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''Haverá seres humanos

que rião são honiens?


A propósito da teoria da personalidade
de Singer e Hõrster"

Marta de Mendonça*

1. INTRODUÇÃO

A tradução portugu esa da obra de Peter Singcr intitulada Practical


Ethics' foi acolhida com utn entusiasmo pouco com um para uma obra de
Filosofia. Para os gue, por uma ou outra via, saudaram a sua reccpção em
Portugal, estamos em presença de uma das mentes mais lúcídas e mais
criativas da reílcxão contemporânea no âmbito da Ética - e as argumen -
tações apresentadas nesta obra são consideradas pouco menos do que
definitivas e definitivamente superadqras de modelos éticos mais tradi-
cionais. Mereceram destaque a coerência e o rigor lógico dos raci ocínios '\ 1
de Singer e não foram questionados, ou foram mesmo declarados inques- · •
tionáveís, os seus argumentos.
De facto, não há dúvida, sobretudo para quem se aproxima tio
discurso bioético e da sua tradução nos meios extra-académicos, que
muitas das teses propostas por Singcr e alguns dos argumento s por ele

-- ··-·-- --
,. FCSI-I/UNL.
1
Cambridge, Ca111bridgeU11iversityPress, 1979, 2nd ed. 1993 (lrnduçfio ()Qrlugue-
sa: Ética Prática, Lisboa, Gradiva, 2000, 2." ed. 2002). A pari.ir de agorn EP, St"glliuo du
p,íginr1 da tradução portuguesa. No enlamo, nalguns casos ponmais não se segue111 as
<lpções de tradução ad(1ptadas pela trnduçiio portuguesa.
J72 / Revista Portuguesa de Bio6ticn / (n." 2) I Setembro 2007 Revista Portugue.sa de lliuética / (n.º 2) / Selemhrn 2007 / 173

apresentados adquiriram um certo direito de cidadania e. se prop?e~ 2. O ALCANCE DOS ARGUMENTOS


hoje, em ambientes alargados, como evidências, que <lcvenam subsl1LU1r
outras (agora declaradas pseudo evidências) anteriores. · Antes ainda de entrar na análise do argumento central, vale a pena
Menos conhecida entre nós é a obra eleNorbert Hêirster Abtreibung destacar o seguinte: globalmente, os argumentos, tanto de Singer como
im siikularen Staat2, já que não se encontra traduzida para português. de Hõrster, desenvolvem-se no interior do modelo consequencialista ou
Neste texto Horster retoma as teses de Singer, que aceita sem crítica. utilitarista que decidiram adoptar como próprio. Neste sentido, o valor da
Não será p~ssívcl, neste contexto, considerar as diferenças entre os dois maioria das argumentações está condicionado pelo valor do próprio modelo
autores ou os aspectos que um teoriza com mais precisão do que o outro. ético em que se inscrevem e não se sustenta fora dele. Contudo, nem um
Aliás, ;Jara os objectivos da presente análise, essas diferenças não são nem outro se detêm a fundamentar em bases sólidas o próprio modelo
re.levantcs e os argumentos de um e de outro são similares 3• ético utilítarista. Daí que uma crítica mais radical às teses da É'tica Prá-
Entre os enunciados que suportam a argumentação desenvolvida na tica ou do Abtre.ibung im siikularen Staat teria de passar por discutir a
Ética Prática, destaca-se a tese segundo a qual não é aceitável, e deve ser verosimilhança do próprio modelo.
desmasc,..arada, a conv.icção, praticamente generalizada, que afi_r
.r~ia o .ca- A observação, contudo, é pertinente, porque permite redimensionar
rácter sagrado e inviolável da vida humana. Não se trata do un1co pilar o alcance das teses propostas nestas obras. Admitindo o modelo utilita-
\ da argumentação de Singer (e é mesmo questionável que se trate de uma
rista adoptado, as argumentações são apresentadas como demonstrativas
tese última ou não derivada), já que, como se verá de passagem, grande ou irrecusáveis, mas não o serão se o modelo for posto em causa. Não
parte ·da argumentação do filósofo australiano está em estreí~a dependên- se trata de uma denúncia ou de uma crítica externa iirelevante ou gra-
cia do ponto de vista consequencialista ou utifüarista a pmtir do qual se tuita. É o próprio Singer que o, afirma em momentos diversos da sua
propõe refundar a Ética. Trata-se, contudo, de uma tese cenu·al do seu obra. Assim, a propósito dá adopção, sem a necessária fundamentação,
texto e que constitui uma condição de possibilidade de muitas das pro- do utilitarismo, escreve: "Proponho que o aspccto universal da ética pro-
postas concretas que apresenta. Da capacidade que demonstre para ~u~- porciona de facto uma razão convincente, embora não conclusiva, para
tcntá-la de modo credível depende, por isso, a verdade ou a verosnru- adoptarmos, em termos gerais, uma posição utilitarista"4. A propósito do
lbança de quase tudo o que afirma. . alcance das teses que defende, adverte: "( ... )este livro pode ser encarado
O objectivo deste texto é analisar, de forma necessmwmente breve, como uma tentativa para mostrar como um utilitarista coerente abordaria
a argume11tação em que Singer e Horster fundamentam esta tese: preten- diversos problemas controversos" 5• Por último, e para citar apenas mais
- ~/ de-se não só testar a coerência lógica de alguns dos argumentos que um exemplo, na primeira página do capítulo I, intitulado "Sobre a ética",
li apresentam como explicitar os pres~upostos, sobretudo ontológicos e ep~s· adverte também que o livro é por vezes dogmático por não dispor de
~s, em que se apoiam. E verdade _q'.1eestes p~·essupostos nao espaço suficiente para considerar todas as possíveis concepções da ética
são habitualmente enunciados de forma explicita, mas nao é menos ver- que se opõem aquela que defende, pelo que nesse primeiro capítulo são
dade que, sem eles, a tese não se pode considerar provada, pelo que apresentados precisamente os pressupostos em que assentél todo o livni.
depende deles. Em todo o caso, não acontece que, ao longo de toda a obra, o
próprío Singer tenha em conta este condicionamento metodológico para
que adverte inicialmente o leitor. Em diversas ocasiões, analisa as objec-
ções contrárias à sua tese, exclusivamente a partir dos pressupostos e dos
argumenlos utilitaristas, mas concluí sem a necessáría reserva de que se

2 Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991. A pm1irde agora Abtreibung, seguido da


~M. . . . . • EP, p. 28. Cf. também, por exemplo, Abtreibung, p, 70.
i Referem-se, por isso, indiferentcrnenle os argumentos de um e de outro, embo1a ' EP, p. 3 l.
de dê preferência ao texto de Siuger por ser mais .icessfvel. 6
Cf. EP, p. 17.
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Marta de Mendonça / "Haverá ...
l(evista Portuguesa de Bioética / (11." 2) / Setemliro 2007 / 175
move dentro cio modelo utilitaríst.a. A título de exemplo, refiram-se apenas
pressuposto de que todos os membros da nossa espécie têm, apenas por
dois casos particularmente claros.
serem membros da nossa espécie, qualquer valor distintivo ou inerente
·No capítulo 4, intitulado "Qual é o mal de matar?", analisa os
gue os coloque acima dos membros de outras espécies" 9•
argumentos utilitaristas acerca do valor da vida dos seres pessoais, men -
. A afirmação é clara : não se trata só Je duvít.lar que haja bons
cionando explicitamente a filiação utilitarista dos argumentos considera-
mol!vos para pensar que a espécie humana tem um valor inato próprio.
Jos, mas conclui generalizando:
Trata-se de rejeitar explicitamente os pressupostos em que se poderia
"Vimos que pode haver quatro razões possíveis para defender que a
fundamentar semelhante enunciado. Mas, naturalmente, o repúdio de
vida de uma pessoa possui um certo valor que a distingue da vida de um
determinados pres supostos obriga sempre a aceitar outros pressupostos
ser meramente provido de sensação: a preocupação do uúlitarismo clássico
ou a aceitar ós pressupostos opostos. Contrariamente ao que . poderia
com os efeitos que uma morte pode provocar nas outras pessoas; a preo-
fazer pensar o enunciado negativo de Singcr, o repúdio conscient e de
cupação do utilitarismo das preferências com a frustração dos d~sejos e dos
determinados eressupostos não o leva a raciocinar sem pressupostos,
planos para o futuro da vítima; o argumento de que a capacidade de_s~
leva-o a partir de outros pressupostos, a pressupor outra coisa. No caso
conceber a si próprio como algo que existe ao longo do tempo consl!tm
presente leva-o a aceitar que "as diferenças entre nós e os outros anirnaís
uma condição necessária do direito à vida; e o respeito pela autonomia" 7 •
são Jifcrcrn,:a&de grau, e não de categoria"'º.
No capítulo 6, ao enunciar os aspcctos que há que ter em conta
A estratégia argumentativa de Singer poderia esquematicamente
para resolver a questão do aborto, escreve: resumir-se nas seguintes etapas:
"Ao contrário da opinião comum de que a questão moral acerca do
aborto é um dilema sem soluçijo, rnostrarei que, pelo menos nos limites a) O autor pretende pôr em causa uma tese relativamente consen-
da ética nâo religiosa, existe uma resposta cl,u·a e que quc.m adapta uma sual, que considera insuficientemente fundat.la: a tese que afirma
perspectiva diferente está, pura e sm1p · j esment~, enganauo
,I "8
. . que a vi<la humana é sagrada ou inviolável. Pôr em causa esta
làmbém neste caso, a análise, dese11volv1dadentro do quadro ut1- tese significa, segundo Singer , denunciar que este enunciado
Jitarista, é agora extrapolada para "os limites da ética não religiosa", assenta .numa discriminação inaceitável entre os seres humanos
como se a única ética não religiosa fosse o utilitarismo, ou como se os e os restantes seres vivos. O que há que denunciar, como inacei·
argumentos e as teses não utilitaristas fossem de natureza religiosa. tavelmente discrirnína<lor, é que os indivíduos da espécie huma-
Feita esta ressalva, e redefinido o alcance dos enunciados defendi - na tenham, simplesmente por serem membros ela espécie huma-
dos nestas obras, consideremos em concreto as teses propostas. Seguir- na, direito à vida, um direito que não se reconhece em termo~
se-á, pelas razões ele simplicidade já indicadas, o seu desenvolvimento tal idênticos aos membros das outras espécies. Esta defesa do valor
como é apresentado na Ética Prática. . inviohível da vida humana é apresenlat.la como uma forma de
"especismo" 11•

3. O ARGUMENTO CENTRAL ~ EP. p. I J.


'º EP, p. 92. Na base clesta tese está. a dúvida de que exista uma característica
Nas primeiras páginas da Ética Prática, Singer afirma: "se há algum nalural, comum a lod os os homens, e que seja razão suficiente para diferenciar especí J]-
aspccto deste livro ,que o distingue de outras abordagens de temas corno camcntc os homens dos outros seres vivos. Comentando crítica e brevemente as teses de
a igualdade humana, o aborto, a eutanásia e o ambiente, é o facto de Rawls, Singcr conclui: "Logo, a posse de "personalidade moral" não proporciona um
fundam ento sntisfalório para o princípio de que todos os seres humanos são iguais .
esses temas serem analisados com uma rejeição consciente de qualquer Duvido que alguma caractcrísrica natural, quer se trate de uma "propriedad e de üml.,jtu"
qner não, possa cumprir essa função , porque não creio que haja uma proprieduúc moral-
mente significativa que todos os seres humanos possuam por igual" (EP, p. 37). A dúvida
7
El', p. 120, sublinhado nosso. opera ao longo de todo o texto corno a prova de que essa propried ade comum e diferen-
8
EP, p. 158, sublinhado nosso. ciadora não existe e constitui um dos pressupostos de toda a argumentação.
11
Cf. EP, p. 78. Cf. Abcrei/Jun
g , p. 63,
Ma1la de Me11donçn/ "1-lnverá
... Revista l'oi111guc .sa de Dioética / (n." 7.J/ Se1emtm, l007 / 177
J7 6 / l(evislu Por1ug11csn
de Bioético / (11.• 2) / Sctc.mbro 20()'/

,. 4. DISCRIMINAÇÃO E ESPECISMO
b) Reconhecida a discriminação, há que repensar as questões do valor
da vida humana e do direito a ela. Se os seres humanos não têm, . Uma análise crítica da argumentação de Singer merece que se
só por serem tais, uni direito especial à vida, há então que pergun- con~1dere brevemente a questão do especismo, que coloca como ponto de
tar que seres, entre os seres humanos, têm direito à vida, e por yue partida da sua denúncia e, portanto, também da sua solução.
motivo: Singer aborda a questão idenlilicanclo as condições em Singcr apresenta o especismo como uma forma de discriminac;ão
que um indivíduo é detentor de direitos, e considera que os seres que leva a privilegiar os indivíduos de uma determinada espécie, em
12
humanos que os possuem são as pessoas, e apenas elas • detrimento de indivíduos de outras espécies, concedendo-lhes direitos
e) Fundamentado em novas bases o direito à vida dos seres humanos, pr6prios. Neste sentido, o especismo é uma discriminação semelhante ao
comprova-se que os motivos que levam a considerar como valio- racismo e ao sexismo 16• Nos três casos, o que se faz é discriminar deter-
sas deternúnadas vidas humanas não se realizam em todos os indi- minados indivíduos, reconhecendo-lhes privilégios, com base em carac-
víduos humanos e, por ouu·o lado, que essa5 condjções se verifi- terísticas pural'ne.ntc biológicas, reconhecidamente inelevantcs. Mas, nos
1
cam noutras formas de vida, em fo1mas de vida não humanas l. três casos - argumenta Singer - a discriminação é insustentável. Com
efe ito, tal como é inaceitável discriminar indivíduos humanos com base
d) Por último, identificadas as condições em que um indivíduo é na cor da sua pele, ou discriminá-los em virtuJe do seu sexo, é inacei-
detentor de direitos e, portanto, detentor do direito à vida, haverá tável discriminar - · favorecer - determinados seres vivos com base no
que reformular o enunciado que determina o alcance do direito facto biológico de serem membros da espécie humana, de pertencerem à
à vida dos seres humanos. Singcr fá-lo considera ndo discrimina- espécie Homo sapiens. ·
damente ceitas situações concretas e, por esta via, é levado a Mas a analogia é eyidentemente questionável. Uma análise breve
introduzir no interior da própria espécie humana uma nova - e cio paralelismo proposto permite não só pôr em causa a coerência e a
a seu ver fundada - discriminação, em virtude da qual podemos pertinência da argumentação de Singcr neste ponto, como defender inclu-
distinguir entre os indivíduos humanos que têm direito à vida e sivamente que é a argumentação singeriana - e a solução que propõe -
aqueles que não têm esse direito. A este segundo tipo de indiví- que conduzem precisamente ao que pretendem combater. Dito de outro
duos pode até eventualmente ser concedido o direito a viverem, modo: não é a tese que Singer combate, mas precisamente a que defende,
mas não o possuem por si mesmos 14• e que nega o valor inviolável da vida humana, 4ue pode ser vista como
O fio condutor da argumentação singeriana consiste, assim, em uma discriminação similar ao racismo e ao· sexismo. Mais radicalmente
substituir uma discriminação, considerada inaceitável, por outra, tida como ainda, ao contrário do que Singer afirma, aquilo que ele designa como
fundamentada. A discriminação infundada diferenciava claramente o valor especismo e a respectiva fundamentação, constituem a base mais sólida,
e provavelmente a única razão convincente, para considerar inaceitáveis
da vida humana do valor da vida animal. A discriminação fundamentada
tanto o racismo como o sexismo.
distingue entre seres humano s que têm direito à vida e seres humanos
que não gozam desse direito 1S. Nesta substituição consiste, a seu ver, a _ Vejamos então. Como se indicou, no essencial a :u-gurnentação de
Smger não consiste em suprimir urna discriminação, mas sim em deslo-
supressão do especismo.
cá-la. A rejeição do carácter inviolável de toda a vida humana não o
conduziu a afirmar o carácter inviol.ível de toda e qualquer forma de
12 Cf. EP, pp. 115 e ss. Mesma tese em Abtreibwrg, pp. 73-75.
p. 75.
u Cf . EP,
Cf. EP, p. 171: "Como nenhum felo é uma pessoa, nenhum felo iem o mesmo
1'
razão não espccista para preferir usar animais em vez de adultos human os normais, se é
direito à vida que urna pessoa. ( ... ) enquanto essa capacidade [de sentir dor] nilo existir, que essa ~xP:riên~ia deve ser feita". Mas acrescenta: "Nu que diz respeito a este argurnen-
um aborlo é o fim de urna ex.istência que não possui qualquer valor 'intrínseco"'. Cf. ltJ, os anumus nau humanos, os bebés e os de!icie utes iotelecluais profundos estão na
também, entre muilos outros, EP, p. 184 e p . 193. IJlCSlllU categoria" .
15 Cf. EP, p. 80: referindo-se ao facto de que o sofrimento provocado por cert.as 16
Cf. EP, p. 96 e p. 108.
experiên cias 6 maior nos homens do que nos animais, Singer conclui que "existe uma
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Marta de Mec11Jo11ça
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vida, levou-o antes a deslocar para o interior da espécie humana a dis-
criminação que denunciava, estabelecendo a distinção entre os membros .' Por último, e contrariamente ao que pretende Singer. o espedsmo,
da c~pécic Homo sapiens que têm direito à vida e aqueles que não têm longe de ser uma forma de discriminação similar à do racismo ou à do
esse direito 17• ~exismo, é a base que permite considerar essas discriminações como
Por outro lado, da perspectiva de Sínger, a aproximação entre o infundadas . Com efeito, é o que têm em comum os indivíduos da espécie
especismo e o racismo ou o sexismo é legítima por se Lralar em todos os hum~na que torna irrelevantes as diferenças de natureza biológica que
casos de formas de discriminação que têm uma base puramente biológica manifestam, como a cor da pele ou o sexo. Isso que Lêrn em comu1:1 é
e que, por isso mesmo, não podem fundamentar valorizações ou discri- precisamente o que os separa das outras espécies vivas. Mas estas dife -
minações relevantes. Por que razão seria pettinente para o valor de um 1" renças de qase biológica são consideradas irrelevantes entre os seres
indivíduo a cor da sua pele ou o seu sexo? Igualmente, por que motivo humanos precisamente porque ser um indivíduo da espécie humana signi-
teria que ser considerado relevante pertencer a uma determinada espécie fica algo mais do que possuir determinadas características biológicas.
em vez de a outra?
Mas é cimo que a aproximação destes três "ismos" não os coloca
a todos em pé de igualdade. Há obviamente uma diferença - e não ! 5. SERES HUMANOS, HOMENS E PESSOAS
irrelevante - entre o sexismo e o racismo, por um lado, e o espcc isrno,
por outro. Com efeito, enquanto as duas primeiras formas de discrimina- Voltando ao núcleo central dn argumentação, na base da tese se-
ção se situam no interior da espécie humana , a última distingue indiví- gundo a qual a vida hum ana é inviolável ou sagrada (ou, melhor, na base
duos pertencentes a espécies diferentes, distingue os indivíduos da espécie da aceitação genernlizada e aqfüca desta tese), oculta -se, segundo Singer
humana, globalmente considerados, dos outros seres vivos. Precisamente ~ Hõrster, uma ~mbigui~ade que é preciso expl icitar. Realmente, o que
o que torna inaceitáveis as duas primeiras formas de discriminação - que e que se quer dizer quando se mantém esta tese?
discriminemos indivíduos humanos bnrncos ou pretos, que discrimine- A sua significação é necessariameme uma de duas . "Decompu se-
mos homens ou mulheres - não se dá no terceiro caso . Aqui a discrimi- mos a doutrina da santidade da vida humana em dua_s afirmações distin-
nação não se situa no interior ela própria espécie mas remete para fora tas: uma que defende que a vida dos membros da nossa espécie tem um
dela. Por isso, como se indicou, é a condusão de Singer, não o especis- valor especíal e outra que confere um valor especial à vida de uma
mo, que mais se assemelha ao sexismo ou ao racismo; é a sua tese, não pessoa " 18
o especismo, que introduz na espécie humana uma discriminação interna Trata -se de doi s sentidos diversos - de "duas afirmações distintas",
similar à do racismo ou à do sexismo . Também aqui, caberia perguntar: lê-se - que se sobrepõem, mas que não coincidemt 9 • Não tendo o cuidatlo
por que razão há seres humanos que têm direito à vida e outros, ainda de distinguir claramente estes dois sentidos da expressão, a ambiguidade
por cima em tudo biologicamente idênti cos aos primeiros, que não têm que se oculta delrás da lese que afirma o direito à vida de Lodos os seres
esse direito? Ou, ao contrário, se é admissível, como pretende Singer, humanos é a seguinte: reconhecemos às pessoas o direito à vida (enten-
fazer esta discriminação no seio da espécie humana, por que não será dendo a expressão no segundo sentido) e atribuímos indiscriminadamen te
então legítimo fazer as duas discriminações antes mencionadas? aos membros da espécie Homo sap iens, a indivíduos com determinad r.s
car?cterísti~as bioló~icas, esse direito (entende ndo a expressão no pr;-
17
Singer indica que não pretende rebaixar o csllllutu dos homens, mas elevar o dos
me.1ro sentido). Assun, sempre segundo Singer, em virtude desta ambi-
animais . Cf. EP, p. 98: ''Também é importante recordar que o obje!elivo do meu argumento ?ui?~de, realiza-s~ ~ passagem ~uc consiste em considerar que todos os
é elevar o estatuto dos animais, e não diminuir o estatuto de qualquer ser humano ". Comudo, md1v1duos da espec1e Homo sap rens têm a propriedade de serem pessoas
n argumentação que apresenta não é uma defesu do direito à vida de todos os animais mas - uma passagem que carece de legitimidade.
unf.1ueclarnção da inexistência desse direito em cenos membros da espécie humana.Cf., por
exen1plo, EP, p. 186: "Por menos quanuo efectnado ault:s das 18 scmanns, o aborto é, em
s.i, mornlmenie neutro". Ou também EP, p. 188: "nada vejo de inerentementc errado no
18
aumento do número de abortos nem em gravidezes destinadas a fornecer tecido fetal'' . EI', p . 110.
19
Cf. EP, p. 106.
Mart a de Mc.ndonç.a / "l lavcní ... Revista Portuguc,~a de Bioé1it.:a/ (11.º 2) / Sele 111h102007 / 181
180 / Re ví st.111'01tugucsn de Bioética / (n.• 2) / Setc111bro 2007

espécies são pessoas; alguns membros <la nossa espécie não o são. ( ... )
Ora isto significa incorrer num cn-o - argumenta Singer - porque De modo que matar um chimpanzé, por exemplo , é pior que matar um
perte1~cer à espécie Homo sapiens é uma característica biológica e ser ser humano yue, <lcvi<lo a urna <leliciência mental congénita, não é nem
uma pessoa não o é. P01tanto - conclui - não podemos tomar como pode vir a ser uma pcssoa" 24 .
equivalentes as duas teses: "( ... ) poderia haver uma pessoa que não fosse Não é difícil identificar os vários em111ciados press uposlos nes ta
membro da nos sa espécie . Também poderia haver membros da nossa tese. Por um lado, Singer reconhece que é possível identificar um critério
espécie que não fossem pessoas"
2
º. indiscutível que permite reconhecer os seres lm111nnos. Esse critério é
E Singer prossegue, acentui111do a diferença : "( ... ) proponho-me ?io~ó~ico e é a pe1tença à espécie humana 25• Por outro lado, entre os
usar o termo 'pessoa' no sentido de um ser racional e autoconsciente, md1v1duos que pertencem à espécie humana há os que chegam a ser pes-
para captar os elementos do se~tido popular de ' ser humano' que não são soas e os que nunca chegam a ser, ou deixam Je ser, pessoas. Mas, se isto
abrnngidos pelo termo ' membro da espécie Homo sapiens'" 21• é verdade, e ~à primeira vista pareceria indis c utível, haverá que admitir ou
Enco ntra -se aqui o núcleo esse ncia l da argumentação que sustenta pressupor que a condição pessoal é uma propriedade de certos indivíduos
as teses defendidas na Ética Prâtica . Na sua defesa, Singcr e Horster hum~n~s e . qu~ ~e trata de uma propriedade efectivamente separáve l <la
faze m intervir uma série de pressupostos metafísicos, antropológicos e condtçao b1olog1ca desses indivíduos.
epistemológicos, que não questionam, nem sequer enunciam explicita- ~ Parece óbvio. Sê-lo-á? É o que, também neste caso, gostaríamos de
mente, dando -os por evidentes, mas que na realidade estão longe de ser por em causa brevemente.
incontroversos. Como se indicou, só referem explicitamente os pressu- Sing~r, parle da distinção entre indivíduos pertencentes à espécie
postos é ticos. llomo sap,ens. e pessoas. A distinção é legítima, argumenta , porque per-
Consideremos apenas alguns desses pressupostos, os mais óbvios. tencer à espécie Homo sapiens é uma característica de tipo biológico e
A propriedade de serem pessoas que possuem alguns indivíduos da ser uma pessoa não o é. Portanto, como víamos, pode-se ser membro da
espécie humana dá -lhes, ainda que limitadam en te 22, um especial direito e_spécic humana e não ser uma pessoa. Neste sentido, a nota da persona-
3
à vida . mas essa propriedade não é - diz Singer que manifestam ente2 - lidade, o~ a condição pessoal, deve entender-se como uma propriedade
partilhadn por lodos os seres humanos. Daí que, se aceitarmos que é ~ue adquirem determinados indivíduos e que outros não chegam a adqui -
comum chaimu · homens aos seres humanos pessoais, haverá que dizer nr, ou acabam por perder. Assim como nem todo s os indivíduos humanos
qu e hâ seres humanos que não são homens, ou, se preferirmos aceitar se tornam médicos ou pianistas, também nem todos os indivíduos huma-
que os membros da espécie humana se chamam homens, haverá que nos se tornam pessoas, haveria que dizer com Singer.
afirmar que há homens que mio siio pessoas. "Alguns membros de outras Mas neste estatuto reconhecido ou atribuído à pes soa reside preci-
samente um dos aspectos mais problemáticos da argumentação singe-
riana. Defendendo esta tese, Singer pressupõe ou afirma:
'º EP, p. )07 . Mesma lese em Abtreib1111g, p. 66 . que a personalidade é uma propriedade que se adquire ou se
11 EP, p. 108, sublinhado nosso. Cf . 1ambém, por exemp lo, El', p. 136: "Alguns
animais não humanos são pessoas, de acordo com a nossa defi nição do term o. ( .. . )
perde ;
Defendi que, se a vida humana possui mesmo um valor especial . ou um direito especial - que a personalidade se identifica com a sua manife stação .
a ser prulegida, possui-os em virtude de l'1 maioria dos seres humanos sere m pessoas".
21 Singcr não parece encontrar motivo suficiente para afinnar o valor intrínseco Começando pelo segundo pressuposto: quando procura uma carac-
mesmo dos seres pessoais: cf. El', p. 174. Cf. também EP, p. 111: "Assim, para o ulili- teristica natural comum a todos os seres humanos, que permita eventual-
1arista clássico, o estatuto de 'pessoa' não é directamenle releva/lle parn o mal de malar.
( .. . ) Daí que o utililarisla clássico possa defender a proibição de mata r pessoas na base
mente reconhecer cm todos a nota da personalidade , Singer procura uma
irulirecJa de que isso aumenta a felicidade de pes soas que , de outra forma , se preocupa-
riam com a possibilidade de serem mortas. Digo que se lrntn de uma razão indirccln
porque não se rcfe.rc a nenhum mal directo provocado na pessoa morta, mas a uma " .EI', p. 137. Cf. também Abtrcibung. p. 80.
con sequência que isso tem noulras pessoas''. 25 Cf. El', p. 163 e Abtreil.,ung, p. 25.
23 Cf., por exemplo, EP, pp. 170- 171.
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característica empiricamente comprov{ível possuída por lodos os seres gem comum , a condição pessoal do hom em não se identifica com a sua
humanos. Se ainda não for possível, ou já não for possível, seguir o rasto manifestação empírica , entende-se como uma característica definitória e
empírico de ssa característica, considera que não estamos ern presença de identificadora do suporte dessas manifestações. Mais do que veicular
característica alguma. A característica natural referích1 não é, portanto, sub-repticiarn entc uma ambíguidade, confundindo ser humano e ser pes-
uma característica estável, dcfinitória do ser em causa, quaisquer que soa, a linguagem comum toma explícitamente como si11611irno s ser hu-
sejam as condições em que eventualmente possa, ou não, manifestar-se, mano, homem e pessoa, porque pressupõe que esses termos são designa-
mas identifica-se com a própria n1anifestação. O ser que pensa é pensante ções diversas e sinónimas do sujeito dos comportamentos pessoais, quando
e o ser que ainda não pensa, ou já não pensa, não é um ser pensante. nos referimos aos indivíduos pertencentes à espécie humana.
À primeira vista, Singer não distingue entre o embrião e a pedra, quando Isto remete para o primeiro pressuposto . Como se viu, Singer pres-
se trnta de caracteri zar a capacidade pensante de um e de outra . Que o supõe que a personalidade é uma propriedade cfectívamenlc separável da
embrião ainda não pense, mas venha, se não for impedido de se desen- condição biológica do homem, de tal modo que alguns possuem essa
volver, a manifestar essa capacidade, não é a seu ver pertinente para con- propriedade e'õutros não chegam a possui -la. Mas a verdade é que, quando
siderar que há uma diferença qualitativa decisiva entre um e outro e entre falamos de homens ou de pessoas, referimo -nos habitualmente, não a
a maneira de considerar a ausência de pensamento nos dois casos 26• uma propriedade ou a uni conjunto de propriedades, mas ao sujeito des-
O mesmo se poderia dizer relativamente aos doentes e aos incapacitados. sas propriedades. Homens e pessoas são, na linguagem comum , os Sltjei-
Seres que já não estão em condições de pensar, que já não manifestam t:os de determinadas propriedades, e não o cottjunco de propriedades que
essa capacidade, são seres que já não são pensantes. Em virtude desta tese, possuem (ou que manifestam) determinados seres biológicos. Daí que,
Singer situa-se abertamente na tradição empirista, afirmando alü1s expli- r'
'1
enquanto não se destruir o sujeito das propriedades, mesmo que elas se
citamente que as teses éticas de David Hume nunca foram refutadas 27• percam ou deixem de mariifestar-se , não deixemos de falar ele pessoas ou
Mas a própria argumentação de Singer não é sempre coerente nesle de homens . Do homem que perde momentânea ou temporariamente a
ponto. Com efeito, este propósito de identificar a capacidade com a sua consciência, em virtude de um acidente, por exemplo, não se diz que é
manifestação empírica, com que Singer opera sistematicamente quando um ser humano que temporariamente deixou de ser pessoa ou deixou de
se refere aos seres humanos, e que constituí a base da sua distinção enlre ser homem, mas que é um homem ou uma pessoa que temporariament e
seres humanos que são pessoas e seres humanos que não são pessoas, não manifesta os comportamentos habituais próprios das pessoas .
não é sempre usado para os animais . Assim, por exemplo, depois de Ao considerar, do modo como o faz, a personalidade como uma
descrever certas experiências com macacos, inte1n1ga-se: "Serão excep- propriedade , Singer incone num emJ lógico, confundindo a possibilidade
cionais , a este respeito, entre todos os animais não humanos precisamente de predicar do homem a personalidade com a afirmação de 4uc a perso-
porque usam uma linguagem? Ou será que a linguagem permite mera- nalidade é uma propriedade : ao fazê-lo, confunde predicados gramaticais
nwnte que estes animais nos demonstrem uma característica que tanto e expressões predicáveis. Que a personalidade se predique do homem
eles como os outros animais possuem?" 28• não significa que seja urna propriedade atribuível ao homem e separável
Por outro !mio, defendendo esta identificação entre a condição dele. Acontece com a personalidade o mesmo que caberia dizer da hu-
pessoal do homem e a sua manifestação, Singer afasta-se manifestamente manidade: que a humanidade se possa predicar de cada um dos homens
do rnouo habitual de entender a condição pessoal cio homem. Na língua- não nos permite concluir que os homens dos quais se predica têm a
propriedade de ser homen s, precisamente porque, ao predicar deles a
humanidade, o que se está a afirmar é que são homens .
1• Sing e r é forçado a imrodu,.ir posteriormente a noçiío de pessoa potencial. mas
Por isso, na linguagem comum, tal corno não nos tornamos seres
não deixa de afirmar : "Haverá mais algum signific ado no facto ele o feto ser uma pessoa
{ ;.-,.. humanos, não nos tornamos homens ou pessoas. Tal como os seres hu-
em potência '/ Se há, não faço a menor ideia do que seja '' (EP, p. 175). ~' o 1
27
Cf. EP, pp . 373-374. Hürsier re.fere-se também explicitamente à filiação humeana manos, sendo sere s humanos, se actualízam e se desenvolvem no tempo,
da Lese ttqui apresentada em Ab1reibu11g,p. 120. os homens e as pessoas - e só eles - aclualizam no Lempo a sua condição
2
' EP, p. 132. pessoal, manifestam empiricamente o que são, de modos diversos à medida
184 / Rcvjs1a Portuguesa de Dioétka / (n.º 2) / Setembro 2007
Marta Ue Me 1ú1tmça/ "Haverá... Revista Prn111g11esa
tio Dioética / (n.' 2) / !:ietemi,ro 2007 / 185

que o tempo passa e o desenvolvimento se dá. Não nos toáiamos ho - 6. lJMA SOLUÇÃO INCOERENTE?
mens, dcsenvolvemo-nos como homens, tal como não nos tornamos
pessças, desenvolverno-nos como pessoas que já somos, mesmo quando Singer e Hêirster, que não aceitam nem discutem sequer esta p(>s-
ainda não desenvolvidas. sibilidade, debatem-se contudo com as consequências da sua própria
Contrariamente ao que parece pressupor Singer, o ser homem do posição. Admitindo simultaneamente que:
homem manifesta-se em propriedades, que se vão desenvolvendo pro-
J) a pertença à espécie Homo sapiens é uma categoria biológica;
gressivamente, mas não consiste em nenhuma propriedade. Para possuir
2) o feto humano e o homem desenvolvido pertencem à mesma
propriedades humanas (ou poder desenvolvê-las), um sujeilO tem que ser
espécie;
já um homem. Por isso, tal como não se desenvolve até se tomar ser
3) ser pessoa ou ser homem são propriedades de indivíduos perten-
humano, mas se desenvolve como ser humano, o feto não se vai desen-
centes à espécie Homo sapíens;
volvendo até se converter em homem, mas desenvolve-se como homem,
:~--
nem se vai desenvolvendo até se tomar pessoa, antes se desenvolve como não encontram forma de fundrunentar coerentemente a tese segundo
pessoa. A razão é clara: o feto não se converte no que é e pertencer à a qual ser homem ou ser pessoa não são características biológicas. Mas
espécie Homo sapiellS implica sempre ser homem e ser pessoa 29• este é precisamente um dos pilares da sua argumentação. e indispensável
A falácia oculta na argumentação de Singer é que infere do critério para reconhecer - como pretendem - que nem todos os seres humanos
identificador da pertença à espécie humana a característica definilória têm os direitos das pessoas .
dos indivíduos que a integram, confundindo ou identificando a resposta O problema com que se debatem tanto Singer como Hõrster pode-
à pergunta: "quem é indivíduo humano?" com a resposta à pergunta "O ria ser assim enunciado: se tudo o que os indivíduos da espécie Homo
que é o indivíduo humano?". Dito de outro modo, se é verdade que um sapiens são é que são serês puramente biológicos, como é possível que
conjunto de características biológicas permite identificar de forma infa- desenvolvam com o tempo, e de modo espontüneo ou natural, um con-
lív~l os indivíduos da espécie humana, isso não significa nem autoriza a junto de propriedades não biológicas, precisamente aquelas que lhes
que esse conjunto de características biológicas se converta em critério de conferem o direito à vida?
determina<;ão da natureza dos indivíduos assim identificados. Se é verda- Não podendo evitar a questão, Singer e Hõrster resolvem-na fazendo
de que, elemodo não aleatório, natural e não induzido, os indivíduos da apelo à distinção, que o discurso bioético tem tornado coITente, entre
espécie humana manifestam no tempo determinados comportamentos homens potenciais e homens, ou entre pessoas potenciais e pessoas.
pessoais, então o crítério biológico permite reconhecer os indivíduos que, A dificuldade é clara, e de difícil solução a partir dos pressupostos
para além das características biológicas referidas, são também, como de Singcr e Horster. A nítida distinção entre a pertença à espécie Homo
revelam habitualmente no tempo, algo mais do que seres puramente bi- sapiens e a condição pessoal, bem como a separabilidade dos dois sen-
ológicos.' A pertença à espécie Homo sapiens não é, assim, dcfinitória da tidos da expressão "ser humano'', obrigam a colocar o problema: de onde
nossa condição meramente biológica, é antes o crité(io que permite de- provém então a condição pessoal? Qual a origem desse carácter pessoal
terminar que indivíduos entre os seres biolôgicos são seres pessoais ou que alguns possuem e outros não chegam a possuir ou acabam por per-
são homens. der? Não seria mais razoável pensar que os seres que manifestam no
tempo características pessoais eram já antes, desde sempre e por nature-
za, seres pessoais, e que se o não fossem não poderiam tornar-se pessoas?
29 O mesmo . raciocínio seria válido para os indivíduos humanos que deixam de ler,
Se assim não é - e Singer e Hõrster assentam toda a argumentação
precisamente na afirmação do carácter não natural da pessoa -, como
temporária ou definiúvamenle, os comportamentos próprios dos seres pessoais. Tal como
não se tornaram homens ou pessoas, em seutido ontológico , não deixnrum, no mesmo chega o ser humano a tomar-se aquilo que não em? Negar a condição
sentido, de ser homens ou pessoas: deixaram simplesmente de manifestar determinados pessoal de todo o ser humano não equivale, em úllima instância, a torná-
comportamcnlos próprios dos homens: são homens ou pessoas que não manifestam tudo -la incompreensível, fazendo de1ivar do nada essa condição pessoal que
o que é ser homem ou ser pessoa. o tempo revela?
186 / Revista Portuguesa de Dioética / (n.• 2) / Setembro 2007

A personalidade não se possui desde sempre, mas obviamente tam-


bém não vem do nada - reconhecem Singer e Horster. "Pelo contrário,
este ser é desde o princípio um indivíduo pertencente a uma espécie
biológica totalmente determinada (a espécie Homo sapi ens), que já con-
tém em si, 11aforma de uma predi .1posição ,iarural, a possibilidade de se
desenvolver até se converter numa pessoa humana. Este ser, o feto huma-
no portanto, pode-se designar com toda a razão como uma pessoa poten-
cial ou t:omo um ser pré-pessoal, para o distinguir duma pessoa em
acto" 30 . •
Mantendo esta tese, Ilor ster e Singer admitem, no entanto, algo
que é fatal p,u-a a coerência <la sua argumentação, porque admitem que ....
, ..
faz parte da espécie llomo sllpie11s, como predisposiç.'io natural, a possi-
bilidade de se desenvolver até se converter em pessoa, e isto de forma
nf.íocasual mas essencial. Mas , se se admite isto, há urna base sóli.da para
inferir precisamente aquilo que nem Singer nem Horster admitem: por
um lado, que ser pessoa não é uma propriedade; e, por outro, que a
pertença à espécie Homo sapiens é, desde o princípio, algo mais do que
uma característica relevante só do ponto <le vista biológico .
Ora, se se aceita isto e se a personalidade não é uma propriedade
biológica , equivalerá com toda a necessidade à actualização de uma pro-
priedade não biológica que deriva, contudo, evidentemente, da pertença
à espécie Homo sapíens, ou está implícita nela . Mas, nesse caso, também
a pertença à espécie Homo sapíens não corresponde a uma categoria
meramente biológica - e pode considerar -se ju stificada a concessão duma
posiç ão de privilégio a todos os indivíduos da espécie . Ou, o que é o
mesmo, a distinção entre ser homem em potência e ser homem cm act.o
- mesmo passando por alto a imprecisão veiculada por esta distinção, e
que não é poss .ível explicitar aqui - não justilica tratar de modo diverso
os seres da espécie humana. Que uns ainda não tenham manifestado ou
actualizaclo tudo o que são - homens ou pessoas - e outros já tenham
tido essa possibilidade não nos autoriza a tratar de modo diverso uns e
outros. E, sobretudo, não nos autoriza a diferenciar os direitos de uus e
de outros porque os direitos se possuem pelo que se é e não pelo estádio
de desenvolvimento que se alcançou .

30 g. p. 85, sublinhado nosso.


Ab1reilm11

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