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O AUTO DA BARCA DO INFERNO - FRAGMENTO

No presente auto, se imagina que, no momento em que acabamos de expirar, chegamos subitamente
a um rio que, por força, devemos cruzar em uma das duas barcas que naquele porto estão. Uma delas
leva ao Paraíso; a outra, ao Inferno. Cada barca tem um barqueiro na proa: a do Paraíso, um anjo; a
do Inferno, um diabo e seu companheiro.

DIABO – Pois, entrai! Eu tocarei FRADE – Não ficou isso DIABO – No inferno, entra cá.
E faremos um festão. acertado... PARVO – No inferno? Sai pra lá!
(olhando para a Moça que DIABO – Pois já está dada a (insultando o Diabo)
acompanha o Frade) sentença! (conduz o Frade à Hu! Hu! Barca do cornudo!
Essa dama, ela é vossa? barca) O que é que há seu beiçudo?!
FRADE – Por minha a tenho eu Seu cara de carrapato!
e sempre a tive de meu. Vem um PARVO, isto é, um Hu! Hu Caga no sapato,
DIABO – Fizestes bem, que é um homem tolo, sem malícia. filho de uma mentirosa!
encanto! Aproxima-se da barca do Inferno Tua mulher é tinhosa
E ninguém vos censurava e diz ao DIABO: e há de parir um sapo
no vosso convento santo? grudado no guardanapo!
FRADE – Pois se eles fazem outro PARVO – Hou, hou, da barca! (gargalhando)
tanto... DIABO – Quem é? Excomungado nas igrejas,
DIABO – Que coisa tão preciosa! PARVO – Sou eu. Esta barca é seu burrão, cornudo sejas!
(fazendo uma reverência irônica) nossa? Toma o pão que te caiu,
Entrai, padre reverendo! DIABO – De quem? a mulher que te fugiu,
FRADE – Para onde levais a PARVO – Dos tolos. o demo que te pariu!
gente? DIABO – É vossa. Entrai. Hu! Hu! Hu Cara amarela!
DIABO – Para aquele fogo PARVO – Como? De pulo ou de Hu! Hu! Hu! Caga na vela!
ardente voo? (pulando e voando)
Que não temeste vivendo. Oh! Pesar de meu avô! o PARVO se dirige à barca do
FRADE – Juro a Deus que não te Enfim, eu adoeci Anjo:
entendo! e por azar... eu morri!
(apontando para a roupa) DIABO – De que morreste? PARVO – Ó da barca!
E este hábito, não me vale? PARVO – De quê? ANJO – O que queres?
DIABO – Ó gentil padre Acho que de caganeira. PARVO – Quereis me passar
mundano, DIABO – De quê? além?
a Belzebu vos encomendo! PARVO – De caga-merdeira! ANJO – Quem és tu?
FRADE – (surpreso) DIABO – Entra, põe o pé na PARVO – Não sou ninguém.
Corpo de Deus consagrado! madeira. (aponta pra ponte) ANJO – Tu passarás, se quiseres,
Pela fé de Jesus Cristo PARVO – Ah, não! A barca poderá porque em todos teus fazeres
Que eu não posso entender isto! virar! por malícia não erraste.
Eu hei de ser condenado? DIABO – Entra, seu tolo, Tua simplicidade basta
Um padre apaixonado embarca! para gozar dos prazeres.
e tanto dado à virtude! Ou perdemos a maré! Mas espera por aí,
Que Deus me dê em saúde! PARVO – Espera, espera! veremos se vem alguém,
DIABO – Mas chega de fazer (paciente) merecedor de tal bem,
hora! E onde vamos nos meter? que deva entrar aqui também.
Embarcai e partiremos. DIABO – No porto de Lúcifer.
Tomareis um par de remos... PARVO – O quê?

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