Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Otavio Leonidio
Imagem divulgação
Claramente, o propósito do mapa é ilustrar dois fenômenos distintos e
interrelacionados: a) a existência de extratos urbanos de caráter mais ou menos
homogêneo no amplo contexto do espaço urbano parisiense; b) as interconexões
inusitadas ensejadas por uma vivência não-convencional do espaço público urbano –
mais precisamente, a experiência facultada a todas as pessoas que “renunciam, por
um tempo mais ou menos longo, às razões de se deslocar e agir que conhecem nas
suas relações, nos seus trabalhos e diversões, para se deixar levar pelas
solicitações do terreno e encontros correspondentes” (3). Numa palavra, o mapa é a
expressão gráfica da Paris construída mentalmente por uma ou múltiplas “derivas” –
de acordo com a definição situacionista, “a prática de uma viagem passional
extraordinária por meio de uma mudança rápida de ambiências” (4).
Não obstante seu aspecto inusitado, The Naked City não afronta os princípios
básicos da cartografia convencional. Como no caso dos mapas tradicionais, ele
pretende ser uma tradução gráfica mais ou menos fiel de uma determinada
topografia. Em vez da morfologia urbana “real”, contudo, o que ele se propõe a
registrar graficamente é a topografia que se constitui no espaço metal dos
usuários da cidade – uma topografia por certo alternativa, mas nem por isso menos
objetiva (no sentido de afeita ao pensamento objetivo) que a topografia da cidade
“real”. Em larga medida, portanto, The Naked City é fruto do mesmo ímpeto
cientificista que norteia a produção dos mapas tradicionais. E o primeiro a
admitir isso é o próprio Debord. Em suas palavras, derivas e suas representações
cartográficas integram “o estudo das leis exatas e dos efeitos específicos dos
ambientes geográficos, conscientemente organizados ou não, sobre as emoções e
comportamentos dos indivíduos” (5).
Mas, acima de tudo, o aspecto convencional de The Naked City se revela naquilo que
constitui sua mais flagrante contradição: o fato de o princípio que, em tese, rege
a ocupação não-convencional do espaço da cidade não se refletir, ou desdobrar, no
próprio procedimento de elaboração do mapa, quer dizer no modo como se dá a
ocupação do espaço gráfico. Com efeito, se há algo que Debord não fez ao elaborar
seu mapa foi seguir o modelo da deriva, vale dizer, colocar em questão – para
lançar mão de sua própria terminologia – suas “razões de se deslocar e agir”.
Muito ao contrário, seus movimentos e ações foram guiados por um modelo
preestabelecido, e em tudo convencional, de organização espacial – como destaquei
acima, herdado da morfologia clássica.
II
Um exemplo ilustre desse tipo de ação é “Following Piece”, desempenhada nas ruas
de Nova York por Vito Acconci (Nova York, 1940), ao longo de todo o mês de outubro
de 1969. À primeira vista, “Walking piece” se assemelha muito a uma deriva
situacionista. Acconci descreveu assim sua performance:
“A cada dia eu escolho aleatoriamente uma pessoa andando na rua. Eu sigo uma
pessoa diferente todos os dias; Eu me mantenho seguindo-a até que aquela
pessoa entre em um espaço privado (casa, escritório, etc) onde eu não posso
entrar” (11).
“9:12 AM; Em frente à porta, 112 Christopher St./ Homem vestindo terno preto;
ele caminha para oeste na rua Christopher, do lado sul da rua./ Às 9:17 AM ele
entra em carro estacionado em frente à agência do correio, Christopher esquina
com Greenwich, e vai embora dirigindo” (12).
Já no dia 12 de outubro, Acconci anota apenas: “Eu não segui ninguém” (13).
III
Sobre esse dispositivo estético, é preciso dizer apenas que jamais foi concebido
de modo a representar, de modo mais ou menos fiel, os sítios aos quais, de algum
modo, se refere. Com efeito, em vez de buscar representar um sítio ou lugar, os
sites/non-sites de Smithson pretendem desconstruir as próprias noções de sítio e
de lugar. Numa entrevista dos anos 1970, Smithson deixou claro o propósito
corrosivo de suas intervenções: “Embora o non-site designe o site”, ele declarou,
“o site ele mesmo é aberto, incontido e em constante mudança” (14).
“Ao desenhar um diagrama, a planta baixa de uma casa, o mapa indicando a rua
que leva até um sítio ou um mapa topográfico, desenha-se uma ‘imagem
bidimensional lógica’. Uma imagem lógica difere de uma imagem natural ou
realista no sentido de que ela raramente se parece com a coisa que ela
representa. Trata-se de uma analogia ou metáfora bidimensional – A é Z. [...]
Uma intuição lógica pode se desenvolver em um ‘sentido inteiramente novo de
metáfora’, livre de qualquer conteúdo expressivo natural ou realista. Entre o
sitio real [actual site] no Pine Barrens e O Não-Sítio ele mesmo existe um
espaço de significado metafórico. Pode ser que ‘viajar’ nesse espaço seja uma
grande metáfora. Tudo que existe entre os dois sítios pode se tornar um
material físico metafórico desprovido de significados naturais e conotações
realistas. Digamos que se essa pessoa decide ir ao sítio do Não-Sítio, ela
empreende uma viagem fictícia. A ‘viagem’ torna-se inventada, criada,
artificial; nesse sentido, pode-se chamá-la de não-viagem do Não-Sítio até o
sítio”. (16).
O que cabe enfatizar aqui, fica claro, não é simplesmente o caráter abstrato dos
mapas de Smithson, mas antes a evidência de que em sua origem está uma objeção
essencial à noção de espaço “real”. Para Smithson, de fato, mapas e demais
representações do espaço físico, não importa se realistas ou absurdas, não eram
mais “ficcionais” do que o espaço físico ele mesmo. Nesse sentido, mais do que
contrapor-se ao princípio de homologia formal que rege a elaboração dos mapas
convencionais, os mapas de Smithson se caracterizam pela intenção de dessituar
seus usuários, quer dizer fazer com que literalmente se percam no improvável
desvão que se abre entre sites e non-sites.
Que Smithson era capaz de vivenciar o mundo como se este fosse um gigantesco mapa
(um mapa em escala 1:1) é atestado pelo relato de seu famoso tour pelos
“Monumentos de Passaic”. Em suas palavras, essa “viagem fictícia” o havia lançado
numa espacialidade em tudo absurda – uma “mise-en-scène anti-romântica” feita de
“direções deslocadas”, “ruínas ao reverso” e “um monumental estacionamento que
dividia a cidade ao meio, transformando-a em um espelho e um reflexo”. Mais do que
isso, Smithson percebeu que a cidade, ela mesma, era uma estrutura espelhada que
“constantemente trocava de lugar com seu reflexo”, de modo que era impossível
dizer “de que lado do espelho uma pessoa se encontrava” (17) Em suma, Smithson
afirmava, aquilo que ele havia visitado não era a Passaic real, senão “um planeta
que tinha o mapa de Passaic desenhado sobre sua superfície” – um “mapa sideral
marcado com ‘linhas’ do tamanho de ruas, e praças e quadras do tamanho de
edificações. A qualquer momento meus pés podiam perfurar o chão de papelão” (18).
O relato dá bem a medida do modo como Smithson se deslocava e agia espaço do
mundo. Talvez por viver constantemente mergulhado nesse grande mapa ficcional,
Smithson jamais colocou em questão suas razões de se deslocar e agir. Sua grande
contribuição à estética minimalista talvez seja esta: retirar a ênfase dada a
motivos e justificativas e colocá-la nas noções, por regra naturalizadas, de
movimento e ação. Significativamente, Smithson sempre viu com enorme desconfiança
a noção de ação – em especial, a noção de ação engajada.
Uma discussão entre Smithson e seu colega Allan Kaprow (Atlantic City,
1927-Encinitas, 2006), publicada em 1967, expõe esse aspecto essencial do
pensamento de Smithson. Confrontado pela afirmação de Kaprow de que “o conceito de
museu é completamente irrelevante” (em contraste com o ambiente sócio-cultural
mais amplo e complexo à sua volta) Smithson retruca que “a nulidade ensejada pelo
museu é na verdade um de seus maiores ativos [assets]”. Aliás, Smithson afirmava,
uma das maiores virtudes dos museus era precisamente seu aspecto “aniquilador
[nullifying] no que diz respeito à ação” (19).
A extensão do desprezo que Smithson sempre nutriu pela noção de ação pode ser
idiossincrática; ela reflete em todo caso o modo como os artistas formados na
tradição minimalista lidavam com esse tema. Nessa chave, o que as separa as ações
situacionistas – em especial, a deriva – e as diversas formas de performatividade
minimalista e pós-minimalista não é, me parece, o fato de que “a deriva
situacionista não pretendia ser vista com uma atividade propriamente artística”
(20) O que as separa é o ideal essencialmente construtivo das ações
situacionistas, o fato de terem sempre sido pensadas e desempenhadas (em contraste
com as não-açõesminimalistas e pós-minimalistas) como ações sócio-transformadoras.
Mais do que diferentes conceitos de arte, a divergência acima aponta para uma
contradição mais essencial – a que opõe as temporalidades subjacentes aos dois
modelos aqui delineados (i.e., situacionismo e minimalismo). Moldadas pelo
pensamento Marxista, as ações de Debord são infalivelmente pautadas por uma
concepção tipicamente historicista da passagem do tempo, ou seja, por uma
abordagem que vincula a ação humana ao desenvolvimento do que Reinhart Koselleck
denominou o singular coletivo “História”, vale dizer uma história geral ou global
que compreende e correlaciona o que até então era percebido como um sem-número de
histórias individuais mais ou menos auto-suficientes. Dito de outro modo, o que a
emergência (em fins do século 18) desse novo regime temporal implica é que, em
contraste com concepções prévias da transição temporal, a importância e o valor de
toda e qualquer ação, e dos eventos por esta engendrados, se tornam relativos e
precários – vale dizer, passam a ser compreendidos e julgados em função do lugar
relativo que ocupam no, e do papel que desempenham para, o desenvolvimento da
“História” (21)
“Nós pensamos que o mundo deve ser mudado. Nós queremos a mudança mais
libertadora da sociedade e da vida nas quais nos encontramos confinados. Nós
sabemos que essa mudança é possível através de ações apropriadas” (22).
A noção de “ação apropriada” é essencial para Debord. Ele a concebe como a ação
que resulta de uma avaliação racional e judiciosa (científica, pode-se dizer) das
condições históricas atuais, vale dizer do estágio atual do desenvolvimento da
“História”. A principal crítica de Debord ao Surrealismo reflete essa concepção de
“ação apropriada”. Segundo Debord, mais do que a opção pelo cinismo e pelo humor,
o grande erro do surrealismo fora apostar na ideia de “uma riqueza infinita do
inconsciente”. Donde a conclusão: “Nós precisamos tornar o mundo mais racional – o
primeiro passo necessário é torna-lo mais excitante, fascinante, satisfatório”
(23). Esta, precisamente, a sabedoria e a força da “vanguarda coletiva”
representada pelo situacionismo:
Também nesse sentido The Naked City é um mapa paradigmático. Pois, como enfatiza
Debord, esse mapa não é uma representação arquetípica da cidade situacionista (a
cidade desconstruída e reconstruída por meio da prática da deriva), senão uma
versão provisória ou precária sua. De fato, o que está ali representado não é
ainda uma representação acabada, digamos, da cidade situacionista, mas uma versão
incipiente sua. E a justificativa para essa precariedade advém do reconhecimento,
por parte de Debord, de que tudo o que as lições retiradas das derivas até o
presente momentopodiam ensejar era a elaboração de
Nesse sentido, o que difere os mapas produzidos por Smithson de um mapa como The
Naked City não é apenas sua espacialidade abstrata, mas acima de tudo sua
temporalidade nitidamente absurda, desavergonhadamente ficcional e essencialmente
anti-historicista. Significativamente, em vez de conexões rápidas e inusitadas
entre unidade urbanas de caráter mais ou menos estático (28), os mapas de Smithson
aludem a coexistências espaciais absurdas e paradoxais, características de mundos
fictícios constituídos por “multiplicações infinitas” e “identidades duplas”,
“replicas” e “reflexos”, “ilusões” e “oscilações” (29).
notas
1
DEBORD, Guy. Teoria da deriva. Tradução Carlos Roberto Monteiro de Andrade. Óculum,
Campinas, n. 4, 1993, p. 26-29.
Idem, ibidem.
STELLA, Frank. Questions to Stella and Judd. In BATTCOCK, Gregory (Org.). Minimal Art: A
Critical Anthology. Nova York, E. P. Dutton, 1968. Originalmente publicado em Art News,
set. 1966.
KRAUSS, Rosalind. Sense and Sensibility – Reflection on Post ‘60s Sculpture. Art Forum,
nov. 1973 <https://artforum.com/inprint/issue=197309&id=34257>. Acesso: março 2015.
Idem, ibidem.
10
11
ACCONCI, Vito. Diary of a body (1969-1973). Milão, Charta, 2006, p. 76. Tradução do
autor.
12
13
Idem, ibidem.
14
SMITHSON, Robert (1972). Interview with Robert Smithson for The Archives of American Art /
Smithsonian Institution. In: FLAM, Jack (Org.) Robert Smithson. The Collected Writings.
Berkeley, Los Angeles/London, University of California Press, 1996, p. 295.
15
“The nonsite exists as a kind of deep three dimensional abstract map that points to a
specific site on the surface of the earth. And that's designated by a kind of mapping
procedure… these places are not destinations; they kind of [are] backwaters or fringe
areas”. Apud: http://www.robertsmithson.com/ex_events/mapping_dislocations01.htm Acesso:
Março, 2015.
16
SMITHSON, Robert (1968). A Provisional Theory of Non-Sites. In FLAM, Jack (Org.) Robert
Smithson. The Collected Writings. Berkeley, Los Angeles/London, University of California
Press, 1996, p. 364. Itálicos de Smithson.
17
18
19
20
21
Ver entre outros: KOSELLECK, Reinhart. ’Space of Experience’ and ‘Horizon of Expectation’:
two historical categories. In Futures past: On the semantics of historical times. Nova
York, Columbia University Press, 2004.
22
23
Idem, ibidem.
24
Idem, ibidem.
25
26
27
28
29
30
BORGES, Jorge Luis. O jardim dos caminhos que se bifurcam. In: Ficções. São Paulo, Globo,
1969.
sobre o autor