, ver John BERGER. Modos de ver. pp.49-68.
2
Segundo o semiólogo, filósofo e matemático norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), a fotografia pode
pertencer a toda a categoria de signos, mas em primeiro lugar, pode ser entendida como um índice, uma marca, um
sedimento, mantendo uma relação direta com seu referente. Sobre sua teoria de classificações de signos, que não se
aplicam somente ao fotográfico, mas a todo tipo de linguagem verbal ou não verbal. Ver Semiótica. São Paulo:
Perspectiva,1999.
3
O termo pin-up (em inglês significa pendurar, afixar com um alfinete) faz referência à prática masculina de colocar na
parede imagens de mulheres, representadas com um apelo sexual. No entanto, uma pin-up pode ser tanto a representação
quanto a representada, e pode não ser necessariamente pendurada: as imagens de pin-ups podem ser encontradas
em suportes como cartas de baralho, isqueiros, chaveiros, copos, canetas, entre outros objetos. Ver Mark GABOR. The Pin-
up: a modest history. p.23.
4
No Japão, é comum a censura dos órgãos genitais nas fotografias, vídeos e mangás (revistas em quadrinhos japonesas)
com cenas de sexo explícito, através da inserção de mosaicos ou quadriculados a fim de cobrir estas partes. A esse
respeito, ver Fernando de TACCA. Sexualidade e imaginário no Japão. pp. 37-38.
5
Inventado nos Estados Unidos em 1946, o biquíni toma emprestado seu nome de um atol das ilhas Marshall, ao norte do
pacífico. Bikini foi o lugar de testes com bombas atômicas e sua relação com o maiô sumário de duas peças deve-se a uma
"comparação comicamente exagerada entre os efeitos de uma explosão atômica e a comoção causada por uma mulher
vestida com tal maiô". Aldo PEREIRA. Dicionário da vida sexual. p.70.
6
A pornografia, segundo as autoras Sandra LAPEIZ e Eliane MORAES, pode ser definida como: "o discurso por excelência
veiculador do obsceno, daquilo que se mostra e deveria ser escondido". Ver O que é pornografia. p. 9. No entanto existe
uma grande discussão sobre o que se considera erótico ou pornográfico. De acordo com Lúcia Castello BRANCO, é quase
impossível estabelecer traços distintivos entre o erotismo e a pornografia, pois ambos são conceitos flexíveis que variam em
determinados contextos e períodos históricos. Mas dentro desta impossibilidade, a autora acaba por definir que um material
pornográfico é o que hoje está exclusivamente associado ao consumo e ao lucro. Sobre essa polêmica questão, vide O que
é erotismo. p.23.

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