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Entenda as novas relações de trabalho

Qual o novo panorama do mundo do trabalho?

31 de janeiro de 2017

Por Silvio Matheus Alves Santos* | Foto: Shutterstock | Adaptação web Caroline Svitras

Por pesquisar uma fast fashion do comércio varejista de moda, afirmamos satisfatoriamente que o que
encontramos no livro Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos, de Ludmila
Abílio, está para além dos resultados de sua pesquisa. Evidenciamos problematizações singulares e relevantes
que avançam o debate, por exemplo, sobre o trabalho informal e a questão do tempo de trabalho e de não
trabalho. Ou seja, as suas reflexões e proposições atualizam algumas questões no que tange às transformações
do mundo do trabalho (pensando a realidade brasileira e internacional) e que diz respeito às centralidades: do
trabalho, da marca, do imaterial, da acumulação e da banalização da exploração do trabalho.

Na parte sobre “As revendedoras e a empresa”, a autora buscou nos dar “um panorama dos perfis
socioeconômicos das revendedoras e da relação que elas mantêm com as vendas”. A partir de entrevistas,
construiu e apresentou alguns “tipos sociais” com base nas especificidades o trabalho, nas suas condições
materiais de realização, nas relações que estabelecem com a Natura. Dentro dessas especificidades de
trabalho das consultoras, ela encontrou a “revendedora da revendedora”, o que acaba desencadeando uma
“informalidade dentro da informalidade”.

Outra questão extremamente importante diz respeito ao “trabalho formal” visto como um “diferencial para a
manutenção das vendas” realizadas a partir do trabalho informal. Ou seja, “ter um local de trabalho definido
assegura também a rotina da atividade. A alta permeabilidade das vendas
possibilitou que seu local de trabalho se tornasse sua loja difusa. “A falta
de formas predefinidas das vendas garante a alta adaptabilidade de uma
ocupação à outra” (p.30). Com isso, esse processo de trabalho, pensado e
compreendido por nós como amórfico (termo que deriva de amorfia e
que expressa a ausência deforma determinada), “se imbrica nas relações
pessoais em espaços privados, a venda não concorre e sim se entrelaça a
outras ocupações”.

Foto: Divulgação

Ao abordar sobre “A informalidade e a questão social”, a socióloga problematiza o sucesso do “Sistema de


Vendas Diretas – SVD” como um trabalho predominantemente feminino e destaca a “falta de mediações
públicas dessa relação de trabalho”. Nessa ausência de mediações bem definidas, o que se destaca é a presença
da marca sendo “o que aparentemente faz o elo na atividade de todas as consultoras, uma vez que as mais
diferentes formas e estratégias de venda têm em comum o discurso da marca”.
O capítulo três, “A ficção real da acumulação”, será orientado pela discussão sobre a desfetichização da marca,
que abrirá caminho para o debate sobre a relação entre a dominância da valorização financeira e a precarização
do trabalho. Logo, a perspectiva da análise “é a de que a visibilidade contemporânea da marca se combina com
a invisibilidade social que hoje permeia as relações de exploração” (p. 99).

A ovelha negra das relações de gênero

O quarto capítulo, “A organização na dispersão”, nos traz questões que estão diretamente ligadas ao controle
do trabalho. Ludmila nos apresenta como a relação de trabalho das revendedoras da Natura está organizada
pela dispersão, “pela ausência de formas de trabalho, pela ausência de locais de trabalho”. No decorrer da
análise, Abílio chega à conclusão de que “o controle se realizaria na própria dispersão e na própria
indiscernibilidade da relação de trabalho” (p. 132).

No último capítulo, “Subsunção contemporânea do trabalho e acumulação”, Ludmila Abílio se aproxima


do toyotismo, entendendo-o como uma expressão da reestruturação e relacionando-o com as formas de
subsunção do trabalho. De acordo com a autora, “há algo novo na exploração: o envolvimento do
trabalhador com o trabalho parece ter cada vez menos limites” (p. 172). Abílio ainda nos traz uma discussão
sobre a privatização do tempo de não trabalho.

Um espectro do trabalhismo ronda o Brasil

Fica claro, a partir disso, que a centralidade do trabalho permanece fundante das dinâmicas sociais de produção
e reprodução. O que ocorre é o aparente descentramento do trabalho potencializado por maneiras amórficas
de organização da produção, acumulação e exploração no contexto atual. Portanto, a partir do trabalho da
autora é possível entendermos que as novas configurações visualizadas não nos remetem somente às formas
conhecidas das relações capital-trabalho- -exploração do período industrial, com dimensões bem definidas,
mas o que observamos, em setores como o de serviços e o informal, é uma latente complexificação das formas
que potencializam ainda mais o capital, a lógica de acumulação e a exploração.

*Silvio Matheus Alves Santos é doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo-USP.

Adaptado do texto “Do formal às diferentes informalidades”

Revista Sociologia Ciência & Vida Ed. 59


Como é criada a consciência coletiva
Tornamo-nos uma espécie de consciência coletiva sensível e inteligente, que age e reage “autonomamente”
ao sabor dos conteúdos e valores que circulam em nossas artérias e redes cibernético-informacionais

7 de fevereiro de 2017

Por Alexandre Quaresma | Foto: Shutterstock | Adaptação web Caroline Svitras

Um dos aspectos mais interessantes dessa época


de ubiquidade informacional que experimentamos
nos dias atuais, especialmente através
dos meios de comunicação e do ciberespaço, é a
capacidade extraordinária que adquirimos
recentemente de agir e reagir de forma coletiva a
acontecimentos ao nosso redor (sociedade), com
extrema agilidade e relativa autonomia. Essa é –
lembremo-nos – uma característica marcante dos
organismos vivos, pois eles são formados por
sistemas informacionais internos extremamente
sensíveis e desenvolvidos, que lhes comunicam em tempo real sobre tudo que acontece neles mesmos e no
seu entorno, ou seja, no próprio sistema corpóreo e também no acoplamento desse sistema com o ambiente
(também um sistema) que o contêm, já que a sua existência e permanência dependem em tudo do bom
funcionamento de ambos os sistemas (corpóreo e ambiental).

Desse modo, um evento em qualquer parte do corpo de uma pessoa – claro, que seja considerado
cognitivamente relevante –, o hipotético caminhar de um inseto sobre a pele dessa mesma pessoa, por
exemplo, já que a mente trabalha com sobreposições contínuas e hiper-aceleradas de hipóteses – é
imediatamente reportado ao cérebro em tempo real por seu sistema nervoso, para que o primeiro avalie o
caso num átimo e possa ordenar novamente, por meio do último, uma ação qualquer que vise, no mínimo,
identificar o ocorrido, avaliar a sua gravidade e verificar possíveis consequências.

O papel das religiões na atualidade

A ordem intencional que é inicialmente deliberada no cérebro e que se torna motora, ou seja, o simples ato de
virar a cabeça e olhar para o que pretensamente seria um inseto sobre a pele, já é – tenhamos isso bem claro
– uma reação em cadeia hiper-complexa que só é possível devido a essa forma de ubiquidade informacional
extraordinária, que habitualmente se experimenta com o fenômeno da consciência.

É graças a essa consciência em muitos sentidos extraordinária, irrigada constante e ininterruptamente com
torrentes informacionais e relâmpagos sinápticos, que essa pessoa poderá reagir ao acontecido, interagindo
com o seu meio, na maioria das vezes no enfrentamento das infindáveis intempéries que o cotidiano lhe
impõe. Essa simples informação (simples, diante das infindáveis informações que nos chegam pelos sentidos o
tempo todo, do interior do corpo e do exterior dele) que chegou ao cérebro, essa ocorrência que se origina na
superfície da pele, pode muito bem, hipoteticamente, ser apenas uma formiguinha, ou talvez um minúsculo
besourinho, inofensivo e colorido, que alçará voo antes mesmo que se possa fazer algo a respeito.

Mas, por outro lado, pode ser também que tal ocorrência seja de fato muito relevante – e, nessas situações,
antes de se averiguar, têm-se apenas equiprobabilidades –, e que ela (ocorrência) ou suas
consequências levem a pessoa em questão a saber que tem sob a pele de fato um inseto peçonhento, desses
venenosos que picam ou ferroam, e que além da dor podem levar a complicações de saúde mais graves, e, de
acordo com isso, consciente disso, poder tomar providências, sejam elas quais forem.

Longe de querer diabolizar os insetos, pelo contrário, já que reconhecemos seu importantíssimo papel nos
biomas terrestres e nas cadeias trocas da natureza de uma maneira muito ampla, mas um evento
relativamente simples como esse, em que se sente apenas uma espécie de cócega na pele, e que não
se consegue a priori identificar o que está de fato ocorrendo, pode determinar, no extremo, o ‘destino’ e a
própria integridade desse mesmo sistema. E é justamente por isso que os sistemas vivos (organismos) se
mostram nesse ponto muitíssimo complexos, e são informados de tudo que se passa com tanta rapidez, pois
assim podem reagir também com celeridade, objetivando sempre que possível o reequilíbrio e a homeostase
sistêmica, condição fundamental para a integridade e permanência de qualquer sistema vivo.

Conheça a Sociologia do Conhecimento

Enfim, visando em último caso a própria sobrevivência ou no mínimo a segurança, e, numa fração de segundo,
toda essa intrincada cadeia de acontecimentos complexos se desenrola com bastante eficiência, ou seja, o
sistema estava em estado natural de repouso, de calma, continuidade e tranquilidade com o meio, recebe um
sinal, entra muito rápido em estado de alerta e atenção, incalculáveis processos lógicos e psíquicos são
disparados e acionados, mutuamente, sincronicamente, e por fim, numa fração de segundo, depois de
“longos” e “intermináveis” nanosegundos, é determinada uma ação específica.

A referida ação se consuma, o potencial perigo é identificado visualmente, debelado ou afastado, de acordo
com a situação, para que o sistema retorne ao seu estado habitual de continuidade e equilíbrio, e, no nosso
caso, para que o sujeito hipotético que se vê às voltas com insetos na pele possa se livrar dessa potencial
ameaça e seguir adiante com sua singular existência, dentro da calma e normalidade em que estava, quando,
de repente, “tudo isso” aconteceu. Ou seja, numa só palavra, somos sistemas vivos, sensíveis e inteligentes. E
somos assim justamente para isso: para garantir a nossa permanência.

Sistema nervoso global

É muito interessante perceber que o mesmo está acontecendo com a própria humanidade, principalmente a
partir do momento em que ela se hiper-conecta em nível planetário. Diante dessa notícias, informações,
dados, imagens, sons, signos, e diante também da expansão massiva das redes informacionais humanas
tecnologicamente suportadas (TVs, internet, telefones móveis, tablets, satélites, redes de fibra óptica, sem fi o
e demais tecnologias correlatas), tornamo-nos uma espécie de consciência coletiva sensível e inteligente, que
age e reage “autonomamente” ao sabor dos conteúdos e valores que circulam em nossas artérias e redes
cibernético-informacionais.

Sim, porque essa nova forma onisciente de encarar a realidade social global nos está permitindo transformar a
própria maneira com que percebemos essa mesma realidade. Se por um lado continuam ou até pioraram os
entraves ao direito de ir e vir das pessoas entre países, por exemplo – seja por limitações políticas, econômicas
ou culturais –, com a cibernética e a cibercultura, abre-se diante do sujeito uma imensidão de possibilidades
de ação e interação, um extraordinário universo potencial e latente de oportunidades, gerando um contexto
neoparadigmático no qual a localização geográfica do usuário não é mais um entrave tão determinante ou
limitador, e onde há também uma certa independência cognitiva individual, ou seja, uma total ou quase
total liberdade de exploração, expressão e ação, já que cada um faz na rede o que quer, na ora que quer e,
salvo raras exceções, como quer.

Quem deseja pesquisar pesquisa; quem precisa se comunicar se comunica; quem anseia por se informar se
informa e quem deseja se articular também pode fazê-lo, e assim é na cibercultura. A
própria Primavera Árabe se mostra um exemplo emblemático desse tipo de reconfiguração da realidade que
se constitui a partir das mídias e redes sociais virtuais, para em seguida ganharem o mundo num mesmo plano
geográfico e espaço-temporal, e efetivamente mudar a realidade. As insatisfações provavelmente já estavam
lá, e em grande medida ainda estão, mas foi a grande rede internacional de computadores que possibilitou a
articulação estratégico-política necessária para que houvesse a transformação por meio da coesão popular. O
mesmo vale para as ondas de manifestações que varreram o Brasil de ponta a ponta em 2013, e que ainda
pipocam aqui e ali, em mobilizações menores e pontuais, como o rolezinho, por exemplo.

O que há por trás do ato de protestar?

Essas mobilizações épicas de 2013 foram articuladas por meio da internet, mas, rizomicamente, ganharam as
ruas, estradas e avenidas de todo o país. Mobilizações que começaram no universo do virtual, mas explodiram
no real com tanta intensidade e força que foram capazes de alterar a própria estruturação sistêmica que os
continha, ou seja, a sociedade e a socioambiência. O que era para ser apenas um protesto localizado
contra mais um aumento da passagem em São Paulo acabou se transformando no evento sociopolítico mais
relevante das últimas décadas para o nosso país.

O que desejamos frisar é que essa ubiquidade informacional que funciona como extensão de nós mesmos e de
nossas percepções também desempenha funções muito significativas e importantes sistemicamente,
semelhantes às que os sistemas nervosos desempenham para o cérebro e a consciência, ou seja, toda essa
onisciência e sensibilidade nos leva a uma condição de coesão e consciência global extraordinária, de fato
muito semelhante à consciência singular no plano individual.

Emergências e dificuldades

O que se revela realmente extraordinário nessas relações que estabelecemos com o mundo por meio de
nossas tecnologias são as façanhas que pessoas comuns podem realizar quando se juntam às demais
autonomamente, partindo de seus próprios computadores e aparatos de comunicação, mobilizando centenas,
milhares e por vezes milhões de pessoas. Há, então (na cultura), o que os teóricos da complexidade costumam
chamar de emergência. Não se trata de uma conta exata, mensurável e quantificável, pelo contrário, há a
emergência quando o sistema se complexifica até um determinado nível ótimo, em que as próprias condições
são capazes de propiciar o surgimento de elementos novos, inexistentes anteriormente no próprio sistema.

São ocorrências que se originam da própria dinâmica recursiva de complexificação do sistema, e, por isso
mesmo, são imprevisíveis. Um bom exemplo desse tipo de emergência espontânea aconteceu durante um
jogo de futebol na Espanha em que o lateral Daniel Alves do Barcelona e da seleção brasileira foi alvo de
preconceito e discriminação racial por parte de um torcedor que arremessou uma banana em sua direção,
logo quando este iria bater um escanteio.

Daniel Alves, demonstrando extraordinária presença de espírito e também sagacidade, caráter mesmo, parou
antes de empreender a jogada, caminhou até a fruta que se encontrava caída no gramado, apanhou a mesma,
sem sequer olhar na direção do possível arremessador, descascou, comeu um bom pedaço, e em seguida,
rapidamente, deu prosseguimento ao lance e também uma silenciosa lição de moral no discriminador.

O fato é que, imediatamente após o acontecido, correu pela grande rede uma onda de manifestações contra
o racismo não só no futebol, cujo lema é “somos todos macacos”. O protesto, teoricamente, teria sido
iniciado por Neymar Júnior, outro craque da bola e do ciberespaço, que teria postado uma foto com uma
banana na mão.

Em seguida outros grandes nomes do futebol começaram a se manifestar, e a “coisa” definitivamente


extrapolou o contexto local e esportivo, já que até mesmo a ex-presidenta Dilma se solidarizou com Daniel
Alves pelo Twitter, e, às vésperas da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, o movimento contra a discriminação
racial ganhou rapidamente visibilidade na grande mídia mundial, gerando esse tipo de padrão emergente, que
começa tímida e pontualmente com um gesto, ação ou clique, uma ideia, uma revolta, e acaba se
transformando numa gigantesca mobilização planetária.

O que importa, e nós chamamos a atenção dos leitores para isso, é que estamos instaurando uma espécie
nova de consciência global sensível e inteligente, que sente, age e reage autonomamente, um grande cérebro
planetário, onde cada um – assim como fazem os neurônios – se liga e se conecta aos seus
semelhantes, formando hiper-estruturas de extrema complexidade, e propiciando a emergência de novas
possibilidades e potencializações, em espasmos sócio-sinápticos extraordinários, assim como se
manifestam no cérebro as tempestades neurais das grandes ideias, amores e decisões.

*Alexandre Quaresma é escritor, ensaísta, pesquisador de tecnologias e consequências socioambientais, com


especial interesse na crítica da tecnologia. É membro da Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e
Meio Ambiente, vinculado à Fundação Amazônica de Defesa da Biosfera, e conselheiro editorial de Ciência e
Sociedade do Comoon Ground Publishing. E-mail: a-quaresma@hotmail.com

Adaptado do texto “Consciência coletiva”

Revista Sociologia Ciência & Vida Ed.54

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