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PREFÁCIO

Este dicionário apresenta-se, antes de tudo, como um instrumento de trabalho


para todos aqueles que, a cada dia mais numerosos, trabalham com as produções
verbais de uma perspectiva da análise do discurso. Mas, ao publicá-lo, queremos
igualmente assinalar a emergência de uma disciplina e marcar de alguma forma o
território de um campo de pesquisas que é cada vez mais visível na paisagem das
ciências humanas e sociais.
Após um período, nos anos 60-70, durante o qual a Lingüística, sob o im-
pulso do estruturalismo e do gerativismo, renovou os estudos filológicos e
gramaticais com novas hipóteses sobre o funcionamento da linguagem e métodos
novos de análise dos sistemas lingüísticos, essa disciplina foi problematizada por
múltiplas contribuições: a psicolingüística, a sociolingüística, a pragmática, a
etnografia da comunicação, a etnometodologia, a psicossociologia da linguagem...
Do mesmo modo, é plenamente justificado que se tenha mudado a denominação
da disciplina, que, há algum tempo, pelo menos na França, tem passado a chamar-
se “ciências da linguagem”.
No interior das ciências da linguagem, a análise do discurso não nasceu de
um ato fundador, mas como resultado da convergência progressiva de movimen-
tos com pressupostos extremamente diferentes, surgidos nos anos 60 na Europa e
nos Estados Unidos; eles se desenvolvem em torno do estudo de produções
transfrásticas, orais ou escritas, cuja significação social se busca compreender. Uma
grande parte dessas pesquisas foi desenvolvida em domínios empíricos, o que fez
com que cada um elaborasse uma terminologia própria, ignorando aquilo que se
fazia nos domínios vizinhos. A partir dos anos 80, e isso se vai acentuar considera-
velmente nos anos 90, produziu-se uma descompartimentalização generalizada
entre as diferentes correntes teóricas que tomaram o “discurso” como objeto. A
publicação deste dicionário consagra esse fenômeno.
A França foi um dos maiores centros de desenvolvimento da análise do discur-
so. Nos anos 60, os trabalhos da “Escola francesa” e as reflexões de Michel Foucault
em A arqueologia do saber produziram uma imagem muito forte das pesquisas
francófonas, mas isso não aconteceu sem prejuízos, já que suas problemáticas tam-
bém contribuíram para ocultar a grande diversidade de trabalhos realizados na

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França sobre corpora e com desenvolvimentos muito diferentes. Hoje, a análise do
discurso tornou-se internacional, mas a difusão cada vez mais vasta dos trabalhos,
o contato cada vez mais forte entre correntes que antes se ignoravam não implicam
uniformidade das problemáticas e das terminologias. A internacionalização vai
principalmente no sentido da constituição de redes (os adeptos de tal ou tal forma de
análise do discurso se repartem em um grande número de países).
Em matéria de pesquisa, não se pode raciocinar como se se tratasse de uniformi-
zar pesos e medidas. O problema não é somente de terminologia. Ele diz respeito,
também, aos pressupostos das pesquisas. As pesquisas em análise do discurso não se
desenvolvem sobre o mesmo solo na Europa continental, e mais particularmente na
França, e em outras regiões do mundo. Ao mesmo tempo, a análise do discurso se apóia
em uma longa tradição de estudos de textos, na qual a retórica, a hermenêutica literária
ou religiosa, a filologia deixaram traços profundos, e sobre uma história, muito mais
curta, das ciências humanas e sociais, da psicanálise ou da filosofia. O desenvolvimento
das pesquisas em análise do discurso tira grande proveito da confrontação de
investigações que se baseiam em universos teóricos diversos.
Nossa intenção é, então, fazer deste dicionário a expressão de um campo de
pesquisas apreendido em sua diversidade, e não apenas a expressão da doutrina de
seus autores, como é o caso de outras obras. Mas não podemos, de maneira nenhu-
ma, satisfazer a todos, oferecer uma paisagem conceitual caótica. Por isso, nos esfor-
çamos em definir um caminho que nos pareceu realista. Tomamos em consideração
diferentes domínios existentes no campo dos estudos do discurso e recorremos a
especialistas, constituídos em equipe, que os estudam. É evidente que certos termos
são próprios de um ou outro domínio (“minimizador”; “intrusão”...) e que outros
são comuns a vários domínios, mas com sentidos diferentes (“arquivo”; “captação”...)
e que outros, enfim, podem ser considerados como “transversais” (“discurso”;
“enunciado”; “gênero”...). Também para evitar uma dispersão muito grande ou
redundâncias, foi necessário fazer uma divisão equilibrada, focalizando os termos
“transversais” e, em alguns momentos, inserir, em um mesmo verbete, diferentes
definições. Além disso, para aqueles – raros – verbetes que nem os responsáveis pelo
dicionário nem as equipes associadas ao projeto puderam ou quiseram tratar,
recorremos a pesquisadores de disciplinas vizinhas.
Quais foram nossas opções no que diz respeito à nomenclatura e ao tratamento
das definições? Para definir uma nomenclatura que seja útil àqueles que desenvolvem
pesquisas em análise do discurso e àqueles que lêem as publicações dessa área, pedimos
às diferentes equipes que nos indicassem os termos que lhes pareciam deverem ser objeto
de um verbete. Por outro lado, como os dois responsáveis pelo dicionário trabalham a
partir de pressupostos e com objetos muito diferentes, o estabelecimento da

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nomenclatura e as múltiplas decisões necessárias foram objeto de uma negociação. Desse
modo, evitamos toda definição a priori, de maneira a propor uma obra que não seja
monolítica e que reflita toda a diversidade de um campo de pesquisa.
O estabelecimento de tal nomenclatura coloca problemas consideráveis, sem
dúvida mais delicados quando se trata de resolvê-los em outra instância. A análise
do discurso é, com efeito, pluridisciplinar, já que, de um lado, o discurso integra
dimensões sociológicas, psicológicas, antropológicas... e, de outro lado, está no
coração dessas mesmas disciplinas... Aliás, isso coloca problemas de relações com-
plexos com essas outras disciplinas que trabalham sobre o discurso. A questão das
fronteiras – ou de sua ausência – é fonte de discussões permanentes: retórica ou
teoria da argumentação, sociolingüística, lingüística textual, análise das conversa-
ções, estilística... Se pretendêssemos introduzir neste dicionário a totalidade dos
termos que um leitor pode encontrar em um artigo ou em um livro que trate do
discurso, seria necessário mobilizar a quase totalidade do campo das ciências huma-
nas e sociais. Foi necessário, então, fazer escolhas, que foram guiadas por duas
preocupações: de um lado, privilegiar os termos que os dicionários ou as enciclopé-
dias já existentes ignoram ou marginalizam; de outro, incluir os termos indispensá-
veis para as pesquisas em análise do discurso. Também se encontram neste livro dois
subconjuntos de termos: o primeiro – de longe o mais importante – constituído por
termos surgidos nessas duas últimas décadas nos trabalhos sobre o discurso (“turno
de fala”; “formação discursiva”; “ação linguageira”; “intradiscurso” etc.); o outro,
constituído por termos que aparecem nas problemáticas ou disciplinas vizinhas
(“anáfora”; “reformulação”; “tropo”; “argumento”...), mas tratados do ponto de
vista da análise do discurso e não da maneira como são abordados em um dicionário
da lingüística, da retórica, da sociologia... Ademais, não consideramos verbetes
relacionados aos tipos de corpora como a mídia, o discurso religioso ou escolar, nem
aos gêneros de discurso como o panfleto político, a consulta médica, o jornal televisivo.
Desse modo, face à impossibilidade de dar conta de uma nomenclatura que
pretendesse cobrir a infinita diversidade das pesquisas empíricas, quisemos elaborar
uma obra de um volume razoável que pudesse oferecer os vários pontos de vista
teóricos e metodológicos.
Essas escolhas conferem uma característica importante a este dicionário: salvo
exceções, ele registra a terminologia em uso nos trabalhos francófonos de análise do
discurso, mesmo que um grande número desses termos sejam traduzidos ou
adaptados de outras línguas, do inglês em particular, para aquilo que diz respeito à
análise conversacional. Ocorre, com efeito, que os países francófonos – mas tam-
bém, e cada vez mais, um certo número de países de línguas românicas, hispanófonos
e lusófonos em particular – estão particularmente implicados nas pesquisas desen-

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volvidas em análise do discurso: basta observar a riqueza e a diversidade dos traba-
lhos que são feitos no espaço da Suíça românica. Parece-nos, em todo caso, que o
público que se interessa pelas pesquisas inspiradas pela análise do discurso francófona
tem todo o interesse em dispor de uma terminologia em francês.
Quanto ao tratamento das definições, tivemos que resolver um outro proble-
ma. É raro que no domínio do discurso as noções sejam unívocas. Em geral, há, para
um mesmo termo, várias acepções, e é muito difícil deixá-las claras para os que não
têm experiência nesse tipo de pesquisa. Como, então, fazer aparecerem várias
definições sem cair em uma longa exposição das diferentes teorias nas quais elas se
inscrevem, sem fazer do dicionário uma rede inextrincável? Uma outra solução seria
proceder a uma simples recensão das acepções, mas se ela não fosse colocada em
perspectiva, em nada esclareceria ao leitor. Por isso, optamos por uma exposição dos
diferentes empregos dos termos referindo-nos aos diferentes autores que os definiram,
sem, no entanto, deixar de colocar essas noções em perspectiva. Isso não impede que
se encontrem certos artigos que privilegiem claramente a perspectiva teórica e outros
que insistam, sobretudo, na recensão dos empregos.
Por outro lado, um sistema de remissões internas permite ao leitor circular
melhor entre todas as definições. Essas remissões operam em dois níveis. No interior
dos artigos, um asterisco colocado no final de um ou de outro termo indica que ele é
objeto de um verbete no dicionário. Esse asterisco é regularmente colocado no
primeiro termo quando se trata de um grupo de palavras. Assim, para “ato de
linguagem”, o asterisco é colocado sobre “ato*”, conforme a ordem alfabética segui-
da pelo dicionário. Essa decisão tem inconvenientes, certamente, mas não mais do
que se tivéssemos tomado a decisão contrária. Além disso, para não complicar a
tipografia, esse asterisco não é repetido no interior do mesmo verbete, e é assinalado
apenas na primeira ocorrência. O recurso ao asterisco não é, entretanto, sistemático:
não se coloca o asterisco a cada ocorrência de termos como “discurso” ou “texto”, por
exemplo, que ocorrem constantemente. No final de cada artigo, em negrito, são
indicados outros verbetes que permitem enriquecer a leitura. Não se trata de todos
os verbetes suscetíveis de esclarecer o verbete em questão, mas somente de uma
seleção de artigos realmente complementares.
Enfim, neste gênero de obra, a bibliografia é fonte de dificuldades. Nós desisti-
mos de colocar ao final de cada artigo uma bibliografia de leituras sugeridas; elas
estão inseridas no interior do texto, segundo as convenções atualmente dominantes.
Essas referências desempenham dois papéis que se complementam: algumas assinalam
uma publicação que apóia as propostas do redator do artigo; outras indicam a
referência de uma citação. Uma bibliografia detalhada, no final do livro, reúne todas
as indicações bibliográficas referidas no interior dos artigos.

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Para concluir, gostaríamos de agradecer a todos aqueles que aceitaram colabo-
rar nesta obra, submetendo-se a coerções às vezes pouco agradáveis. Recebemos
sempre a melhor acolhida de sua parte e eles demonstraram uma enorme paciência.
Cremos ver nisso o signo de que eles têm consciência de que esta empreitada vai
além da simples produção de uma obra útil, que ela consagra a emergência de um
novo campo de saber, o resultado de mais de quatro décadas de esforços por
muito tempo deixados na obscuridade, para fazer prevalecer percursos que, fre-
qüentemente, os partidários das disciplinas mais antigas consideraram marginais
ou supérfluos. Evidentemente, é muito mais difícil justificar a existência de pesqui-
sas sobre o discurso do que sobre a linguagem, a literatura, a psique, a sociedade,
a história... Mas as pesquisas em análise do discurso não são fruto de alguns
espíritos originais, elas derivam de uma transformação profunda da relação que
nossa sociedade estabelece com seus enunciados, presentes ou passados. Uma tal
empreitada está ainda em seu início, mas, pela primeira vez na história, é a totalidade
das produções verbais, em sua multiplicidade, que pode se transformar em objeto
de estudo: das trocas mais cotidianas aos enunciados mais institucionais, passando
pelas produções dos meios de comunicação de massa. Que o homem é um ser de
linguagem, eis algo que não nos cansamos de repetir há muito tempo; que ele seja
um homem de discurso, eis uma inflexão cuja dimensão ainda é impossível
mensurar, mas que toca em algo de essencial.

Patrick CHARAUDEAU / Dominique MAINGUENEAU


(M. R. G.)

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