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Entre o apofântico e o hermenêutico: notas sobre a dupla estrutura da linguagem em Ser

e tempo de Heidegger

Carine de Oliveira1

Resumo:
Na tentativa de desligar a linguagem dos conceitos a partir dos quais foi interpretada, no
decorrer da história da filosofia, Martin Heidegger busca realizar uma discussão em que a
proveniência ontológico-existencial dessa estrutura não seja encoberta. Embora a linguagem,
em Ser e Tempo, apareça vinculada ao enunciado proposicional, ela não se reduz às
explicações lógico-gramaticais, pois Heidegger remete o assunto ao nível do a priori, à
instância hermenêutica de realização da compreensão e do sentido. A importância de uma
noção de linguagem, tal como se desdobra em Ser e Tempo, está em que não se trata de
preterir seu caráter apofântico, mas de reconhecer o horizonte hermenêutico no qual já
estamos sempre situados e que, por essa razão, já sempre constitui a estrutura da linguagem.
Nessa perspectiva, instaurada pela fenomenologia -hermenêutica, o ser humano passa a ser
pensado como um acontecimento compreensivo interpretativo que já não pode falar das
coisas, dos objetos, em nível enunciativo-apofântico, sem falar de si mesmo, desde um mundo
histórico e cultural, envolvido com tudo o que lhe rodeia e afeta.
Palavras-chave: Heidegger. Nível apofântico. Nível hermenêutico. Linguagem.

Considerações iniciais

A história da filosofia é, segundo Heidegger, a história do esquecimento do ser e se a


pergunta pelo sentido do ser, diante dessa problemática, deve ser novamente colocada, então,
tal tarefa não deixa de pressupor, ao mesmo tempo, um questionar pelo ser da linguagem
(Sprache). Em direção à superação das abordagens metafísicas, é preciso perguntar pelas
coisas mesmas para que também a linguagem possa se mostrar tal como é em si mesma, pois
se trata de recuperar seus fundamentos ontológicos. Nesse sentido, a discussão heideggeriana
sobre a linguagem concentra, como pano de fundo, um veemente debate com os pensadores
da tradição, que traz como resposta uma tematização que, em partes, realiza-se através da
operação fenomenológica da destruição (Destruktion).
Entendida enquanto um processo crítico em que o arcabouço conceitual da tradição é
reavaliado, a destruição é a possibilidade de reconstrução dos conceitos herdados em bases
mais originárias. Ao serem transmitidas, as conceituações estão sempre sujeitas a
encobrimentos que, petrificados no devir histórico, impedem que algo se mostre como
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS). E-mail: cari.oliv@yahoo.com.br. Fone: (55) 9906-4298.
fenômeno tal como é em si mesmo. O desenvolvimento da fenomenologia, enquanto um
questionar metodológico que interroga pelo sentido do ser, suscita o desmantelamento de tais
encobrimentos conceituais. Também no que tange à linguagem, esse desmantelamento
destrutivo se faz necessário, pois as aporias e enganos a que a problemática ontológica
tradicional sobre o ser se vê envolvida, de modo geral, fundam-se na dimensão da linguagem.
Heidegger busca, então, superar a tradição e realizar uma abordagem da linguagem
em que sua proveniência ontológico-existencial não seja encoberta, pois os encobrimentos
conceituais a que esteve associada, no decorrer da história, exigem que a problemática seja
colocada em bases mais originárias. Frente a isso, é que ganha corpo a operação
fenomenológica da construção que corresponde ao desenvolvimento de um programa
fundacional, em relação à linguagem, que se desenvolve em consonância com a tematização
ontológico-existencial que Heidegger elabora2. Nesse sentido é que Heidegger, de certo
modo, recupera a noção de logos predominante entre os gregos em que este significa,
primeiramente, relação com o ser, o expor e mostrar o ente, do qual se expressa algo
linguisticamente, em suas origens e fundamentos3. Assim sendo, o autor retrocede o assunto
ao nível do a priori, ou seja, a um nível antepredicativo de realização da compreensão e do
sentido que não se opõe ao universo lógico-semântico. Antes, busca reconhecer um domínio
que diz respeito ao horizonte hermenêutico, no qual já estamos sempre situados e que já
sempre supomos ao falar das coisas, dos objetos no nível apofântico. Desse modo, procurarei
apresentar, neste texto, a linguagem a partir dos dois níveis ou, em outras palavras, a partir da
dupla estrutura hermenêutico-apofântica que lhe constitui.

1 A dupla estrutura da linguagem em Ser e tempo

No contexto da análise da mundanidade do mundo, em Ser e tempo, ao falar da


significância (Bedeutsamkeit), Heidegger fornece as primeiras indicações que nos permitem
iniciar, de modo mais preciso, a discussão acerca da linguagem. A significância vem à tona
como estrutura formal da mundanidade do mundo. Com o propósito de elucidar como se
constitui a mundanidade (Weltlichkeit), o filósofo apresenta o mundo circundante como ponto
de partida de sua investigação. É no mundo circundante, sempre em alguma ocupação
específica e enquanto instrumentos (Zeug) dotados de disponibilidade (Zuhandenheit), que os

2
Cf. REIS, R. R. dos. Observações sobre o papel da linguagem na fenomenologia-hermenêutica de Ser e Tempo.
In: Problemata, João Pessoa, v. 1, n.1, pp. 25-45, 1998.
3
Cf. BAY, T. A. El lenguaje en el primer Heidegger. México: Fondo de Cultura Econômica, 1998. p. 19.
entes intramundanos tornam-se acessíveis ao Dasein. O modo de ser do instrumento à mão
(disponível) é, intrinsecamente, referencial, ou seja, estabelece-se numa intermitente
referência (Verweisung) a outros instrumentos.
Portanto, o instrumento aparece em seu estar disponível à mão, pois tem “em si
mesmo o caráter de estar referido a”4. Todavia, ser constituído por referências não é
suficiente para que estes entes, de fato, estejam acessíveis. Necessário é que as referências que
o constituem se encontrem em conformidade (Bewandtnis). A conformidade indica a remissão
do instrumento ao ser do Dasein e libera os entes em sua disponibilidade intramundana
ligando-os a uma totalidade relacional/referencial. O compreender, por sua vez, abre o
contexto em que (Worin) ocorre a liberação dos entes.

O fenômeno do mundo é o em quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto


perspectiva de um deixar e fazer encontrar o ente no modo de ser da
[conformidade]. A estrutura da perspectiva em que [o Dasein] se refere constitui a
mundanidade do mundo5.

Desse modo, a compreensão de mundo realiza-se através de uma referência de si, por
parte do existente humano, ao contexto das relações referenciais constitutivas da circunstância
conformativa. Nessa familiaridade com o contexto referencial6 é que vem à tona o caráter de
significar do Dasein. “Chamamos de significância o todo das remissões dessa ação de
significar (Bedeuten)”7, que constitui o mundo em sua mundanidade. Assim, o mundo não é
dado, previamente, como uma série de coisas com as quais o Dasein se relacionaria,
posteriormente, atribuindo significados. As coisas, os entes são descobertos e se apresentam
dotados de significados, inseridos em uma totalidade significativa que o existente humano já
sempre dispõe. Essa totalidade de significados com a qual o Dasein, enquanto ser-no-mundo,
já sempre está originariamente familiarizado, guarda em si uma fundamental possibilidade
ontológica: “a condição ontológica de possibilidade [do Dasein] em seus movimentos de
compreender e interpretar, poder abrir ‘significados’, que, por sua vez, fundam a possibilidade
da palavra e da linguagem”8.

4
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2008. p.134.
5
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2008. p. 137.
6
“As referências e nexos referenciais são primordialmente significação”. Cf. Heidegger, M. Prolegómenos para
una historia del concepto de tiempo. Madrid: Alianza Editorial, 2007.
7
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2008. p. 138.
8
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2008. p. 138.
A investigação do processo através do qual a significância chega à linguagem
implica a tematização da noção de abertura (Erschlossenheit), pois é através da realização de
seus existenciais constitutivos que tal possibilidade se efetiva. Assim, é na abertura, enquanto
o aí do Dasein, que a linguagem tem suas raízes possíveis. Disposição afetiva
(Befindlichkeit), compreender (Verstehen) e discurso (Rede), numa cooriginariedade
(Gleichursprünglichkeit)9 existenciária, constituem a abertura do Dasein enquanto ser-no-
mundo.
Enquanto existencial constitutivo da abertura, a disposição afetiva representa o
indício ontológico daquilo que, cotidianamente e de modo familiar, manifesta-se onticamente,
ao Dasein, na forma de um humor (Stimmung). O existente humano, nas mais variadas
experiências cotidianas, encontra-se sempre afinado com algum humor específico. E é neste
estar afinado com algum humor que se dá a abertura do ser-lançado do Dasein em seu aí, a
experiência do fato de que ele é, ou seja, a facticidade da responsabilidade em relação ao seu
próprio existir. Juntamente, com a abertura do ser-lançado, a disposição abre também o ser-
no-mundo (In-der-Welt-sein) em sua totalidade, isto é, o mundo em seu caráter de
mundanidade, a existência e a coexistência.
Além da disposição, o compreender igualmente é um existencial constitutivo da
abertura. Enquanto a disposição abre, em seu teor afetivo, a ligação existente entre Dasein e
mundo em seu caráter de significância, isto é, como mundanidade, o compreender apreende as
possibilidades dessa ligação. Tais possibilidades existenciais são assumidas na estrutura
projetiva que caracteriza a existência compreensiva. Compreensão e projeto (Entwurf)
realizam-se, portanto, em um movimento único. O Dasein já sempre se encontra projetando
na medida em que é um compreender. E o que projeta o Dasein é o poder-ser implícito em
todo compreender. Assim, através de sua estrutura projetiva, o compreender lança o poder-
ser, enquanto possibilidade própria, ao seu ser, abrindo a totalidade de significações da
mundanidade do mundo. Enquanto abertura,

o compreender sempre alcança toda a constituição fundamental do ser-no-mundo.


Como poder-ser, o ser-em é sempre um poder ser-no-mundo. Este não apenas se
abre como mundo, no sentido da possível significância, mas a liberação de tudo que
é intramundano libera esse ente para suas possibilidades 10.

9
O caráter de cooriginariedade permite-nos perceber a relação entre tais existenciais não segundo uma
hierarquia, mas a partir da interdependência mútua que os caracteriza.
10
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2008. p. 205.
As possibilidades abertas pelo compreender, todavia, necessitam de uma
explicitação. Com esse termo, Heidegger indica aquilo que pertence à estrutura da
interpretação (Auslegung). A interpretação é o próprio compreender desenvolvendo-se
enquanto se apropria das possibilidades projetadas, explicitando-as. Na projeção
compreensiva, os entes são abertos em suas possibilidades. A interpretação explicita,
justamente, as possibilidades destes entes em sua estrutura como (Als Struktur). Portanto, a
explicitação interpretativa diz respeito à dinâmica de possibilitação da manifestação ôntica, ou
seja, de que o ente venha ser percebido como algo com uma identidade determinada. Todo ver
compreensivo interpretativo descobre o ente naquilo que ele é e como ele é, antes de qualquer
exposição enunciativa, pois traz em si as relações referenciais constitutivas da totalidade em
conformidade já explicitada. Assim, ao ver as coisas como isto ou como aquilo, já estamos
sempre em um processo explicitativo da compreensão.
Interpretar é, portanto, explicitar a estrutura como, o sentido enquanto perspectiva em
que algo é compreendido como algo determinado. Desse modo, do como hermenêutico, tem
origem a projeção de sentido enquanto uma espécie de justificação da compreensão do ser,
dado incontornável do qual o existente humano tem sempre que partir. Em outros termos, a
projeção de sentido é a legitimação do todo de relações de conformidade constitutivas do
mundo e condição de possibilidade do desvelamento ôntico.
No entanto, para Heidegger, toda compreensão encontra-se previamente articulada
mesmo antes do processo interpretativo explicitativo das possibilidades compreensivas. Nas
discussões acerca da interpretação, o autor fala que através da função explicitativa-
articuladora desse existencial vem à tona o sentido. No entanto, de modo mais originário que
na interpretação, o sentido é articulado discursivamente. “Chamamos de totalidade
significativa aquilo que, como tal, se estrutura na articulação [do discurso]”11. Por ser
articulação significante da compreensibilidade, o discurso já está sempre à base da
interpretação e do enunciado12. Fica claro, portanto, que a compreensão e realização do
sentido acontecem num domínio antepredicativo. Porém, se o discurso não fosse capaz de
configurar articuladamente a relacionalidade a partir da qual o compreender se decide, ele
estaria, em princípio, impossibilitado de se efetivar como condição do sentido, do mostrar-se
em geral dos entes.

11
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2008. p. 223.
12
Cf. HEIDEGGER, M. Ser y tiempo. Trad. Jorge Eduardo Rivera C. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2009.
Em sua função apriorística, o discurso é, justamente, o fundamento ontológico-
existencial que opera como possibilidade de que o Dasein no seu existir fático possua a
linguagem. A linguagem, por conseguinte, é o pronunciamento exteriorizado
(Hinausgesprochenheit) do discurso e manifesta-se onticamente enquanto uma totalidade de
palavras cuja origem mais remota, conforme já foi referido, é a significância. Dos significados
surgem as palavras, mas para que cheguem ao nível da expressão linguística é necessária a
realização prévia dos existenciais da abertura descrita acima. É no movimento compreensivo-
interpretativo que a significância é aberta e, consequentemente, articulada pelo discurso. É
nesse sentido que o conjunto referencial, ou seja, o todo significativo constitutivo da
compreensibilidade disposta afetivamente, através da função articuladora do discurso,
manifesta-se, portanto, como linguagem. Se a linguagem enquanto um todo de palavras não
pudesse, em princípio, dispor do discurso enquanto seu fundamento, estaria fadada a ser uma
multiplicidade desconexa de palavras, com a qual o Dasein nem ao menos saberia o que fazer
em seu existir comunicativo com o outro. O entendimento com o outro, na convivência
cotidiana, necessita da elaboração discursiva, pois já se dá sempre a partir da totalidade
significativa constitutiva do mundo. “O discurso expõe e interpreta, isto é, faz que ressaltem
na comunicação”, de modo estruturado, “as relações referenciais da significância”13. A
interpretação do mundo e do Dasein como ser-no-mundo encontra-se inserida na significação
da palavra, na linguagem, e pode, desse modo, ser compartilhada com o outro.
A linguagem expressa a trama significativa da compreensibilidade articulada pelo
discurso. Expressa a exterioridade na qual o Dasein já sempre se encontra enquanto ser-no-
mundo que é. Nesse expressar-se enquanto discurso falado, os estados de ânimo, em que o
Dasein já sempre se encontra, estão presentes. Além disso, em toda expressão linguística, uma
compreensão interpretativamente explicitada está também inserida. Ou seja, o que Heidegger,
ao buscar desligar a estrutura linguagem dos domínios exclusivos da lógica e da gramática,
quer mostrar é que já há sempre um universo hermenêutico suposto que constitui tal estrutura,
porque constitui o ser-humano mesmo, como dizia Aristóteles, enquanto um “zoon logon
exon, um ser vivo que sabe discursar”14. É o universo ou âmbito hermenêutico originário que
nos rodeia e no qual a linguagem encontra suas raízes mais remotas.
Todavia, em Ser e tempo, é na discussão concedida ao enunciado, especificamente
em seu caráter comunicativo que aparece a questão da linguagem. Enquanto comunicação de

13
HEIDEGGER, M. Prolegómenos para una historia del concepto de tiempo. Madrid: Alianza Editorial, 2007.
p. 335.
14
HEIDEGGER, M. Prolegómenos para una historia del concepto de tiempo. Madrid: Alianza Editorial, 2007.
p. 330.
algo que foi mostrado e predicado, o enunciado precisa pronunciar-se, precisa da expressão
verbal em palavras que é a linguagem. Há de se ter em conta que quando Heidegger mantém
essa vinculação da linguagem ao nível apofântico do enunciado é, justamente, para mostrar
que não está interessado em uma recusa dessa dimensão. No entanto, o tratamento que ele vai
conferir ao enunciado mostra essa estrutura não em um caráter de primazia, tal como se
absolutizou na tradição metafísica , mas como uma estrutura derivada da interpretação, ou
seja, que dependente do universo hermenêutico da práxis cotidiana para se realizar. Vemos
nessa discussão, uma crítica às teorias tradicionais do juízo que privilegiaram,
exclusivamente, o caráter apofântico da linguagem. Através dos processos de destruição e
construção fenomenológica, Heidegger faz uma inversão dessa problemática, trazendo a
tematização da dimensão hermenêutica para o primeiro plano na medida em que ele esclarece
que os momentos estruturais do enunciado da indicação (Aufzeigung), predicação
(Prädikation) e comunicação (Mitteilung) não podem abrir mão da intepretação
compreensiva, ou melhor, da realização dos existenciais da abertura.
A possibilidade do enunciado, de certo modo, depende de que o ente não compareça
tal como aparece no compreender que se realiza na práxis cotidiana. Ou seja, o ente deve
revelar-se como um ente subsistente, objetificado e não como disponível e inserido numa
contextura significativa mais ampla. Em termos de descoberta, a diferença que aí ocorre é
que, se na compreensão e interpretação os entes são desvelados a partir de um contexto
referencial significativo em conformidade, ao alcançar o estatuto enunciativo, os entes passam
a ser determinados em suas propriedades. Desse modo, o descobrimento apofântico do ente
significa, ao mesmo tempo, o encobrimento do modo de ser instrumental e disponível desse
mesmo ente, um encobrimento da significância. Por meio do como apofântico, o enunciado
nivela a totalidade dos entes ao status de coisas subsistentes, dotadas de propriedades.
No entanto, na estrutura do enunciado é possível de se encontrar, embora de modo
modificado, as estruturas fundamentais da compreensão através das quais a interpretação se
desenvolve e a articulação do sentido se torna possível. O enunciado fundamenta-se nessa
estruturação da compreensão, embora isso implique em uma modificação da mesma. Assim
sendo, somente ao se resgatar o momento antepredicativo da estrutura do enunciado, ou seja,
somente com base em um retorno à dimensão do como hermenêutico, é possível explicar seu
alcance ontológico. Sem o contato compreensivo, contato primeiro como todo o ente do qual
não se pode separar a referência ao mundo que constitui todo Dasein, não é possível a
concreção do enunciado. O que vemos, então, é que numa espécie de circularidade entre
apofântico e hermenêutico, há sempre uma remissão da linguagem para ambas as estruturas
que lhe constituem. Em outras palavras, conforme afirma Stein,

a linguagem traz em si um duplo elemento, um elemento lógico-formal15 que


manifesta as coisas na linguagem, e o elemento prático de nossa experiência de
mundo anterior à linguagem, mas que não se expressa senão via linguagem, e este
elemento é o como e o logos hermenêutico16.

Considerações finais

O tema da linguagem sempre movimentou, de algum modo, o pensar heideggeriano.


Nos escritos de Martin Heidegger, compreendidos entre o período de 1920 a 1930, a
discussão sobre a linguagem não conta com a mesma importância adquirida no pensamento
do filósofo após a viravolta de seu pensar (Kehre), perspectiva na qual se evidencia a relação
originária entre ser e linguagem. Se tomamos como referência Ser e Tempo (1927), claro é
que o ponto de partida da investigação não é marcado pela perspectiva de ser e linguagem,
antes é a compreensão de ser o factum inevitável do qual Heidegger parte em seu projeto de
retomada da problemática ontológica marcada, como afirma ele, pelo esquecimento de ser.
Mas, ao contrário do que muitos críticos defendem, as escassas ou insuficientes
discussões sobre a linguagem não podem ser consideradas como um descaso por parte do
autor em relação a essa temática. O notável diálogo de Heidegger com o professor japonês,
presente na obra A caminho da linguagem, comprova que a meditação da linguagem e do ser
desde cedo determinaram seu pensamento. Prova disso, são os primeiros escritos
heideggerianos: A doutrina do juízo no psicologismo (1915) e A doutrina das categorias e da
significação em Duns Scotus (1916), tese doutoral e dissertação de mestrado,
respectivamente. Em tais obras, já é possível encontrar discussões sobre “o ser dos entes” e
“uma meditação metafísica sobre a linguagem em sua referência ao ser”. Porém, Heidegger
mesmo assume que, nessa época, eram imperceptíveis ainda para ele quaisquer relações entre
ser e linguagem e, por essa razão, a discussão ficou em segundo plano 17. Referindo-se à
linguagem, em sua grande obra, o filósofo afirma: “Talvez a grande deficiência de Ser e
Tempo seja ter-me apressado demais”18.

15
O como apofântico.
16
STEIN, E. Aproximações sobre Hermenêutica. 2 ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. p. 21.
17
Cf. HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
universitária São Francisco, 2003.
18
HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
universitária São Francisco, 2003. p. 76.
Assim, no período que culmina em Ser e tempo, a relevância de tal temática ganha
sentido, não pela relação originária da linguagem com o ser, mas, sobretudo, pelo que
representa enquanto crítica à tradição filosófica do logos, bem como pela reformulação da
conceitualidade a partir da qual a linguagem foi estruturada no decorrer da história da
filosofia. A não exclusividade de uma tematização que privilegiasse o caráter enunciativo
(apofântico) da linguagem pode ser vista como uma espécie de manobra, por parte de
Heidegger, para fugir do risco sempre eminente de um comprometimento com as abordagens
metafísicas entificadoras do ser. É, nesse sentido, então, que vamos perceber, nas descrições
do autor, um constante exercício de estabelecimento da diferença ontológica em relação à
linguagem, apontando, assim, não somente para o modo enunciativo apofântico de lidar com
as coisas, mas, sobretudo, para um modo hermenêutico de operar vinculado à práxis cotidiana
do ser humano que enquanto ser-no-mundo sempre opera lançando mão da compreensão de
ser. Ou seja, é a descrição da dupla estrutura hermenêutico-apofântica que constitui a
linguagem.

Referências Bibliográficas

BAY, T. A. El lenguaje en el primer Heidegger. México: Fondo de Cultura Econômica, 1998.


HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP:
Editora universitária São Francisco, 2003.
______. Prolegómenos para una historia del concepto de tiempo. Madrid: Alianza Editorial,
2007.
______. Ser e tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2008.
______. Ser y tiempo. Trad. Jorge Eduardo Rivera C. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2009.
REIS, R. R. dos. Observações sobre o papel da linguagem na fenomenologia-hermenêutica de
Ser e Tempo. In: Problemata, João Pessoa, v. 1, n.1, pp. 25-45, 1998.
STEIN, E. Aproximações sobre Hermenêutica. 2 ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2004.

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